You are on page 1of 55
Paulo Emilio Sales Gomes CINEMA: TRAJETORIA NO SUBDESENVOLVIMENTO 2° EDIGAO PAZE TERRA ‘Caleta Lis © Edivora Paz e Tera, 1996, Editar raposdvrsCiecne RBhing e Maia Elisa Cevasco ‘Elio de exe: Thais Nicolet: de Camargo Produ grfice: Katia Habe (Capa abel Carballo Dados Inernacionais de Ctalogacdo na Publiasto (CIP) \(Climara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gomes, Paulo Emilio Sales, 1916-1977. equeno cinema antigo! Paulo Emiio. — So Paulo : Paz e Tera, 1996. — (Colegdo Leivura) ISBN85-219-0217-4 1. Cinema — Brasil — Histria 2, Cinema — Hiseia 1. Tira. 96-2225 epp-791.450981, Indices paca catélogosistemiico 1. Brasil: Cinema Histéri791.430981 EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua do Trunfe, 177 (01212-010— Sio Paulo — SP ‘el.(011) 223.6522 Rus Dias Ferrers #417 — Lojt Pare 722431-050 — Rio de Janeio — RJ Comb dir Celso Furado Fernando Gasparan Roberto Schwarz Ross Freire D'Aguiae 2001 Imprciso no Brasil / Prine Bom . Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966: SUMARIO Pequeno cinema antigo .... pene] 19 1* Bpoca: 1896 a 1912... 2 Bpoca: 1912 a 1922. 3* Epoca: 1923 a 1933 .. 4+ Epoca: 1933 a 1949 5* Epoca: 1950 a 1966... . Cinema: trajetéria no subdesenvolvimento 85 PEQUENO CINEMA ANTIGO. (© Brasil se interessa pouco pelo préprio passado. Essa atitude saudével exprime a vontade de escapar a uma mal- digo de atraso e miséria. O descaso pelo que existiti ex- plica, nao s6 0 abandono em que se encontram os arquivos nacionais, mas até a impossibilidade de se criar uma cinemateca. Essa situagio dificulta o trabalho do historia- dor, particularmente 0 que se dedica a causas sem impor- ‘ncia como o cinema brasileiro Hi dez anos, apenas meia dizia de pessoas tinha curiosidade pelo passado de nosso cinema, No estrangei- 10, 0 tinico era Georges Sadoul, 0 que nao espanta pois 0 historiador francés procurava conhecer @ histéria do cine- ma de tados os paises. Hoje um grupo razoavel sente ne- cessidade de conhecer o que foi nosso cinema. As pesqui- sas obedecem a norma vélida para qualquer ramo do conhecimento: abordar criticamente 0 passado brasileiro com o espitito de servir o presente e 0 futuro, mas a0 mes- ‘mo tempo se impregnar de simpatia. Escrever sobre cine- ma brasileiro no é mais uma tarefa pioneira:jé se consti- ‘tuju no pais um pequeno pablico ledor familiarizado com 7 algumas dezenas de nomes de cineastas e tieulos de fil- mes. £ obvio que essa enumeragio nao teria qualquer po- der evocativo para o leitor estrangeito © aparecimento do cinema na Europa Ocidental e ‘na América do Norte na segunda década dos anos 90 foi 0 sinal de que a Primeira Revolugio Industrial estava na véspera de se estender ao campo do entretenimento. Esse fruto da aceleragio do progresso técnico e cientifico en- controu o Brasil estagnado no subdesenvolvimento, at- rastando-se sob a heranca penosa de um sistema econémi- co escravocrata € um regime politico monérquico que s6 haviam sido abolidos respectivamente em 1888 ¢ 1889. O atraso incrivel do Brasil, durante os Gileimos cingiienca anos do século passado e outro tanto deste, é um pano de fundo sem o qual se corna incompreenstvel qualquer ma- nifestacio da vida nacional, incluindo sua mais fina lice- rarura é com mais razio 0 tosco cinema, ‘Annovidade cinematogrifica chegou cedo a0 Brasil, 56 no chegou antes devido ao razoével pavor que causava aos Viajantes estrangeiros a febre amarela que os aguardava pon- tualmentea cada vero, Os aparelhos de projeco exibidos a0 pablico europeu e americano no inverno de 1895-1896 co- ‘megaram a chegar ao Rio de Janeiro em meio dese tileimo ano, durante o saudavel inverno tropical. No ano seguince, a novidade foi apresentada intimeras vezes nos centros de di- versio da capital, e em algumas outras cidades. Em 1898, foram realizadas as primeirasfilmagens no Brasil mrt B Durante dez anos, porém, 0 cinema vegetou, tanto como atividade comercial de exibigdo de fitas importadas, ‘quanto como fabricagio artesanal local. A explicacio, como sempre, esta no retardo do pats. No caso especifico, o que impedia 0 desenvolvimento do cinema no Rio, para no falar no resto do territ6rio ainda mais arcaico, era a insufi- ciéncia da energia elétrica. Nos poucos locais da capital da Repablica que dispunham dessa comodidade, o menor tem- poral ou ventania interrompia o fornecimento, como ainda hoje acontece em largas porgdes relativamente prosperas — pois possuem elecricidade — do interior brasileiro. S6 em 1907 houve no Rio energia elétrica produzida industrial- mente, e entdo o comércio cinematogréfico floresceu. A abercura continua de dezenas de salas no Rio, ¢ logo em Sao Paulo, animou a importagio de filmes estrangeiros, e foi seguido de perto por um promissor desenvolvimento de uma produgio cinematogréfica brasileira. Um niimeroabun- dante de curtas-metragens de atualidades abriu caminho ‘para numerosos filmes de ficgo cada vez mais longos. © quadro técnico, artistico e comercial do nascence cinema era constituido de estrangeiros, notadamente lianos cujo fluxo imigrat6rio foi considerével no final do século XIX e nos primérdios do XX. Em matéria de técni- ‘a, a incapacidade do brasileiro tornara-se tradicional. Essa situagao aflitiva provinha do tempo recente em que 0 ¢ra- balho com a mao era, quando mais simples, obrigagio de 9 escravo, ¢, quando mais complexo, funcio de estrangeiro. Tis atividades eram consideradas indignas de pessoa bem- nascida, isto é, qualquer brasileiro, a partic da segunda ge- ragdo, com a pele niio muito escura. Cinema era tido como dificil, e qualquer tarefa de filmagens, laborat6rio ou sim- plesmente projecio, foi de inicio executada exclusivamente por estrangeiros. Sé mais carde alguns brasileiros, vindos da profissio entio recente de for6grafo de jornal, aprende- ram a manejar uma cimara. No terreno mais propriamente arcistico, os encenadores ¢ intérpretes provinham de elen- cos dramiticos em fourné sul-americana ou de grupos aqui radicados onde predominava o elemento estrangeiro. Certa tradigo dramatica brasileira, outrora brilhante, havia fene- cido na obediéncia a uma das leis do subdesenvolvimento: as decadéncias prematuras. Os diretorese incérpretes brasi- leiros 56 tomaram-se mais numerosos quando o cinema se impregnou de géneros teatrais ligeiros, revistas e operetas. ~ Quanto aos homens que abordaram 0 cinema como negé- io, eles no pertenciam ao mundo comercial estabilizado e rotineiro dominado por porrugueses. Eram quase sempre italianos, freqiientemente aventureiros, em cujas vidas pi- torescas niio pesava muito o lastro da respeitabilidade. Es- ses empresétios argutos eram, ao mesmo tempo, produto- res, importadores e proprietarios de salas, situagio que condicionow ao cinema brasileiro um harmonioso desen- volvimento, pelo menos durante poucos anos. 10 Entre 1908 e 1911, 0 Rio conheceu a idade do ouro do cinema brasileiro, classificagio valida & sombra da cin- zenta frustragio das décadas seguintes. Os géneros dra- smiticos e cOmicos em voga eram bastante variados. Pre dominaram inicialmente os filmes que reconstitufam os crimes, crapulosos ou passionais, que impressionavam a imaginagio popular. No fim do ciclo o pablico era sobre- ‘tudo atraido pela adaptacio ao cinema do género de tevis- ‘tas musicais com temas de atualidade. Os artistas se pos- tavam atrés da tela, falando ou cantando os textos de maneira a coincidir com as imagens mudas projetadas. Foram igualmente filmados numerosos melodramas ¢ as- suntos com criticas aos costumes urbanos. Essa idade do ouro nio poderia durar, pois sua eclosio coincide com @ «cansformacio do cinema artesanal em importante indis- tria nos paises mais adiantados. Em troca do café que ex- portava, o Brasil importava até palito ¢ era normal que importasse também o entretenimento fabricado nos gran- des centros da Europa e da América do Norte. Em alguns _meses 0 cinema nacional eclipsou-se ¢ o mercado cinema- ogrfico brasileiro, em constante desenvolvimento, ficou inteiramente & disposigdo do filme estrangeiro. Inteira- ‘mente margem e quase ignorado pelo piblico, subsisciu contudo um debilissimo cinema brasileiro. Do grande ntimero de pessoas ativas até 1911, perseve- rraram apenas os cinegrafistas. Ao lado dos curtas-metragens de atualidade, que Ihes asseguravam a subsisténcia, esses pio- ret neiros teimosos se aventuraram ocasionalmente a realizar um filme dramético. De 1912 em diante, durante dez anos, fo- ram produzidos anualmente apenas cerca de seis filmes de enredo, nem todos com tempo de projegio superior a uma hora. Os novos recrutas da profissio, técnicos, artistas ou encenadores, so ainda predominantemente italianos, mas jé apontam alguns brasileiros anto no Rio como em Sio Paulo, Cidade cuja importincia crescia e onde se verificava uma ati- vidade cinematogrifica paralela & da capital da Repéblica. Paralela é a expressio exaca pois os cineastas de uma ¢ outra nunca se encontravam, mais do que isso, se igoravam quase totalmente. Entre os filmes desse tempo, destacam-se os cal- cados em obras célebres da literatura brasileira, principal- mente as do perfodo romantico. Anote-se igualmente a comicidadé involuntéria dos assuntos que tomaram como pretexto a participacio puramente simbélica do Brasil na Primeira Guerra Mundial. A linguagem desse cinema mar- sginalizado permanecera extremamente primitiva. O filme brasileiro se estiolava dentro de uma estrucura draméticari- gidamente compartimentada, na qual a definigio dos caracteres e situagées, assim como o desenvolvimento do en- redo, fcavam na inteira dependéncia dos letreiros explicativos. Essa sieuagdo mediocre vigorou até os primérdios da década de vinte. Daf por diante, sucedem-se 0s sinais de vitalidade, [Nessa ocasifo, as brasileiros j so maioria no quadro do ci- nema nacional, mas os tnicos técnicos razodveis ainda serio, durante algum tempo, os italianos, 12 ‘Aproximadamente a partir de 1925, dobra a média de produgio anual, ¢ ha progresso na qualidade, Além do Rio de Janeiro e de Sio Paulo, produzem também as capi- tais de Pernambuco, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Nesta iitima provincia surgem movimentos e per- sonalidades promissoras até em pequenas cidades do inte- rior. Paulatinamente esses diversos grupos estabelecem contatos através de jornalistas do Rio e de Sao Paulo que se interessam de forma militante pelos nossos filmes, de- lineando-se assim, pela primeira vez, uma consciéncia ci- nematogrifica nacional. Um ou outro diretor consegue trabalhar com certa continuidade. Hé uma progressio or- ginica de filme para filme e surgem obras que atestam inconteseavel dominio de linguagem e expressio esti- Liscica. Em tomo de 1930, nasceram os clissicos do cine- ma mudo brasileiro e houve uma incutséo valida na van- guarda mais ou menos hermética, Era tarde, porém. Quan- do 0 nosso cinema mudo alcanga essa relativa plenitude, o filme falado jé esté vitorioso em toda parte. 1, Plenitude apenas ariscica. Comercialmente o cinema nacional pet- manecia marginalizado, A exibigio dos filmes brasileirs era mais do que preciria e dependia inteiramente da boa vontade de um ou outro dono de sala. $6 foram realmence vistas pelo pblicoalgumas ras obras _que, por um motivo qualquer, as distribuidoras estrangeiras inclufam ‘ocasionslmente em seus circuits de sala. 13, ‘A hist6ria do cinema falado brasileiro abre-se com um longo e penoso reinicio. Durante as décadas de 1930¢ 1940, a produgio se limica praticamente ao Rio, onde se criam esttidios mais ou menos aparethados. Algumas leis paternalistas de amparo asseguram 0 prolongamento dos péssimos jornais cinematograficos ¢, numa fase posterior, obrigam as salas a exibir uma pequena percentagem de fi mes brasileiros de enredo. Alguns comerciantes de cinema importado dispdem-se a produzir filmes afim de beneficia- rem-se a si proprios com o cumprimento da lei. Dessa ma- ncira, restabeleceu-se, pela primeira vez desde 1911, certa solidariedade de interesses entre 0 comércio de exibigéo € a fabricagio nacional. O resultado mais evidente foi a prolife- ragio de um género de filmes — a comédia popularesca, vulgar e freqiientemente musical — que desolou mais de ‘uma geragio de eriticos. Uma visio mais aguda permiciria vislumbrar nessas fitas — destinadas aos setores mais mo- destos da sociedade brasileira — algumas virtualidades que ‘mereceriam estudo ¢ desenvolvimento. Durante vinte anos esse género — que s6 decaiu no cinema quando foi absorvi- do pela televisio — registrou e exprimiu alguns aspectos aspiragoes do panorama humano do Rio de Janeiro. As ten- rativas de um cinema melhor nao sfo freqlientes. Pouguis- simos diretores do cinema mudo permanecem na profissio € conseguem, eventualmente, conciliar a voga das cangoes ‘com temas de realidade social. A critica de costumes, fildo 4 que nio s6 0 cinema mas também 0 magro teatro brasileiro sempre abordaram com proveito, aponta aqui e ali, de for- ‘ma despretensiosa mas eficaz. Acontecimentos como uma rebelido militar de inspiragio comunista ou a instauragio no pafs de um regime fascista ni deixaram tracos em nosso cinema. Nossa participagio modesta na Segunda Guerra ‘Mundial suscitou trés filmes de circunstincia, duas comé- dias € um drama. Também nao foram felizes as adaptacoes de romances brasileiros célebres, antigos ou modernos. Es- tas Gltimas anunciavam a preocupagio social — que jé in- vadira a literatura do pais — e que mais tarde se tornatia ‘Go aguda no panorama cinematogtéfico brasileiro. ‘A década de 1950, tiltima que nos cabe tratar, se abre em Sio Paulo, onde um imaginoso manager italiano venta implancar a indistria cinematogréfica logo apés ter pro- movido um importante movimento teatral. Revelou-se ‘enganosa a semelhanga entre os dois tipos de empreendi- mento. O ato de produzir e representar uma pega é um s6, ao passo que realizar ¢ exibir um filme séo duas operacdes diversas. Os filmes relativamente custosos de Séo Paulo foram entregues a firmas distribuidoras estrangeiras pou- co interessadas na audaciosa tentativa industrial, cuja vida foi efémera. O saldo mais positivo consistiu na melhoria ‘técnica gracas a vinda de experimentados especialistas in- gleses. Da Iedlia vieram encenadores e cendgrafos — que serviam igualmente aos propésitos teatrais'em curso —e 15 até roteitistas. O resultado final foi uma diizia de filmes razodveis com acentuado ressaibo de cosmopolitismo im- provisado e jé meio fora de moda. O maior éxito comercial e cultural derivou de uma incursio na temética do ban tismo rural brasileiro. ‘© malogro industrial nao ceve conséqiléncias fatas. Durante a década de 1950, a produgdo, com o Rio nova- mente & frente, nfo cessou de aumentar, chegando a esta- bilizar-se em corno de trinta filmes anuais. O principal beneficiério da heranga do esforgo cosmopolita foi um pe- ‘queno grupo paulista que adquiriu fisionomia prépria e ccuja influgncia se manifesta fortemente no cinema oficial de nossos dias. Justifica-se, pois, que se defina a ideologia do grupo apesar da pobreza de sua contribuigao & cultura nacional. Essa definigio facilitaré, alids, a compreensio de ‘um taco curioso no fenémeno do subdesenvolvimento: a onalidade especial que pode assumir 0 anseio de ascensio individual no status quo da sociedade. A afirmagio dos as- pectos exteriores da riqueza e do poder, isto é, oarrivismo, pode coexistir ou ser totalmente substirufda pela vivencia de sentimentos fantasiosos atribuidos a elite, nostalgia, pessimismo e gosto pela decadéncia, enfocados na mais total auséncia de senso critico e de humor. Os arrivistas do espirito desejam atingir verdades universais e perma- nentes do ser humano, acima de qualquer conjuntura so- cial definida. As intengGes sublimes nio se separam, po- 16 rém, — e aqui o grupo entra realmente em comunhéo com a camada social 2 qual aspira —, de um conservan- tismo que pode eventualmente descambar na delagao. Esse tipo de artivista é recrutado nas camadas modestas de uma pequena burguesia citadina de origem européia. Durance algum tempo, o empenho maior do grupo foi reagir pas- sionalmente contra o cinema do pés-guerra, notadamen- te 0 italiano, que dignificava uma humanidade que Ihes era biograficamente proxima mas & qual desesperavam em dar as costas. Seus filmes revelam no melhor dos casos. um ta-lento de feitura perdido na indigéncia dos argu- mentos ¢ roteiros. ‘A influéncia do cinema italiano do pés-guerra no teve apenas o efeito negativo acima registrado. Cineastas do Rio e de So Paulo adaptaram a ligo ao nosso cinema, tendo resultado obras profundamente nacionais sem a menor semelhanga com eventuais modelos originais. Os autores desses filmes provinham do Partido Comunista, to medfocres no terreno politico brasileiro quanto o fas- cismo ou o liberalismo, Um jovem intelectual comunista encontrava, porém, no Brasil do pés-guerra, estimulo para 4 imaginagio e gosto pela realidade nos livros de alguns auténticos grandes escritores membros do Partido. Essa formasao literéria, aliada ao método cinematogréfico ita- liano de identificagéo com 0 universo social circundante, condicionou a eclosio de quase todos os filmes significati- 7

You might also like