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WED Dologre bet Fe cA pOk’ NS CIPRIANO C. LUCKESI ELIZETE S. PASSOS INTRODUCAO a FILOSOFIA aprendendo a pensar S SiO CAPITULO I O conhecimento: significado, processo e apropriacao . No cotidiano, 0 conhecimento parece ser alguma coisa tio corriqueira que nés nao nos perguntamos pelo que ele é, pelo seu processo, pela sua origem, pela sua forma de apropriagdo. Aos poucos, ao longo de nossa infancia, adolescéncia, juventude, vamos adqui- indo entendimentos das coisas que compdem o mundo que nos cerca, das relacées com as pessoas, das normas sis que regem as relagdes entre os seres por isso, nos acostumamos a esses en- tendimentos, a partir do momento em que fomos ad- quirindo-os espontaneamente. Com eles e a partir deles, conversamos, discutimos, temos certezas e diividas, for- mulamos juizos. Contudo, quase nunca, excecio feita ‘aos especialistas, nos perguntamos sobre 0 que € 0 conhecimento, seu significado, origem. Habituamo-nos a utilizar o entendimento, por isso ndo 0 problemati- zamos. Aqui, a0 introduzirmo-nos no ambito da filosofia como uma forma de conhecimento, bem cabem tais perguntas. Nao podemos, de forma alguma, adentrar no seio da reflexao filoséfica, que é uma reflexao critica, 13 sem nos questionarmos sobre esses elementos. Se a fi- losofia € uma forma de conhecimento, como veremos a frente, cabe, em primeiro lugar, saber consciente e ctiticamente 0 que ele €. E este 0 objetivo deste texto. Vamos tentar estabelecer uma forma de entendi- mento sobre o conhecimento que abranja os elementos acima indicados. Comecamos pelo seu conceito, pas- sando, sucessivamente, por seu. processo, sua origem, até chegar a questo de sua apropriacao. 1. Uma aproximagio conceitual do conhecimento A pergunta para a qual vamos tentar dar uma resposta é: 0 que & 0 conhecimento? Toda vez que perguntamos a alguém o que ele entende por conhecimento, a primeira resposta que nor- malmente recebemos é a seguinte: “conhecimento é aqui- Jo que aprendemos nos livros”; ou entao: “conhecimento 6 aquilo que aprendemos com nossos professores, com nossos pais”. De fato, essa resposta nao esta de todo inadequada, pois que, certamente, adquirimos conhecimentos com. nossos professores e nos livros que lemos e estudamos. Contudo, ela é insatisfat6ria na medida em que nos diz de onde adquirimos conhecimento, mas nao informa sobre o que é conhecimento. Para encontrarmos uma resposta para a pergunta que colocamos, temos de dar atencdo ao segundo aspecto e nao ao primeiro, ou seja, 0 que é e nao onde adquirimos 0 conhecimento. Assim sendo, a questdo formulada estA a merecer uma resposta. Hé que se buscar uma resposta que es- clareca 0 sentido essencial do conhecimento. 4 Por vezes, ouvimos dizer que 0 conhecimento € a elucidagao da realidade.' Essa afirmacao parece ser correta, pois, ainda que de forma sintética, expressa o sentido correto do conhecimento. Vamos fazer algumas expli- citagées. Em primeiro lugar, podemos nos ater ao sentido etimolégico da palavra “elucidagéo”, que é significativa para a compreensio da afirmativa feita do ponto de vista de sua origem vocabular, "trazer & luz muito fortement a realidade, quer dizer uma forma de “‘trazer & luz” a realidade Mas, que luz é essa? Com certeza, no 6 a luz {isica, que ilumina e clareia os contornos externos dos objetos. A luz do elucidar tem a ver com incidéncia da “uz da inteligéncia” sobre a realidade; tem a ver com \ga0 da rea- lidade, € a forma de tornar a realidade inteligivel, trans- parente, clara, cristalina. E o meio pelo qual se descobre a esséncia das coisas que se manifesta por meio de suas aparéncias. Assim sendo, enquanto a realidade, por meio de suas manifestagées aparentes, manifestar-se-ia como misteriosa, impenetrével, opaca, oferecendo resisténcias a0 seu desvendamento (desvendar/des-vendar = tirar a venda) por parte do ser humano, a elucidagfo seria a sua iluminagao, a sua compreensio, o seu desvela- mento (desvelar/des-velar = tirar 0 véu). O ato de co- 1. Sobre isso, cf Luckes, Cipriano C. et al, Fazer Uni roposia metodolégice, Sto Paule, Cortez, 1984, pp. 4760 lade: uma 15 nhecer, pois, como ato de elucidar, € 0 esforgo de en- frentar 0 desafio da realidade, buscando-Ihe o sentido, a verdade. Essa realidade tanto pode ser um tinico objeto, como pode ser uma rede deles formando um todo, mesmo porque nenhum objeto se da isolado. O que importa, para o conhecimento, é tornar essa rea lidade compreendida, clara, iluminada. No que se.tefere ao conhecimento, hé quatro ele mentos a setem destacados: um sujeito que conhece; um objeto que € conhecido; um ato de conhecer, e, fi- nalmente, um resultado, que é a compreenséo da rea- lidade ou o conhecimento propriamente dito (a expli- cago produzida e exposta, tornada disponivel as pes- soas) © sujeito, no caso que nos interessa aqui, é o ser hhumano que construiu a faculdade da inteligibilidade, construiu um interior capaz de apropriar-se simbélica e representativamente do exterior, conseguindo, inclu- sive, operar de forma abstrata com seus simbolos e representacées. O objeto é 0 mundo exterior ao sujeito, que é representado em seu pensamento a partir da manipulagéo que executa com eles. Os conceitos nao nascem de dentro do sujeito, mais sim da apropriagao adequada que ele faz do exterior. Deste modo, a ilu- minacdo da realidade nao é um ato exclusivo do sujeito, mas um ato que se processa dialeticamente com e a partir da realidade exterior. O sujeito ilumina a realidade ‘com sua inteligéncia, mas a partir dos fragmentos de “Juz”, dos sinais que a prépria realidade Ihe oferece. O sujeito, no nivel da teoria, explica um objeto, nao porque ele voluntariamente queira que a explicacao seja esta e ndo outra, mas sim porque os fragmentos da realidade com os quais ele trabalha Ihe oferecem uma logica de compreensdo, Ihe permitem descobrir uma in- teligibilidade entre eles, formando, assim, um conceito 16 que nada mais € do que a expressio pensada de um objeto, ‘Além do sujeito e do objeto, no conhecimento, ha ‘ato de conhecer e 0 resultado desse ato, O ato de conhecer 6 0 processo de interago que 0 sujeito efetua com 0 objeto, de tal forma que, por recursos variados, vai tentando captar do objeto a sua légica, a possibilidade de expressé-lo conceitualmente. Entao, o sujeito interage ‘com 0 objeto para descobrir-lhe, teoricamente, a forma de ser. Por ultimo, 0 resultado do ato de conhecer é ‘0 conceito produzido, o conhecimento propriamente dito, a explicacao ou a compreensao estabelecidas, que podem ser expostas e comunicadas. Enquanto o ato de conhecer exige anélise dos elementos, dos fragmentos da reali- dade, enquanto o ato de conhecer é analitico, 0 conhe- cimento (a explicagio) ¢ sintético. A exposicao da ex- plicagdo obtida nao necessita reproduzir, passo por pas $0, todos 0s fragmentos do processo de investigacéo, basta apresentar a ligica central dos dados da realidade que sustentam o conceito formulado? Em sintese, 0 conhecimento € a compreensio/ex- plicagao sintética produzida pelo sujeito por meio de tum esforgo metodolégico de andlise dos elementos da realidade, desvendando a sua l6gica, tornando-a inte- ligivel. Se retornaemes agora A respbeta, mais ou menos ingénua, que as pessoas dao espontaneamente & per~ gunta “o que é conhecimento?”, veremos que ela nao 6, de todo, despropositada. Quando se diz que conhe- cimento é aquilo que adquirimos nos livros, significa 2. Sobre isto, cf. Marx, Kal, Prefécios. In Marx, Karl, © Capital, Rio de Janeito, Civikeagio Brasileita, 1970. Idem. A mercadoria,liveo 1, ¥. 1 PP. ai.33. Assim como vale a Ieitura do texto "Métoda’ da economia Pri ate, con Mats, Karl, Contrbuiio a erica de economia polite, Sko Paulo, astins Fontes, 1977, pp. 218-26. wv que nos apropriamos dos resultados do proceso do co- mhecer, nos apropriamos da explicagao pronta e elabo- rada. No livro, na exposicio, esta a elucidacéo da rea- lidade obtida por alguém e da qual nés também nos apropriamos. Adquirir conhecimento é adquirir uma compreensio da prépria realidade. O que acorre com ‘a aquisicao de conhecimentos a partir dos livros, es- pecialmente na experiéncia escolar, é que ela tem sido torné-las uma compreensio efetiva da realidade. Saber de cor uma determinada quantidade de inforracdes néo significa que se tenha uma determinada compreen- so do mundo objetivo. Por isso, aquela primeira resposta, em parte, é ver- dadeira e, em parte, nao. Verdadeira, na medida em que aquilo que esté exposto, em principio, € resultado de um ato de conhecer, um conceito formulado; falsa, na medida em que reter informagées, pelo processo de memorizacao, nao significa conhecimento, pois que este implica essencialmente compreensdo, o que vai além da pura memorizacio. Além, evidentemente, de que 0 exposto pode conter uma informacéo enganosa sobre o real. Em sintese, 0 conhecimento, como elucidagio da realidade, decorre de um esforgo de investigacio, de um esforco para descobrir aquilo que est4 oculto, que no est compreendido ainda. S6 depois de compreen- dido em seu modo de ser é que um objeto pode ser considerado conhecido. 2. O processo de produgéo do conhecimento O conceito explicativo da realidade nunca esta Pronto; ele € uma construgo que o sujeito faz a partir da légica que encontra nos fragmentos da realidade. 18 Para tanto, utiliza-se de recursos metodolégicos, de meios e processos de investigacao. Ele se constr6i por meio de longa busca, por meio de esforgo de desven- damento. A elucidacéo do mundo exterior exige ima- ginagao investida, busca disc tendo em vista captar os meandros do rez ‘Ao se deparar com um desafio, 0 sujeito do co- nhecimento passa ao esforgo de elucidé-lo. Ele trabalha para desvendar a trama de relagdes que constitui a realidade. Para conseguir isso, comeca por produzir respostas (hipéteses) decorrentes dos esclarecimentos que jé pos- sui, adquiridos pela experiéncia pessoal ou de estudos com outras pessoas ou com os livros. Caso essas res- postas no satisfacam, importa inventar outras expli- cacées, até que se encontra aquela que seja satisfatoria. S6 apés verificar a veracidade de sua hipétese é que © cientista expde suas certezas. Mas, como saber qual € a resposta satisfatéria se a realidade nao se expressa? Somente parece que a rea- lidade nao se expressa. Grifamos 0 “parece” porque so- mente parece que a realidade nao se expressa. De fato, ela sempre se manifesta; entao, torna-se necessdrio saber entender a sua expressdo. £ preciso saber “Ié-la” para se entender o que ela diz. f preciso ser “alfabetizado” na aprendizagem do desvendamento da realidade para poder entendé-la. Daf a necessidade que 0 sujeito do conhecimento tem de se utilizar de recursos metodolégicos para fazer a realidade “dizer” o que ela 6. O investigador necesita utilizar-se de “rodeios metodolégicos”, por dos quais capta o possivel verdadeiro sentido da eis e procura ver nas manifes- tages da realidade se a resposta que formulou ¢ ade- 19 quada ou ndo. Por vezes, essa resposta é encontrada € confirmada rapidamente e outras vezes exige anos de trabalho. Para ilustrar esse processo, vamos lembrar dois casos de pesquisa, um no ambito da investigagto das ciéncias da satide e outro no ambito da investigacéo das ciéncias sociais. O primeiro refere-se a descoberta da febre puerperal pelo médico sufgo Iguaz Semelweiss*, e 6 outro exemplo refere-se A construcao do conceito de governo bonapartista, produzida por Karl Marx, na sua obra O dezoito brumédrio de Luiz Bonaparte. Em primeiro lugar, vamos ao exemplo de Semel- weiss. Entre 1844 e 1848, ele se deparou com uma si- tuagéo desafiadora e, apés muito trabalho, encontrou sua explicagdo, seu desvelamento. Para apresentar este exemplo, vamos nos utilizar do relato-sintese de sua descoberta, que se encontra no livro Filosofia da ciéncia natural, de Carl G. Hempel. A citagio que se segue é um tanto longa, mas necessétia para se poder aprender o caminho de um processo de pesquisa no seu todo, da situacdo proble- mitica ao seu desvelamento. A situagao de investigacéo relatada deu-se no Hos- pital Geral de Viena, que possui dois servicos de ma- ternidade, No Primeiro Servico da Maternidade desse Hospital, em 1844, das 3.157 mulheres internadas para 05 pro- cedimentos do parto, 260 (ou seja, 8% delas) morriam de febre puerperal (doenga infecciosa que pode atacar as mulheres apés o parto). Em 1845, esse percentual 3. Ck, Hempel, Car G. Filosofia da 1974, pp. 186 4. ct Keygelan. Bi al. Rio de Janeiro, Zahae, uiz Bonaparte © Carts @ foi de 6% e, em 1846, ele chegou a 114%. Esse nivel de mortalidade tornava-se mais alarmante com a cons- tatagio de que os indices de mortalidade, pela mesma doenca, no Segundo Servigo de Maternidade do Hos- pital, eram bem menores. No caso, 2,3% para 1844; 2,9% para 1845 e 2,7% para 1846. Ai estava 0 desafio para Semelweiss. At es realidade, 0 aspecto oculto da realidade que el conhecia: 0 que causa nivel tio alto de mortalidade nas parturientes do Primeiro Servigo, que néo atinge as gestantes do Segundo Servico? ‘Atormentado pelo terrivel problema, Semelweiss es- forgou-se para resolvé-lo seguindo um caminho que ele mesmo veio a descrever mais tarde em livro que es- creveu sobre a causa e a prevengio da febre puerperal ‘Comegou considerando vérias explicagSes entdo em. voga; algumas rejeitou logo por serem incompativeis jos; outras, passou a submeter Uma idéia amplamente na época atribuia as devastagées da febre puerperal a “influéncias epidémi- cas”, vagamente descritas como mudancas “césmico- atmosféricas” espalhando-se sobre bairros inteiros sando febre nas mulheres internadas. Mas, Semelweiss, como poderiam tais influéncias afetar o Pri- meiro Servigo durante anos e poupar o Segundo? E como poderia conciliar-se essa idéia com o fato de estar a febre grassando no Hospital sem que praticamente ‘ocorresse outro caso na cidade de Viena ou em seus arredores? Uma epidemia genuina, como ¢ a célera, néo poderia ser tio seletiva. Finalmente, Sem nota que algumas das mulheres admitidas no Servigo, residindo longe do hospital, vencidas pelo tra~ batho de parto ainda em caminho, tinham dado a luz em plena rua; pois, a despeito dessas condicées des- favordveis, a taxa de morte por febre puerperal entre esses casos de "parto de rua” era menor que a média no Primeiro Servigo 2 Segundo outra opinio, a causa da mortalidade no Primeiro Servico era 0 excesso de gente. Mas Semelweiss observa que esse excesso era ainda maior no Segundo Servigo, 0 que em parte se explicava como resultado dos esforgos desesperados das pacientes para evitar’ o Primeiro Servico, jé mal-afamado. Ele rejeita também duas conjeturas semelhantes, entao correntes, observan- do que nao havia diferenca entre os dois Servicos quanto a dieta e ao cuidado geral com as pacientes. Em 1846, uma comiss4o nomeada para investigar © assunto atribufa a predominancia da doenga. no Pri- meiro Servigo a danos causados pelo exame grosseiro de Medicina, que recebiam seu iro Servigo. Se- melweiss observa, refutando esta opinido, que: a) os danos resultantes naturalmente do processo de parto sio muito mais extensos que os que poderiam ser cau- sados por um problema grosseiro; b) as parteiras que recebiam seu treino no Segundo Servigo examinavam suas pacientes quase do mesmo modo, mas sem os mesmos efeitos nocivos; ¢) quando, em conseqiiéncia do relatério da comissao, 0 niimero dos estudantes de Medicina ficou diminufdo a metade e os seus exames nas mulheres foram reduzidos ao minimo, a mortali- dade, depois de breve declinio, elevou-se a niveis ainda mais altos do que antes. Vérias explicagdes psicolégicas tinham sido tentadas. ‘Uma delas lembrava que o Primeiro Servico estava dis- posto de tal modo que um padre, levando o iiltimo sacramento a uma moribunda,.tinha que passar por cinco enfermarias antes de alcangar o quarto da doente: © aparecimento do padre, precedido por um auxiliar soando uma campainha, produziria um efeito aterrador e debilitante nas pacientes dessas enfermarias ¢ as trans- formava em vitimas provéveis da febre. No Segundo Servigo, nao havia esse fator prejudicial porque o padre tinha acesso direto ao quarto da doente. Para verificar esta conjetura, Semelweiss convenceu o padre a tomar um outro caminho e ndo soar a campainha, chegando 22 a0 quarto da doente silenciosamente € sem ser obser- vado. Mas a mortalidade no Primeiro Servico minui, Observaram, ainda, a Semelweiss, que no Primeiro Servigo as mulheres, no parto, ficavam deitadas de cost e, no Segundo Servigo, de lado, Mesmo achando a idéia iro Servigo, a mortalidade ndo se alterou. Fi- nalmente, no comeco de 1847, um acidente deu a Se- melweiss a chave decisiva para a solugéo do problema. Um colega, Kolletschka, feriu-se no dedo com o bisturi de um estudante que realizava uma autopsia e more. depois de uma agonia em que se revelaram os sintomas observados nas vitimas da febre puerperal. Apesar de nessa época néo estar ainda reconhecido © papel desempenhado nas infeccdes pelos microorga~ nismos, Semelweiss compreendeu que "a matéria ca- davérica”, introduzida na corrente sangtiinea de Kol- letschka pelo bisturi € que causara a doenga fatal do seu colega. As semelhancas entre 0 curso da doenca de Kolletschka eo das mulheres em sua clinica levaram, ‘Semelweiss a conclusdo de que suas pacientes morreram, da mesma espécie de envenenamento do sangue: ele, seus colegas e os estudantes tinham sido 0 veiculo do infeccioso, pois vinham as enfermarias logo apés realizarem dissecagées na sala de aut6psia € exa- minavam as mulheres em trabalho de parto depois de avarem as méos apenas superficialmente, muitas vezes retendo 0 cheiro nauseante, Novamente, Semelweiss submeteu sua idéia a um teste. Raciocinou que, se estivesse certo, entdo a febre puerperal poderia ser prevenida pela destruigao quimica do material infeccioso aderido as maos. Ordenou, entio, que todos os estudantes lavassem suas méos numa so lugao de cal clorada antes de procederem a qualquer exame. A mortalidade pela febre logo comesou a de- 23 crescer, caindo, em 1848, a 1,27% no Primeiro Servigo, enquanto que no Segundo era de 1,33%. Justificando ainda mais suas idéias ou sua hipstese, como também diremos, Semelweiss observou que cla explicava o fato de ser a mortalidade do Segundo Servigo les eram socorridas por parteiras ja instrugéo anatémica por disse- cacao dos cadaveres. Ea hipétese também explicava a menor mortalidade entre os casos de “parto de rua”, pois as mulheres que ja chegavam trazendo seus bebés a0 colo raramente eram examinadas apés a admissio e tinham, assim, melhor sorte de escapar & infeccao. Finalmente, a hipétese explicava 0 fato de serem vitimas de febre os recém-nascidos cujas mies tinham. contraido a doenga durante o trabalho de parto, pois entio a infeccdo podia ser transmitida & crianga antes do nascimento, através da corrente sangiiinea comum. a mie e ao filho, 0 que era impossivel quando a mie permanecera sadia. A citagdo foi longa, porém cremos que suficien- temente clara para demonstrar 0 processo do conh mento, 0 processo pelo qual o sujeito vai construindo a explicaco para a realidade desafiadora que tem diante de si. Semelweiss, sujeito do conhecimento, tinha diante uma situacéo problemética, ainda sem ibi- lidade, opaca. O que ele fez? Trabalhou disciplinada e metodologicamente para construir sua compreensio e sua explicagdo. Observou a realidade, junto frag- mentos ¢ sobre eles tentou articular relagdes tedricas (hipéteses); observou os fatos novamente; muitas vezes frustrou-se em suas possiveis explicagdes, até que atin- giu o nivel verdadeiro de compreensao da realidade. Conseguiu, pois, “iluminé-la”, torné-la transparente. A realidade nao é transparente por si, mas pode tornar-se por meio da investigagao que constréi 0 conhecimento. 24 Esse € um exemplo experimental, ou quase experimen- tal, de investigacao, ‘Um segundo exemplo que vamos lembrar é a cons- truco do conceito de “governo bonapartista” ou 0 “bo- napartismo", realizado por Matx em sua obra O dezoito brumdrio. Marx conceitua 0 bonapartismo como a forma de governo que se d4 no mundo burgués-capitalista, onde o Executivo tem predominancia sobre o Legisla- tivo, apoiado no exército como forca de represséo, no clero, como forga ideolégica e no campesinato como forca popular. Esse governo parece estar desvinculado da sociedade, auténomo sobre ela; no entanto, isso é s6 uma aparéncia, desde que esté a servico do segmento dominante. De onde Marx retirou esse conceito de “governo bonapartista”, que pode ser aplicado a muitos governos de hoje, inclusive na América Latina? Ele o inventou de sua imaginacao? Nao, Certamente que nao. Essa “iIuminagdo” da realidade politica da sociedade bur- guesa-capitalista, ele a construiu a partir do estudo sis temitico e disciplinado dos acontecimentos politicos que envolveram a Franga entre 0s anos de 1848 e 1852. Em 1848, a Revolucdo de Fevereiro colocou 0 pro- letariado no poder ao lado de outros segmentos da sociedade. Em 1851, Luis Napoledo deu o golpe de Estado. Marx acompanha ¢ estuda os acontecimentos politicos entre uma e outra data, desvendando a trama da luta de classe que subjazia a0 processo politico da sociedade francesa de entao. Ele descreve e demonstra que, primeiro, 0 proletariado ¢ eliminado da cena po- litica. A seguir, o proprio parlamento da Republica Fran- cesa é apagado por sucessivas eliminagées dos repre- 15 politicos dos diversos segmentos da sociedade: de inicio, os republicanos; depois, os sociais-democratas; e, por ultimo, os préprios representantes da grande 25 burguesia (0 partido da ordem). Quem ficou no poder? Bonaparte, apoiado nos camponeses, na forga do exército € na ideologia dos padres. O que foi que Marx fez? “Leu”, por sob os fragmentos da realidade, um fio con- dutor dos acontecimentos que permitiu construir a ex- plicagéo de uma forma de governo, que foi o bona- partismo. Forma de governo localizada na Franca de meados do século passado, porém, conceito generali- zAvel para a compreensao de muitos outros governos modernos e contemporaneos. Bismark, na Alemanha, foi um bonapartista; os governos ditatoriais latino-ame- ricanos so bonapartistas; muitas das democracias oci- dentais contemporéneas possuem tracos bonapartistas. Um e outro exemplo nos mostram que 0 conhe- cimento (0 conceito explicativo da realidade) surge de um esforgo metodolégico de investigacao. Ele se ma- nifesta como uma forma de compreenséo universal dos fatos e acontecimentos. Os dois exemplos citados so ilustrativos. £ preciso submeter a realidade a um “es- tragalhamento” analitico, para, a partir dai, descobrir a sua ldgica e a sua inteligibilidade. Sob a mortalid: das mulheres, Semelweiss desvenda a "febre puerper €, sob o golpe de Estado de Lufs Napoledo, Marx des- venda © “bonapartismo”. A tarefa de todos nos esta posta: sob a aparéncia dos fatos e dos fendmenos, des- cobrir a sua esséncia, o seu verdadeiro significado. Isto & proceder a criago do conhecimento como elucidacao da realidade. Nenhum dos dois investigadores retirou suas explicagées do bolso das calgas. Ambos detinham. uma consulta prévia e ambos se debrugaram metodo- logicamente sobre os seus respectivos objetos de estudo. Esse exercicio metodol6gico, criativo, inventivo, in- teressante, ndo é espontaneo, simples e facil. Ele e disciplina e esforgo. Liicio Lombardo Radice em s livro Edueazione della Mente, nos diz 0 segui 26 desenvolvimento intelectual, a aquisig’o de um fatriménio cultural sério e significativo requerem um Eeforgo sistemético: constituem um. trabalho. Qualquer trabalho sério, mesmo 0 que amamos, que escolhemos livremente e que por nada do mundo deixariamos, pos- sui diversas fases e exigéncias complexas. O trabalho no é uma sucessio ininterrupta de alegrias, conquistas, criagdes. A alegria, a conquista e a criagdo sf0 0 re- Sultado de um esforg colidano, humid, obscur, aber recido, Em qualquer trabalho... até no do poeta e no do cientista criador... existem problemas técnicos, a ne- cessidade de dedicar muito tempo a aquisicéo de nodes, de conhecimentos sisteméticos, do dominio sobre os instrumentos. Quer dizer: as premissas do trabalho pro- priamente criador. O domingo deve suceder aos demais dias da semana, as férias vém depois de um longo ano de rotina. O ce apés prolongados terérios, hist6ricos. Os infatigavel fatigosamente construiram. O génio que surge magica mente € um mito roméntico deseducativo: os poetas (ou cientistas geniais so, acima de tudo, infatigéveis trabalhadores. Portanto, a produgo do conhecimento exige tra- balho. Trabalho gratificante, mas trabalho! H4 que se dedicar com esforco, atencdo e disciplina metodolégica para se chegar a resultados significativos. Os resultados do desenvolvimento dos segredos do mundo trazem ao investigador satisfagdo e prazer. Porém, como vimos nos exemplos, exige dedicagio disciplinada por meio de uma proposta metodoldgica. 5, Radice, Lio L. Edueaglo e reohugio, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1964, p. 94 7 3. A questéo da apropriagéo do conhecimento Diariamente, de algum modo, nos apropriamos de novos conhecimentos, seja no nivel do senso comum, seja no nivel da ciéncia. Por isso, vale a pena abordar essa questao. Entendemos, aqui, por apropriagao do conhecimen- to, 0 modo pelo qual & possivel ao sujeito humano tomar posse de um entendimento da realidade, Apro- priagéo néo significa uma retencdo de informacées, mas sim a compreensio do mundo exterior, utilizando-se das informagées. Assim sendo, entendemos que o sujeito se apropria do conhecimento de duas maneiras: a direta e a indireta, Essas duas modalidades de apropriagao na prética séo insepardveis, porém didaticamente distintas.* Diretamente, 0 sujeito se apropria cognitivamente da realidade que se dé a partir de enfrentamento direto entre sujeito do conhecimento e mundo exterior. su- jeito € desafiado por alguma coisa nova que se Ihe apresenta e ele se esforca, metodicamente, para descobrir © seu sentido. Neste tipo de apropriagao cognitiva da ealidade, ndo hé alguém ou algum meio que ensine a0 sujeito 0 que a coisa é. Ele a desvenda. A titulo de exemplos, poderiamos dizer que Tho- mas Edison se apropriou diretamente do modo de cons- trucdo de uma Kimpada elétrica, visto que realizou inti- meros experimentos até chegar a um bem-sucedido. 6 CF. Licks, Cipriano C. eta. © tor, no ato de estdar a paven Propet micodoigc, op. et, pp- 143. Parte do texto agut apresentad, sobre os dos lpes ve. concent, encontase em Likes: Cipriano C, "Os mios de comunicagio na col zag pesagogicae prepares para aidadania in Kroling, Margarida, fee educa. canines eras, S80 Paulo, Layo, 1985, pp. 232 28 Poderiamos dizer que a apropriacZo da compreenséo da causa da febre puerperal, que matava as mulheres no Primeiro Servico de Maternidade no Hospital Geral de Viena, por Ignaz Semelweiss, foi direta. Podemos lembrar, ainda, 0 fato da descoberta da penicilina por Fleming. Ele se apropriou de um entendimento novo da realidade, conseguindo, inclusive, criar um modo técnico de agir em razio da sobrevivéncia de muitas pessoas. Poderiamos ainda, retomar a descoberta do bonapartismo por Marx. E tantos outros... A apropriagio direta do entendimento da realidade seria, entdo, a aquisicao de uma compreensio da rea- Tidade que nasce do esforco de entendé-la a partir de seus proprios elementos e relagées, seja a partir de ‘uma intuigao direta e imediata, seja a partir de longos esforgos de testagem, como foi o caso da construgao da lampada. ‘A apropriagao indireta da realidade é a compreensao inteligivel da mesma que fazemos por meio de um entendimento ja produzido por outro. £ a compreensao da realidade por meio do entendimento que outros ti- veram e nos relataram através de algum veiculo de comunicagao, qualquer que seja ele: oral, escrito, pic- torico, visual, auditivo etc. Ou seja, pela via indireta, a apropriacdo do conhecimento se d4 por um mediador que nos diz que a realidade é assim, porque ele a interpretou assim e, para tanto, apresenta argumentos que devem nos convencer. E posstvel, mediado por uma comunicagéo, chegar a um entendimento da rea- lidade, a um entendimento verdadeiro. Essa segunda forma de apropriagio do conheci- mento é a mais utilizada na pratica escolar, especial- mente quando se usa o livro como mediador entre sujeito cognoscente (educando) e a realidade. Indicar que especialmente 0 livro é 0 meio utilizado na escola, 29 nao tem por intengao pri lo: Apenas constatamos um fato que ocorre todo di Através do texto, que no caso serve como “lente de interpretagao” da realidade, 0 educando deveria apropriar-se de um entendimento dessa realidade, ainda que nem sempre o consiga, devido ater-se mais ao texto que & realidade que ele espelha. O que importa, na apropriagao direta ow indireta do conhecimento, é a compreensao da realidade, porque € ela que cada sujeito humano tem de enfrentar. Quanto mais competente for o entendimento do mundo, mais satisfat6ria seré a acdo do sujeito que o detém. Na escola é que, pela hipertrofia do uso do modo indireto de apropriagéo do conhecimento, muitas vezes, © intermediério do conhecimento é transformado, mis tificado, reificado como se fosse a propria realidade a ser entendida. Existem professores que selecionam textos extremamente dificeis de compreender. O texto passa a ser a dificuldade para o aluno, e nio 0 mundo que © texto pretende expressar. O que importa conhecer nao € 0 texto em si, mas a realidade que ele veicula, a menos, evidentemente, que se esteja estudando o texto mo objeto de abordagem, como nos casos de literatura, gua nacional, estilistica etc. Nesse caso, a realidade a ser compreendida é 0 préprio texto; 0 para esta situacdo seria 0 comentério analitico sobre o texto e suas qualidades ou fragilidades. Com essa hipertrofia do meio, a realidade a ser compreendida fica totalmente obscurecida; 0 objeto do conhecimento fica supresso. O pensamento do educan- So, como manifestaséo do conhecimento apropriado, ae gerd um Pensamento sobre 0 abjeto do conheci- Foc a scbte ©, discurso feito sobre 0 objeto. Disso eaeteac Ghamade “razio ornamental”, que nada mais Possivel discurso brilhante sobre alguma 30 coisa que se conhece, ‘mas que no traduz uma ver- dadeira compreenséo sobre ela, ‘A razdo ornamental assemelha-se ao “verbalismo”, que nada mais é do que um belo discurso que efeti- vamente nada expressa da realidade. O verbalismo & ‘uma articulagio de palavras lancadas ao vento, sem qualquer amarra efetiva com 0 objeto ao qual deveria estar articulada. Assim sendo, vale a pena 0 uso dos conhecimentos 4 acumulados pelo sujeito cognoscente? Claro que si Mais que isso: para a efetiva aptopriacéo do conheci- mento como entendimento da realidade, hoje, ndo ha como fugir ao legado da humanidade. A apropriagéo do conhecimento acumulado, como forma de entendi- mento da realidade, é elemento fundamental para 0 avanco do conhecimento novo. Em nossa civilizacao atual, néo ha como produzir conhecimento novo, no sentido de fazer avangar 0 le- gado da humanidade, sem que nos apropriemos dele. Roberto Gomes, falando a respeito do legado filoséfico, diz que “é tio grave esquecer-se no passado quanto esquecer-se dele”. Em termos de conhecimento, ocorre a mesma coisa, Nao se pode suprimir 0 legado cognitive da humani dade; ele é 0 nosso lastro de “saber” e de “saber fazer” Fa partir dele e de suas lacunas que temos de avangar. Semelweiss, Marx e todos os grandes pesquisadores utilizaram-se desse legado. Ele é necessério. As apropriagées diretas e indiretas do conhecimen- to esto profundamente inter-relacionadas e so impo- ivamente necessérias, Nao hé razio para desmerecer uma via e privilegiar a outra. Ambas as formas sao necessdrias a0 sujeito para que ele elucide 0 mundo em que vive. 31 Cabe @ escola, que se quer comprometida com a Preparacao do educando para a conquista da cidadania, Possibilitar e criar condigées para que o educando com. Preenda o mundo por meio dos conhecimentos ¢ ha. bilidades necessarios. Essa compreensio oferecer Ihe d meios para transformar a realidade em razo do bem- estar da sociedade O educando, apropriando-se por meio da escola, lo conhecimento como forma de compreensio da tex, lidade, esta se preparando nao s6 para o enfrentamento dos desafios da natureza propriamente dita (parte do mundo), mas também para enfrentar as mazelas socisis que 0 envolvem. O educando estara se preparando para Preencher os quadros de recursos que uma luta pela cidadania vai exigir e estard se Preparando para rei- vindicar socialmente os seus direitos. O conhecimento que se transforma em consciéncia social é um instru. mento bsico na luta pela transformacao. Muitas vezes, os nossos educandos, além de nio S® apropriarem da. realidade por meio dos processos de conhecimento, também nao se apropriam dos mele Pelos quais podem reivindicar os seus direitos, Certs, mente ndo seré com o “espontaneismo” na aprendiza. Sem que conquistaremos a compreensio da realidade ¢ faremos 0 avanco do conhecimento. Ao contratio, a apropriagio do conhecimento, como instrumento de pre- Faracio para a conquista da cidadania, exigird disciplina de aprendizagem, de estudo, de cr iagdo, seja no processo Prioritariamente direto ou prioritariamente indireto de conhecer. 4. Concluséo AP6s esse exercicio de reflexéo, podemos dizer que fomamos contato com trés questdes que envolvent 32 discussdo do sentido do conhecimento, Estudamos 0 iscu ¢ dames € como iluminagdo da realidade, qual 0 set te oes ae a sultado da interacdo de construgio como res Bo sujet id terior e os modos de sua sujeito com 0 mundo ex 0 a ade. Se bem compreendidos e Saou See ‘imeit 30 func ental entos, temos um primeiro pass fundamé a ae wis ee ene gn rer conhe cimento com o préximo capitulo, que tem por om a tratar dos tipos de conhecimento e respectivos signif cados para a vida humana. 33

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