You are on page 1of 13
G DINAMICAS SOCIAIS DO NOSSO TEMPO Augusto Santos Silva FICHA TECNICA Autor Auguste Santos Silva ‘Titulo Dindmicas Sociais do Nosso Tempo ilitora da Universidade do Porto Série Par Saber, 1 Bdigho Porto, Maio de2002 ‘© Augusto Santos Silva e Universidade do Porto Enderego Reitoia da Universidade do Porto Rus D. Manel 4050-345Porto hetpyjvew.uppt|emal editup@reitup pt Design Studio Andrew Howard Impressio Meret AG_Porto ISBN g72~8025-13-0 Depésito Legal s7.008/02 AUGUSTO SANTOS SILVA. DINAMICAS SOCIAIS DO NOSSO TEMPO LUMA PERSPECTIVA SOCIOLOGICA, PARA ESTUDANTES DE GESTAO 6 PORTO UNIVERSIDADE DO PORTO ead rely eres CAPITULO | MODERNIDADE £ POS-MODERNIDADE 1. A TERMINOLOGIA A primeira observacaoa fazer, quando se consideram sociologicamen- te as questdes da modernidade, € de ordem terminolégica. A periodi- zagio mais corrente é Aevedora da divisdo em épocas hist6ricas de- signadas por “idades”. De acordo com el “idade moderna” denota a época que decorre entre a conquista de Constantinopla, em 1453, € & Revoluczo Francesa, ert 1789, Da Revolugao Francesa para cé, falamos de “época contemporsinea’”. Ora bem: na terminologia que se tem con- sagrado na sociologia actual, e que usaremos no contexto desta di plina,a palavra “modemidade” identifica também (e sobretudo) 0 que os historiadores chamavam de “época ou idade contemporanea”, Com essa palavra, queremos designar, a0 mesmo tempo, uma época ¢ um projecto. No seu sentido mais simples, ela denota a emergéncia, na Europa pés-feudal, de novas formas de organizacio e de novos projectos sociais—aqueles, e este é0 ponto decisivo, em que ainda hoje nos reconhecemos. Essa emergéncia pode ser datada entre os séculos XVI e xvutt: séculos de profundes mudangas em vario dominios, como o conhecimento e a tecnologia (com a revolugio cientifica),a religito (com a Reforma, a formagio do protestantismoe a chamada Contra-Reforma), a politica (com o desenvolvimento de Estados centralizados, e de modelos e praticas de reordenamento politico e juridico dos Estados), a economia (com a expansio mariti- ‘ma, o surgimento de uma economia-mundo, 0 capitalismo comercial, ‘03 impérios coloniais, as manufacturas, as politicas econémicas esta- tais),a composigdo social des populagdes (com o desenvolvimento de fracgBes burguesas, ligadas as cidades, ao comércio e & indistria, ao funcionalismo, com a renovagio de aristocracias, com o crescente peso demogréfico e social dos trabalhadores urbanos). A partir dos fins do século xvut, a modernidade ganha uma nova forga e novos contornos ~ com a revolugo industrial e os pro- cessos de industrializagio, e com o desenvolvimento do capitalismo industrial, associado a economia de mercado. Estes processos variam de pais para pats, mas marcam caracteristicamente, nas sociedades ‘europeias mais avangadas, o século XIX. Finalmente, 0 impacto da modemidade sobre todoo sistema mundial marca o desenrolar do nosso século xx. 2, 0 PROJECTO DA MODERNIDADE A dinamica de desenvolvimento da modernidade varia segundo as vertentes consideradas. Pode aceitar-se que, como escreveu Boaven- tura de Sousa Santos (1994: 72),a constituigdo da modernidade como “projecto sécio-cultural”, como “paradigma” de conhecimento e de acgiio, precede o capitalismo moderno, propriamente dito, quer dizer, 0 “capitalismo enquanto modo de produgéo dominante nos paises da Europa que integraram a primeira grande onda de industrializaglo”, 20 longo do século xix. Como se pode caracterizar aquele projecto ou paradigma? Ele procura e propde uma légica de desprendimento e de ruptura com a tradigdo ~ uma légica de emancipagto dos cidadaos (emanci- 16 | | | [pagio face As crencas tidas por irracionais, face as dominagGes tidas por arbitrérias, face as regras fundadas apenas em argumentos de autoridade e costume). E propde uma légica de regulagio, isto é, novos meios de coordenacao das actividades e das relagdes entre cidados, actividades e interesses. Os filésofos edoutrinadores politicos dos séculos Xvi e XVI conceberam trés grandes principios de regulagio: o Estado, entendi- do como uma instancia em favor da qual 0s cidadaos abdicam de parte dos seus poderes, e que monopoliza o uso legitimo da forga, para exercer fungOes de administracao e justica sobre um territério;o mercado, entendido como uma instincia de troca de produtos ¢ ser- vigos, fundada sobre aabertura,a informagio e as vantagens compa- rativas, e regulada pelos mecanismos de formaglo de pregos e circu- lacdo da moeda; a comunidade, entendida como o conjunto dos cidaddos, partilhando um interesse e vontade comuns e capazes de formarem e conduzirem o seu préprio governo. Destes trés prinefpios de regulacio concebidos na moderni dade, a Europa desenvolveu, sobretudo, os dois primeiros. As soci dades europeias modernas construiram, com particular impacto nos séculos X1x e XX, Estados centralizados, em geral vinculados a territ6- tios nacionais; e aeconomia industrial europeia constituiu-se, consis- tentemente, como economia de mercado. A ideia de comunidade, designadamente tal como claborada por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), inspirou diferentes doutrinas sociais e politicas, mas nico foi materializada de forma equivalente as outras duas ideias fundado- ras da regulagao moderna, ‘A moderidade europeia tomou, jé 0 vimos, a emancipagio como libertagao do individuo face aos constrangimentos arbitrérios do costume, da tradigio ou da dominago. Quer dizer, fez da “Razio” ‘© principio eo meio por exceléncia da emancipagio do individuo e da 7 concertagdo entre as actividades dos individuos e dos povos. Max Weber (1864-1920), um dos fundadores da sociologia, pode sintetizar 0 proceso de modernizagao como um processo de racionalizagio (e, por isso, também, desencantamento do mundo). Mas nio hé uma tinica logica de racionalidade. De facto, a0 longo da modernidade, foram sendo propostas vérias logicas de racionalidade, que Roaventura de Sousa Santos (1996: 73) enunciaem trés tipos:a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-pratica da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo instrumental da ciéncia e da técnica, Continuemos a citar B.S. Santos (1988: 71):"“Como em qual- quer outra construgiio, estes dois pilares [da regulagtio e da emancipa- lo] e seus respectivos principios ou logicas estio ligados por calculos de correspondéncia, Assim, embora as logicas da emancipagao racio- nal visem, no seu conjunto, orientara vida pritica dos cidadiios, cada uma delas tem um modo de insergao privilegiado no pilar da regula- «fo. A racionalidade estético-expressiva articula-se privilegiadamente com o principio da comunidade, porque é nela que se condensam as ideias de identidade e comunhao semas quais nfo épossivel a contem- placio estética. A racionalidade moral-pratica liga-se preferencial- mente ao principio do Estado na medida em que este compete definir «fazer cumpris um minimo ético para o que é dotado do monopélio da producao e da distribuigio do direito. Finalmente, a racionalidade cognitivo-instrumental tem uma correspondéncia especifica com 0 prinefpio do mercado, no s6 porque nele se condensam as ideias da individualidade e da concorréncia, centrais ao desenvolvimento da ciéncia e da técnica, como também porque jé no século xvin so vist- veis os sinais da converséo da ciéncia numa forga produtiya”. Ora,amodernidade europeia caracterizou-se pela fortissima expansio e imposigdo social da ciéncia e da tecnologia. Face a essa 8 expansiio, e mau grado o desenvolvimento especffico da cultura eru- dita, a difusdo da racionalidade estético-expressiva parece menor. ‘As mudangas sociais associadas & modernidade nio ocorre. ram, como jé referimes, ao mesmo tempo em todo o lado, Pensando na Europa, que é 0 beryo civilizacional da modernidade, deveremos referir, em primeiro lugar, 0 longo periodo de gestagio sociocultural da modernidade, entre os séculos XVI e Xvmt; e, em segundo lagar, a aceleragdo dos séculos XIX e XX, no quadro da articulagto entre modernidade e capitalismo industrial. Mas esta &a periodizagio indi- cada para os paises avangados ¢ centrais do sistema mundial. Nas periferias desse sisterca,a periodizagio é muito diferente. As dinami- cas de modenizacio ¢ desenvolvimento capitalista ocorrem bastante mais tarde e mais lentamente na Europa do Sul, na Europa do Leste, na América Latina, na Asia, em Africa. A tensio entre tradicao e modernidade, ot, se quisermos, a transigio entre sociedade tradicio- nal e sociedade moderna, é um proceso complexo, que percorre, por exemplo, os séculos xix ¢ xx em Portugal ~e é 0 processo que se colo- a, hoje, em muitos paises da periferia mundial. Ora, o que nesse pro- cesso, eem resultado da evolugio que sintetizémos, quanto a relacio entre principios de regulagao e principios de emancipacio, tipifica 0 centendimento hegemsnico do que é modernidade esta na conjugaglo entre mercado, Estado, ciéncia e tecnologia. £ a esta conjugacdo que chamamos, habitualmente, “modemizagao”” 3. AS MUDANGAS DA MODERNIDADE Queremos entenderanatureza, a dinamica ¢ os problemas das socieda- des actuais~ das diferentes sociedades que coexistem num mundo cada ver. mais global —e é para isso que nos serve, entre outras ciéncias, a sociologia. Designando essas sociedades por modemas, queremos esta- belecer: (1) que o proceso do seu desenvolvimento pode ser referido a ‘uma dada genealogia hist6rica (as transformagdes que vém ocorren- do na Europa e, depois, noutros continentes, desde hd uns 400 anos); € (2) que estas transformagdes marcaram descontinuidades claras entre as instituigdes de tais sociedades e as ordens sociais tradicio- nais. Nao pretendemos ~ ao contrério do que sugerem alguns apés- tolos da modernizagio de via tinica ~ sustentar a existéncia de um corte radical, de tal modo que ema nenhum aspecto seriam aproximé- veis as sociedades tradicionais eas modernas, ou relegar as primeiras para uma espécie de grau zero da evolugao. Sabemos o suficiente elas para serem indesmentiveis a sua complexidade ea sua riqueza. Alids, ainda ha pouco 0 medievalista Georges Duby (1998) tragou, num livrinho cativante, o paralelo entre os grandes medos do ano 1000 ¢ do nosso ano 2000, em torno da relagio com a miséria, as epi- demias,a violencia, o Outroe o Além. Entendidas, embora, numa perspectiva bem temperada, ‘quais sao essas descontinuidades? O socidlogo inglés Anthony Giddens tem procurado respon- der aesta questao;e valea pena considerar comatengio a sua resposta. Em termos muito gerais, diz ele, as descontinuidades eviden- ciam-se em trés aspectos. “Um deles 0 puro e simples ritmo da ‘mudanga que a era da modernidade poe em movimento. As civili- zages pré-modernas podem ter sido consideravelmente mais dind- micas do que outros sistemas tradicionais, masa rapidez da mudanga, nas condigies da modernidade, é extrema, Se esta rapidez 6 talven, mais evidente no que diz respeito & tecnologia, abrange, todavia, todas as outras esferas. A segunda descontinuidade € o aleance da ‘mudanga. A medida que diferentes regides do globo so postas em interligagdo umas comas outras, vagas de transformagiio social varrem virtualmente a totalidade da superficie da Terra. Um terceiro aspecto diz respeito a propria natureza das instituigdes modernas, Algumas for- ‘mas sociais moderna: nfo se encontram, pura e simplesmente, nos periodos historicos anteriores - tais como o sistema politico do Estado-Nagfo, a dependéncia generalizada da produgio do tecurso a fontes de energia inanimadas, ow a completa transformagio dos pro- dutos e do trabalho assalatiado em mercadorias. Outras tém apenas uma continuidade ilusoria com ordens sociais pré-existentes. Um exemplo disso éa cidade. Os povoamentos urbanos modernos incor- poram frequentemente os locais das cidades tradicionais e pode pare- cer que se expandiram a partir deles, Na verdade, o urbanismo modemo é ordenado segundo principios muito diferentes daqueles que, em épocas anteriores, izeram a cidade pré-moderna emergir dos campos” (A. GIDDENS, 1992: 4-8). Especifiquemos, agora, um pouco, distinguindo, de um lado, os elementos que estruturam as praticas dos actores sociais e, do outro, as instituigdes que organizam as relagdes sociais 31. No primeiro plano, continua Giddens, as sociedades modernas caracterizam-se pelo avango de trés processos: 0 controlo auténomo do tempo e do espago; os mecanismos de descontextuali- zagio; ea reflexividade institucional De facto, a modernidade pressupoe e reforga o dominio racional das coordenadas do tempo e do espago. A difusdo dos instra- mentos de medigio do tempo e de representagio cartografica sinaliza tum processo mais geral, através do qual os homens ¢ os grupos sociais. se vio libertando da vinculagao a um espago de residéncia, trabalho e relagio, reduzido e tendencialmente fechado - 0 espago do lugar tra- dicional, daaldeia ou do bairro urbano, que raramente se sbandonava € no qual se territorializeva uma comunidade social rel fechada sobre si mesma; ¢ assim se vio referindo a segmentos mais, vastos de tempo e de espaco, as distancias do comércio nacional ou internacional e dos territ6rios sobre 0s quais incide o poder doEstado amente a eda sua administragdo, assim como o tempo diferido do investimen- to econémico, da educagdo ou da rhobilidade social. Os mecanismos ¢ os processos de descontextualizagdo e recontextualizagao das coisas ¢ dos actos sto também centrais na modernidade. Os meios simbélicos de comunicagio e troca permite @ conversiio reciproca de diferentes bens ¢ actividades segundo um padrio comum de valor e, portanto, a circulagio de informagio e pro: dutos através de diferentes e, as vezes, longinquos contextos sociais. Tal 6,sem diivida,o caso de moeda, Mas o mesmo se poderia dizer das lin- guas nacionais e das I{nguas francas, internacionais, como foram, durante muitos séculos,o latim, depois o francés, enquanto ingua dos negécios diplométicos, ou é,actualmente, o inglés. Eo desenvolvimen- to dos sistemas abstractos, com o conhecimento e pericia técnica ea ciencia, garante formas de interpretacio e acco cujos fundamentos legitimidade sdo virtualmente umiversais, no sentido de que nfo depen- dem apenas dos usos particulares de cada contexto e de cada grupo de participantes, Na modernidade, a vida social depender4 cada vez mais destes meios simbélicos e destes sistemas abstractos, quer no que respeita a cultura material quotidiana (a habitagio,os transportes, a ali- mentaglo...), quer no que respeita a vida afectiva, pessoal e familiar (a satide, a intimidade, a orientagao vocacional e profissional...). Com a expanstio da troca monetiria e dos sistemas financeiros, com o desen- volvimento das tecnologias de producao, de transporte, de comuni cago e de medicina, com o desenvolvimento das especializagdes

You might also like