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O contexto da obra literaria Enunciagdo, escritor, sociedade Dominique Maingueneau Tradvgio ‘MARINA APPENZELLER Revsio da tadupio EDUARDO BRANDAO ‘SBD-FFLCH-USP iti Martins Fontes S80 Paulo 2001 24 © CONTEXTO Da OBRA LITERARIA tizagao generalizada, de submissao a Lei escrita. Essa “grafosfera” esta se acabando sob nossos olhos. £ claro que © escrito impresso desempenha ainda um papel es- sencial, existe ainda um campo literiirio ativo, mas a lite- ratura, dominada pelo audiovisual nao tem mais o poder de criar acontecimentos, de impor seus titos a sociedade, Alids, € significativo que nas tiltimas duas décadas as “es- colas” ¢ 0s “movimentos”, cujos manifestos e conflitos es- truturaram a vida literaria por muitos séculos, tenham se apagado. ‘Nao hesitamos contudo em tomar diversos exemplos emprestados da literatura antiga ou medieval. Existem, de fato, imposicdes que $ numa preocupacdo de eficacia, pareceu-nos desejavel concentrar nosso esforco num periodo que tem a dupla vantage de definir um ritmo historico coerente ¢ consti- tuir o patriménio de referéncia do ensino da literatura. OBRA, ESCRITOR E CAMPO LITERARIO 1. A paratopia do escritor A tendéncia da estética romantica foi privilegiar a sin- gularidade do escritor e minimizar o carter institucional do exercicio da literatura. Ora, ndo € possivel produzir enunciados reconhecidos como literarios sem se colocar como escritor, sem se definir com relacao as represen- tages € aos comportamentos associados a essa condicao. 5 trabalhos.de.certos sociblogos da literatura, em particu- lar os de P. Bourdieu; tiveram o grande mérito de mostrar que 0 "contexto” da obra literdria ndo é somente a socieda- de considerada em sua globalidade, mas, em primeiro lu- ‘gar, 0 campo literario, que obedece a regras especificas, A pertinéncia imposstve! Longe de enunciar num solo institucional neutro € estivel, 0 escritor alimenta sua obra com 0 car calmente probleimatico de sua propria perti campo litendrio ¢ a sociedad, Nao-é uma espécie de cen- tauro, uma parte do qual estaria imersa na gravidade so- cial e a outra, a mais nobre, voltada para as estrelas, mas alguém cuja enunciacao se constitui através da propria impossibilidade de se designar um “lugar” verdadeiro. ‘Além, a inscrigdo do campo literdrio na sociedade se revela iguaimente problematic. Decerto esse campo faz, em certo sentido, “parte” da sociedade, mas a enunciag4o literdria desestabiliza a representacto que normalmente fa- p= 28 0 CONTEXTO Da OBRaA LITERARIA zemos de um lugar, com um fora e um dentro. Os “meios" literdrios sao de fato fronteiras. A existénicia social da lite- ratura supde a0 mesmo tempo a impossibilidade de se fe- char sobre si e a de se confundir com a sociedade “co- mum”, a necessidade de jogar com € nesse meio-termo. Nao que a literatura tenha um funcionamento incomparé- vel com outros campos de atividade (nela se pode falar de estratégias de promogao, de carreiras, de faturamento, €ic_), mas, se no quiser permanecer aquém de seus po- deres de excesso, preciso se proteger de dois perigos simétricos: = consideri-la como qualquer outro dominio da ati- vidade social; ~ coloca-la totalmente de lado, fortalecer a imagem enganadora que muitas vezes os escritores gostam de for necer deles mesmos. Nao € possivel falar de uma corporacio dos escrito- res como se fala de uma corporacao dos hoteleiros ou dos engenheiros. A literatura define de fato um “lugar” na sociedade, mas nao é possivel designar-lhe qualquer ter- ritorio, Sem “locali; ", ndo existem instituigées que permitam legitmar ou gerir a produgio e 0 consumo das ‘obras, conseqiientemente, ndo existe literatura; mas sem “deslocalizacdo”, nao existe verdadeira literatura, O esfor- ¢0 de certos regimes totalitétios para proporcionar uma condi¢ao de assalariado do Estado aos escritores reunidos em algum sindicato permite manter uma produgio literé- tia, mas ndo produzir obras literérias, a menos que 0 es- critor.se afaste do que esperado dele, torne probleméti- a. essa propria perti |campo literario nao €, portanto, a auséncia de qualquer’ llugar, mas antes uma negociacio dificil entre o lugar e 0, Jndo-lugar, umz localiza¢ao parasitaria, que vive da pr6- |pria impossibil:dade de se estabilizar. Essa localidade pa- /radoxal, vamos chami-la paratopia. ( De acordo com as épocas e 08 paises, essa paratopia assume aspectos muito variados. Entre os escritores das Luzes, por exemplo, exprimiu-se principalmente através da nogao de “Republica das Letras". Se os homens de le- cia 20 geupal A pertinéncia 20; OBR4, ESCRITOR E CAMPO LITERARIO 29. tras formam uma “reptiblica", esta s6 existe de maneira paradoxal, dispersa dentro dos corpos politicos. £ um “Estado” parasita dentro de Estados submetidos a regras que nao a igualdade e a discussio livre entre seres dota- dos de razao: Bla se estende por toda a terra e & composta de gen- te de qualquer nacao de qualquer condicao, de qualquer idade e de qualquer sexo, no estando excluidas nem as ‘mulheres, nem as criancas.’ Como explica P. Bayle no verbete Catius de seu Di- ciondrio bistorico e critico (1696), Essa Repiblica é um Estado extremamente livre. Ne- la 56 se reconhece 0 dominio da verdade € da razio; © sob seus auspicios, faz-se a guerra inocentemente a qual- quer um (..). Cada um, nela, é ao mesmo tempo sobera- ‘no e sujeito a todos. © escritor acredita-se cidadao dessa rede invisivel aque atravessa as divisdes sociais canénicas. Compreende- se que 0 século XVIII tenha assistido a emergéncia e 3 di- fusio da franco-maconatia; num registro distinto, a dima institucionalizou a paratopia das Luzes. A tribo A opinido agrada confrontar 0 escritor solitirio com a sociedade, considerar a obra como aquela mensagem que, de acordo com as palavras de Mallarmé, devem "dar um Sentido mais puro as palavras da tribo”. De fato, esse termo “tribo” convém melhor aos grupos de artistas do que A sociedade. A socalidade lacal ai desempenha de_ fato ui papel es Desde o5'anos 70 insiste-se nessa dimensio de certo modo etnol6gica da producio cultural. Evocamos as pes- quisas de P. Bourdieu e sua escola sobre 0 “campo literé- 30 (© CONTEXTO DA OBRA LITERARIA rio"; também citamos os trabalhos de Michel de Certeau sobre a historiografia, que parte do principio de que * impossivel analisar o discurso histérico independente- mente da instituicéo em funcao da qual ele é organizado em siléncio”. E igualmente possivel remeter a R, Debray, que coloca em evidéncia o papel dos “escribas" na consti tuicao € na manutencao das ideologias politicas e religio- sas’. No campo da anélise propriamente textual, desen- volvemos, por nossa vez, uma teoria da *comunidade dis cursiva’, que tenta articular as formacées disciirsivas a partir. do funcionamento dos grupos de produtores ¢ ge- Fentes.que as fazem viver e vivem delas' O interesse recai sobre 05 modos de vida, 0s ritos dessas comunidades restritas que disputam um mesmo ter- ‘trio institucional. E nessa zona que se travam realmente as.celagdes entre 0 escritor & a stciedadé; 8 escritor € sua obra, a obra e a sociédade. A obra literdria ndo surge “na sociedade captada como um todo, mas através das tensdes do campo propriamente literdrio. obra s6 se constitu’ im- plicando 0s titos, as normas, as relacdes de forca das insti- tuigdes literrias, Ela s6 pode dizer algo do mundo inscre- vendo o funcionamento do lugar que a torou possivel, colocando em jogo, em sua enunciagio, 08 problemias-co- locados pela inscricdo social de sua propria enunciacao. ‘A.vida Jiteréria esta estruturada por essas “tribos" que se distribuem. pelo campo literério com base em rei- vindicagées estéticas distintas: cftculo, grupo, escol naculo, bando, academia... Mas a tribo de escritores’ nao se define de acordo com 08 critérios da divistio social ca- nOnica, que reconhece essencialmente duas espécies de grupos: os que se fundamentam na filiagao e os de qual- quer tipo (empresas, equipes, batalhées...), unidos por uma tarefa comum a cumprir. Os membros das tribos lite- rarias sto extraidos de familias, as quais, alids, eles conti- nuam a pertencer; por outro lado, por mais que a tribo no seja uma familia, a intensidade das transferéncias afe- tivas que nela se produzem Ihe faz manter relagdes no passiveis de decisdo com a estrutura familiar. Por mais, que 0s escritores trabalhem, as vezes como loucos, seu (OBA, ESCRITOR B CAMPO LITERARIO 31 trabalho nao pertence a0 que se denomina normalmente “abalho", Mesmo que 0 escritor atribua 2 sua obra uma finalidade social ow politica, o que fundamenta sua tribo sempre estd além dessas tarefas. Dai uma suspeita perma- nente das pessoas bem-situadas com relaczo a ele. AA existéncia de uma wibo ngo implica necessaria- mente a frequéncia assidua-aos mesmios lugares. Ela pode resultar de trocas de correspondéncia, de encontros oca- sionais, de semelhancas nos modos de vida, de projetos convergentes... Existe desse modo um certo niimero de “ibos invisiveis®, que desempenham um >apel na arena aria, sem por isso terem tomado a forma de um grupo constituido. Ademais, qualquer escritor se situa numa tr bo escolhida, a dos escritores passados 01 contempord- neos, conhecidos pessoalmente ou nao, que coloca em seu pantedo pessoal e cujo modo de vida e obras lhe per- mitem legitimar sua propria enunciagio. Essa comunida- de espiritual que. usa o espaco € 0 tempo associa nomes numa configuracao cuja singularidade se confunde com a reivindicacao estética do autor. Muitos escritores, renegando o “tribaismo” literario até 0 campo literdrio, pretendem depender apenas de si mesmos, Mas por mais que se retirem para o deserto, pa- 12 as florestas ou para as montanhas, no conseguem sair do campo literario a partir do momento que escrevein, publicam e organizam sua identidade em torno dessa ati vidade. De fato, 0 campo literario vive dessa tenséo entre suas tribos € seus marginais. Através do modo como ge- rem sua inseredo no campo, os escritores indicam. a posi- edo que nele ocupam. Existem obras cuja a.tolegitimacao passa pelo abandono do mundo, outras que exigem a participacdo em empreendimentos coletivos, Sartre ani- ‘mando revistas politicas, desfilando pelas ruas, Thomas Bernhard vituperando de sua aldeia contra os meios cul- turais vienenses, dizem, cada qual 4 sua maneira, o que a literatura legitima é para eles. Mas ninguém pode se colo- car fora de um campo literdrio que, dé qualquer modo, vive por nao ter lugar verdadeiro. 32 © CONTEXTO Da OBRA LITERARIA A vida literéria A enunciagio literaria constitui-se atravessando di- versos dominios, dominio de elaboracdo (leituras, dis- cussdes...), dominio de redagao, dominio de pré-difusao, dominio de publicacdo, Mas esses dominios nao sao dis- postos em seqiéncia, formam um dispositivo cujos ele- mentos sao solidarios. O tipo de elaboragao condiciona 0 tipo.de reacao, de pré-difusio ou de publicacao; em com- pensaclo, 0 tipo de publicacao visada orienta por anteci- paco toda a atividade ulterior: no se imagina um autor de poemas galantes numa ilha deserta Um mesmo local pode muito bem integrar muitos desses “dominios”. Por exemplo, um salao do século XVIE 6 um local polivalente. Pode-se nele discutir estética, en- contrar confrades, manter-se @ par da atualidade literdria (ugar de elaboracdo); pode-se também nele ler suas obras para um primeiro circulo (lugar de pré-difiusdo). ‘A obra modifics-se em funcao das reacées desse primeiro ‘audit6rio, antes de ser lida ou representada diante de'um pliblico que excede a populagio restrita dos freqtientado- res habituais do salao, Seré eventualmente impressa. Da mesma maneira, num café de esctitores do século XIX, pode-se escrever, encontrar as pessoas da tribo ou de ou- tras tribos, conhecer os projetos em curso, confiar seu manuscrito a amigos ou lé-lo 20 grupo. As diversas estéticas, as “escolas’ sto indissocidveis das modalidades de sua existéncia social, dos lugares € das praticas que elas revestem ¢ que as revestem. A dife- renga entre 0 cafe do século XIX € S"balao dos séculos XVII e XVII intervem na propria definicao da condicao da literatura nas sociedades envolvidas, © saldo participa de uma sociedade onde o escritor vive principalmente de protegoes e de gratificagdes. Nes- se espago de transicéo destinado a diversio e onde a sub- missio das mulheres se afrouxa, as pessoas se ocupam com muitas outras coisas além da literatura, O saldo ofe- rece a0 escritor uma relacio indispensével com 0 corpo social com o poder, sem com isso encerré-lo em algum OBRA, ESCRITOR E CAMPO LITERARIO 3 lugar. De certo modo, os sales tém, como a literatura, uma condigao parat6pice: além das familias, além das corporagdes, consagram-se a atividades bem ritualizadas que fogem aparentemente a qualquer utilidade, 20 exer cicio do poder, a produgto ou ao comércio. Dai, prova- velmente, a extrema afinidade que péde existir na Franca entre o parasitismo da mundanalidade € 0 da literatura durante varios séculos, Em compensagio, 0 café de artistas do século XIX um dos principais lugares dessa vida boémia exemplifica- da por Cenas da vida de boemia de Henry Murger (1852) ou A obra de Zola (1886) ® que implica um confronto am- bivalente entre o mundo burgués do trabalho e a reivindi- cagao daqueles que entdo eram chamados “os artistas" Eram cinco horas, 0 grupo pediu mais cerveja. Fre: quentadores assiduos do bairro haviam invadido as me- sas vizinhas, e esses burgueses langavam para 0 canto dos anistas olhares de sosiaio, em que o desdém se mes- clava a uma deferéncie inquieta? © café encontra-se ra fronteira do espago social, Lu- gar de dissipacao de tempo ¢ dinheiro, de consumo de Alcool e fumo, permite que mundos distintos se encon- trem lado a lado. Os artistas podem ali se reunir em "ban- dos’, comungar na rejeicdo dessa sociedade burguesa que nao os inclui nem exclui, Pois o artista é esse perpé- tuo errante que acampa as margens da cidade: Flanando, os quatro pareciam ocupar tor a largura do Boulevard des Invalides. Ocorria a expansio habitual, ‘0 banco aos poucos aumentado pelos companheiros que se agregavam no caminho, a marcha livre de uma horda que partia para a guetra. Esses fanfarroes, com a bela 10- bustez de seus vinte anos, tomavam posse da calgada, ‘Assim que se viam juntos, fanfarras soavam diante deles, que empunhavam Paris com uma mio e a colocavam trangiillamente em seus bolsos, A vit6ria nao era mais ‘uma divida, passeavam seus velhos calcados e seus pale- 16s cansados, desdentando essas misérias, s6 tendo alias 34 (© CONTEXTO DA OBRA LITERARIA que querer para serem os senhores. E isso no acontecia sem um desprezo imenso por tudo 0 que no era sua ar- te, 0 desprezo pelo dinheiro, o desprezo pelo mundo, principalmente © desprezo pela politica... Uma magnifica Injustiga 0s soerguia, uma ignceincia proposital das ne- cessidades da vida social, 0 sonho louco de nao serem ‘mais que artistas na terra! Cena exemplar, em que o bando de artistas enra pelas ruas com 0 sonho contradit6rio de coaquista do mundo bur- gués e de ‘nao serem mais que artistas". De fato, a arte nao dispoe de outro lugar além cesse movimento, dessa impossibilidade de se fechar em s. mesma e deixar-se ab- sorver por esse Outro que se deve rejeitar, mas de quem se espera 0 reconhecimento. Boemias ¢ boémios Nessa época, € sobretudo z mitologia do boémio que permite dar uma representagio a essa impossivel in- sergao do escrito. No verbete “Bo&mio", Littré ita esta estrofe de Bé- ranger, que condensa um bom ntimero de esterestipos entio associados ao personagem: Feiticeiros, saltimbancos ou vigaristas Resto imundo De um antigo mundo Feiticeiros, saltimbancos ou vigaristas Alegres boémios, de onde vindes? Quer os acreditemos originatios das Indias, quer do Egito, de qualquer modo © boémio romantico provém do Oriente lendario. Como o artista, ele € menos “natural deste ou daquele lugar” do que simplesmente “natural Mais proximo de uma Natureza perdida da qual encarna © “resto” na sociedade industrial, 0 boémio ¢ feiticeiro. Participa espontaneamente das forgas com as quais 0 es- critor reata através do softimento e do trabalho criador. BRA, ESCRITOR E CAMPO LITERARIO 35 A mitologia proteiforme do grupo de boémios per- mite que os escritores reflitam sobre sua pertinéncia a ‘uma tribo que passa entre as malhas da rede social. Mas, diferentemente do bo&mio, o artista nao vai de cidade em cidade; seu nomadismo € mais radical. 0 artista boémio € menos um némade no sentido habitual do que um con- trabandista que atravessa as divisées sociais. Quer seja preceptor numa familia rica, quer bibliotecirio de algum principe ou de algum ministério, capitalista, professor de Colégio..., 0 escritor ocupa seu lugar sem ocupa-lo, no compromisso instivel de um jogo duplo. Stéphane Mal- larmé ensina inglés no colégio, mas é também o autor de poemas estranhos € 0 mestre que recebe seus fiéis na ter- ca-feira em seu apartamento da rua de Rome ‘A estrofe de Béranger esforga-se por pensar 0 boé- mio como “resto” de um “mundo antigo". Mas esse “res: to” é um excedente que, paradoxalmente, faz parte da- quilo de que é 0 excedente, O escritor acrescenta-se a uma sociedade pretensamente completa, mas que nao pode se fechar sem a representacdo que lhe € oferecida pela Arte. Esse “resto” projetado num passcdo de lenda € associado por Béranger ao adjetivo “imunco", que pode- ria ser entendido de duas maneiras: = de acordo com a etimologia, como 0 antonimo de um adjetivo “mundo’, do latim mundus (‘limpo", “ele- gante"); de maneira pouco etimolégica, como 0 oposto do substantivo mundo colocado na rima. O “imundo" opoe desse modo a sociedade constituida de tantos pequenos “mundos" o impensavel “mundo” daqueles que passam centre 0s mundos. Os dois valores contaminam-se: € impuro aquele que nao esta estabelecido na clausura de um “mundo”, de uma sua casa, de uma nossa casa. O artista ameaca a estabilidade de mundos que tendem a identificar sua clausura 8 sua satide. Af reside toda a ambigitidade da pa- ratopia do escritor: ele € 20 mesmo tempo o impuro € a fonte de todo valor, 0 paria ¢ 0 génio, segundo a ambiva- léncia do sacer latino, maldito € sagrado. Na fronteira da 36 (© CONTEXTO DA OBRA LITERARIA sociedade organizada, o artista € aquele em que se mistu- ram perigosamente 2s forcas maléficas e benéficas. & tri- bo em farrapos dos “Boémios em viagem" baudelairianos & também aquela para quem “esté aberto o império fami- liar das futuras trevas"”. O parasita deve devolver sua ab- jeeao com orgulho: Eis.vos de novo professor. Devemo-nos & Sociedade, dissestesme;fazeis parte do compo de professores; rodais no trilho certo. ~ Eu também, sou 0 principio: cinicamen- te, deixo que me sustentems, desenterro antigos imbecis de colégio: tudo 0 que posso inventar de boba, de sujo, de mau, em atos e palavras, entrego-thes; pagam-me em canecas de cerveja e mulheres (.. Agora, torno-me 0 mais cripula possivel. Por qué? Quero ser poeta e traba Iho para me tomar vidente* Paratopia do jansenismo A situaco paratépica do escritor leva-o a identificar- se com todos aqueles que parecem escapar as linhas de divisio da sociedade: boémios, mas também judeus, mu- Iheres, palhaces, aveniureitos, iidios da América. de acordo com as circunstincias. Basta que na sociedade se crie uma estrutura parat6pica para que a criagio literaria seja atrafda para a sua Orbita, M. Bakhtin mostrou desse modo o importante papel que a contracultura "carnava- lesca”, que pela irrisdo visava subverter a cultura oficial, desempenhou para a criacdo literdria. Os extravasamen- tos pontuais da festa dos loucos, assim como a literatura que nela se apéia, nao tém realmente um lugar designado nna sociedade, ticam sua forca de sua manginalidade. Essa tendéncia dos escritores a se identificarem. com as minorias criticas explica em boa parte porque a litera- tura do "século de Luis XIV" manteve relag6es intensas com 0 jansenismio de Port-Royal. Agregando a si uma co- munidade de leigos separados de suas familias ¢ de suas posigdes na sociedade, esse convento minou 0 corpo so- (OBRA, ESCRITOR B CAMPO LITERARIO 37 cial ¢ introduziu uma zona de turbuléncia propicia a in- vestimentos criativos. Nao longe da cidade e da corte, du- 10 invertido dos salbes, Port-Royal nao se opoe tanto 20 mundo” pecador em geral quanto a essa manifestaco extrema do pecado que para ele € o "mundo", isto é, 0 “alto mundo”, o dos faustos teatrais da corte exigidos pela monarquia absoluta. Port-Royal constitui um lugar além das divisdes sociais, inclusive da propria igreja, onde se encontram 0 profano (0s leigos “solitirios”) € 0 sagrado (s religiosas), onde 0 mundo se comunica com aqueles que dele se retiraram. Familia escolhida que reivindica um ideal exorbitante com respeito as estratégias usuais de promocao social, essa comunidade oferece uma seme- Ihanga perturbadora com as tribos literirias. Ao mesmo tempo na Igreja e fora dela, no século e fora dele, Port Royal preconiza 4 retirada de um mundo que seus escri tos nao cessam de atravessar como um virus € que, em, compensacdo, 0 atravessa com seus debates, Lugar por exceléncia da critica dos falsos valores, es- se jansenismo dificilmente deixaria de contaminar e ser contaminado pela literatura. Contaminacio ainda mais fa- cil na medida em que a deniincia jansenista dos grandes passa por uma desqualificacao dos lagos de sangue: 0 es- critor, como o jansenista, reivindicam como tinico valor ‘as obras realizadas pelo individuo, ambos afirmam a pri- mazia da realeza espiritual do justo sobre o poder confe- rido pelo nascimento. Para um jansenista consequiente, os nicos reis verdadeiros «40 0s eleitos de Deus: Todos os Bem-aventurados possuem wm trono (.) Para conhecer a grardeza desse trono, s6 é preciso com- parélo 20 dos reis da terrae considerar suns diferengas C. € necessirio apenas considerar 0 contirio de todos esses defeitos e de todas estas misérias part conceber 0 ‘que € esse Reino divino que Deus preparou para todos 9s Eleits.” Seria contudo absurdo pretender que a literatura classica era jansenista, De fato, boa parte dela insinuou-se 38 (0 CONTEXTO DA OBRA LITERARIA pelas aberturas que a paratopia jansenista Ihe oferecia, Alias, a hist6ria ulterior confirmou amplamente isso; a imagem de uma minoria de escritores religiosos que se colocam voluntariamente 4 margem de uma sociedade ndo auténtica que os persegue oferece um espelho cémo- do paratopia literdria. A partir do romantismo, muitos escritores trataram de se projetar no jansenismo, por exemplo, H. de Montherland com Port-Royal ou O mestre de Santiago. A economia impossivel A “condigao” problematica do escritor tem como cor- relata uma relacao igualmente problematica com o dinhei- 10. Por esséncia, o escritor no pode ter uma relagao uni- vvoca com um salério, Com a escria, da mesma forma que com a arte em geral, a nogdo de “trabalho”, de “salério’, 56 pode ser colocada entre parénteses. O escritor est conde- nado a elaborar um compromisso sempre insatisfat6rio. ‘A vida bo&mia aparece para as pessoas bem-situadas como a negagio de qualquer gestio razoavel do dinheiro, de qualquer patriménio. No final do século XIX, 0 Grande diciondrio universal de Pierre Larousse define a boemia como aquela “classe de jovens eruditos ou artistas pari- sienses que vivem sem saber o dia de amanha do produto precirio de sua inteligéncia”. Da mesma maneira que atra- ‘vessa os meios, 0 boémio atravessa os modos de despesa, ora com os bolsos cheios, ora sem dinheiro algum: Se necessatio, sabem também praticar a abstinéncia com toda a virtude de um anacoreta; mas, se Ihes cai um pouco de dinheiro nas maos, vé-se-os de imediato perse- auir as fantasias mais ruinosas, amando as mais belas © as mais jovens... Depois, quando seu dltimo centavo esti morto e enterrado, volta a jantar & mesa do acaso." Descrigdo que repete a de muitas outras “cigarras’, O So- brinbo de Rameau, pot exemplo: COBRA, ESCRITOR & CAMPO LITERARIO 39 Hoje com a roupa suja, as calgas rasgadas, coberto de arrapos, quase sem sapatos, anda, a cabeca baixa, foge, se tentado a chamé-o para the dar esmola. Amanha, em- poado, calgado, cabelos frisados, bem vestido, caminha, a cabeca enguida, exibe-se e quase poderieis toms-lo por um homem de bem. Vive sem saber 0 dia de amanba."" ‘A boemia ruidosa, entretanto, proporciona apenas ‘uma visio redutora da condigao de escrito:, que € sempre um debate entre a integragio e a marginalidade. Uma obra como O sobrinho de Rameau mostri-o de maneira exemplar, através do debate entre "Ele”, 0 bo&mio sem teto nem lei, e “Eu", 0 escritor com casa gropria. O autor no é de fato nem-*Ele", nem "Eu", mas se mantém numa irredutivel tensio entre ambos. Por isso < representacao dada pelos historiadores da literatura da condigao de es- critor oscila entre esses dois pélos: ora o escritor.€ esse ‘marginal que acampa a beira da ordem estabelecida, ora a literatura aparece como um bom meio de fazer carreira, nao considerando os escritores errado mendigar pensdes, ou discutir o montante de seus direitos autorais, A litera~ tura tem necessidade de institucionalizacao (prémios, academias, antologias, lugares ao sol...), mas legitima-se sobretudo através de seus franco-atiradores, 0s que e: pam a suas instituigdes. Em literatura, como em religi existem sempre clétigos ¢ profetas. A enunciacao literdria alimenta-se dessa instabilidade irredutivel: a miséria nao € mais um brevé de talento do que a riqueza, um atestado de mediocridade, © escritor relaciona-se com 0 dinheiro de duas ma neiras. H4 0 dinheiro que permite viver enquanto ele se consagra a escrita; ha igualmente o dinheiro que se ob- tém eventualmente com a escrita, Diferentemente das profissdes “t6picas”, as que proporcionam uma renda previsivel a uma posi¢ao determinada do aparelho social, © dinheiro tirado da criacdo esta sujeito ao,acaso. Nao existe método garantido para se ter acesso a gloria liter- ria. O escritor que pretende fazer uma obra singular est condenado a inventar 4 medida que percorte a estrada 40 (© CONTEXTO DA OBRA LITERARIA pela qual caminha, a desconfiar de qualquer carreira pre- viamente tragaca. Nao pode visar a riqueza, pois, visan- do, arrisca-se a se tornar um escritor mediocre, Pior: 0 sucesso € um sinal ambiguo, que muitas vezes revela uma conformidade inquietante 2 uma moda transitéria € nao garante qualquer gléria s6lida. Enquanto para a lite- ratura comercial o sucesso € uma garantia de valor, para a criagio verdadeira © sucesso imediato tem algo de suspeito: como se ele re- duzisse a oferenda simbélica de uma obra sem prego 20 simples “dar e receber em toca" de um intercimbio co- mercial, Essa visto, que faz da ascese nesse mundo a condigao da salvago no além, encontra seu principio na logica especifica da alquimia simbélica, que quer que os investimentos 56 sejam recuperados se ‘sto (ou parecer) ‘operados a fundo perdido, a maneira de um dom, que s6 pode garantir o contradom mais precioso, o *reconheci- mento", se for Vivido como sem retorno.” Quaisquer que sejam a regularidade de seu trabalho, a quantidade de esforco e de tempo investido, o escritor nao consegue programar o lucro que tera, principalmente quan- do se trata de um reconhecimento a longo prazo. © lucro ndavel de umm acaso do que tr gestaorde um patfininio. Desse modo, o essencial € que a relaca0 que o escri- tor mantém com 0 dinheiro ¢ a que mantém com sua es- crita se amarrem de maneira fecunda em seu processo de eriacdo. O Balzac que em A comédia humana constr6i com brio as fortunas de seus hersis ou que tents organi zat um novo regime de direitos autorais € também o ho- ‘mem perseguido por seus credores, cuja vida € uma lon- ga luta contra a pobreza. Entre essas duas faces, existe uma necessidade misteriosa, da mesma forma que, no ca- 50 Oposto, entre 0 éxito social do diplomata Paul Claudel ea realizagao de sua obra. Essa negociacdo delicada entre a escrita e 0 dinheiro insere-se num debate sobre 0 valor. O escritor é, por de- finigao, aquele que pretende produzir “enunciados-ouro”, OnRA, ESCRITOR CAMPO LITERARIO 4 contra a multidao inumeravel dos enunciados aos quais a sociedade proporciona um valor ilus6rio. A dentincia, po- rém, do dinheiro que o trabalho do escritor implica ela propria minada pela inquietude: se nao der certo, a obra nao passa de um amontoado de signos ainda mais indteis do que os que ela recuse, A Grvore familiar Sobre o escritor que renuncia a fazer fratificar © pa- triménio para consagrar sua vida as palavras pesa a culpa de ter preferido a producdo estéril de simulacros a trans- missio geneal6gica, tant) a montante quanto a jusante. A montante porgue-o.escxtor. coma todo 0. mundo, € filho de pais e deve se situar com relacdo a essa heranca; a ju- sante, poiqué élé proprio € chamado a prolongar a arvo- re familia. “ Como nao pode escapar da culpa vinculada a seu desvio, 0 esctitor pretende inocentar-se conferindo-se ‘uma filiagdo de outra ordem, tornando-se filho de suas obras. Sua legitimidade, pretende tird-la nio de seu patri- ménio, mas de seu pseudénimo, do que escreve e nao de sua posicao na rede patimonial, Dai o forte vinculo, em qualquer mitologia da criagao, entre a condicao de artista € a bastardia ou o assassinato do pai. N. Elias observou que 2 maioria dos trovadores do amor cortés pertenciam 2 categoria dos cavaleiros pobres e sem terra a servico de senhores mais importantes. Essa caracteristica sociologica interessa a criagio literivia: € compreensivel que um no- bre cuja “qualidade” de nascimento nao encontra contra- partida na hierarquia social seja mais suscetivel que um outro de se definir por sua obra e no por sua linhagem. Situagdo que se pode relacionar com 0 triangulo do amor cortés, no qual o poeta desvaloriza a figura paterna colo- cando-se como rival amcroso de seu suserano" Para a psicandlise freudiana, existe uma relagao es- sencial entre 0 assassinato do pai e 0 processo criador, como mostra a propria e'aboragao da teoria da interpreta” 42 (© CONTEXTO DA OBRA LITERARIA ‘cio dos sonhos que nasce através de uma reflexao dolo- Tosa de Freud sobre seu proprio desejo assassino com re- lacdo ao pai'*. Foi na peca de Séfocles, Edipo Ref, que ele decifrou um desejo que seria inconsciente € universal, © de matar 0 pai e desposar a mie. Ora, essa tragédia as- socia justamente esse assassinato a uma paratopia familiar: Edipo foi afastado da filiacao legitima, criado numa corte estrangeira. O assassinato de seu pai the permite resolver © enigma da esfinge, isto é, passar para o lado dos artis- tas, dos manejadores de palavras e de forcas obscuras, Mas, a partir de entao, ndo pode mais se inscrever na 4r- vore dinastica; sera de novo condenado a erranca Nas primeiras paginas dos. Moedeiros falsos de Gide, © her6i, Bernard Profitendieu, ao descobrir sua bastardia, decide desviarse da ordem burguesa e mergulha nos meios literarios: dois acontecimentos indissociaveis. Mas esse afastamento parat6pico original € também o do es- ctitor homossexual Gide e do autor dos Moedeiros falsos, que, para fazer a obra, rompe com 0 contrato romanesco tradicional. No final da narrativa, Bernard volta para a ca- sa de seu (falso) pai; aceita pactuar com uma “falsidade” irredutivel; da mesma maneira que Gide intitula “roman- ce” um texto sobre o qual ndo se tem mais certeza de que se trata de um “verdadeiro” romance. Como Bernard, co- mo 0 tio Edouard, homosexual que ndo passa de meio- irmao da mae, o escritor € da familia sem sé-lo, A homos- sexualidade de Edouard, delegado do autor, remete a uma dimensio constitutiva da criagdo: a perversio man- tém o escritor na impossibilidade de pertencer dé fato 2 arvore genealogica Excedendo desse modo qualquer comunidade natu- ral ou social, o escritor pretende abrit através de sua obra a possibilidade de uma comunidade de contornos impos- siveis, a de seu ptblico, Enquanto as palavras comuns se movern nos limites do espaco que Ihes € prescrito pelo género de discurso 20 qual pertencem, as obras literarias no podem realmente definir seu espaco e seu tempo de difusdo. Quando Stendhal dedica O vermelho e 0 negro (OBR, ESCRITOR E CAMPO LITERARIO 8 0s “happy few”, visa apenas um grupo inapreensivel de eleitos, nao uma comunidade constitufda. A obra visa reunir em tomo de seu nome uma comunidade sem rosto que zomba das divisdes sociais. Como o amor, 0 prazer estético atravessa os muros erguidos pela linhagem, pela condicao social, pela geografia... O nomacismo constituti- vo do escritor é a condicao do nomadismo de sua obra. Don Juan nao apenas um sedutor de mulheres, ele ma~ nifesta a sedugdo constitutiva de qualquer obra, esse po- der de desvio que permite reunir todas as suas vitimas num catdlogo que ignora as fronteiras: Mas na Espanha jé sto mille és Entre elas ha camponesas Griadas e burguesas Ha condessas, baronesas, (L. Da Ponte/Mozart, Don Giovarms, ato I, cena V) 2. A vida e a obra Ao relacionarmos 0 escritor a seu espaco institucio- nal, esforcamo-nos por mostrar o cariter ilusério de uma ‘oposicao entre uma individualidade criadora e uma socie- dade concebida como um bloco. Nem por isso invalidare- mos 4 existéncia dos criadores no funcionamento de um campo literério. A Literatura como configuracao institu- sional condiciona os comportamentos, mas, para criar, escritor deve explorar esse condicionamento e interfevir AAs obras emergem em percursos biograficos singu: lares, porém esses percursos definem e pressupdem um estado determinado do campo. A bio/grafia Nao basta levar uma vida boémia ou frequlentar ce- ndculos para ser um ctiador. O importante € a maneira Particular como 0 escritor se relaciona com as condigdes de exercicio da literatura de sua época, Embora Verlaine € Mallarmé tenham sido ambos “poetas simbolistas", am- bos funciondrios parisienses modestos (um, escrevente na Prefeitura; outro, professor secundario), suas trajet6rias sio muito diferentes: enquanto Verlaine, ap6s um perio. do de ajuste entre seu eraprego administrativo e a vida de boémio, naufraga numa existéncia cadtica, Mallarmé apa- rentemente leva a vida organizada de um modesto pro- fessor de inglés. Cada um geriu de maneira diferente a 46 0 CONTEXTO DA OBRA LITERARIA paratopia do escritor, ¢ essa “gestio", longe de ser exterior 4 obra, participa da criacio, © preconceito supde que um homem se toma autor se possui o dom de “exprimir” esteticamente seus sofri- mentos ¢ suas alegrias, Nessa concepcao, existiriam por um lado as experiéncias da vida, por outro, flutuando em algum éter, as obras que pretensamente os representam, de maneira mais ou menos disfargada. Cabe entdo a his- (Gria literdria tecer correspondéncias entre as fases da cria- 640 € os acontecimentos da vida. Na realidade, a obra ndo esti fora de seu “contexto” biogrifico, nao é 0 belo reflexo de eventos independentes dela, Da mesma forma que a literatura participa da sociedade que ela suposta- mente representa, a obra participa da vida do escritor. gue se deve levar em consideracio nao é a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua dificil unizo. Quando Michel de Montaigne se descreve nos En- ‘sais, ndo pode descrever algo além da existéncia de um Montaigne j& captado pela escrita, Sua escrita envolve sua vida, sua vida envolve sua escrita: Nao fiz mais meu livro do‘cue meu livro me fez, li vyro consubstancial a seu autor, de uma ocupagio propria, membro de minha vida, no de uma ocupago e um fim terceiro e estranho, como todos os outros livros © carater autobiogrifico do empreendimento de Montaigne s6 faz colocar em eviééncia uma dimensao | constitutiva de qualquer criacao. Para designé-la, falare- mos de bio/grafia, com uma barra que une e separa dois, termos em relagdo instivel. “Bio/grafia” que se percorre | nos dois sentidos: da vida rumo a grafia ou da grafia ru- ‘mo a vida. A existéncia do criador desenvolve-se em fun- so da parte de si mesma constituida pela obra jé termi- nada, em curso de remate ou a set construida, Em com- pensacdo, porém, a obra alimenta-se dessa existéncia que la jé habita, O escritor s6 consegue passar para sua obra uma experiéncia da vida minada pelo trabalho criativo, jé obsedada pela obra. Existe af um envolvimento reciproco OBRA, ESCRITOR E CAMPO LITERARIO. 47 € paradoxal que $6 se resolve no movimento da criagdo: a vida do escritor esté 8 sombra da escrita, mas a escrita é uma forma de vida. O escritor “vive entre aspas a partir do momento em que sua vida € dilacerada pela exigencia de criar, em que o espelho jd se encontra na existéncia que deve tefletir, Se a obra s6 emerge adquirindo forma na vida de seu autor, 0 grande escritor € menos aquele que em quaisquer Circunstancias sabe tar uma obra-prima de seu foro inte- rior do que aquele que organizou uma existéncia tal, que rela possam ocorter obras. Organizacao jamais garantida que muitas vezes adquire o aspecto de um caos aparente € pode passar por um pacto obscuro com a morte. Ritos de eserita O ato de escrever, de trabalhar num manuscrito, cons- titui a zona de contato mais evidente entre “a vida" e “a obra’. Trata-se de fato de uma atividade inscrita na exis- téncia, como qualquer outra, mas que também se encon- tra na Orbita de uma obra, na medida daquio que assim a fez nascer. A ponto de se discutir muitas vezes para se § ber onde passa a fronteira entre o texto € 0 “antetexto’ Montaigne enriquecia seus Ensaios menos reescre- vendo passagens do que pelo enxerto de novos desen. volvimentos em pontos miiltiplos do texto impresso. A despeito dessa composicao heterogénea, as Ensaios so uma obra completa. Esse mocio de enriquecimento esta ligado @ afirmacao da continuidade e da multiplicidade do cosmos; o “enxerto” textual € também uma operagao natural, uma pritica de jardineiro, Claudel :gualmente ti- nha a tendéncia de ampliar seu texto sem rasurat, mas a partir da primeira verso. Mais do que reescever, modifi- cava depois o enunciado que acabava de escrever: con- duta indissociavel do recurso ao versiculo como unidade fundamental da escansao textual, O versiculo de Claudel € 0 assenhoreamento progressivo do mundo por um su- jeito que caminha de formulagao em formulacao. 48 © CONTEXTO DA OBRA LITERARIA Sou o Inspetor da Criagao, 0 Averiguador da coisa presente; a solidez desse mundo é © material de minha bea- titude! (..) E caminho, caminho, caminho! Cada um encerra em si 0 principio auténomo de seu deslocamento, através do qual o homem vai até seu alimento e seu trabalho. Para mim, 0 movimento igual de minhas pernas serve-me pa- 2 avaliar a forga dos apelos mais sutis. A atracao de to- das coisas, sinto-a no siléncio de minha alma." A Criagao de Deus € medida, assim, a passos largos, co- mo 0 mundo textual que se inscreve na pagina em gran- des passadas, O autor € um agrimensor. Em compensacao, Pascal, cuja relagao ambivalente ‘com Montaigne conhecemos, constréi a continuidade do texto a partir de fragmentos. O manuscrito dos Pensa- ‘mentos abocanha assim 0 gesto que o faz existir, mostra em sua textura 0 conflito entre fragmento e totalidade, a desordem na orem que a propria obra tematiza. Multi- plicando as linhas de fratura, 0s Pensamentos modelam- se através da impossibilidade de integrar seus elementos numa totalidade natural. Esse trabalho sobre 0 texto (rascunhos, corregdes...), poderiamos chamé-lo ritos de escrita, eles proprios par. te dos ritos genéticos, comportamentos diretamente mo- bilizados a servigo da criacao. Ritos genéticos A ctiagio supée, com efeito, a invengdo de ritos ge- néticos especificos, de um modo de vida capaz de tomar possivel uma obra singular: Quanto ao livro interior de signos desconhecidos. para cuja leitura ninguém podia me ajudar com regra al- guma, essa leitura consistia num ato de criagio em que ‘ninguém poce nos substituir, tampouco colaborar conos- ©0. Por isso, quantos esquivam-se de escrevé-lo!(..) a to- do momento 0 anista deve ouvir seu instinto, 0 que faz (BRA, ESCRITOR F CAMPO LITERARIO 49 com que a arte seja o que existe de mais real, a escola da vvida mais austera e c verdadeiro Juizo Final.’ Para poder escrever no final de Em busca do tempo perdi- do que a Unica vida verdadeira € a Arte, Proust teve de descobrir os ritos genétizos necessarios, tecer em sua vida a tela de habitos na medida do texto que dela devia sur- gir. Como a Ane é a vide verdadeira, deve-se deixar a cria- ‘Glo ditar seus horérios, trancar-se num quarto meticulosa- mente escuro e a prova de som, afastado do mundo exte- rior, fora da divisao do dia e da noite. De nada serve ima- ginar um Proust gozando de melhor sadde, levando uma vida “normal”: esse Proust jamais conseguiria escrever Em busca do tempo perdido, £ sobretudo a partir do século XIX que o escritor oferece como espetéculo seus ritos e a sociedade aprecia sonhar sobre eles. Essa exibicao, assim como essa curiosi- dade, esto precisamente ligadas a uma estética romanti- ca que valorizou a génese e quis reencontrar a *energeia’ da produgao no produto acabado, Isso vai da publicacéo de “rascunhos" pelo proprio autor (cf. A fabrica do pra- do, de F. Ponge) até a confustio entre @ obra e suas pro- prias condigdes de génese (Em busca do tempo perdido. Antes desse periodo, as obras evocam pouco 0s ritos ge- néticos que as tornaram possiveis; os autores entdo pres supdem uma definigdo ca literatura bem diferente da que prevaleceu em seguida. Esses ritos genéticas t@m um estatuto duplo. Sa0 a0 mesmo tempo uma realidade hist6rica, que € possivel petscrutar através do caminho cléssico (documentos, co- leta de testemunhos, conjecturas...), e um sintoma das po- sigdes estéticas que embasam as obras. Conhecemos 0 caso de Flaubert "berrando” seus textos, penando a cada frase em seu escrit6rio interiorano de Croisset; conhece- mos 0 de Zola tomando otas nas locomotivas, nas minas de carvao ou nas recepgdes mundanas: Ble fazia com que ricos industriais 0 convidassem para suas noitadas, com 0 tnico intuito de se documen- pe 50 (0 CONTEXTO DA OBRA LITERARIA tar, Via-se-o, gordo e sombrio, tal como um filésofo de Couture, num canto do bufé examinando a assisténcia, ‘mobiliando sua meméria, cada vez mais avolumada, de silhuetas recortadas e rapidas, que sua imaginacao doen- tla associava depois em dramas e orgias de carne e san- gue. Ao redor, as pessoas mumuravam: “E Zola. Esta aqui para tomar notas." Nessa descricdo polémica, capta-se um movimento duplo: por um lado, o romancista que observa os costumes sub- metendo-se aos ritos genéticos natucalistas, por outro, a so- ciedacle que observa os ritos do observador. Por mais que se cologue num canto, que se corfira todos os sinais de neutralidade, © romancista naturalisia define pelo seu com- portamento uma certa posicio no campo literirio, mostra (8 gestos que, a seu ver, 0 escritor legitimo deve fazer. Um local de escrita O escritério de Flaubert em Croisset e 0 quarto escu- 10 € a prova de som de Proust so esses espagos onde se institui um certo espago textual, um context de escrita que € considerado naquilo que deveria apenas conter. Consideremos a célebre “biblioteca” do terceiro an- dar da torre do castelo de Montaigne. Ao mesmo tempo gabinete de trabalho € biblioteca, esse comodo nao so- mente € 0 lugar em que o autor escreve seu livro, mas é, em si mesmo, de certa manera, livro. Suas vigas ¢ traves estio cobertas de sentencas gregas ou latinas, e parede ornada de uma inscrig4o em latim que assinala a entrada de Montaigne na escrita: No ano de Cristo de 1571, aos trinta e oito anos, as vvésperas das calendas de marco, aniversirio de seu nasce ‘mento, Michel de Montaigne, ji hi muito enfastiado da es- cravidio do parlamento e dos cargos pablicos, retirou-se, ainda de posse de suas forgas, para o seio das doutas vire gens onde, na calma e na seguranga, passard © pouco tem- o que lhe resta de uma vida jé transcortida em grande (OBRA, ESCRITOR E CAMPO LITERARIO 51 parte. Esperando que o destino the conceda completar es- sa habitaglo, doce retiro ancestral, ele a consagrou a sua liberdade, 8 sua trangillidade e a seus laze'es (otivmd, Recinto de um renascimento junto as Musas, essa bi- blioteca € igualmente descrita no texto dos Ensaios, que evoca a existéncia do escritor ali, Espaco redondo, no al- to da torte, separada pelo patio do corpo principal do castelo, permite abragar com os olhos todas 0s livros, ar- rumados ao redor. Permite também supervisionar, sob trés Angulos distintos, as atividades das pessoas da pro- priedade: “de uma s6 vez, comando minha casa. Estou sobre a entrada e vejo sob mim meu jardim, meu gali- nheiro, meu patio e a maioria dos membros de minha ca- sa” (HI, 3). E 20 mesmo tempo um lugar de concentragio em sie de abertura para o mundo, um luga- fora e dentro do castelo. Condicdo de possibilidade de uma escrita, também € sua materiilizacao, Essa biblioteca, onde ele passa “a maior parte das horas do dia” dé corpo a parato- pia de um escritor que associa reflexividade e observago do mundo. Os ritos legitimos Ritos de escrita € ritos genéticos so essa parcela da vida brusca e diretamente pega pela obra, de certo modo subtraida das atividades “profanas", nao estéticas. Um criador nao pode tratar seus proprios ritos gené- lucos como quantidade negligencidvel. Consiituem de fato 9 Unico aspecto da criagio que ele pode centrolar, a i ca maneira de conjurar 0 espectro do fracasso. Em ria de ctiacdo, 0 éxito € forgosamente incerto: como se esti realizando uma io do momento em que até a aprovacio do pi contemporineo nao é um critério garantidor Resta tor apenas multiplicar os gestos conjuradores, mostrar a si mesmo € a0 pablico os signos de sua legitimidade, O que implica a realizagdo dos atos exigidos para se escrever 52 (O.CONTEXTO DA OBRA LITERARIA como convém, com considerag20 a posigao que se reivin- dica no campo literario, Caso se reivindique uma doutrina classica, que diz “recoloque vinte vezes sua obra no teat”, é preciso rasurar incessantemente: existe, com efeito, apenas uma formulacdo adequadla, a que permite que 0 pensamento atravesse a lingua idealmente Como s6 se escreve a vida dos grandes escritores sa- bendo que sio grandes escritores, € dificil conceber a in- certeza radical do trabalho criativo. Como imaginar um Flaubert que so se sentia seguro enterrando-se em Crois- sete polindo cada frase, ele, que escreveri essa Madame Bovary, que figura em todas as antologias da literatura francesa? A historia literdria tende a s6 reter as inovagoes coroadas de sucesso e a calar os intimeros fracassos Ou, mais simplesmente, a multidao dos escritores estimaveis que se contentaram em escrever em contextos ja confir- mados. Uma vez estabelecidos certos ritos genéticos, a maioria dos escritores adapta-se a eles ‘Trata-se de um processo em enlacamento paradoxal: pnstitui-se a9 mesmo tempo ‘que-a obra que supostamente é seu produto, E necessatio. jf ter encontraco os ritos genéticos pertinentes para ela- borar as obras, mas € © éxito das obras realizadas que consagra a pertinéncia desses ritos. Para inovar, os cfia- dores devem instaurar a bio/grafia que se revelara frutife- Fa antes que o sucesso tenha Ihes confirmado 0 valor de sua conduta, Muitas vezes observou-se que A arte postica de Boileau (1674) foi publicada apés a maioria das obras- primas de Bossuet, Moligre, Corneille, Racine... Mas trata- se ai de um descompasso perfeitamente notmal: os ritos ‘genéticos, assim como os géneros, codificam-se quando ‘do tém mais, de fato, poder criativo. O escritor original € Obrigado a inventar os ritos genéticos correspondentes sua medida: um problema de “instinto”, para retomar os termos de Proust. Um instinto que permite delimitar seu territ6rio num campo literario conflituoso, Por isso, deve- vitar_abstrair os ritos genéticos das tomadas de posi $20.estéticas, Dizer, por exemplo, que, privilegiando o la- or obstinado, os parnasianos reataram com 0s principios (OBRA, BSCRITOR & CAMPO LITERARIO 33 dos clissicos € deixar-se enganar por efeitos superficiais. A palavra de ordem “Arte pela Arte” s6 adquire sentido ‘em sua oposicio ao romantismo. Os parnasianos nao vi- sam a uma formulacdo “clara”, em que o pensamento atravessaria uma palavra submetida a um c6digo de con- veniéncia; pretendem ela>orar enunciados perfeitos, sub- traidos 4 corrupcao do mundo, textos minerais ("esmal- tes", "camafeus", ‘marmores”...) que exibem o tabalho que custaram, que incluem, por assim dizer, a gesta he- rica que os tornou possiveis A efetuacao bio/grafica Se € 0 conjunto da existéncia do autor que, de perto ou de longe, participa do “rito genético, a viagem de Flaubert a0 Egito, 2s campanhas militares de d'Aubigné, a correspondéncia de Balzac com Madame Hanska... sio consideradas nessas negociacdes bio/grificas singulares que Ihes permitiram ajustar, de maneira sempre incerta, 0 surgimento de obras a um modo de vida. Para justificar seu desinteresse pelos dados biogrifi- cos, a “nova critica” dos anos 60 invocou a caugio do Contra Sainte-Beuve. Neste, Proust acusa a historia literé- ria de ignorar “este mundo tinico, fechado, sem comuni- cacao com o exterior, que € a alma do poeta” E, por nao ter visto o abismo que separa o escritor do homem mundano, por ndo ter compreendide que o eu do escritor s6 se mostra en seus livros e que s6 mostra aos homens mundanos:.. um homem mundano como ele, ‘naugurara esse método Famoso que, segundo Taine, Bour- get € tantos outros, é a sua gléria e que consiste em inter- rogar avidamente para compreender um poeta, um escri- tor, 08 que 0 conheceram, 0s que o freqiientavam, que po- derio nos dizer como se comportava quanto a0 tema mu- theres, etc, isto 6, precisamente, sobre todos os pontos em que 0 eu verdadeiro do poeta nao esté em jogo’ 54 (© CONTEXTO DA OBRA LITERARIA Colocando um “abismo” entre a obra de um escritor e sua vida, Proust sacraliza de fato uma opinigo difundida tanto entre os artistas como entre © publico. Porém, ao fazer is- 50, arrisca-se a inverter os termos da problemética em vez de mudar de espaco, Afinal, a bio/grafia de Proust invalida sua tese. Decer- to 0 mundano que atravessa os saloes parisienses nio coincide com o autor de Em busca do tempo perdido, mas participa da economia sutil que permitiu escrever esse 10- mance. Foi preciso ser um mundano, perder muito tempo ‘nos sales € em temporadas de férias para partir em sua ‘buscar foi preciso parar a. tempo para nao perdé-lo, ter um terrivel medo de que ele viesse-a faltar-lhe, para poder es- crever Em busca do tempo perdido; foi preciso encerrar-se 1a solidiio de um quarto “fechado, sem comunicagdo com © exterior", como “a alma do poeta", para atestar que o verdadeiro “eu do escritor’ ndo 0 homem mundano que ra antes e que volta a ser por intermiténcias, Portanto, a obra s6 pode surgir se, de uma maneira ou de outta, encontrar sua efétiagao numa’ éxisténcta, Ser unt escritor engajado é assinar petigoes, tomar a pala. vra em assembléias, exprimir-se sobre os grandes proble- ‘mas da sociedade; mas € igualmente exceder por sua es- rita qualquer territ6rio ideol6gico, de maneira que tenha © direito de se colocar como sentinela do Bem. A dificul- dade consiste em encontrar 0 improvavel ponto de equili- brio entre as duas exigéncias. De maneira oposta, para poder assinar com 0 pseudénimo “Julien Gracq? O castelo de Argol ou O litoral das sires, para produzir a Literatura excetuando tudo, € preciso encerrar-se em sua tebaida, manter-se longe das tribunas, dos cortejos e dos meios li. terétios. Litoral das sirtes, terraco na floresta, praia breta ‘Wm belo tenebroso).... 0 tinico lugar em que € possivel escrever € a orla de alguma extremidade do mundo: Evoco, nesses dias escorregadios, fugidios, do final de outono, com uma predilegio particular, as’ avenidas dessa pequena praia no declinio da estado, de repente singularmente invadida pelo siléncio, Mal vive, esse al- (OBA, ESCRITOR E CAMPO LITERARIO. 55 bergue da desocupacio migradora, onde o fluxo das mu- Iheres de roupa clara © de crianeas de stibito conquista- doras com as marés de equinécio vai fugir e repentina- mente descobrir como as ressacas marinhas de setembro cessas grutas de ujolo e cimento, essas estalactites rococés, lessas arquiteturas pucris e atraentes, esses canteiros por demais socorridos que 0 vento do mar vai Jesteuir como anémonas a seco, € tudo o que, por ser deixado de re- pente em seu dispontvel face-a-face com o mar, na falta de frivolidades por demais tranqiilizadoras, vai retomar invencivelmente sua categoria mais elevade' de fantasma em pleno dia Essas primeiras palavras de Um belo tensbraso sto 0 limite que separa a obra dos rumores do mundo. Coloca em cena ‘ollimento, no, qual o narradcr dei através dele a voz morta e viva da Literatura, “f em pleno dia”, O mar e a multidao de turistas refluiu, escritor se mantém nesse entremeio incerto, em que ain- da se percebe o vestigio dos homens, mas nio mais sua presenga ruidosa e pesada. A esse espaco corresponde ‘um tempo entre dois tempos, a fronteira do ‘final de ou- tono, entre 0 verdo da agitacao € o inverno da morte, Enunciagto de no man's land, onde o distanciamento cenunciativo se efetua para Julien Gracq através da esco- Iha de um pseudénimo, da retirada da vida parisiense, da publicagio num pequeno editor José Corti), cuja divisa € “Nada de comum”, da entrada nesse timulo literécio, a colecao La Pléiade. Preocupacao de distanciamento que chega até a recusa de deixar reproduzirem sua assinatura Sua preocupagio em nao renunciar a reserva que ‘manifesta desde sempre levou Julien Gracq ¢ nao nos au- torizar a reproduzir sua assinatura na capa da Série que Ihe & consagrada, o que o singulariza com reagdo & nossa pritica ha trinta anos. Um retrato parcis por Jacques De- enne forneceu-nos os tracos dessa presenga/auséncia.” A assinatura imporia a presenga maciga de uma individua- lidade em que s6 deve figurar a inapreensivel “reserva” de um autor por intermédio de quem a Literatura fala 56 (© CONTEXTO DA OBRA LITERARIA Essa reserva que tem de ser incessantemente reafirma- | da 6, ao mesmo tempo, uma ética e a dindmica de uma es- | caita. através de suas obras, 0 autor restabelece indefinida- | mente a distincia que as torna possiveis e que elas tornam | possivel: os indivicuos recolhem-se para criar, mas criando, adquirem os meios de validar e preservar esse recolhimen” to, A esctita ndo é tanto a “expressio" do vivido de uma al- ma que foge dos homens quanto um dos pélos de um deli- cado jogo bic/grafico. O recolhimento nao € tanto um “te- ‘ma" da obra quanto seu foco sempre ativo, alimentado por uma efetuagao que ele estrutura e que o estrutura, O fitho deserdado Nao existe portanto gesto bio/grifico cujo significa- do seja independente das reivindicacées estéticas que fundamentam uma obra Excetuando-se sua viagem de 1841 aos mares ex6ti- cos ¢ aquele périplo mortal de 1866 pela Bélgica, do qual voltaré para

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