You are on page 1of 44
Capitulo doze “As lacunas e as séries: padrées i de historiografia nas “Historias do Teatro noBrasil”* Tinia Brandao A Histéria é filha do tempo, se faz. no tempo, com o tempo ~ mui- tas perguntas podem ser formuladas sobre as condigées de sua elaboragéo. Longe de ser um truismo ou frase de almanaque, tal observagao é ponto de partida fundamental para quem estuda o palco no Brasil. Para o estudioso de Histéria do Teatro, a histéria do teatro brasileiro surge ainda como uma impossibilidadé, pois revela uma clara recusa ao reconhecimento do tem- po, exatamente o que deveria ser a tessitura fundamental de sua trama. A afirmacio de impacto esté fundamentada em duas constatacées ~ 0 fato de ainda nao ter sido elaborada uma obra monumental de estudo da trajetéria da histéria do teatro brasileiro ¢ a constatacao de que hesitaces conceitu- ais fortes pontuam as histérias elaboradas até o momento, marcadas por uma condicao comum limitadora de seu alcance, pois sao fragmentirias, parciais. O esclarecimento, lacénico, vale pouco: algumas definicées preci- sam ser esmiugadas, para que a afirmacao se torne transparente, revele sua inteireza, seu objetivo € possa ser sustentada A primeira definigao é relativa 4 ideia de histéria monumental aqui exposta. Ela seria nao o texto de celebragao de intervengées, nomes € obras, nao seria a listagem geral de efemérides associveis ao teatro brasileiro, nao seria, enfim, uma empresa de aclamagao, mas, sim, a visio de conjunto destes acontecimentos, a abordagem que permitisse a sua visio como refe- réncia cultural consolidada, de interesse para o que se poderia chamar de “espirito” ou alma do pajs. Seria portanto uma espécie de olhar panora- * ute texto em parte sistematiza resultados do projeto de pesquist Hisorignafa do teatro brasileira ~ metodos € séenicas de pesquisa, realizado con bola produtividade em pesquisa do CNPq (1999/2000). 333 Jégica, uma inteligibilidade & arte praticada 7 «. Esta logica, portanto, deveria ser extraida da quer dizet, da trama de linguagem que faz esta histéria mico que concederia uma extensio territorial do pa é objeto ~ atéria mesma de seu ¢ Ha tar [ e tivamente é, Em tais condigées, ‘ oft 1m que o teatro seja 0 que cahistria fae como percurso temporal, nao deriva 0 ria por si, sobreviveria do teatro existiria por si, sc ci asua ica ica da em linha dircta da Historia da sociedade. E a su: condic¢a4o panoram seria sui-generis, pois teria que incorporar uma espessura histérica ao qua- dro, transformado em algo mais do que uma paisagem. A observacéo conduz a uma outra necessidade — a exposicao do con- ceito de tempo que se pretende considerar, para que se possa ter clareza frente 3 ideia de recusa do tempo que estrutura este texto. Tempo, aqui, é, © proprio plasma em que segundo a definigao certeira de Marc Bloch, “(. se banham os fenémenos, e como que o tugar de.sua inteligibilidade”’. O que significa dizer que é um lugar de duracéo e mudanga, continuidade in- guieta, ¢, um pouco mais além, como demonstrou Norbert Elias, também construcdo cultural deliberada?. A partir das ligdes de Norbert Elias, é possivel afirmar que o saber humano resulta de um longo processo de aprendizagem, que no teve um comego na historia da humanidade. Quer dizer, 0 préprio do ser humano € uma dinamica intensa, circular, permanente, segundo a qual todo indivi- duo, por mais genial que possa ser, constrdi o que constréi a partir de um patriménio de saber jé adquirido; este patriménio, por sua vez, 0 individuo contribui para aumentar. Esta operacao envolve mesmo o préprio conhe- cimento do tempo, uma habilidade que convém examinar com um pouco mais de atencao. Ela envolve um percurso de abstragao inédito na historia do homem, diferente da imediatidade que comanda o aprendizado do espaco. Ainda segundo Norbert Elias, é fundamental ressaltar que nao existe © tempo como realidade natural, pura natureza, processo de constatacao. Fora da sociedade humana, 0 tempo € 0 indiferenciado, imensuravel, é 0 fluxo livre do devis. Foran os seres humanos que, diante desta pulsagio ininterrupta, desejaram situar certos fatos ¢ sequéncias de acontecimen- tos. Para tanto, recorreram a uma segunda sequéncia de acontecimentos, | BLOCH, Mare. Inerodupde a Histéria. Lisboa, Publicagbes Europa América, 1965, p30, ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Kio de Janeiro, Jorge Zahat Editor, 1998, pp. 7-32 101-103, 334 ndependente, mas repetitiva, com real arecimento regular de fatos, para pe mas repetitiva, Ps g ni : comparar os dois modelos. Por exemplo - 0 movimento aj ‘ se alternam, foram escolhidos como sequénci Jocalizar fatos da vida social ou individual. Um longo levou ctiacéo de dois companheiros insepardveis do homem contemporanco: 0 religio € o calendatio, Do Renascimento para cé 0 processo cultural de construcao da ideia de tempo aconteceu em um ritmo tio acelerado que muitos tém dificuldade em perceber que 0 calendario é sé uma invencao parente do Sol, as fases da Lua que as instrumentais capazes de processo levou a humana, uma convengao social. Ou uma conquista cultural. Na verdade, 0 que Norbert Elias demonstra é que é preciso um ele- vadissimo grau de abstragéo ¢ uma grande densidade nas relacdes sociais para que se possa chegar ao conceito de tempo que preside a vida do mun- do hoje, em diferentes pontos da Terra, praticamente em todos os cantos da Terra. Estamos diante de um conceito de Tempo que reveste todo o cotidiano das pessoas, dita o ritmo das vidas, como se fosse uma segunda natureza ou a nova natureza dos individuos, vivendo em cidades tao bor- bulhantes que tornam desapercebida a Lua ou mesmo 0 Sol, no caso dos grandes shoppings fechados em si mesmo, justamente o Sol ¢ a Lua que geraram muito do arsenal de invencao deste nosso conceito de Tempo. Vale insistir, portanto, neste aspecto de construcéo social, porque cultural, de um conceito de tempo novo na histéria humana, um conceito que é muito humano, na verdade. Parece anedota, mas é sério — este con- ceito de tempo que escraviza a todos, hoje, esté muito longe da ideia de desumano que o senso comum tenta lhe atribuir, No entanto, ainda que ele deva ser visto como produto humano abso- luto € Jogo uma conquista, é um processo de abstracao Arido. A aridez se faz justamente porque o tempo se impée como uma ordem segunda ou terceira para o tratamento da vida; eu 0 trago para a minha vida, mas ele é exterior, entao ele é regulamentacao e disciplina, quer dizer, autorregulamentagio e autodisciplina, uma negacao que fago, sob inspiragéo social, de meus im- pulsos, afetos, puls6es € quereres automaticos, espontaneos, naturais. Assim, 0 tempo € exterior e atribuido, porém é também aprendido, apreendido ¢ local - falar do tempo em determinada pratica de arte é falar 335 do devir desta arte em sua condicao de fato social, mas fato social re ‘lei idades, portanto uma condi¢ao, irredutivel, ¢ aferrado a multiplas personal Por ee definida pelo pesquisador, multifacetada, Abrange 0 tempo om 8 = © tempo especifico peculiar daquela arte/linguagem € 0 tempo i los sujeitos autorais que fazem essa mesma arte acontecer. Tempo mu ip loe diversificado, logo se pode constatar, Logo, reconhecer 0 tempo seria uma operasao conceitual derivada do reconhecimento da linguagem da arte. A recusa do tempo como fator inaugural da redagao da histéria do teatro brasileiro tem, entéo, um sentido profundo que talvez se possa tradu- zir, a0 final, em quest6es importantes para o pensamento. Por ora, o exame do tema deve ser conduzido em etapas. A primeira ¢ 0 desdobramento do primeiro item — a necesséria falta de uma histéria monumental, associdvel também a muitas variéveis a considerar, impée a indicacao de que sua falta € preenchida com a ocorréncia dominante de historias fragmentérias, A estante de livros de alcance geral, portanto, é timida, so poucos 0s volumes escritos na area de estudos, e a um ponto tal que se poderia brincar: comentar que a recusa ao reconhecimento do tempo acontece ai, entéo, de forma abrupta, pela prépria escasser. de trabalhos. Nestes poucos volumes é bem dificil localizar visoes continuas, consequentes e detalhadas do processo de acontecimento do teatro em nosso pais, no tempo em seu sentido mais amplo, o que se pode definir como um enfoque de longa duera- edo. E esta falta vai mais adiante, extrapola a exigéncia do reconhecimento da presenga do tempo como forca estruturadora e estruturante. Além da Hist6ria, os dois termos restantes, teatro € brasileiro, também merecem atencao, também falam da mesma impossibilidade. Vale uma andlise rapi- da de seus contornos, no interior da discussio Proposta. O primeiro termo é uma pratica artistica cuj encontrou, em nossa tradi identidade peculiar do franco-lusitana, extrema dificuldade de reconhecimento. Com frequéncia reduzido da |i A dramaturgia e a0 universo iteratura, contido no reconhecimento de exigéncias e tradigées das Prdticas textuais, desvinculado da hipétese de reconhecimento de sua materialidade particular, subordinado a um pesado eurocentrismo, o featro em si quase nao tem uma historia nitida em fungao deste redu- Cionismo que, em estudos recentes comecou a ser criticado (Pavis’s De 336 | |

You might also like