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CULTURA E PRATICA ESCOLARES: ESCRITA, ALUNO E CORPOREIDADE LUCIANO MENDES DE FARIA FILHO Faculdade de Educagéo — UFMG RESUMO Neste trabalho, pretendemos discutir algumas das implicagdes do processo de produgdo/le- gitimagao da(s) cultura(s) escolar(es) que acontece no interior e pelas praticas de escolarizagdo dos corpos e de ensino-aprendizagem. Procuramos demonstrar que nas primeiras décadas deste século, no Brasil, essas praticas escolares produziram o aluno, ‘sujeito (cognoscente) escolar, como um pressuposto das relagdes pedagégicas, estando ‘esse processo intimamente relacionado com a constituigdo de uma corporeidade escolar. CULTURA ESCOLAR — CORPOREIDADE — ENSINO DA ESCRITA — ALUNO ABSTRACT SCHOOL CULTURE AND PRACTICE: TEACHING WRITING, SCHOOLING THE BODY AND PRODUCTION OF THE STUDENT AS A SCHOOL SUBJECT. In this work we discuss some some of the process of the production/egitimization of school cultures that ‘occur within the practices of schooling the body and the teaching apprenticeship. We try to show that in the first decades of this century in Brazil, these schooling practices produced a student who was a cognizant school subject as a presupposition of pedagogical relations, and this process is intimately related to the constitution of a school corporeality. Cad. Pesq. 0.103 p.136-149 mar.1998 Passadas quase duas décadas da proclamagio da Republica e da abolic¢ao da escravatura institucionalizada, politicos, intelectuais e educadores mineiros saudavam a realizagéo de uma importante reforma do ensino publico primario. Segundo fragdes importantes da elite mineira, tal reforma encarnaria, a um 86 tempo, o espfrito republicano e, por isso mesmo, o idedrio da modernidade. Tratava-se de uma ampla reforma da instrugio primdria e do ensino normal Proposta, em Minas Gerais, no ano de 1906 que, entre outros aspectos, introduzia os grupos escolares como forma de organizar a instrugio escolar e a escrita vertical como escrita caracteristica da escola priméria. Como criago das condigdes de possibilidade de realizagio e de efetivacio da reforma, os profissionais e agentes da instrugao publica priméria produziram a representagio de que ela significaria uma ruptura com o atraso e com a desorganizacao da escola herdada do Império. Na produgdo dessa representagao, observamos no apenas a produgio de uma memoria na qual a instrucio, anterior & reforma, é tida como algo negativo e quase inexistente, mas também a vinculagdo da reforma com aquilo que de mais “moderno” se apresentava para os reformadores mineiros: a organizagio capitalista do trabalho e o mundo e as relagdes urbanas. Tanto em relagdo a organizagao capitalista do trabalho quanto a urbanidade, os tragos mais caracterfsticos com os quais as representagdes escolares tra- balhavam eram a racionalidade das relagdes sociais e de trabalho, a forma de gestéo e controle dos trabalhadores, a divisiéo das tarefas, as formas especificas de controle do tempo e ocupagéo dos espagos, entre outros. Para os profissionais e agentes da educagio, a instrugio primdria deveria se identificar com esse movimento renovador, devendo mesmo ser “lida” © organizada com base nessas referéncias. No interior desse proceso produziu-se a idéia de que os grupos escolares representavam uma nova forma escolar, afastada da casa e scparada da rua, no qual poder-se-iam realizar as projegdes construfdas acerca de uma cultura escolar que concretizasse 0 idedrio republicano de formagao de um trabalha- dor-cidadao apto ao trabalho capitalista ¢ para participar da vida publica, ambos organizados segundo as perspectivas da elite cultural, politica e econémica mineira ¢ brasileira. Um dos elementos fundamentais desse processo foi o estabelecimento, a partir dos grupos escolares e em decorréncia deles, do ensino seriado na educacio mineira. Isso criou as condigées de possibilidade de uma crescente homoge- neizag&o dos discentes, de uma maior segmentagao e especializagdo do trabalho docente, do ensino simultaneo e de uma escola de massas em Minas Gerais. Nao menos importante foi o processo de racionalizagiio das préticas pedagégicas escolares. Objeto de um detalhamento cada vez maior, sio crescentemente formalizadas tendo como referéncia a “modernidade” metodolégica representada 137 pelo “método intuitivo” e, com este, as novas maneiras de abordar e entender © processo de ensino-aprendizagem. E preciso que se chame a atengdo, de maneira especial, para a crescente afirmagao da maior sensibilidade para com ‘os alunos, seus ritmos e suas necessidades, como um imperativo inerente a escola e ao ensino moderno. Também os conhecimentos ¢ suas representagdes foram alvo de investimento por parte dos profissionais da educacao escolar, Estes buscavam escolarizar ¢ ensinar aqueles conhecimentos que melhor atenderiam As supostas expectativas e necessidades da clientela escolar. Percebemos, nas disputas sobre os conhe- cimentos escolarizados e escolariz4veis, um alargamento das finalidades cada vez mais complexas imputadas A educagdo escolar. Percebemos ainda que esse movimento ocorreu no interior de um lento, mas constante, processo de detalhamento e tentativa de controle sobre os conhecimentos “autorizados” a serem objetos de ensino na instituic¢ao escolar. CULTURA ESCOLAR E A ESCRITA DA MODERNIDADE texto da reforma propée mudangas nos contetidos de todas as disciplinas e a adogdo do método intuitivo como metodologia de ensino de todas elas. No caso do ensino da escrita, a grande mudanga proposta foi a exigéncia de se adotar a escrita vertical como o “tipo” de escrita da escola mineira. Ao exigirem o ensino da letra vertical, estavam os reformadores mais que realizando uma simples mudanga no formato (tipo) da letra a ser utilizada na escola priméria. Para eles, esse seria um dos momentos fundamentais da tentativa de maior racionalizagéo escolar. Ressaltavam, ao mesmo tempo, a {intima vinculagio das mudangas pretendidas com os novos tempos € ritmos da “modernidade” brasileira e mundial. © programa exige o tipo de letra vertical redonda, para 0 ensino da escrita. Fécil sera adoté-lo, com 0s primeiros modelos fornecidos. Este tipo de letra, que vulgarmente se chama letra em pé, além de facil, € répido, econdmico ¢ higiénico. (Minas Gerais, 1906) Ao enfatizarem que 0 novo tipo de letra, além de facil, era rapido, econémico © higiénico, estavam os reformadores apontando para alguns aspectos centrais da moderna escola brasileira. Assim, por um lado, revelaram uma preocupagao cm buscar meios para facilitar 0 aprendizado com mudangas na propria forma de ensinar e, por outro, assinalavam claramente o funcionamento da instituigaéo escolar segundo os ritmos, padrdes sociais e de comportamento tipicos da emergente sociedade capitalista. A questiio da escrita vertical e sua fntima vinculac¢do com a nova ordem social emergente era, naquele momento, uma preocupa¢ao de educadores, médico-higienistas, entre outros profissionais, de muitos paises ocidentais. Ao que tudo indica, a discusso a respeito dos tipos de letra comegou por volta 138 de 1881 quando a Revue Scientifique publica, na Franga, um texto dobre o aumento da miopia entre escolares e sugere que a férmula de George Sand — “uma escrita direita, sobre papel direito, corpos direitos” — resolveria 0 problema da escoliose e da miopia. Estava estabelecida a polémica com os defensores da escrita inclinada. Uma década depois, em 1891, no Congresso de Higiene de Londres, a Academia de Medicina defendeu, também, 0 método dircito ou escrita vertical. Em 1907, denotando a ainda atualidade do tema, foi criada, com a participago de F. Buisson e outros, a Liga Gratuita pela Escrita Direita, com numerosas adesdes. Buisson, ao mesmo tempo em que apresentava a escrita inclinada — inglesa ou anglo-americana — como pessoal, “répida, elegante, graciosa, se bem que algumas vezes ilegivel”, defendia, da seguinte forma, as vantagens da escrita vertical: A escrita vertical é simples, racional, clara ¢ legivel. Ela tem uma analogia com os caracteres impressos ¢ com a eScrita obtida hoje no comércio ¢ na inddstria pela maquinas de escrever. Ela di 0s hibitos de ordem, de cuidado e de método. Ela permite alcangar no ensino, uma uniformidade que no seria alcangada sem ela. (Buisson, 1911. p.526) A apresentagio da escrita vertical como “simples, racional, clara e legivel”, em contraste com a outra que, apesar de elegante e graciosa, é pessoal e comumente ilegivel, adquire seu pleno significado, como esforgo de raciona- lizago da prépria escola ¢ de sua cultura, na medida em que percebemos que esse tipo de escrita oferece, segundo seus defensores “os hdbitos de ordem, de cuidado e método”. Permite, ainda, “alcangar no ensino, uma uniformidade que nio seria alcangada sem ela”. Exemplo de tudo isso é a homogeneidade, a impessoalidade ¢ a regularidade do texto impresso ou produzido na m4quina de escrever. Sem dtivida, como estamos vendo, toda esta fundamentacdo vinha, exatamente naqucle momento, somar ao movimento de homogeneizagio e uniformizacdo que estava ocorrendo na educagao ptiblica priméria mineira, oferecendo um suporte politico-cientifico para essas mesmas praticas. Neste sentido, podemos lembrar M. de Certeau quando se refere & importancia © A centralidade adquiridas pelos processos escriturdrios na modernidade. Segundo ele: com toda razio, nos tiltimos trés séculos aprender a escrever define a exceléncia em uma sociedade capitalista ¢ conquistadora. E uma pratica inicidtica funda- mental. Foi preciso sentir os efeitos inquietantes de um tio prodigioso avango para que suspeitéssemos ser a formagio da crianga moderna uma pritica escrituralistica, (Certeau, 1994. p.227) No contexto da reforma mineira, ndo por outro motivo que, j4 em 1908, a imprensa oficial publicou, em Belo Horizonte, o texto “Instrugdes para a 139 escrita vertical”, escrito por Lindolfo Gomes, inspetor técnico de ensino. O autor principia o texto afirmando o significado da opgio do Programa de Ensino pela escrita vertical e seus resultados. Na opinido do autor, vai produzindo resultados animadores nas escolas que adotam, em observancia do Programa de Ensino estadual em vigor, o método da escrita vertical. A esse propésito a rotina vai sendo vantajosamente rechagada, Nota-se da parte dos alunos 0 gosto e garbo por essa espécie de grafia, j4 pedagogicamente adotada em todos os paises em que 0 ensino pablico primétio € encarado com magnitude ¢ zelo que requerem assuntos de tal natureza. (Gomes, 1908. p.3) No texto do inspetor, as representagdes buscam convencer que ao adotarem a escrita vertical, além de rechagar a rotina, o atraso, as praticas tradicionais de ensino da escrita, os reformadores estavam, também, realizando a faganha de colocar Minas no cfrculo internacional dos pafses que encaram a educagao da infancia com a “magnitude e zelo” que o ensino primério requer. Segundo eles, Minas ombreava, também, com os pafses que, racionalmente, tinham uma preocupagio com os aspectos econdmicos da educagio. Conforme afirmava © inspetor: “Nao hd [como] negar que a escrita vertical requer menos tempo, trabalho e espago. Gasta-se, com sua adogdo, menos papel e é, por isso mesmo, mais econdmica” (Gomes, 1908. p.4). Essa pratica escrituralista que transparece na escola, como vimos, representa uma crescente preocupagio em demonstrar e impor as criangas a superioridade da expresso escrita sobre a expresso oral. Demonstra, ainda, a lenta, mas progressiva racionalizagio escrita do mundo social que esta presente nos textos escolares, também, como uma referéncia & superioridade e necessidade de prevaléncia do impresso e da escrita a mAquina sobre 0 manuscrito. Por sinal, € referindo-se a esses fatos que o inspetor finaliza seu texto, dizendo: “Inquestionavelmente a escrita vertical é mais legivel. Assemelha-se extraor- dinariamente aos caracteres impressos, 0 que lhe d4 um todo especial, de elegincia, sem chinesices” (p.6). Tudo isso remete & profunda vinculagio da escola com os processos de mudangas sociais, politicas, econdmicas ¢ culturais que vinham ocorrendo no mundo naquele momento histérico. Séo 0 pensamento e a pratica pedagdgicos tematizando, mais uma vez, sobre questées presentes, com muita freqiiéncia, em outros campos do social. Somente para dar um exemplo, vale lembrar que a preocupagio com a forma de produgio de textos, com a crescente mecanizagio € com a homogeneizagio de suas caracteristicas formais, era um assunto bastante discutido pelos escritores brasileiros do momento. Veja-se, por exemplo, 0 que nos diz F. Sussekind ao comentar a crdnica “Esta minha letra...”, escrita por Lima Barreto, em 1911: A hip6tese de escrever direto a méquina nio & sequer cogitada. A impressio que se tem & de que escrever s6 € concebivel a mio, como se se tratasse de uma espécie de aftesanato no qual s6 houvesse lugar para a datilografia no momento de passar a limpo 140 © j6 escrito. Com a méquina, entio, no se escreveria, se passaria a limpo apenas. E, mesmo isso, Ihe parecia “nauseante”. (Sussekind, 1987. p.27) Mais de uma década depois, era Mario de Andrade quem, por sua vez, estabelecia os claros vinculos percebidos por ele entre o escrever 4 maquina, Os novos ritmos sociais e o sentimento de perda da alteridade na “igualdade maquinal” que parece a “unificagiio de todas as maos”. B D G Z, Remington. Pra todas as cartas da gente, Eco mecinico. De sentimento répidos batidos. Pressa, muita pressa. Duma feita surrupiaram a méquina-de-escrever do meu mano. Isto também entra na poesia. Porque ele no tinha dinheiro para comprar outra, Igualdade maquinal. Amor Sdio tristeza... E 0s sorrisos de ironia. Pra todas as cartas da gente... Os malévolos ¢ os presidentes da Reptblica Escrevendo com a mesma letra... Igualdade Liberdade Fraternité, point, Unificagio de todas as mos... (..) Bato dois LL. mindsculo. E a assinatura manuscrita, (Andrade, 1993, p.124) Se, para o escritor, 0 cronista ou © poeta, a tinica coisa a revelar a alteridade do escritor subsumido na homogeneizagao da produgio do texto e do impresso € a sua “assinatura manuscrita”, revelando, assim, um desconforto com a homogeneizacio, com a “pressa, muita pressa”, j4 no interior da escola, este mesmo processo é percebido nfo apenas como positivo, mas como algo constitutivo e constituinte de sua cultura. O processo de homogeneizagao da cultura coloca-se, pois, para a escola, como algo necessdrio diante da profunda heterogeneidade das praticas culturais no interior da cidade, da sociedade. Para realizd-lo, busca-se, por meio de variados mecanismos de escolarizagio dos corpos, a transformagio da corporeidade da crianga em corporeidade do aluno. Como componente desta identidade e tornando-a presente no cotidiano escolar, hé uma corporeidade & qual busca-se produzir a partir dos moldes ¢ necessidades estabelecidos pela instituigdo escolar, mediante seus agentes e profissionais. Indicios de uma corporeidade escolarizada, submetida aos imperativos escolares 141 conforme as exigéncias sociobiofisiolégicas trazidas pela moderna escola de massa, podem ser percebidos no conjunto dos documentos analisados. ENSINO DA ESCRITA E ESCOLARIZACAO DOS CORPOS Os argumentos dos defensores da escrita vertical defendiam que “as criangas tém uma tendéncia natural a escrita direita e € uma violéncia contrariar esta inclinagio”. Acrescentavam que na escrita inclinada ‘0s corpos inclinados, se apoiando de um s6 lado, sobre o cotovelo esquerdo, seu ombro esquetdo sobe, sua coluna vertebral desce da linha vertical e se curva para a esquerda. Esta posigio obriga a inclinagio do rosto para a esquerda e seus olhos se acomodam a uma visio mais curta ¢ tomam um grau diferente de acomodagio. A miopia e escoliose podem ser resultado desta posigao. (Buisson, 1911. p.526) A naturalizagio da necessidade da escrita vertical opera-se, como vemos, pela vinculagéio da escrita inclinada a uma certa ortopedia e corporeidade que prejudica a crianga. A escola, lugar por exceléncia de aplicagao dos preceitos higienistas, nfo poderia permitir que isso continuasse acontecendo. Também Lindolfo Gomes, referindo-se 4 escrita inclinada, apresentava-a como pratica pedagégica e corporal condendvel sob muitos aspectos. Os argumentos, como podemos ver, cram muito préximos aqueles de Buisson: Nessa espécie de escrita, observa Couger, 0 corpo descansa sobre 0 lado esquerdo, 0 t6rax fica obliquamente, com relagio ao rebordo da escrivaninha. Levanta-se mais uma espddua que a outra, apoia-se mal o cotovelo direito sobre a escrivaninha, as pernas ficam obliquamente dispostas, a cabeca inclina-se, a coluna vertical encurva-se para a esquerda e para frente; 0 caderno colocado obliquamente, ¢ obliquos os eixos dos olhos € 0 tronco de quem escreve. O agente olha para a sua escrita obliquamente. © corpo toma posigdes anormais ¢ viciosas. (Gomes, 1908. p.4) Tendo em vista essas caracterizagdes, o inspetor passa a detalhar a forma como deve ser ensinada a escrita vertical. Para isso, utiliza como referéncia 0 texto “Atitudes viciosas nas escolas: escrita direita ¢ escrita vertical”, do “jlustre higienista e provecto pedagogista” portugués, Dr. Costa Saccadura. Busca, ainda, seguir o programa de ensino quando este sugere que “nao se permita que as criangas fiquem entregues a si mesmas ao tragarem as primeiras letras; devem ter a mio educada no modo de pegar a pena e manejé-la, de acordo com 0 tipo de letra adotado”. Observamos, no conjunto das prescrigdes, a inteng’io de produzir um corpo escolarizado, trabalhado e modelado pelas préticas escolares. Nessa perspectiva, © texto explicita, inicialmente, uma grande preocupagio com a posigo corporal no momento da escrita: Deve o professor cuidar atentamente da posi¢io do aluno durante os trabalhos da escrita, dando-Ihe exato conhecimento sobre a posigiio simétrica do corpo (cabega, cotovelos, 142 antebragos, pernas ¢ pés), sobre a posigdo do caderno e dos movimento dos dedos ¢ mios. (...] A posigio corporal adquire, na ortopedia da escrita, uma clara conotagio de género, aparecendo, entio, travestida numa preocupacdo com a perfeita dis- tribuigéo do volume das saias femininas: ‘As criangas do sexo feminino terio 0 cuidado de por em ordem as saias iguatmente dos dois lados, esquerdo € direito, pois 0 maior volume de um deles pode determinar um desvio da coluna vertebral ¢ uma deformagio da bacia. (p.5) Nao poderia o inspetor deixar de lado, evidentemente, a relago entre o “6rgio”, sua fungdo e seu objeto de trabalho. Desse modo objetivava o detalhamento da forma de pegar na caneta, numa tentativa de produzir uma corporeidade escolar em que houvesse uma naturalizagao do officio de escrever, concebendo a caneta, o lépis, a pena, como prolongamento do proprio corpo humano: A caneta faré com o papel um Angulo de 45 graus e sairé da mio no prolongamento da falangeta do indicador. (p.5) Ll A caneta hd de ficar segura sobre os tés primeiros dedos; 0 indicador e 0 médio reunidos, colocam-se por cima, o polegar por baixo, descendo © médio até 0 extremo da caneta, Estes trés dedos alongam-se, ligeiramente arqueados; dirigem a caneta sem apertar fortemente, pois se o fizessem fadigariam, determinando a caimbra dos escrivies 6) C1 A palma da mio volta-se para o caderno ¢ 0 punho nio repousaré em cima da mesa, 6) A tentativa de educar a postura, de demarcar e controlar claramente os gestos, de criar as condigdes para uma escrita saudavel e higiénica, transformando-a em um ato minuciosamente projetado, implicou, também, que os profissionais imbufdos desta nova sensibilidade e de uma proposta de racionalizagio da escola, voltassem suas preocupagGes para os equipamentos escolares, para as carteiras, para a qualidade dos quadros e, enfim, para os custos da educagio. Assiste-sc, nesse momento, nao por acaso, a uma critica severa tanto & falta € A inadequacio das instalagdes © equipamentos escolares, principalmente das escolas isoladas, quanto.a uma intensa propaganda dos méveis “importados dos EUA” para as escolas mineiras. Nesta perspectiva, € de fundamental importancia atentarmos para as reflexdes de Jacques Ranciére em seu livro “Polfticas da Escrita”. Segundo ele, é preciso perceber que: nna atengio apaixonada que as sociedades escolarizadas dio a0 aprendizado da escrita € & posigdo correta do corpo do jovem aluno, mais ainda que & perfeigdo do que ele escreve, transparece um valor fundamental: antes de ser 0 exercicio de uma competéncia, © ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensfvel e de dar sentido a essa ocupagio. (Rancitre, 1995. p.7) 143 E possivel perceber, pois, a busca da constituigdo de uma corporeidade escolar, na qual a adequagio do corpo biopsiquicossociolgico as exigéncias escolares poderia ser algo vivenciado cotidianamente nas escolas. Como momento de constituigdo da cultura escolar, a construgo desta nova corporeidade por meio da escrita — e, lembremos, nao apenas dela — remete-nos, sem dtivida, & escola como instituig3o que participa intensamente da produgdo da sociedade moderna, tanto quanto € por ela criada. DE CRIANGA A ALUNO: METAMORFOSES DE UM SUJEITO ESCOLAR A produgio de uma representagiio da escola como uma instituigdo, separada do lugar da casa e da rua, que construiu uma temporalidade prépria, que organizou e buscou transmitir conhecimentos, sensibilidades, valores especfficos, enfim, que implicou a construgao e imposigao de uma nova cultura escolar, teve também como um dos resultados mais duradouros a transformagio escolar da crianga em aluno(a). A produgio no interior (e por intermédio) da pratica ¢ do pensamento pedagégicos do(a) aluno(a) como sujeito escolar, se impds ao conjunto da sociedade, conformando todo o idedrio e as prdticas acerca da formagio humana. Foi, tanto quanto a cultura escolar que lhe da sentido e sustentagao, © resultado histérico-social do desenvolvimento da especificidade, do lugar “proprio”, da escola no interior de nossas formagdes sociais. Apesar de aluno(a) ser hoje um termo de uso corrente, a histéria de sua emergéncia € utilizagio denotam a fntima vinculagdo que mantém com o movimento de afirmagio da escolarizagio de setores cada vez maiores das camadas populares. Ao mesmo tempo, significa a crescente intengo das elites escolarizadas de destitufrem de sentido e valor as culturas populares. Observou-se que a generalizagdo do emprego do termo aluno(a), em substitui¢ao a outros — como crianga, ou menino e menina — se dé no interior do processo de racionalizagio da educagio, processo este que, como mostra Chervel (1990), teve uma fntima ligacgdo com o fortalecimento das disciplinas escolares como componentes fundamentais da instituigéo escolar. Nao é, pois, sem raziio que apenas neste século, de forma mais definitiva, o termo aluno(a) passa a ter um uso corrente. Isso pode ser observado, por exemplo, nos relatérios dos inspetores escolares e das diretoras de grupos escolares, nos quais 0 termo “aluno(a)” concorre, como diz Chervel, com crianga, menino € menina. Nada mais significativo deste ponto de vista do que o emprego do termo aluno (éléve) para o primério e para o secundério. Os sinonimistas opunham o escolar (écolier) ¢ 0 aluno (éleve): “Ensina-se ao escolar, ensina-se a ele 0 que ele deve saber'...) Forma-se © aluno, ensina-se 0 que ele deve ser” escrevia, por exemplo Lafaye. Aluno também é 144 ‘empregado prioritariamente para 0 secundério que faz da formagio humanista seu tinico objetivo; e Litré se recusa a utilizé-lo para 0 primério. O uso, por certo, foi muito menos sectirio, ¢ nfo exclufa o emprego da palavra aluno para o primério. Permanece 0 fato de que, em todos 0s textos da época, ele concorria constante ¢ fortemente com a palavra crianga. Sdo as profundas confusdes que sacodem a escola priméria no fim do século que, reaproximando suas finalidades daquclas do secundario, transformando em “educagaio” € em “formagio do espftito” o que até entio nao era mais que “instrugio” e “aprendizagens clementares” que vio aclimatar definitivamente 0 termo aluno no ensino primério. A ligagdo entre “disciplina” e “aluno” € clara, As disciplinas so esses modos de transmissio cultural que se dirigem aos alunos. (Chervel, 1990. p.186) Num movimento que contou com a participagio nao apenas dos profissionais ligados ao cotidiano escolar, mas do conjunto daqueles implicados na produgio ¢ legitimagao politica ¢ cultural de uma nova cultura escolar em Minas Gerais nas primeiras décadas deste século, a crianga como sujeito socioistérico, (como sujeito participante e portador de uma cultura, de sensibilidades e valores préprios, possuidor e continuador de uma tradi¢io e/ou sujeito que deseja busca estruturar seu mundo, seu conhecimento e suas relagdes sociais em razio nao de uma agéncia de ensino, a escola, mas do sentido de sua prépria vida) passa a ser cada vez mais destituida de sentido e qualidade, dando lugar a apenas um sujeito que conhece, ou melhor, que aprende a conhecer. E desse processo de racionalizagio que produz um sujeito epistemolégico abstrato que nos fala Olgdria Matos, no belo texto apresentado a seguir: Cindindo-se raziio vigilante e imaginagio sonhadora, 0 mundo das idéias ¢ a realidade empitica, chega-se a0 Sujeito abstrato — sem corpo, mios ou sangue, Sujeito carente de todos os sentidos. Eis a maneira cartesiana de enfrentar as metamorfoses das propriedades dos corpos que tocamos e vemos, como pedago de cera que se modifica uma vez retirado da colméia ¢ aproximado do fogo. Ao ficcionar um Sujeito abstrato, o racionalismo no © constréi — dissolve-o. [...] Destituindo imagens de sie do mundo, 0 Sujeito epistemol6gico € puro vazio interior, intufdo na sotidio glacial de si. (Matos, 1995. p.18) Ao destituir a crianga como sujeito no interior da escola e, no mesmo movimento, instituir o(a) aluno(a) como categoria basica do sistema de ensino, © que ocorre nao é apenas uma mudanga de natureza semantica. Muito mais importante que isso, esse movimento denota a forca de uma das principais caracteristicas da cultura escolar: a de buscar destituir de sentido ¢ valor todos os outros processos de formagéo humana que se dao no interior das praticas populares nao escolares. Observamos, por exemplo, que, na maioria das vezes, a rua ou o ambiente onde viviam os(as) meninos(as) ¢ seus familiares eram apontados como um meio “deletério”. No entanto, era neste ambiente que as criangas nao apenas estabeleciam relagdes mas realizavam agées proprias as suas idades, tinham “lugar” tanto o brincar quanto o trabalhar. Outras vezes, pudemos acompanhar as discussGes acerca das conseqiiéncias maléficas do horério das aulas para a satide da crianga. Essas discuss6es determinaram a decisio de as aulas 145 comegarem as sete horas da manhi e/ou terminarem, algumas vezes, depois do meio-dia, em substituigo ao hordrio “normal” de 10 as 14 horas. Vejamos © que diziam as diretoras dos grupos escolares: Por falta de prédio proprio, tem funcionado 0 mesmo no prédio do 2° grupo das 7 as 11 bs da manhé, com enormes prejuizos do ensino ¢ da satide das criangas e professoras que t@m a sua primeira refeigdo ao meio-dia, (Diretora do 3° Grupo, 1911) A respeito dos trabalhos do curso técnico das 11 as 12 horas, conforme exige que eu determine (..), vejo-me obrigada a dizer a V. Excia. que nio tenho coragem de exigir de uma crianga (que) fique sem a primeira refeigdo até 1 da tarde, conforme a distncia de sua residéncia.. Pois, se 0 proprio inspetor me disse, por muitas vezes, que 0 seu est6mago nio resiste tal hordtio, saindo doente nos tltimos dias de sua inspegio, sendo até preciso mandar buscar medicamentos, por achar abatido com o servigo de uns dias, como tem animo de exigir 0 impossivel de uma pobre crianga. (Diretora do 2° grupo, em carta ao Secretério do Interior na qual responde a criticas formuladas pelo inspetor, 1910) © que observamos nesses documentos € a afirmagio de que o tempo escolar, como construgio social, deveria levar em conta as condigées fisicas e fisiolégicas dos sujeitos que nela estavam inseridos. A crianga, ao entrar na escola, assim como nio deixa de ter uma familia e estar sujeita aos imperativos e necessidades sociais, culturais ou econdmicas desta, nao deixa de sentir fome, sede, de ter sono. No entanto, o tempo escolar se impés e, com certeza, durante um certo tempo significou, para as criangas, uma “segunda natureza” (Elias, 1989), a qual muitas delas jamais incorporaram como natural. Por conseguinte, podemos afirmar que a idéia de aluno(a) € contemporfnea da produgio e da legitimagao social de um tempo linear, aistérico, ¢ sujcito aos ritmos impessoais da produgao fabril e da racionalidade capitalista. E contemporanea ¢ instituinte de uma teoria da formagao (tanto quanto é por ela institufda) que, fazendo tébula rasa dos sujeitos sociais, pretende sua maxima adequacio biofisiosso- ciolégica as finalidades concebidas pelas instituigdes escolares € pelos diversos campos do conhecimento cientifico. A citagio seguinte, apesar de longa, é uma demonstragiio cabal de alguns desses elementos ¢, mais ainda, pée em evidéncia a possibilidade e a necessidade de se produzir uma corporeidade nitidamente escolar: Educagtio € a disciplina do hdbito. Como se educa 0 soldado? Habituando-o desde cedo A contingéncia militar. Como se educa o frade? Habituando-o desde logo & clausura, 3 meditago, 4 continéncia, & rendincia, Como se educa 0 operério? Habituando-o sucessi- vamente & firmeza do punho, & acuidade da visiio e a desteridade manual. E assim em todos os ramos da atividade. Cada vez que o homem se inicia num hdbito novo a que rio estava afeito, — hé, naturalmente, uma reagdo organica: rebelam-se todos os érgios que tendo de entrar em contato com a nova fungio que Ihes € imposta. E esse 0 perfodo mais critico da educagio, 0 que requer do educador maior soma de assisténcia, de vigilincia e de persuasio, e 0 que reclama do educando maior dose de tenacidade © paciéncia, Vencida que seja a relutancia desses Srgdos, entram estes a funcionar conjugados 2 tarefa que terio de desempenhar: cria-se, por assim dizer, uma neofisiologia, algo paradoxal, porque, como é de regra, & a fungio que decorre do érgfo; entretanto, nas 146 reagbes educativas, observa-se quase 0 oposto: 0 Srgio adapta-se A fungio, a fungio encaminha e adestra 0 6rgio. Ora, a infincia € a fase da vida mais consentinea a adaptagio dos Srgtios as fungdes que se pretende sejam desempenhadas pelo individuo, A esse respeito a crianga é, fisiologicamente, superior ao adulto, porque a sua plasticidade, a sua sensibilidade, a sua impressionabilidade, a sua acuidade, a sua receptividade sio muito mais apuradas e acuradas que no adulto. Acresce que 0 adulto possui uma aversio natural a contrair hibitos novos, isto é, a educar-se diversamente do que se sabe ou se julga educado: qualquer inovagio cle a interpreta como uma abjuragZo ou renegagdo de outra educagio preexistente, quando nio o interpreta como uma violagio & sua autonomia, como um atentado a sua livre consciéncia! (Goes, 1917. p.11) Nio seria este o ideal de uma educagio escolarizada? Apropriar-se do corpo e, em conseqiiéncia, da propria identidade da crianga, recriando-a com exercfcios fisicos e mentais, para adequé-la as fungdes preestabelecidas. Eis, para a instituigdo escolar e seus profissionais, uma das maximas finalidades da escola. Impedem a realizagGo dessas finalidades, sem dtivida, as criangas, os meninos e meninas que teimam em nao se submeter de “corpo e alma” aos imperativos escolares. No entanto, 0 ideal nao deixa de existir e, de fato, tem na quase naturalizagaio da categoria aluno(a), um dos momentos de sua realizagio. Nesse contexto, € construfda ¢ legitimada a nogio de aluno(a): aquele sujeito que passa a existir para a escola como alguém que, nada sabendo, tudo precisa aprender. Sdo produzidos, assim, um tempo e um espago de formagao, ambos escolarizados, institucionalizados, em que as novas geragdes deverio passar se quiserem (ou puderem) se apropriar dos elementos necessdrios € legitimos a insergio no mundo adulto. CONSIDERACOES FINAIS A grande penetragio da categoria aluno(a) e sua utilizagio em substituigao a outras ndo deixa também de simbolizar o grande esforgo de homogeneizagiio realizado pela escola, na tentativa de um maior ordenamento e controle dos sujeitos que a cla adentravam ou mesmo, conforme foi visto, do conjunto da populagao, notadamente dos mais pobres. Tal esforgo tinha no seu bojo, como elemento central, a intengio de produzir inclusive uma nova corporeidade escolar que viesse substituir uma corporeidade infantil considerada inadequada ao meio e aos mecanismos escolares. Sendo assim, tais empreendimentos nio apenas enfatizaram a necessidade de mudangas das criangas na forma de vestir, no assejo ¢ cuidado com o corpo, .mas, sobretudo, na imposigio de gestos, de posturas, de comportamentos apropriados a(a) alunos(as) no interior da escola, na rua e em casa. A escola, a cultura escolar, destitui, dessa forma, a crianga de sentido e de legitimidade ao instituir e naturalizar 0 aluno como um dos pélos da relagao social de ensino-aprendizagem. 147 A construgao da idéia da crianga como tébula rasa, ou seja, como aluno(a), € portanto uma questo muito mais politico-cultural que epistemoldgica. Implica, antes de tudo, uma desvalorizagdo da legitimidade de saberes, de sensibilidades, de formas de conhecer, de linguagens, enfim, da cultura nao apenas das novas geragdes, mas de populagées inteiras — os pobres, os trabalhadores, as classes subalternas — concebidas “naturalmente” como apren- dizes. Em tltima andlise, 0 movimento que transforma a crianca em aluno(a) e produz um espaco e um tempo préprios A sua formagio deslegitima também aquclas formas anteriormente utilizadas para educar as novas geragées. Nao por acaso, é nesse mesmo momento e movimento que a escola se erige como a forma mais adequada e socialmente valida de formagio das novas geracdes. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANDRADE, M. de. Poesias completas. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993. BUISSON, F. Nouveau dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire. Paris, 1911. CERTEAU, M. de. A Invengdo do cotidiano. Petrépolis: Vozes, 1994. CHERVEL, A. Histéria das disciplinas escolares: reflexdes sobre um campo de pesquisa. Teoria e Educagao, Porto Alegre, v.2, p.177-229, 1990. ELIAS, N. Sobre el tiempo. México: FCE, 1989. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 5. ed. Petrépolis: Vozes, 1987. GOES, C. Discursos. Muzambinho (MG): s.e., 1917. GOMES, L. Instrugdo para a escrita vertical. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1908. GRAFF, H. J. Os Labirintos da alfabetizagao. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. HEBRARD, J. A Escolarizagio dos saberes elementares na época moderna. Teoria e Educagao, Porto Alegre, v.2, p. 65-110, 1990. MATOS, O. 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