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Capitulo 9 O Catolicismo Africano no Mundo Portugués ‘Apesar da tenacidade de muitas crengas religiosas africanas, 0 Ca- icismo ganhou alguma influéncia nas comunidades afticanas do mun- ‘colonial portugués. No entanto, hi que ter cuidado em nao exagerar ritmo de conversio no sentido de uma ctioulizagio ¢ cristianizagao africanos e dos seus descendentes. A aceitacio do Catolicismo por dos afticanos foi lenta ¢ desigual, e mesmo quando parecem re- tar-se manifestagdes de devocdo a fé crista, continuam a poder ser ;contrados elementos do passado religioso africano em coexisténcia 1m as praticas oristas. Neste capitulo, ird ser analisado o impacto do tolicismo nas vidas dos africanos do mundo colonial portugués, com cular incidéncia no contexto brasileiro. Ao mesmo tempo que os ricanos adoptavam gradualmente alguns elementos da f& catdlica, wntribuiam também para transformar a Igreja brasileira, deixando uma -a indelével no panorama religioso do Brasil colonial. ‘ornar-se cristao, tornar-se escrav contexto africano [As primeiras conversdes em massa de povos subsarianos no mundo colonial portugués ocorreram no Congo. Desde o século xv que era praticada entre a elite congolesa uma forma africana, espectfica, de Ca- tolicismo. Com o tempo, as crengas ¢ priticas catdlicas espalharam-se ‘20 povo congoles, & medida que missiondrios, clérigos indigenas e pre- sgadores leigos se espalharam pela regio, estendendo a evangelizagio 4s mais remotas aldeias. Nas dreas rurais, podia acontecer que as pes- oas vissem um pregador leigo apenas uma vez. por ano. Ainda assim, 205 Missa cat6lica celebrada no Congo, circa 1750. Aguarela do Padre Bernardino Ignazio da Vezza, «Missione prattica [dei] Padri eapuccinni ne” Regni di Congo, Angola, et adiacenti», Biblioteca civica centrale di Torino, MS 457. muitas estavam familiarizadas com as préticas e oragdes mais rudimen- tares, encontrando-se regularmente aos sbados para rezar o rosario(!).. Apesar da aparéncia catélica que muitos Congoleses ostentavam, o seu grau de compreensio do Catolicismo permanece pouco claro. Como jé foi referido no capitulo 5, os universos cosmol6gicos de Congoleses € catdlicos eram muito diferentes, Em resultado disso, a maioria dos Congoleses via o Catolicismo através de um prisma espiritual-e cultural muito especifico, compreendendo de uma forma gradual o significado do cosmos cristiio, Nas situagGes em que 0s contactos entre 0 clero e os leigos eram irregulares, os princfpios basicos do Cristianismo perma- neciam provayelmente como preocupag®es pouco importantes. Os pa- dres curopeus referiam-se frequentemente aos «erros» congoleses no: entendimento da f€ catélica. Em alguns casos, nem mesmo os clérigos africanos indigenas aderiam aos preceitos catélicos, 0 que levantava questes acerca da forma e fungio de crengas e priticas, & medida que estas cram filtradas para os paroquianos comuns. Em 1718, por exemplo, um missionério capuchinho denunciou © Padre Miguel da Silva, nascido no Congo, que «tinha grande menospre- zo pela Nossa Sagrada Fé Catdlica e [que] abusava dos sacramentos». 26 O Carouicismo ArricaNo No Muxpo Portuaués Entre outras coisas, o Padre Miguel da Silva era acusado de unir em matriménio casais que tinham vivido durante muitos anos fora do Santissimo Sacramento. O padre tinha errado, niio propriamente na ce- lebragdo destes casamentos, mas no facto de nao ter obrigado os casais a confessar 0 pecado das suas «telacdes ilicitas», antes de proceder as ceriménias. Na perspectiva do Padre Miguel da Silva e dos casais uni- dos em matriménio, estas relagSes nfo eram, provayelmente, conside- radas pecado. A confissdo era, portanto, vista como desnecesséria. Quando o Padre Miguel da Silva ouvia confissdes, fazia-o em sua casa, com «os penitentes num lado € no outro [...] uma quantidade de pessoas com as quais 0 confessor [estava] a conversar». Devido a este grande ajuntamento, as distracgdes ¢ A «confusdo de vozes», o padre ouvia apenas dois ou trés pecados de cada confessante, ¢ «sem mais exame ou atengo> absolvia cada pessoa que se Ihe dirigia. Como peni- {@ncia, os confessantes juntavam-se em grupo e, revezando-se com uma grande vara, cada um se flagelava publicamente, recitando os seus pe- cados ~ «Estive no sitio dos feitigos. Comi came a sexta-feira, Quebrei © sexto mandamento», € por af adiante(’). Por um lado, parece claro que os sacramentos bisicos eram admi- nistrados pelo Padre Miguel da Silva. Como tal, no hé diivida de que 08 seus seguidores eram cristdos. Por outro lado, nao sabemos ao certo de que forma o seu rebanho interpretava as ceriménias cristés que eram Ievadas a cabo. Ao que parece, os sacraments do Padre Miguel da Silva eram naturalizados para se integrarem nas concepgdes culturais congolesas, Pelo menos, a confissdo catolica parecia ser integrada numa critica comunitéria alargada as transgress6es individuais. O Padre Miguel da Silva consultava outras pessoas, talvez os ancifios da comunidade, enquanto ouvia os confessantes a reconhecer os seus pecados. Além disso, a peniténcia era efectuada em piiblico, para que todos pudessem presenciar. Tal como as concepedes de Deus (nzambi mpungu), dos san- tos (antepassados ou kitekes) ou mesmo da cruz (o cosmograma), é muito provayel que os sacramentos fossem interpretados & luz da cosmologia congolesa, Para os Angolanos, as crengas religiosas funcionavam de maneira semelhante. Alguns Angolanos, como os escravos do Colégio Jesutta em Luanda, aceitavam certos elementos do Catolicismo, talvez até en- tendendo nogées teol6gicas abstractas como a Trindade. Ainda assim, muitos destes escravos continuavam a venerar espiritos de antepassa- dos paralelamente ao Deus cristdio. Em 1698, por exemplo, um escravo de 31 anos chamado Greg6rio Pascoal, cujos pais também tinham vivi- 27 Geta no RECHCARY APTICA EROS SE a do no Colégio Jesufta, confessou que ajudava mais de 30 outros Ango- Janos no sacrificio de uma cabra. O sacrificio fora realizado «em vene- ragdio de uma pessoa falecida». De igual modo, Catarina Borges confes~ sou que ela e as suas duas filhas tinham banhado a sua av6 morta em fgua fortalecida com uma série de ervas. Este banho destinava-se a as~ segurar «que a alma do morto nao regressasse [...] e sem esta cerimér acreditavam que a alma apareceria ¢ Ihes traria doengas». Gregério Pascoal ¢ Catarina Borges continuaram a acreditar no poder temporal dos espititos dos antepassados, mesmo afirmando que «nunca tiveram: um pacto com o diabo, nem se separaram da fé catélica» *). Estas confissdes provam duas questdes importantes. Por um lado, reconheciam a necessidade de confessar voluntariamente os seus «pe- cados», 0 que indicava uma compreensio clara de que a Igreja via os seus comportamentos como indo contra a fé, Por outro lado, nfo ha qualquer remorso ou vontade de abandonar estas crengas e préticas. Gregorio ¢ Catarina afirmaram nas suas confiss6es que estes rituais eram ‘ecostume> no seu povo. Desta forma, as confissGes assumem-se como testemunhos da dualidade das crencas religiosas angolanas. Os Ango- Janos continuaram ligados as suas crengas e priticas tradicionais, mes ‘mo que alguns deles proclamassem lealdade para com a fé catélica. As expresses de lealdade ao Catolicismo assumiam muitas formas em Angola, dependendo em grande medida da exposigao que as pes~ soas tivessem aos ensinamentos catélicos. Nas dreas urbanas do litoral_ ‘como Luanda, onde a presenga permanente da Igreja ¢ dos seus missio- nérios garantia um reforgo constante da instrugo catélica, € provavel que os Angolanos atingissem uma compreensdo mais abrangente da f€ catélica ¢ dos seus prinefpios, mesmo que muitos se recusassem a aban- donar as suas crengas tradicionais. No interior rural, pelo contririo, @ compreensio do Catolicismo era muito menos completa. Em meados do século xvi, por exemplo, o Padre Anténio Romano encontrava-se numa missdo na provincia de Quisama, onde procurou livrar 0 soba (lider da aldeia) Malumba a Cambolo do «paganismo». Ao propor © baptismo ao soba, 0 Padre Romano descobriu que este ja tinha sido baptizado alguns anos antes. Quando recordou ao soba que era seu de- ver zelar pela lei de Deus e pela lereja, 0 soba respondeu que nfo estava preocupado com a salvacio crista e que «queria ir para onde os seus antepassados estavam». O Padre Romano respondeu: «{Eles esto] no inferno, a arder no fogo infernal, na companhia dos dem6nios para toda a eternidade». Pouco abalado com a ameaga de perdigo eterna, € nao desejando livrar-se dos seus lagos ancestrais, o soba respondeu que contra os padres. Outros afirmaram que no compreendiam a necessidade de uma instrugdo religiosa, «como se a graca do baptismo fosse uma coisa exterior e material». Outros chegavam a interrogar directamente os p2- dres, perguntando: «Porqué tantas precauges € Lantos testes quanto & seriedade dos nossos propésitos ¢ quanto ao que temos forcosamente de acreditar? Nao viemos c4 voluntariamente? Nao chegémos c4 para comer todo o sal que nos derem, tal como 0s outros brancos? Porqué para qué tantas dificuldades?» (”). Ao acusarem os residentes de Mbata de verem o baptismo como. uma «coisa exterior e material», € provavel que os padres nao adivi- nhassem o qudo acertada era esta afirmagio. Segundo as crengas tradi cionais congolesas, o sal era visto como um repelente de pessoas e espi- ritos maldosos(*). Assim, acreditava-se que 0 mal poderia ser evitado através do baptismo cristio, ou seja, através do consumo de sal. Nao se sabe se esta concepgao do sal como uma estratégia para manter o mal 2 distancia era anterior 20 contacto com 0 Cristianismo. E possivel que tenha resultado da instabilidade e incerteza resultantes dos contactos com 0s Portugueses. Os Congoleses poderiam facilmente ter interpre- tado o sal baptismal como a esséncia da feiticaria e do poder espiritual europeu. Ser «como 0s outros brancos», com 0 seu poderio econdmico social, significava adoptar o seu ritual religioso mais poderoso: 0 bap- tismo(’). Independentemente das origens desta crenca congolesa, ¢ evidente que durante a era do tréfico de escravos a maioria dos Congoleses en- tendia o baptismo simplesmente como 0 consumo de sal (vadia mungwa). Os clérigos europeus estavam conscientes deste facto, ¢ reconheciam que a «inexactidio da linguagem ndo deixa de ser um perigo». O Padre Cavazzi escreveu que, «para remover da mente dos indfgenas um erro com estas consequéncias, os capuchinhos tentaram substituir as pala- vras «cudia mungua>, que significam «comer sal», pelas palavras «lusuculu-lunguisi», que significam «banho sagrado», e tiveram gran de cuidado em ensinar-Ihes nfo s6 a maneira de administrar, em caso de necessidade, este sacramento, mas também em que consiste a sua es- séncia» (9), Nao obstante as tentativas por parte dos catélicos europeus de reafirmar o significado do baptismo, alguns padres indfgenas conti- nuavam a utilizar apenas sal nos seus baptismos, omitindo todas as ou- tras cerim6nias, No infcio do século xvnt, Miguel da Silva, 0 padre que foi acusado de realizar confissGes ¢ casamentos impréprios, baptizou desta forma centenas de pessoas nos territérios de @). Finalmente, em 1720, foi enviado do Rio de Janeiro um ape- lo urgente ao Inquisidor Geral e ao rei de Portugal, pedindo mais pa- dres. A carta argumentava que as almas dos «Negros de Angola» esta- vam a «precipitar-se para 0 inferno», ¢ que «a principal razo destes erros a barbaridade pagdi na qual vivem, sem terem instrutores [...] que Thes mostrem o verdadeiro caminho da salvagéo»*). © aumento do mimero de padres poderd ter aliviado o fardo dos padres e missiondrios sobrecarregados, que se esforgavam arduamen- te para evangelizar a populagao escrava do Brasil, mas a quantidade ‘apenas nao podia garantir que os esoravos percebessem o significado da sua «conversio» religiosa. O abismo cosmol6gico entre europeus € africanos era demasiado profundo. Escrevendo no infcio do século xvi, o Padre André Jo%o Antonil lamentou 0 facto de os escravos aptizados «nio saberem quem € 0 seu criador, o que devem acreditar, que lei devem proteger, como se devem comprometer para com Deus, porque € que 0s cristdos vo a igreja, porque veneram a héstia consa- grada». Disse ainda que quando os escravos se ajoelhavam para rezar, queriam saber «aos ouvidos de quem» € que estavam a falar. Além disso, os escravos perguntavam-se para onde iam as suas almas quan- do abandonavam os corpos *). Em suma, os escravos africanos esta- vam & procura de respostas temporais que estavam ausentes da doutri- na cristd. Os conceitos abstractos de «fé» nfo tinham lugar na sua mundividéncia(*). ‘Alguns padres estavam conscientes do que era necessario fazer para ultrapassar as diferengas cosmolégicas entre Europeus ¢ africanos. ‘A conyers dos africanos ao Cristianismo implicaria mais do que uma mera compreensio dos rituais e das oracées. Necessitaria, pelo contrd- rio, de uma completa reorientagao cosmoldgica. O padre jesuita Jorge Benci avisou os padres das pardquias que «ndo basta que os escravos digam quantas pessoas existem na Santissima Trindade e que rezem 0 Credo e saibam os Mandamentos e as outras oragdes; mas € necessério que compreendam o que dizem, que percebam 08 mistérios da crenga ¢ que os preceitos os penetrem o suficiente para que os retenham>. O Padre Benci implorou aos padres das paréquias que se explicassem detalhadamente, e que se assegurassem de que os escravos compreen- diam o gue thes era ensinado (*). Como se os obstaculos da lingua, da cosmologia e da insuficiéncia crénica de pessoal nao fossem jé dificeis de ultrapassar, 0 clérigo cat6- lico via ainda as suas tentativas de conversio prejudicadas pelos proprie~ t4rios, que normalmente estavam pouco preocupados com o bem-estar 235 Recriar ArRica espiritual dos seus escravos. Na perspectiva dos senhores, o tempo per- dido na instrugao religiosa significava perdas de lucros. Os missions rios ¢ os padres defendiam que 0s escravos deviam ter, pelo menos, os domingos e dias santos livres de trabalho, para que pudessem assistir & missa, No inicio do século xvi, muitos plantadores ignoravam de forma: evidente os desejos da Igreja. Em 1624, em Sao Tomé, o plantador de aciicar Francisco de Almeida foi denunciado por nao autorizar os seus escravos a ouvir missa aos domingos e dias santos. Mais grave ainda, os escravos de Almeida trabalhavam nas imediagSes do caminho que leva- va 2 igreja, o que causava «notdvel escndalo» a todos os que passa yam(*), Na mesma altura, na Bafa, 0s missiondrios jesuftas sugeriram ue os plantadores poderiam gradualmente fechar o engenho nos dias santos e reabri-lo a0 por-do-sol, de forma a minimizar os prejuizos. ‘Ainda assim, alguns plantadores mostravam-se dispostos a «qucbrar os mandamentos de Deus», obrigando os seus escravos a trabalhar pars fazer apenas «mais quatro tarefas [quotas] de cana» *). Por volta de meados do século xvi, muitos senhores permitiam aos seus eseravos ter os domingos livres, mas, em troca, 0s escravos eram: responsdveis pela sua propria alimentagao e vestudrio. Desta forma, os eseravos passavam os domingos a cultivar as pequenas rogas que os senhores Ihes forneciam para esse fim. Como era de esperar, a Igreja no ficava satisfeita com isto. Os missiondrios jesuitas reconheceram que a falta de comida e vestudrio fazia com que, em vez de assistirem 2 missa, «quando [os escravos] s40 deixados livres nos dias santos, apro- yeitam estes dias para trabalhar nas suas rogas, buscando [...] 0 que comer e com que comprar para se poderem vestir». Algumas escravas eram mesmo forcadas a prostituir-se para se alimentarem e vestirem. Os jesuitas queixavam-se de que a politica de obrigar os escravos = providenciar a sua propria alimentagio ¢ vestuério era « aos seus senhores brasileiros, que no entanto recusaram. Zan- ada, frustrada e completamente s6 num ambiente novo, Graga descar~ regou no Deus cristo, Acabou por reconhecer os seus erros ¢ confessar (08 seus pecados perante 0 Santo Oficio. Os inquisidores foram miseri- cordiosos com Graca devido ao facto de ela ter comparecido voluntaria- ‘mente perante eles ¢ por as suas palavras terem sido ditas num «mo- mento de desespero». Foi-lhe ordenado que renunciasse aos pecados € fizesse peniténcia(”). (Os abusos contra Deus nao se limitavam as palavras; os escravos cometiam ainda uma variedade de acedes consideradas sacrilegas. J4 mencionémos como alguns africanos cobicavam a Héstia Sagrada, usan- do pedacos da mesma nas suas bolsas de mandinga, como se se tratasse de um talisma migico. Outros escravos profanavam a Héstia de uma forma mais directa, rejeitando com desprezo 0 significado simbélico que os cristaos lhe atribuiam. Em 1771, Francisco da Costa Xavier, um escravo nascido na Bafa, filho de pai sio-tomense e mie jeje, foi acusa- do de profanar a Héstia, Quando era mais novo, Francisco tinha sido cenviado para a cidade de Salvador para ser aprendiz de sapateiro. De~ ‘pois de aprender o oficio, Francisco trabalhou como «negro de ganho» (escravo de aluguer), pagando ao seu senhor 1280 réis no final de cada semana. Devido ao facto de o senhor no o deixar descansar, preocu- pando-se apenas em obter o seu pagamento semanal, Francisco decidiu fugir. No entanto, antes que conseguisse fazé-Io, 0 senhor soube dos seus planos e encarcerou-o. Francisco foi entio vendido para o Para, no Norte do Brasil. Quando chegou ao Pard, Francisco descobriu que 0 seu novo senhor era ainda mais duro do que o anterior. Sentindo «pouca compaixdo» pelos seus escravos, © novo senhor obrigava cada escravo a produzir seis pares de sapatos por semana — uma carga de trabalho que Francisco considerou intolerdvel. Francisco teve também alguns desentendimen- 249 Receiar Arrica tos com a senhora da casa, que mandou que o castigassem com a pal- mnatria, Quando 0 marido da senhora chegou a casa, fez com que cas- tigassem Francisco ainda mais. ‘Em desespero, Francisco procurou respostas espirituais para 08 abu- sos de que estava a ser alvo, Perguntou a um padre se havia mais do que tim Deus, ¢ o padre respondeu-lhe que havia um s6 Deus. Francisco respondeu que isso nfo era possivel, ja que o seu senhor 0 tratava de forma contréria ao que Deus ordenara, Francisco estava convencido de aque teriam de existir outros deuses. Mais tarde, Francisco perguntou ontro padre quem fizera © mundo. © padre respondeu que tina sido Deus a fazer 0 mundo. Uma vez mais, Francisco discordou, perguntan- do como era possivel que Deus tivesse feito um mundo onde algumas pessoas (como 0 senhor de Francisco) tinham mais poder do que Ele, Finalmente, continuando a questionar a sua fé, Francisco recebeu ¢o- mmunhio e retirou a Hdstia da boca «de maneira a ver com os seus Pré- drios olhos Jesus Cristo na sua mio». Francisco acabou por ser apanha do com a Héstia Sagrada e denunciado & Inquisicéo. Foi condenado a comparecer perante 0 auto-de-fé, foi chicoteado em pablico ¢ enviado para as galés por dez anos(*). “Tal como Francisco, outros eseravos rejeitavam o significado sim= bolico da Héstia Consagrada. Em 1781, uma escrava de 30 anos cha- mada Graca Angota recebeu comunhiio na pequena vila de Marica, per to do Rio de Janeiro. Uma vez que era comum entre os escravos de Marica manter a H6stia Sagrada na boca e refird-la mais tarde, foram tomadas medidas para impedir estes abusos. Os «Negros e criangas» da Igreja Paroquial de Marica etam obrigados a passar em frente de um axsistente leigo e abrir as suas bocas para provar que tinham consumido a Héstia, Ora, Graga conseguiu passar sem que ninguém verificasse & sua boca, Quando sait da Igreja, cuspiu a Héstia para o chilo, sem se preocupar se alguém via. A pedido de um eseravo crioulo, mais velho. Gaga apanhon a H6stia suja, po-la de volta na boca e engoliu-a. Graga acabou por ser detida e encarcerada pela Inquisigio, acabando por pa- fzar um elevado prego pelo seu «desrespeito>. Morreu quatro anos de pois da detengio, encontrando-se ainda a cumprir pena pelo seu acto sacrilego(”). "A rejeicio por parte de Graga do corpo simbético de Cristo consti= tuiu um acto calculado de desafio & Igreja, uma expressdo clara de 1¢- sisténcia face a religido (ou feitigaria?) dagueles que a mantinham em servidiio, Outros escravos escolhiam o escamio ¢ o humor como forma Ge desafiar a santidade da Igreja Catdlica. Em 1593, Francisco, filho de 250 O Carouicismo AFRICANO No Munpo PorTuGues: pai siio-tomense e mae congolesa, roubou uma imagem da Virgem Ma- ria do altar de uma igreja em Lisboa. Francisco levou a estétua para ‘casa de duas conhecidas, uma mulher e a sua sobrinha, que Ihe disse- ram que a imagem estava melhor em sua casa do que num altar poeiren- to. Os trés amigos comecaram entZo uma longa noite de festa com a estdtua, Retiraram as roupas & imagem e beijaram a sua face. As duas mulheres dancaram com a estétua em cima da cabeca, rindo histerica- ‘mente com os novos prazeres que estavam a mostrar a Nossa Senhora. ‘A certa altura, a mulher mais velha colocou a mao da imagem debaixo do seu vestido, comentando sarcasticamente com a sua sobrinha: , os lundus eram «ce~ ménios ou espfritos malignos». Tal como foi referido no capitulo 7, os rituais especializados dos calundeiros continuaram a ter origem nos cit culos onde se movimentavam os africanos © os seus descendentes; no entanto, a crenga afticana no poder dos espiritos dos antepassados (ou ‘edeménios») penetrou profundamente na cultura brasileira. © impacto das crengas religiosas africanas nos cat6licos brancos pode ser consta- tado nas reaccdes dispares de Maria Pereira e do seu marido. Os Bra- sileiros brancos, mesmo durante 0 perfodo colonial, encontravam-se di Vididos entre a aceitagio do . Por outras palavras, Boaventura era 259 Recriar AFRICA © senhor do espitito maligno que residia no corpo de Francisca, e nem 0 Diabo nem o padre tinham o poder de o expulsar pelos seus proprios meios. Para libertar a sua esposa deste espitito, Ant6nio de Assungio foi obtigado a colocar-se & mercé do aplicados pelo Padre Miguel(*). Nao ha nada que nos faca crer que o Padre Miguel tenha abandona- do a sua crenca na Igreja Catélica; no entanto, as suas acgdes demons- tram uma crenca em forgas espirituais africanas que com esta estavam ‘em competicdo. Os casos aqui referidos demonstram que as situagdes em que padres catlicos reconheceram o poder paralelo da espiritualidade africana no foram incidentes isolados de capitulacdo perante as influén- cias afticanas. Pelo contrario, foram expressOes de lutas institucionais ‘mais profundas acerca do papel das religides afticanas na constituigao da Igreja Catdtica brasileira. Num dos lados da barricada estavam os padres que queriam defender a rigida ortodoxia de Trento, rejeitando todas as priticas africanas como obras do Diabo. O Padre Antonil, por exemplo, defendia que todos os feiticeiros e curandeiros eram «mere- cedores de abominagio» e que aqueles que procuravam os seus servi- gos estavam na pritica a «abandonar Deus, de onde vém todos os remé= dios» (°). Do outro lado estavam padres mais pragméticos, que reconhe- ciam que as circunstncias do Brasil exigiam uma atitude mais flexivel para com as priticas religiosas afticanas. Como jé vimos, estes padres aconselhavam os seus paroquianos a recorrer a adivinhos ¢ curandeiros africanos, As duras condig6es fisicas do ambiente brasileiro tiveram os seus efeitos sobre brancos e negros, ¢ ambos os grupos procuravam os servigos de adivinhos e curandeiros africanos, especialistas na manipu- lacdo destes ambientes proibitivos. Enquanto que alguns padres cat6licos nao viam qualquer contradi- gio entre o Catolicismo e as priticas rituais africanas, outros tentavam . Indo 20 encontro da funcde de Gensuira piblica desempenhada pela Inquisicao, insistia ainda que as paginas ofensivas da Prdtica de exorcistas deveriam ser retiradas dos exemplares existentes. ‘Ov outros dois padres que deram pareceres acerca do caso do Padre Alberto foram mais indulgentes. O Padre Sebastido Ribeiro defendeu que objectos «corpéreos» como o sal, a cera ea mirra no tinham feito 263 RECRIAR sobre espititos «puros» como © Diabo. Os remédios naturais ndo podiam curar doengas provocadas pelo Diabo. Segundo o Padre Sebastido, a eficd- cia das curas do Padre Alberto residia provavelmente nas propriedades na- turais de cura destas substincias. Assim, o Padre Alberto ni estava a subs- tituir um feitigo por outro. Em vez disso, estava a curar doengas naturais com remédios naturais. A opinitio mais favordvel veio do Padre Ant6nio de Santo Tomés. © Padre Ant6nio admitiu que era «indecente> utilizar Agua benta em misturas destinadas a serem tomadas oralmente, mas esta inde- céncia era «apenas material e ndo formal, uma vez. que o fim que elas tra- ziam era conseguir a cura». O Padre Ant6nio concluiu que 0 zelo que 0 Padre Alberto demonstrava na cura dos pacientes era justificado. De outra forma, os doentes continuariam a ir aos «negros, que certamente curavam por obra do Diabo». O Padre Ant6nio concluiu que os exorcismos pouco ortodoxos do Padre Alberto evitavam estes comportamentos e mnantinham 6s brancos sob a alcada da Igreja Catélica. Depois de algum debate, a sus- pensio do Padre Alberto acabou por ser levantada, tendo-Ihe sido no entan- to ordenado que nio efectuasse quaisquer exorcismos para além daqueles que haviam sido «ordenados pelo Ritual Romano, sob pena de ser severa- mente castigado»(*). Claramente, 0 Padre Alberto colocou-se numa situagao preciria ao africanizar os seus rituais de exorcismo. A decisio ambigua da Inquisicio demonstra que existia muita oposigdo a qualquer desvio face As exigén- cias rigidas da Igreja Catélica; no entanto, os estudiosos eclesisticos de Lisboa acabaram por concluir que os fins religiosos justificavam os meios pouco ortodoxos utilizados pelo Padre Alberto. Os motivos por detras desta expansio do ritual do exorcismo sao bastante claros. Para continuar a ser uma parte importante da vida quotidiana de muitos bra- sileiros, a Igreja tinha de encontrar estratégias para lidar com as duras realidades fisicas da colénia. As incertezas vividas pela maioria dos Brasileiros obrigavam-nos a recorrer aos remédios africanos, que mui- tas vezes tinham resultados mais visiveis e imediatos do que a oracio e ‘af, Os intrincados rituais do Padre Alberto eram uma solugdo l6gica para o desafio colocado pelas religides afticanas. O uso de substancias medicinais do mundo natural, as varias béncdos as bolsas devem ter encontrado eco junto de pessoas que estavam habituadas a recorrer aos servicos de adivinhos e curandeiros afticanos. Ao naturalizar certos prin- cipios religiosos africanos, os padres catGlicos foram capazes de res- ponder as transformacdes nas necessidades dos seus paroquianos. E apesar de alguns rituais catélicos terem sido africanizados, os princi- pios fundamentais permaneceram inalterados. 264 O Inpacto pas Crencas RELIGIOSAS AFRICANAS NO CATOLICISMO BRASILEIRO Em tiltima instincia, a adopgdo de elementos espirituais africanos por parte dos padres catdlicos nao era diferente da aceitaco africana de elementos catélicos, analisada no dltimo capitulo. Africanos e euro- peus trocaram ideias religiosas no Brasil, naturalizando elementos dos sistemas uns dos outros, de forma a responder a diferentes problemas. Ao mesmo tempo, ambos os grupos se viram obrigados a reinventar determinados elementos dos seus préprios sistemas religiosos para ex- plicar as condieSes com que depararam no Brasil. Como ponto de con- fluéncia de vérios mundos, africanos e europeus, a esséncia religiosa ¢ cultural do Brasil colonial no era nem portuguesa nem africana. Ao mesmo tempo, também nfo se tratava de uma mistura crioulizada e indiferenciada. Pelo contrério, o Brasil foi a soma de partes distintas e, por vezes, contradit6rias. 265

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