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© Copyright 2008, dos autores Direitos cedidos para esta edigdo & JDusank DisrRisuiboka De Pusticacoes L7DA. ‘Travessa Juraci, 37 ~ Penta Circular 727020-220 ~ Rio de Janeiro, RI ‘Tels (21) 2564 6869 Fax: (21) 2590 0135 E-mail: relume@relumedumara.com.br Revisao Técnica Julianna Malerba Revisit Monica Machado Exltoragao Dilmo Mitheitos Capa Simone Villas-Boas Com foto de JR. Ripper APOIO. Fundagio Heinrich Ball Fundago Ford FASE, cup-Brai, Catlogago-ne-fons Sinsiat Nacional dos Eire de Lvs, Jo7 Tanga ambiental cadena - Tegatanlores cn Acs Selene Hercule fosé Augso Pun. “Ro ce loner Rhine Damars: Fundaao Fo, 2004 “Teabalhos apresenados no Cotiquio Internacional sobre Justiga ‘Ambiental, Trabalho e Cidadania realizado na Universidade Federal Fluminense, em sctembeo de 2001 ISBN 85-7316-383-4 1, Desenvolvimento sustentivel. 2, fstiga ambiental. 9. Justiga social, 4, Politiea ambiental ~ Aspects sociais, i. Acselad Hen Il Herculan, Selene. {I Pidua, José Augusto, 1959- coo 363.705 oes CDU 504.03 Tos ov its resenadon. A veqrtigto mio-asizada desta pubcagi, por zuiqur mete, su tl x par sont lagu do st 398, Apresentacao ‘Durante muito tempo os movimentos ambientais trataram a questo ambiental apenas em termos de preservagio, preocupados com as conseqiigncias gerais da escassez associada & exploragéo predat6ria dos recursos planetirios. No final dos anos 80, porém nos EUA é formado um movimento inovador com 0 objetivo de defender o interesse das populagdes que vivem nas periferias das rmetrépoles e sofrem contaminacio por esiduos industriais. A novidade trazida cra a deniincia que os grupos sociais de menor renda so, em geral, os que recebem as maiores cargas dos danos ambientais do desenvolvimento. A par- tir dessa discussio nasceu um novo enfoque das questées ambientais, que comegaram a ser pensadas em termos de distribuigio e de justiga Partilhando da conviegio de que as injusticas sociais ¢ a degradagio ambiental tém raizes comuns, em setembro de 2001, representantes de movie ‘entos sociais, sindicatos, ONGS, entidades ambientalistas, organizagées de afrodescendentes, grupos indigenas e pesquisadores universitarios do Brasil, BUA, Chile e Uruguai, se reuniram em um Coléquio Internacional sobre Just ga Ambiental, Trabalho e Cidadania, na Universidade Federal Fluminense, na cidade de Nitersi. O foco da discussio foram as consequéncias ambientais do modelo de desenvolvimento dominante no Brasil, que também destina as maio- res cargas dos danos ambientais as populagdes socialmente mais vulneriveis, refletindo a enorme concentragio de poder na apropriagdo dos recursos ambientais que caracteriza a historia de nosso pais. O livro que agora se apresenta é 0 produto dessa discussio. Ele tem por objetivo denunciar que a destruigio sistemética do meio ambiente acontece, de modo predominante, em locais onde vivem populagées negras, indigenas ou sem recursos econdmicos, e oferecer subsidios para que essas populagées ppossam se contrapora esse proceso. Por essa razio ele é destinado, de modo Introducao A justicga ambiental e a dinamica das lutas socioambientais no Brasil — uma introdugao Henri Acselrad” Selene Herculano ‘Augusto Padua” O conceito de justiga ambiental nasceu da capacidade inventiva dos movi- !mentos sociais dos Estados Unidos, especialmente das organizagées forjadas nas lutas pelos direitos civis das populagées afrodescendentes a partir da déca, da de 1960, em ouvir o clamor de cidaddios pobres e grupos socialmente dis. ados quanto & sua maior exposigao a riscos ambientais. Ele decorreu da ercepeio de que depésitos de lixos quimicos e radioativos, ou de indistrias com efluentes poluentes, concentravam-se des; nalmente na vizinhanga das dreas habitadas por estes grupos. Nos termos de Robert Bullard, intelec- tual e ativista norte-americano, a justiga ambiental € a condicio de existoneia social configurada através da “busca do tratatento justo e do envolvimento Significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raga, cor origemm ou renda no que diz respeito ela desenvolvimento, implementagio e reforgo de politicas leis e regulagdes ambientais, Por tratamento justo enter. da-se que nenhum grupo de pessoas, incluindo-se af grupos étnico de classe, deva suportar uma parcela desproporcional das conseqigncias am. bientais negativas resultantes de operagdes industriais, comerciais e munich. pais, da execugdo de politicas programas federais, estaduais, locais ou tribais, bem como das consequgncias resultantes da auséneia ou omissto de ticas” Por justiga ambiental, portanto passou-se a entender, desde us primeiras lutas que evocaram tal nogio no inicio dos anos 80, 0 conjunto de prinefpios * Professor do IPPUR/UFRI. sora do. TECHIGSO/UEF. "Professor do IFCS/UFRI e Projeto Brasil Sustentivel ¢ Democrético, 10 JuSTICA AMBIENTAL E CIDADANIA que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional de degradago do espago co- letivo, Complementarmente, entende-se por injustiga ambiental a condicdo de existéncia coletiva prépria a sociedades desiguais onde operam mecanismos sociopoliticos que destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvi- mento a grupos sociais de trabalhadores, populagtes de baixa renda, segmen- tos raciais diseriminados, parcelas marginalizadas e mais vulnerdveis da cida- dania. ‘A consolidagio de um movimento de justiga ambiental no plano nacio- nal dos BUA, modificou a configuragio de forgas eo horizonte estratégico do movimento ambientalista, bem como o perfil de suas articulagdes com os demais movimentos sociais norte-americanos. No campo da formulagio ¢ implementagio de mecanismos politicos, ¢ movimento por justiga ambiental passou a influenciar toda uma legislagdo. E o caso, por exemplo, dos proce- dimentos para descontaminagao de terrenos; do direito & informagio, para fas comunidades vizinhas; de detalhes a respeito de empreendimentos exis- tentes ou em elaboragao; ¢ da criagdo de fundos direcionados as comunida- des afetadas, dando-lhes meios financeiros para contratar servigos técnicos € advocaticios. ‘A temitica da justiga ambiental vem se internacionalizando rapidamente, particularmente em contextos hist6ricos caracterizados por extremas desigual- dades, como & 0 caso da sociedade brasileira. No Brasil, pats caracterizado pela existéncia de grandes injustigas, o tema da justiga ambiental vem sendo reinterpretado de modo a ampliar seu escopo, para alm da temética especifica da conlaminago quimica e do aspecto especificamente racial da discrimina- io denunciada. As gigantescas injustigas sociais brasileiras encobrem e natu ralizam um conjunto de situagdes caracterizadas pela desigual distribuigdo de poder sobre a base material da vida social e do desenvolvimento. A injustiga e a discriminagdo, portanto, aparecem na apropriagio elitista do territdrio e dos recursos naturais, na concentragao dos beneficios usufruidos do meio ambien- tee na exposigdo desigual da populagio a poluigto e aos custos ambientais do desenvolvimento. Por outro lado, se é verdade que 0 conceito de justiga ambiental nasceu nos Estados Unidos, pode-se dizer que o contetido deste tipo de conflito séeio- ambiental possui uma dimensio bem mais universal. Existe no Brasil, por exem- plo, um conjunto de ages e movimentos sociais que estiveram desde hé muito envalvidos em lutas por “justiga ambiental”, mesmo que no tenham recorrido ‘a0 uso dessa expressio. E 0 caso do movimento dos atingidos por barragens, dos movimentos de resisténcia de trabalhadores extrativistas, como os serin~ Intropucao n gueiros no Acre ¢ as quebradeiras de babagu no Maranhio, contra 0 avango das relagdes capitalistas nas fronteiras florestais ¢ de intimeras ages locais contra a contaminagio ¢ a degradacao dos espagos de vida e trabalho nos bairros ¢ regides pobres marginalizados. No caso do Brasil, portanto, 0 potencial politico do movimento pela justi- a ambiental é enorme, O pais é extremamente injusto em termos de distribui- cio de renda e acesso aos recursos naturais. Sua elite governante tem sido especialmente egoista e insensivel, defendendo de todas as formas os seus interesses ¢ lucros imediatos, inclusive langando mio da ilegalidade e da vio- \gncia. O sentido de cidadania e de direitos, por outro lado, ainda encontra um. espago relativamente pequeno na nossa sociedade, apesar da luta de tantos movimentos e pessoas em favor de um pats mais justo e decente. Tudo isso se reflete no campo ambiental. O desprezo pelo espago comum e pelo meio am- biente se confunde com o desprezo pelas pessoas e comunidades. Os vaza- mentos ¢ acidentes na inddstria petrolifera e quimica, a morte de tios, lagos e bafas, as doengas e mortes causadas pelo uso de agrotSxicos ¢ outros poluentes, a expulsiio das comunidades tradicionais pela destruigdo dos seus locais de vida e trabalho, tudo isso, ¢ muito mais, configura uma situagio constante de injustiga socioambiental no Brasil. Uma situagio que vai além da problemitica de localizagio de depésitos de reeitos quimicos e de incineradores da experi- éncia norte-americana. ‘O ambientalismo brasileiro, além disso, tem um grande potencial para se renovar e expandir o seu alcance social, na medida em que se associe e se solidarize com as massas pobres e marginalizadas, que vém se mobilizando cem favor dos seus direitos. Os movimentos sindicais, sociais e populares, en- tee outros, também podem renovar e ampliar o alcance da sua luta se nela incorporarem a dimensio da justiga ambiental: o direito a uma vida digna em um ambiente saudavel. Todas essas lutas, na verdade, representa uma s6 € ‘mesma luta pela democracia, pelo bem comum e pela sustentabitidade ‘Assim, tendo em vista o alto grau de desigualdades e de injusticas socio- ‘ccon6micas, bem como a renitente politica de omissio e negligéncia no aten- dimento geral As necessidades das classes populares, a questio da justiga ambiental, para ser adequadamente equacionada no Brasil, deve agambarcar uma ampla gama de aspectos. E preciso considerar, por exemplo, tanto as ca- sSncias de saneamento ambiental no meio urbano quanto, no meio rural, a \logradagio das terras usadas para acolher os assentamentos de reforma agréria, Nido so apenas os trabalhadores industriais e 0s moradores no entorno das Fibrivas aqueles que pagam, com sua satide ¢ suas vidas, os custos das chama- Jas “externalidades” da produgdo de riquezas, mas também os moradores dos 12 JUSTIGA AMBIENTAL F CIDADANIA subiirbios ¢ periferias urbanas, onde fica espalhado o lixo quimico, os morado- res das favelas desprovidas de esgotamento sanitério, os lavradores induzi dos a consumir agrot6xicos que envenenam suas familias, terras e produgio; as populagdes tradicionais extrativistas, progressivamente expulsas de seus territ6rios de uso comunal. A expansdo do modelo de desenvolvimento domi- ante na agroindistria brasileira, por exemplo, tem-se associado a inviabilizagio da pequena agricultura familiar, da reprodugo dos grupos indigenas, da pesca artesanal ¢ do abastecimento de 4gua para as comunidades. Ao erodir ¢ compactar os solos, reduzindo seus nutrientes, alterando microclimas e afe- tando negativamente a biodiversidade animal e vegetal, os efeitos dessa ex- pansio tém atingido em particular os mais pobres. Niio hd como chamar de progresso e desenvolvimento o processo de em- pobrecimento e envenenamento dos que 4 so pobres. Entendem os atores defensores de uma aproximagio entre as lutas sociais e ambientais que niio é Justo que 05 altos Iucros das grandes empresas se fagam & custa da miséria e da degradagio do espago de vida da maioria. Mais do que isso, os propésitos da justiga ambiental ndo podem admitir que a prosperidade dos ricos se dé através da expropriagdo ambiental dos pobres. Este tem sido o mecanismo pelo qual o Brasil tem ganho os recordes em desigualdade social no mundo: concentra-se a renda e concentram-se também os espacos ¢ recursos am- bientais nas miios dos poderosos. O marco inicial de sistematizagao € divulgagdo da problematica refe- rente justia ambiental no pais foi a colecao intitulada “Sindicalismo Justiga Ambiental”, publicada em 2000 pela Central Unica dos Trabalhadores (CUT/RD), em conjunto com o Instituto Brasileiro de Andlises Sociais e Eco- n6micas (IBASE) € 0 Instituto de Pesquisa ¢ Planejamento Urbano ¢ Regio- nal (IPPUR/UFR3), com 0 apoio da Fundagao Heinrich Bll. O intuito do projeto era “estimular a discussdo sobre a responsabilidade e 0 papel dos trabalhadores, e das suas entidades representativas, na defesa de um meio ambiente urbano sustentével e com qualidade de vida acessivel a todos os seus moradores”, dentro da “perspectiva de critica ao modelo dominante de desenvolvimento” ¢ entendendo que os “recursos ambientais séo bens cole- tivos, cujos modes de apropriagio e gestio so objeto de debate publico” Também em 2000, o sociGlogo Paulo Roberto Martins apresentou em um congresso um estudo em que descrevia casos de sindicatos que tm desen- volvido ages que indicam a institucionalizagio de uma luta por justiga ambiental, envolvendo tanto os trabalhadores e suas instituigdes representa- tivas quanto us muradores do entorno das fébricas e os movimentos ambientalistas. Exemplos so 0 caso do Sindicato dos Quimicos de Sio Pau- ivrropucko 13 ‘o, na sua luta contra a empresa estatal pertencente 8 Nuclebras, ¢ do Sindi- cato dos Quimicos do ABC na sua futa contra a empresa Solvay, ambos no estado de Sio Paulo. O estudo contrastava os avangos ocorridos neste cam- »0 dentro da CUT com a compreensio ainda parcial que tém seus dirigentes respeito da temética, ‘Com o objetivo de ampliar 0 didlogo ea articulagao entre sindicatos, mo- imentos sociais, ambientalistas € pesquisadores, no sentido de estimular © ‘ortalecimento da luta por justica ambiental no Brasil, foi realizado em setem- bro de 2001, no campus da Universidade Federal Fluminense em Nitersi, 0 Coléquio Internacional sobre Justiga Ambiental, Trabalho e Cidadani Durante este encontro, promovido pela Comisstio Nacional de Meio Ambiente Ja Central Unica dos Trabalhadores, pelo Projeto Brasil Sustentavel e Demo- crético, pela Fase, pelo laboratério Estado, Trabalho, Tertit6rio e Natureza do IPPUR-UFRJ, pelo Laboratério sobre Cidadania, Territorialidade, Trabalho & Ambiente (LACTTA) da UFF, pelo Centro de Ecologia Humana ¢ Saide do rabalhador da Fundago Oswaldo Cruz, foi criada a Rede Brasileira de Jus- Ambiental e foram apresentados os trabalhos e exposigées transcritos neste livro, ‘O coléquio procurou debater os enfoques tesricos e as implicagées politi- .s do desenvolvimento da proposta de justiga ambiental no Brasil e na Amé- rica Latina, promovendo uma revisdo histérica e uma avaliacZo das campa inhas e agdes de cidadania passiveis de enquadramento dentro deste conceito, liscutindo casos de injustiga ambiental, relacionando as temiticas do trabalho do meio ambiente na experiéncia dos sindicatos e movimentos sociais, esti- nnulando a reflexio sobre a construgdo de uma agenda politica ampla em favor ia justica ambiental e identificando possibilidades de cooperago internacio- nal no desenvolvimento desta huta Esperamos que a divulgago em livro dos resultados do col6quio para um. pblico mais amplo de cidadiios ¢ ativistas sirva ao desenvolvimento tedrico & prdtico dos objetivos expostos pela Declaragio de Prinefpios da Rede Brasilei- ra de Justiga Ambiental, que transcrevemos a seguir © que resume bem as intengdes e propostas dos grupos e individuos que estio participando deste movimento, Declaragio de Principios da Rede Brasileira de Justica Ambiental Representantes de movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores, ONGs, ntidades ambientalistas, organizagdes de afrodescendentes, organizagées indi- 14 JUSTIGA AMBIENTAL & CIDADANIA _genas ¢ pesquisadores universitirios do Brasil, Estados Unidos, Chile e Uru- gui, reuniram-se no Coléquio Intemacional sobre Justi¢a Ambiental, Trabalho Cidadania, realizado em Niterdi de 24 a 27 de setembro de 2001. Nessa casio denunciaram e debateram a preocupante dimensao ambiental das de~ sigualdades econdmicas e sociais existentes nos paises representados. A injustiga ambiental que caracteriza 0 modelo de desenvolvimento domi- ante no Brasil foi o foco das discusses. Além das incertezas do desemprego, da desprotecio social, da precarizagao do trabalho, a maioria da populagio brasileira encontra-se hoje exposta a fortes riscos ambientais, seja nos locais de trabalho, de moradia ou no ambiente em que circula. Trabalhadores e popu- lagio em geral esto expostos aos riscos decorrentes das substincias perigo- sas, da falta de saneamento bisico, de moradias em encostas perigosas e em beiras de cursos d’sigua sujeitos a enchentes, da proximidade de depésitos de lixo t6xico, ou vivendo sobre gasodutos ou sob linhas de teansmisstio de eletri- cidade. Os grupos sociais de menor renda, em geral, so os que tém menor aacesso ao ar puro, 3 gua potdvel, a0 saneamento basico ¢ a seguranca fundid- ria. As dindmicas econémicas geram um processo de exclusio territorial & social, que nas cidades leva A periferizaco de grande massa de trabalhadores € no campo, por falta de expectativa em obter melhores condigées de vida, leva ao éxodo para os grandes centros urbanos, As populagées tradicionais de extrativistas e pequenos produtores, que vivem nas regiées da fronteira de expansio das atividades capitalistas, sofrem as pressdes do deslocamento compulsério de suas dreas de moradia e traba~ Iho, perdendo o acesso terra, As matas € aos rios, sendo expulsas por grandes projetos hidrelétricos, vidrios ou de exploragio mineral, madeircira ¢ agrope- cuaria. Ou entio tém as suas atividades de sobrevivéncia ameagadas pela definigdo pouco democritica e pouco participativa dos limites ¢ das condigGes de uso de unidades de conservacio. Todas essas situagées refletem um mesmo proceso: a enorme concen tragio de poder na apropriagdo dos recursos ambientais que caracteriza a histéria do pais. Uma concentragio de poder que tem se revelado a principal responsiivel pelo que os movimentos sociais vém chamando de injustiga ambiental. Entendemos por injustiga ambiental 0 mecanismo pelo qual socie- dades desiguais, do ponto de vista econdmico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento as populagdes de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operd- ‘os, 4s populagdes marginalizadas ¢ vulnerveis, Por justica ambiental, a0con- ttario, designamos 0 conjunto de prinefpios ¢ priticas que: IvtRopucko. 15 2) asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqiiéncias ambientais nega- tivas de operagdes econémicas, de decisées de politicas e de programas fede- ‘ais, estaduais, locais, assim como da auséncia ou omissio de tais politicas; b) asseguram acesso justo e eqiitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do pai ‘) asseguram amplo acesso s informagdes relevantes sobre 0 uso dos recursos ambientais € a destinagdo de rejeitos ¢ localizagio de fontes de riscos amibientais, bem como processos democraticos € participativos na definicao de politicas, planos, programas e projetos que Ihes dizem respeito; d) fayorecem a constituicgao de sujeitos coletivos de direitos, movimentos, sociais e organizagdes populares para serem protagonistas na construgdo de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratizagio do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. Estamos convencidos de que a injustiga ambiental resulta da légica per- versa de um sistema de produgio, de ocupagio do solo, de destruigio de ecossistemas, de alocagio espacial de processos poluentes, que penaliza as condigdes de savide da populagio trabalhadora, moradora de bairros pobres © excluida pelos grandes projetos de desenvolvimento. Uma légica que mantém grandes parcelas da populagio as margens das cidades e da cidadania, sem ‘gua potdvel, coleta adequada de lixo e tratamento de esgoto, Uma légica que permite que grandes empresas lucrem com a imposigdo de riscos ambientais ¢ sanitirios aos grupos que, embora majoritérios, por serem pobres, tém menos poder de se fazer ouvir na sociedade e, sobretudo, nas esferas do poder. En- quanto as populagdes de maior renda t8m meios de se deslocar para reas sais protegidas da degradagao ambiental, as populagdes pobres so espacial- mente segregadas, residindo em terrenos menos valorizados ¢ geotecnicamente raseguros, utilizando-se de terras agricolas que perderam fertilidade e antigas ‘reas industriais abandonadas, via de regra contaminadas por aterros t6xicos clandestinos. 0s trabathadores urbanos e rurais, por sua vez, estdo freqiientemente sub- inetidos aos riscos de tecnologias sujas, muitas delas proibidas nos paises mais, industriatizados, que disseminam contaminantes que se acumulam de manera persistente no meio ambiente. Esses contaminantes, além de provocar doencas vos pr6prios trabalhadores, produzem acidentes por vezes fatais com criangas que circulam em dreas de periferia onde ocorrem os descartes clandestinos de csiduos. A imresponsabilidade ambiental das empresas atinge em primeiro lugar » com maior intensidade as mulheres, a quem cabe freqiientemente a lavagem 16 JUSTIGA AMBIENTAL € CIDADANTA dos uniformes de trabalho contaminados de seus maridos ou o manejo de reci- pientes de agrotéxico transformados em utensilios de cozinha. Esse ciclo de iresponsabilidade ambiental e social das empresas poluentes e de muitos gestores @ orgios governamentais, ameaca 0 conjunto dos setores sociais, haja visto que rios e alimentos contaminados por agrotéxicos e pela falta de tratamento de esgoto acabam por afetar as populacées nas cidades. ‘A anencefalia nas criangas nascidas em Cubatio (SP), a presenga das, substincias cancerigenas conhecidas como “drins” nas pequenas chécaras de Paulinia (SP), a estigmatizagdo que perpetua o desemprego dos trabalhadores contaminados por dioxina no ABC paulista, a alta incidéncia de suicidio entre 0s trabalhadores rurais usudrios de agrot6xicos em Venancio Aires (RS) sto exemplos que configuram as manifestacdes visiveis de um modelo fundado na injustiga estrutural e na irresponsabitidade ambiental de empresas ¢ governos. ‘Apesat do fato de que a l6gica deste modelo é sistematicamente negada por seus responsaveis, que alegam a auséncia de causalidade entre as decisdes politicas ¢ produtivas ¢ os efeitos danosos que tém sobre suas vitimas. ‘O enfrentamento deste modelo requer que se desfaga a obscuridade e o silencio que sfc langados sobre a distribuigdo desigual dos riscos ambientais, A dentincia do mesmo, por outro lado, implica em desenvolver articuladamente as lutas ambientais ¢ sociais: niio se trata de buscar o deslocamento espacial das préticas danosas para areas onde a sociedade esteja menos organizada, mas sim de democratizar todas as decisdes relativas & localizagdo e as impli- cagées ambientais e sanitérias das priticas produtivas e dos grandes projetos econdmicos e de infra-estrutura. Pensamos que o tema da justiga ambiental ~ que indica a necessidade de trabalhar a questio do ambiente néo apenas em. termos de preservacio, mas também de distribuigio e justiga — representa o ‘marco conceitual necessério para aproximar em uma mesma dindmica as lutas populares pelos direitos sociais e humanos ¢ pela qualidade coletiva de vida ea sustentabilidade ambiental. Por esse motivo criamos a Rede Brasileira de Jus- tiga Ambiental, que tem os seguintes objetivos bisicos: 1, Elaborar coletivamente uma Declaragio de Principios da Justica ‘Ambiental no Brasil. Essa declaragio serd objeto de um proceso de discus- so continuo de médio prazo, servindo para aglutinar forgas, afinar conceitos fe suscitar estratégias. Nos EUA, 0 movimento de justiga ambiental foi estruturado nacionalmente a partir do programa dos 17 principios elaborado em 1991, na Ciipula dos Povos de Cor pela Justiga Ambiental. No caso brasi- Jeiro, assim como naquele pais, espera-se que tal processo ajude a disseminar as lutas e as estratégias associadas & nogio de justica ambiental. = IyTRODUCAO, Ww 2. Criar um ou mais centros de referéncia de justiga ambiental. Trata-se de uma proposta de democratizagio de informagées, criando bancos de dados ‘que contenham registros de experiéncias de lutas, casos concretos de injustiga, ambiental, conflitos judiciais, instrumentos institucionais ete. Trata-se também de aglutinar peritos de diferentes especialidades dispostos a apoiar as deman- das de assessoria dos movimentos. Os centros ajudatdo a acompanhar ¢ divul- gar resultados de pesquisa académica sobre desigualdades ambientais. Féruns periddicos debaterdo e consolidario as experiéncias dos diferentes tipos de lutas desenvolvidas. 3. Dislogo permanente entre atores. Promover o intercdmbio de expe- rigncias, idéias, dados e estratégias de agio entre os miltiplos atores de lutas ambientais: entidades ambientalistas, sindicatos urbanos e rurais, atingidos por barragem, movimento negro, remanescentes de quilombos, trabalhadores sem-terra, movimento de moradores, moradores em unidades de conservagio, organizagdes indigenas, ONGs, foruns e redes. Além de encontros especificos por setores, pretende-se organizar encontros maiores que ampliem a coopera- ¢fo e 0 esforgo comum de luta, Um dos principais abjetivos desse esforgo & sensibilizar os meios de comunicagdo, os formadores de opinido e a opinitio piiblica em geral. 4, Desenvolvimento de instrumentos de promogiio de justiga ambienta Produzir metodologias de avaliagdo de equidade ambiental, manuais de valor zaco das percepgdes ambientais coletivas, mapeamento dos mecanismos decisdrios com vistas & democratizagio das politicas ambientais em todos os niveis, cursos para a sensibilizagao dos agentes do poder piiblico envolvidos coma regulago do meio ambiente. Produzir argumentos conceituais e evidén- cias empiricas em favor da sustentabilidade democritica e da justiga ambiental. 5. Pressionar érgaos governamentais e empresas para que divulguem in- formagdes a0 pibblico, Reivindicar a publicagao sistemética de informagées sobre as fontes de risco ambiental no pats. As agéncias estaduais, em partic lar, deveriio ser pressionadas publicamente para produzir dados sobre a dist ‘buigto espacial dos depésitos de lixo t6xico e perigoso. 6. Contribuir para o estabelecimento de uma nova agenda de ciéncia e tecnologia. Apoiar pesquisas voltadas para os temas da justiga ambiental rea lizadas sempre que possfvel através do dislogo entre pesquisadores, comunida- des atingidas e movimentos organizados. Ajudar a formar técnicos e peritos que trabalhem dentro dessa perspectiva, Estimular o desenvolvimento de no- vyas metodologias cientificas e de novas tecnologias que ajudem a promover a lute contra a injustiga ambiental, sempre respeitand us direitos de cidadania e o saber das comunidades locais. 18 JUSTICA AMBIENTAL E CIDADANTA 17, Estratégia de articulagdo intemacional. Desenvolver contatos com par- ceiros internacionais no campo da estratégia politica, da cooperacdo cientifica, da troca de informagio sobre normas € padrées ambientais, da luta contra a exportagio de pracessos poluentes ¢ de depésitos de rejeitos perigosos. Pre- parar uma oficina sobre justiga ambiental no IT Frum Social Mundial em Porto Alegre, 2002. Consideramos que o termo justica ambiental é um conceito aglutinador e mobilizador, por integrar as dimensées ambiental, social e ética da sustentabi- lidade e do desenvolvimento, freqiientemente dissociados nos discursos e nas préticas. Tal conceito contribui para reverter a fragmentagiio e o isolamento de varios movimentos sociais frente aos processos de globalizagio ¢ restruturagdo produtiva que provocam perda de soberania, desemprego, precarizagio do trabalho e fragilizagao do movimento sindical e social como uum todo. Justiga ambiental, mais que uma expressao do campo do direito, as~ sume-se como campo de reflexio, mobilizagio e bandeira de luta de diversos sujeitos e entidades, como sindicatos, associagdes de moradores, grupos de afetados por diversos riscos (como as barragens ¢ varias substincias quimi- cas), ambientalistas e cientistas ‘As entidades que promoveram e participaram do coléquio fardo reunides, para organizar a estrutura de funcionamento e as primeiras atividades da rede, com base nos principios acima descritos. Todos 0s que se sentirem de acordo com a proposta da justiga ambiental estiio convidados a participar. Assembléia Permanente de Entidades de Defesa do Meio Ambiente (APEDEMA) - RJ “Associagio Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA) Associago de Preservagio e Equilibrio do Meio Ambiente de Santa Catarina (APREMA) - SC Associagio de Protecio ao Meio Ambiente Cianorte (APROMAC) ~ PR ‘Associagiio de Combate aos POP’S (ACPO) ~ SP ‘Associagiio Livre para Gerenciamento Ambiental (ALGA) Associagdo Comunitéria de Produgio Ambiental Chico Mendes (ACOPACHIM) ‘Associagiio Novas Propostas para a Agroecologia na Amazénia (GTNA)— PA Associagio Paraibana dos Amigos da Natureza (APAN) ~ PB Associagio Projeto Roda Viva ~ RI Bicuda Ecolégica ~ RJ 1 Intropucko. 19 Brasil Sustentavel e Democritico ‘Campanha “Billings Eu Te Quero Viva'" ~ SP Central Unica dos Trabalhadores (CUT) Centro de Estudos de Satide do Trabalhador e Ecologia Humana ~ENSP/ FIOCRUZ ~ RI Coatiziio Rios Vivos— MT Conselhio de Administragio da Comunidade Iny ~ MT ECOCIDADE ~ RI Equipe de Conservacionistas de Santa Cruz (ECOSC) ~ RI FASE Federagio Indigena pela Unificagdo ¢ Paz Mundial (FIUPAM) — AM Fundagio SOS Euterpe Edulis ~ SC Fundagio Vitéria Amaz6nia ~ AM Greenpeace Brasil Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBA)—BA Grupo de Agtio Ecolégica (GAE)— RI Grupo de Defesa da Natureza (GDN) ~ RJ Grupo de Traballio Amazénico (Rede GTA) Grupo Ecolégico “Salve o Tamanduatef” (GESTA) ~ SP IBASE Instituto de Desenvolvimento Ambiental (IDA) ~ DF Instituto de Estudos Sécio Econdmicos (INESC) ~ DF Instituto de Vivéncia Ambiental (IN VIVA) Instituto Ipanema ~ RJ Instituto Rede Brasileira Agroflorestal (REBRAF) ~ RJ Instituto Terrazul — CE KOINONIA, Laboratério do Espago Antrépico (LEBA) du UENF ~ RJ Laboratério de Estado, Trabalho, Tetritério e Natureza ~ IPPUR/UFRI ~ RJ Laboratério de Estudos de Cidadania, Territorialidade, Trabalho e Ambiente — ICHF/UFF ~ RJ Laboratério de Gerenciamento Costeiro da FURG ~ RS Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Movimento de Defesa da Vida do Grande ABC ~ SP Nicleo de Agio Ecolégica Caminho da Vida ~ SP JUSTICA AMBIENTAL E CIDADANIA Nicleo de Pesquisa em Movimentos Sociais da UFSC ~ SC Os Argonautas ~ PA s Verdes / Movimento de Ecologia Social - RJ Pastoral da Juventude Rural de Sio Mateus ~ PR Programa da Terra (PROTER) ~ SP Programa de P6s Graduagio em Ciéneia ‘Ambiental (PROCAM/USP) ~ SP Rede Alerta contra o Deserto Verde ES/BA/RIMG Rede Brasileira Agro Florestal Rede Internacional de Rios Rede Virtual Cidada pelo Banimento do Amianto Sindicato dos Sociélogos do Estado de S. Paulo - SP Sindicato dos Petroquimicos de Caxias - RI Sindicato dos Petroleiros de Santos - SP Sindicato dos Quimicos do ABC - SP Sindicato dos Quimicos Unificados~Osasco, Campinas, Vinhedo e Regio. Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sao Mateus ~ PR Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Vale do Ribeirae Litoral Sul (SINTRAVALE) - SP Sociedade Protetora da Diversidade das Espécies (PROESP) ~ SP Sociedade Rio Clarense de Defesa do Meio Ambiente (SORIDEMA) ~ SP Vitae Civilis - SP Parte I Justica, saber e acao Justiga ambiental — acdo coletiva e estratégias argumentativas Henri Acselrad’ Introdugao Ainte 0s indicadores do que um pensamento dominante considera 0 nécleo do problema ambiental ~ 0 desperdieio de materia e energia ~, empresas e _governos tendem a propugnar as agdes da chamada “modernizagdo ccologi- ca, destinadas essencialmente a promover ganhos de eficiéncia e a ativar ‘mercados. Tratam assim de agir basicamente no ambito da logica econdmica, atribuindo ao mercado a capacidade institucional de resolver « degradagio ambiental, “economizando” o meio ambiente e abrindo metcados para novas teenologias ditas limpas, Celebra-se o metcado, consagra-se o eonsenso poli- tico ¢ promove-se o progiesso técnico.! Tem-se como dada a capacidade de ‘superar a crise ambiental fazendo uso das instituiges da modernidade, sem abandonar 0 padrio da modernizagio" e “sem alterar 0 modo de produgio capitalista de modo geral”? Seu pressuposto basico é o da “possibilidade de uum aprendizado institucional frente & crise eccl6gica”.® Para os atores da mo- demizagio ecol6gica, portanto, a questio ambiental poderia ser apropriada- ‘mente internalizada pelas proprias instancias do capital, de modo a absorver € neutralizar as vitualidades transformadoras do ecologismo. Os ambientalistas conservadores e empresérios ambientalizados partidé- ris da modemizagao ccolégica tendem a no considerar a presenca de uma logica politica a orientaradistribuigio desigual dos danos ambientais. Nenhu- ma referéncia é feta, por exemplo, & possibilidade de existir uma articulagao entre degradagio ambiental e injustiga social, Nenhuma disposigio demons- tam tampouco esses atores em aceitar que a critica ecologista resulte em mudanga na distribuigdo do poder sobre os recursos ambientais, Desconsideram, * Professor do IPPUR/UERI e pesquisador do CNP4. 24 JUSTIGA AMBIENTAL E CIDADANIA como nos lembra Rustin, que “toda consideragdo séria sobre os perigos am- bientais aponta imediatamente para a necessidade de se conter e controlar a operagio dos mercados como uma de suas primeiras causas"™ e que ndo seria lidade tGonica abstrata a forga motora do que se entende por crise al, mas uma racionalidade instrumental prépria do capital $ Ante esta abordagem conservadora da crise ecoldgica, 0s sujeitos sociais que procuram evidenciar a existéncia de uma relacdo entre a degradagio ambiental € a racionalidade instrumental do capital sio aqueles que no con- farm no mercado como instrumento de superagio da desigualdade ambiental e «da promogio dos prinefpios do que se entenderia por justiga ambiental. Se- eundo eles, é clara a desigualdade social na exposigZo aos riscos ambientais, decorrente de uma Iégica que extrapota a simples racionalidade abstrata das tecnologias, Para eles, 0 enfrentamento da degradagiio do meio ambiente & 0 momento da obtengao de ganhos de democratizagdo e ndo apenas de ganhos de eficiéncia e ampliagia de mercado. Isto porque supdem existir uma ligagio légica entre o exercicio da democracia ¢ a capacidade da sociedade se defen- der da injustiga ambiental.® Ao contrério, portanto, da perspectiva da moderni- zagio ecolégica, niio haveria como separar os problemas ambientais da forma como se distribu desigualmente o poder sobre os recursos politicos, materiais « simbélicos: formas simultiineas de opresso seriam responsdveis por injusti- sas ambientais decorrentes da natureza insepardvel das opressdes de classe, raga e género.? Invimeros autores destacam 0 fato de que os movimentos por justiga ambiental, que apontam o cardter socialmente desigual das condigtes de aces- 50 & protego ambiental, so os que mais ganharam forga desde 0 inicio dos anos 90, erigindo visio alternativa ao hegemonismo da modernizagao ecolé- zzica,alterando a configuragéo do movimento ambientalista e sendo vistos até, por alguns, como potencialmente capazes de vir a liderar um novo ciclo de movimentos por mudanga social. Na perspectiva da sociologia dos proble~ mas sociais, sendo a agenda piblica objeto de disputa, este relativo sucesso dos movimentos por justiga ambiental teria resultado basicamente da capaci- dade dos mesos influenciarem pautas politicas nacionais.? O poder desses movimentos em influenciar decisivamente 0 debate politico, ld onde isto se verificou, teria decortido da aceitagio da retérica pela qual seus porta-vozes promoveram uma construgdo particular da nogdo de bem piiblico,'® cuja ampli- tude poderia ser estimada inclusive pela intensidade da reagdo conservadora ‘que empenhiou-se em descaracterizar a légica social denunciada como fonte das injustigas ambientais.!" © que procuramos discutir no presente texto & 0 modo pelo qual atores sociais envolvidos na dentincia de injustigas ambientais |) STICA AMBIENTAL ~ AGAO COLETIVA E ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS 25 \cn acionado um quadro discursivo que contesta a modernizagdo ecolégica, videnciando a l6gica social que associa a dindmica da acumulacao capitalista « listribuigdo discriminat6ria dos riscos ambientais. A evidenciagao de uma agenda submersa Jé se assinalou que a pratica de se alocar instalagdes de esgoto e lixo em ~eas habitadas por populagGes trabalhadoras pobres, despossuidas e perten- contes a minorias étnicas nao é recente, tendo sido mesmo observada desde a ‘cmota Antiguidade. ? Lembrou-se também que, ainda que sem tal nomeacao, « nogio de injustiga ambiental esteve subjacente no que alguns chamam de \juadro analitico submerso, de intimeras lutas sociais por justiga.9 E certo po- 'm gue © movimento de justica ambiental nascido nos Estados Unidos nos ‘ios 80 contribuiu decisivamente para tornar expresso tal quadro analitico, videnciando de forma persuasiva a ligagio entre degradagdo ambiental e injus- ‘ica social ‘O movimento de justiga ambiental constituiu-se nos EUA a partir de uma wticulagdo criativa entre lutas de cardter social, territorial, ambiental ¢ de di- ‘witos civis, Jé a partir do final dos anos 60, redefiniu-se em termos ambientais lum conjunto de embates contra as condigdes inadequadas de saneamento, de contaminagdo quimica de locais de moradia e trabalho e disposigao indevida Llc lixo t6xico e perigoso. Foi ento acionada a nogio de eqilidade geografica, ‘omo “referente & configuragio espacial e locacional de comunidades em sua jyroximidade a fontes de contaminagao ambiental, instalagées perigosas, usos «lo solo localmente indesejaveis como depésitos de lixo téxico, incineradores, stages de tratamento de esgoto, refinarias etc.”."4 Nos anos 70, sindicatos ieocupados com satide ocupacional, grupos ambientalistas e organizagoes de ‘ninorias étnicas articularam-se para elaborar em suas pautas respectivas 0 que cintendiam por “questdes ambientais urbanas”, Alguns estudos apontavam ja a Uistribuigio espacialmente desigual da poluigio segundo a raga das popula- ces a ela mais expostas, sem, no entanto, que se tenha conseguido, a partir das evidéneias reunidas, mudar a agenda piiblica. Entre 1976 e 1977, diversas negociagdes foram realizadas tentando montar coalizdes destinadas a fazer cctrar na pauta das entidades ambientalistas tradicionais o combate & localiza- cio de lixo t6xico e perigoso predominantemente em éreas de concentragio residencial de populagao negra. ‘A constituigdo desse movimento afirmou-se, porém, a partir de experién- cia conereta de luta desenvolvida em Afton, no condady de Warren, na Caro- lina do Norte, em 1982. A partir de lutas de base contra iniqiidades ambientais 26 JUSTICA AMBIENTAL # CIDADANIA em nivel local, similares a de Afton, o movimento elevou a justiga ambiental & cconidigio de questao central na luta pelos diteitos civis. Ao mesmo tempo, ele induziu a incorporago da desigualdade ambiental na agenda do movimento ambientalista tradicional. Como o conhecimento cientifico foi correntemente evocado pelos que pretendem reduzir as politicas ambientais & adoco de me- ras solugdes técnicas, o movimento de justiga ambiental estruturou suas estra~ tégias de resisténcia recorrendo de forma inovadora a prépria produgio de conhecimento. Notadamente, recorreu-se aos resultados de pesquisas multi- disciplinares promovidas sobre as condigdes da desigualdade ambiental no pais. Momento crucial desta experiéncia foi a pesquisa mandada realizac em 1987 pela comissio de justiga racial da United Church of Christ, que mostrou que “a composigic racial de uma comunidade ¢ a varidvel mais apta a explicar ‘a existéncia ou inexisténcia de depésitos de rejeitos perigosos de origem co- mercial em uma drea”.!3 Evidenciou-se entdo que a proporgio de residentes que pertencem a minorias éinicas em comunidades que abrigam depésitos de residuos perigosos é igual ao dobro da proporgio de minorias nas comunida- des desprovidas de tais instalagdes. O fator raga revelou-se mais fortemente cortelacionado com a distribuigdo locacional dos rejeitos perigosos do que o proprio fator baixa renda. Portanto, embora os fatores raga e classe de renda tenham se mostrado fortemente interligados, a raga revelou-se um indicador mais potente da coincidéncia entre os locais onde as pessoas vive e aqueles onde os residuos téxicos so depositados. Foi a partir desta pesquisa que o reverendo Benjamin Chavez cunhou a expressio “racismo ambiental” para designar “a imposi¢2o desproporcional — intencional ou ndo — de rejeitos perigosos as comunidades de cor”.'6 Entre os fatores explicativos de tal fato, foram alinhados a disponibilidade de terras bbaratas em comunidades de minorias e suas vizinhangas, a falta de oposigio da populagao local por fraqueza organizativa ¢ caréncia de recursos politicos tipicas das comunidades de minorias, a falta de mobilidade espacial das mino- rias em razio de discriminagao residencial e, por fim, a sub-representagio das rminorias nas agéncias governamentais responsdveis por decisées de localiza~ go dos rejeitos. Ou seja, procurou-se tomar evidente que forgas de mercado e praticas discriminat6rias das agéncias governamentais concorriam de forma articulada para a produgio das desigualdades ambientais. E que a viabilizagio da atribuigio desigual dos riscos encontra-se na suposta fraqueza politica dos ‘grupos sociais residentes nas dreas de destino das instalagées perigosas, co- munidades ditas “carentes de conhecimento”, “sem preocupacdes ambientais ou “ficeis de manejar”, na expressio dos consultores detentores da ciéncia da resisténcia das populagées & implantagio de fontes de isco." intninisnenSinsienSSnaN SSH JUSTICA AMBIENTAL ~ AGAO COLETIVA E ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS 27 A partir de 1987, organizagdes de base comegaram a discutir mais inten- samente as ligagdes entre raga, pobreza ¢ poluigao e pesquisadores iniciaram estudos sobre as ligagdes entre problemas ambientais e desigualdade social, procurando elaborar os instrumentos de uma avaliagio de eqitidade ambiental ‘que procurasse introduzir varidveis sociais nos tradicionais estudos de avalia- cio de impacto. Nesse novo tipo de avaliagio, a pesquisa participativa envol- veria, como co-produtores do conhecimento, os préprios grupos sociais am- bientalmente desvantajados, viabilizando uma apropriada integragdo analitica entre processos biofisicas e sociais. Procurava-se postular assim que aquilo que 0s trabalhadores, grupos étnicos e comunidades residenciais sabem sobre seus ambientes deve ser visto como parte do conhecimento relevante para a elaboragdo nio-discriminatéria das politicas ambientais. Mudangas se fizeram entao sentir ao nivel do proprio Estado, Pressio- nado pelo Congressional Black Caucus, em 1990, a Environmental Protection Agency do governo dos EUA criou um grupo de trabalho para estudar 0 risco ambiental em comunidades de baixa renda. Dois anos mais tarde, esse ‘grupo coneluiria que havia falta de dados para uma discussio da relagio entre equidade € meio ambiente e reconhecia que os dados disponiveis apon- tavam tendéncias perturbadoras, sugerindo, por essa razio, maior participa- cao das comunidades de baixa renda e minorias no processo decisério relati- vo as politicas ambientais, Em 1991, os 600 delegados presentes a I Cdipula Nacional de Liderangas Ambientalistas de Povos de Cor aprovaram os “17 princfpios da justiga ambiental”, estabelecendo uma agenda nacional para redesenhar a politica ambiental dos EUA de modo a incorporar a pauta das minorias, comunidades amerindias, latinas, afro-americanas ¢ asiatico-americanas, tentando mudar 0 eixo de gravidade da atividade ambientalista nos EUA.!® O movimento de justiga ambiental consotidou-se assim como uma rede multicultural e multirracial nacional, € mais recentemente internacional," articulando entidades de direi- tos civis, grupos comunitirios, organizagdes de trabalhadores, igrejas ¢ intelec- tuais no enfrentamento do racismo ambiental visto como uma forma de racis- mo institucional, Buscou-se assim fundir direitos civis ¢ preocupagdes ambientais em uma mesma agenda, superando 20 anos de dissociacdo e sus- peita entre ambientalistas ¢ movimento negro. A luta pelo reconhecimento da desigualdade ambiental nos EUA deu pas- so8 importantes para a contestactio do préprio modelo de desenvolvimento que orienta a distribuigdo espacial das atividades. O lema do movimento é: poluigGo téxica para ninguém, ndo simplesmente o de acarretar um desloca- mento espacial da poluicio, exportando a injustiga ambiental para os paises 28 JUSTICA AMBIENTAL E CIDADANIA onde os trabalhadores estejam menos organizados. Tratou-se assim de discutir ‘a pauta da chamada transigdo justa, de modo a que a luta contra a poluigao desigual nio destruisse o emprego dos trabalhadores das indstrias poluentes, ou penalizasse as populagdes dos paises menos industrializados para onde as transnacionais tenderiam a transferir suas fabricas sujas. O movimento de justiga ambiental procurou, por conseqlléncia, se internacionalizar para cons- truir uma resisténcia global as dimensdes mundiais da reestruturagdo espacial “ nea uum lado, sabe-se que 0s mecanismos de mercado trabalham no sentido da produgio da desigualdade ambiental ~ os mais baixos custos de localizagio de instalagdes com residuos téxicos apontam para as dreas onde 0s pobres moram ~ 0 discurso dos movimentos nao deixa de considerar, por outro lado, o papel da omissio das politicas piblicas favorecendo a agio per- versa do mercado, A experiéncia do movimento de justiga ambiental procurou assim organizar as populagdes para exigir politicas pliblicas capazes de impe- dir que também no meio ambiente vigorem os determinantes da desigualdade social e racial. Momentos subjetivistas e objetivistas ‘A nos de justiga ambiental promove uma articulagio discursiva distinta daquela prevalecente no debate ambiental corrente ~ entre meio ambiente & ‘escassez. Neste iltimo, o meio ambiente tende a ser visto como uno, homogé- neo e quantitativamente limitado. A idéia de justiga, ao contrério, remete a uma distribuigdo equinime de partes e & diferenciagao qualitativa do meio ambiente. Nesta perspectiva, a interatividade ¢ o inter-relacionamento entre 0s diferentes elementos do ambiente niio querem dizer indivisio. A deniincia da desigualdade ambiental sugere uma distribuigdo desigual das partes de um meio ambiente de diferentes qualidades e injustamente dividido. : ima série de pre-condigées antecedem a agao pritica coletiva dos movi- mentos sociais:2® 1) certos aspectos do sistema de poder perdem legitimidade e aaccitagio da autoridade ¢ substituida pelo entendimento de que suas agSes rio apiam-se em prineipios compartilbados de justficago,nilo sao mais vis- tas como justificaveis; 2) grupos sociais que eram, de ordinario, fatalistas, que acteditavam que 0s arranjos de poder etam inevitéveis, comegam a afirmar principios de justiga que irmplicam demandas por mudanga; 3) individuos que ‘consideravam-se impotentes passam a acteditar serem capazes de mudar a ordem das coisas, JUSTIGA AMBIENTAL ~ AGAO COLETIVA & ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS 29 Esta agio coletiva, quando dirigida contra a ordem ambiental tida por injusta manifesta-se simultaneamente em dois planos: a) no plano da distribui- cao objetiva dos efeitos ambientais das préticas sociais; esta distribuigdo ex- prime a diferenca de poder sobre os recursos ambientais entre os distintos grupos sociais, ¢ b) no plano discursivo onde vigoram distintos esquemas de representagio do mundo, do ambiente, da justica ete; neste plano, coloca-se ‘em jogo a legitimidade do modo de distribuigdo do poder sobre os recursos ambientais, Por analogia ao procedimento de Pierre Bourdieu na caracteriza- gio das condigdes de existéncia tedrica e prética dos grupos sociais, denomi- naremos a estes dois planos, respectivamente, de momentos objetivista e subjetivista da anélise.?! No momento objetivista encontraremos os grupos sociais distribufdos no espago social em funcdo de sua disposigio diferencial sobre elementos de poder. Estaremos af tratando do espaco relacional das posiedes sociais ocupadas pelos agentes sociais em funcio da estrutura de distribuigdo de tipos especificos de meios de poder. No momento subjetivista, identificaremos as representagdes que os agentes fazem do mundo social, pontos de vista que contribuem para a construgao deste mesmo mundo, inclusive da diferenciagdo social dos individuos que o caracteriza, Estaremos ai observan- do a configuragao dos esquemas classificatérios, principios de classificaga de visio e divisio do mundo social.” Os movimentos sociais podem ser analisados por sua intervengio nestes dois niveis do espago social — 0 espago da distribuigdo do poder sobre as coisas © 0 espago da luta discursiva. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem- ferra (MST), por exemplo, avanga na disposigio pritica sobre a terra pelas Cceupagdes e, ao mesmo tempo disputa espago na esfera piiblica com uma estra- Légia discursiva de aplicacio dos dispositivos constitucionais sobre a fungiio so- cial da propriedade. Podemos dizer que todos 0s movimentos sociais que no se articulam de forma direta com a esfera produtiva, no dispdem de uma capaci- dade de influir diretamente na configuragio de Forgas pela pressio sobre o pro- cesso de acumulagdo. Tais movimentos sio levados assim a configurar seu po- der de barganha na esfera simbélica, acumulando forga no plano da legitimidade ¢ colocando em causa 0 contetido das nodes prevalecentes de justiga. Para a andlise da dindmica do movimento de justica ambiental, destacare- mos a seguir uma seqtiéncia de momentos objetivistas ¢ subjetivistas, ao lon- 0 dos quais a nogio de justica ambiental proporcionou, no caso dos EUA, uma articulagdo de forgas sociais dotada de legitimidade no espaco piblico. 0, Momento objetivista 1: configurou-se inicialmente um contronto de for- gas no terreno pratico. A constituigdo do movimento deu-se a partir de expe- 30 JUSTICA AMBIENTAL E CIDADANIA riéncias concretas de luta como aquela de Afton, no condado de Warren, na Carolina do Norte, em 1982, Nesta ocasio, a comunidade organizada mani- festou concretamente sua vontade de recusar a reprodugo da desigualdade de poder ¢ a subordinagdo continuada & dominagiio exercida pela imposigio desigual dos danos ambientais, Ao tomarem conhecimento da iminente conta- minagao da rede de abastecimento de dgua da cidade, caso fosse nela instala- do um depésito de bifenil policlorado, os habitantes do condado organizaram protestos macigos, deitando-se diante dos camninhdes que para Id traziam a perigosa carga, Naquele momento, manifestava-se a constituigdo de uma forga coletiva que se opunha a uma pritica que Ihes parecia como de despossesstio ambiental ¢ de imposigio do poder decisério de terceiros sobre os atributos qualitativos de seu ambiente. Momento subjetivista 1: com a percepgdo de que o critério racial estava fortemente presente na escolha da localizagio do depésito daquela carga 16x ca, a luta radicalizou-se, A populagdo de Afton era composta de 84% de ne- _gr0s; 0 condado de Warren, de 64% e 0 estado da Carolina do Norte, de 24%.23 Face a tais evidéncias, criaram-se condigdes para o estreitamento das conver- géncias entre 0 movimento dos direitos civis e dos direitos ambientais. Cons- trufram-se assim insights e inventaram-se categorias como “racismo ambien- tal, desigualdade ambiental, injustica ambiental, discriminago ambiental, politi- ca ambiental discriminatéria, extorstio ambiental pela chantagem do desem- prego”, “custos ambientais desproporcionalmente distribuidos”, “zonas de sa- crificio”, todas elas associadas & percepedo dos limites impostos & escolha ambiental daqueles que sofrem a segregago espacial (ou seja, de sua im- possibilidade de “votar com os pés”); “colonialismo téxico interno” (a segrega- cdo espacial exprime subjugagao politica de certos grupos sociais por institui- ‘g6es que os dominados no podem controlar); racismo ambiental de mercado € racismo ambiental planejado; analogia entre a poluigdo e o crime por enve- henamento, jé institufdo.# Denuneiou-se igualmente a traigiio das promessas do sonho americano posteriores & ascenséo das lutas por direitos civis. Este sonho mostrava-se entio suplantado pelo pesadelo de uma cidadania de se- sgunda classe,’® caracterizada pelo fato que materiais fora do lugar so desti nados a grupos sociais “fora do lugar”, considerados, nos termos da violencia simbélica, racialmente impuros.2 Uma ordem de justificagio € afirmada:®? a da igualdade substantiva de condigdes materiais de existéncia nio media- das diretamente pelo mercado. A critica de que 0 movimento de justiga ambiental seria vuinervel por recorrer mais a indignacdo moral do que A ciéncia dos impactos pode ser entendida como parte da luta simbélica atra- JUSTICA AMBIENTAL ~ AGAO COLETIVA & ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS 31 vés da qual pretende-se retirar legitimidade as dentincias de desigualdade ambiental. Junta-se a esta critica cientificista, um conjunto de outros artificios ret6ricos tais como a desqualificagio dos testemunhos leigos pela remissio a linguagens técnicas, a consideragdo dos sintomas de intoxicagao como es- tatisticamente insignificantes, a diluigo das causalidades pela sugestio de que os sintomas de contaminagio observados decorrem de doengas heredi ‘Grias, a referéncia A traigtio dos interesses da cidade e & destruigtio de em- pregos locais em conseqiéncia das dentincias. Aproveita-se também para afirmar a crenga liberal de que a alocagao espacial de pessoas e coisas pelo mercado exprime com fidelidade a imprevidéncia dos individuos espacial- Mente mal situados, que niio teriam investido em seu pr6prio capital humano para ganar mobilidade espacial. E sugere-se que qualquer medida de des- contaminagio tende a resultar em elevaco dos aluguéis e expulsio dos po- bres de suas moradias, o que configura o recurso & tese reaciondria analisada por Hirschman,2* que alega recorrentemente a perversidade das politicas sociais. As deniincias sobre racismo ambiental configuram assim 0 que Bourdiew® chama de classe te6rica, no papel, apontando um critério que divide 4 sociedade entre os que sofrem os danos ambientais e os que deles conse- guem escapar. ‘Momento objetivista 2: os indicadores construidos pelas assessorias do ‘movimento social evidenciam a objetividade das desigualdades de poder ~ toma-se visivel a relagtio de superposigo entre as posigdes nas classes de poder sobre o ambiente ¢ nas classes de origem racial ~ a classe teorica se explicita no espaco social e as pessoas reconhecem a pertinéncia desta classi- ficagz0:29 a) a desigualdade ambiental tem especificidade racial. A raga é um fator independente ¢ nfo redutivel a classe de renda. Evidencia-se no espago social ©, em particular, no campo da distribuigo de poder sobre os recursos am- bientais, a coincidéncia entre a localizagio de grupos raciais ¢ as localiza- ‘ses mais expostas a fontes poluentes. A classe te6rica explicita-se no espa- 0 social: a variavel racial adquire, no caso, relevancia maior do que a coin- cidéncia entre a localizagio de grupos pobres ¢ a localizagio de fontes poluentes; b)as decisdes de alocacdo de fixo t6xico tém por critério relevante a falta de poder das comunidades influenciarem as decis6es, resistirem as mesmas e se deslocarem para areas niio-polufdas ~ baixa renda, raga e distncia do poder polftico. Ou seja, os mais prejudicados tendem a ser os que menos influenciam, ‘por meios diretos e indiretos, as decis6es. 32 JUSTICA AMBIENTAL E CIDADANIA Um elemento de poder diferencial se evidencia no espago social ~ a capacidade de certos atores sociais se subtrafrem espacialmente & proximi- dade da localizagao das fontes de contaminagao. O capital, por seu lado, mostra-se cada Vez mais mével, acionando sua capacidade de escolher seus ambientes preferenciais e de forgar os sujeitos menos moveis a aceitar a de- gradagiio de seus ambientes ou submeterem-se a um deslocamento forgado para liberar ambientes favordveis para os empreendimentos. Os atores com menos forga para escolher seus ambientes, por sua vez, organizam-se para resistir 4 degradago forgada que é imposta a seus ambientes ou a0 desloca~ mento forgado a que so submetidos quando seus ambientes interessam 3 valorizagio capitalista. Configura-se assim uma espécie de divistio social do ambiente, definida pelo que poderfamos chamar de sua composigdo técnica, O meio ambiente funcionaria como condigio geral de produgdo de que depende a reproducio do capital, tanto 0 varidvel como o constante, O ambiente do capital varidvel seria aquele que justificou o higienismo e outras modalidades de intervengo pelas quais se buscou assegurar a adequatia reprodugiio da forga de trabalho. O ambiente do capital constante seria aquele @ justificar a preocupagtio empresa~ rial com a corrastio de miquinas e equipamentos, com a erosao da terrae com a durabilidade dos iméveis, processos cuidados por uma variedade de técnicas de manutengdo. Um ambiente do capital em geral, por seu tuo, justificaria preocupagées com a mudanga climitica ¢ a biodiversidade, que se tentaria ‘equacionar, como vimos, pelos mecanismos da modemizago ecoldgica, soba forma dominante do chamado desenvolvimento sustentavel. Finalmente, um ambiente de que nao dependem nem o capital variével nem o constante seria aquele pertinente as terras desvalorizadas e indispontveis para a produgdo de riqueza, onde tenderiam a habitar classes ambientais espacialmente segrega- das e dotadas de pouca mobilidade espacial. Momento subjetivista 2: a apresentagiio de explicagées para as situag&es de desigualdade ambiental passam a integraras estratégias argumentativas que concorrem para a constituigdo de aliangas potenciais com outros grupos s0- ciais. A légica segregadora 6 apresentada como 0 resultado da operagdo regu- Jar de dois mecanismos, evidenciados por duas proposigées. Segundo a pri , a desigualdade social e de poder sobre os recursos ambientais estaria presente na raiz.dos processos de degradacdo ambiental: quando os beneficios ‘de uso do meio ambiente estio concentrados em poucas miios, do mesmo modo que a capacidade de transferir custos ambientais pura us mais fracos, o nivel ¢geral de pressdo sobre o meio ambiente tende a ndo se reduzir. De onde decor- JUSTICA AMBIENTAL ~ AGKO COLETIVA € ESTRATEGIAS ARGUMENTATIVAS 33 reria logicamente que a protegio do meio ambiente depende do combate a desigualdade ambiental. Nao se poderia enfrentar a crise ambiental sem pro- mover a justica social. A segunda proposicdo sustenta que em condiges de desigualdade social e de poder sobre os recursos ambientais, bem como de liberdade irrestrita de movimento para os capitais, os instrumentos correntes de controle ambiental tendem a aumentar a desigualdade ambiental, sancio- nando a transferéncia de atividades predatérias para dreas onde é menor a re- sisténcia social. A solidariedade interlocal, eventualmente internacional, & justificada como forma de evitar a exportagio da injustiga ambiental e de difi- cultar a mobilidade do capital, o qual tende correntemente a abandonar areas de maior organizacao politica e dirigir-se para éreas com menor nivel de orga- nizagdo e capacidade de resisténei Da anélise dos momentos que chamamos de subjetivistas e objetivistas na dentincia da desigualdade ambiental e de construgdo dos atores da resisténcia a sua reprodugio, podemos afirmar, em sintese, que: a) 0s dados da desigualdade de poder no espaco social, tal como denun- ciados pelos atores sociais, j4 existiam, mas foi a luta social thes deu visibili- dade ¢ contestou sua legitimidade, como toda produgio simbética pré-figura- tiva, as demincias fizeram ver o que estava ndo-percebido; b)o olhar dos movimentos sociais produziu uma classificagtio dos grupos sociais ¢ evidenciou o elemento diferencial de poder em jogo entre eles, no aso, a capacidade objetiva de escapar aos riscos ambientais. Blaborou-se as- sim uma classificagao compativel com a posigio reconhecivel dos individuos no espaco social e evidenciou-se que, além da légica mercantil que associa A forea simbélica do movimento de justiga ambiental decorreu de sua capacidade de: a) estender a matriz. dos direitos civis ao campo do meio am- biente, fundando a nogdo de justiga ambiental como alternativa & oposigio homem-natureza; b) politizar, nacionalizar e unificar uma multiplicidade de ‘embates localizados; c) elaborar apropriadamente uma classificagio dos gru- pos sociais compativel com a posigo diferencial dos individuos no espago social. Contestando na prética os pressupostos do projeto de modemnizagio eco- l6gica, as lutas empreendidas pelo movimento de justiga ambiental configuram, conseqiientemente, um embate de mobilidade, através do qual “as desigualda- des ambientais constitucnrse ¢ se alleran continuamenute ao Tonge do lupo, & ‘medida que tanto as fontes de perigo como as populagdes mudam sua alocagio

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