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UMA MORFOLOGIA DA HISTORIA: AS FORMAS DA HISTORIA ANTIGA" Norberto Luiz Guarinello~ RESUMO O artigo tem convo objeto a Histéria, enquanto aisdiplina cientfica, ¢ como objetivo definir cs maneiras como os bistoriaderes narram o passado por meio de “formas” que conferem sent io a conteridos desconexos. O artigo analisa, em particular, as formas que operam na chamada “Histéria Antiga”, procedendo a uma desmontagem das pressupostes que dao sentido & disciplina, PALAVRAS-CHAVE: Historia Antiga. Merodologia. Teoria da Histéria. INTRODUGAO Este artigo reine algumas idéias preliminares sobre 0 modo como os historiadores produzem Histéria e, em particular, sobre a historiografia da * Confesincia profeside no St. John's College do Universidade de Oxford, Inglaterra, em 12 de junho de 2003. A teaducao para o portugués ¢ do préprio autor Partes desta pesquisa foram financiadas pela Fapesp @ pelo CNPq. O texto deve miuito as contaibuicdes apsesentadas no debate sucessivo 2 apresentacio, em particular aos Profs, Misiam Griffin, Fabio Favecsani, Fabio Duarte Jols, Carlos Augusto Machado, Oivier Heskier © Maria Prezier * Professor do Departamento de Histésia da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas de Universidacle de So Palo (USP). E-mail: guarinel@usp br POLITEIA Fi ‘Vitesia da Conquista <3 [al] pala 2008 42 Norberto Luig Guarinello Histécia Antiga. Men objetivo é duplo. Primeiro, apresentar algumas idéias muito pacticulares sobre 0 modo como os historiadores pensam o passado para conferir-Ihe sentido e apresentélo a seus leitores. Como uma disciplina cientifica, a Historia produz conhecimento efetivo, mas esse conhecimento também tem limitacdes. Aqui insistirei nas limitagées, mas tendo em mente que limites so inerentes a qualquer tentativa de entender e interpretar o mundo. Em segundo lugar, este artigo ¢ uma tentativa de repensar meu préprio campo de especializacio, a disciplina convencionalmente chamada Histétia Antiga Pretendo examinéla como uma érea particular no campo da ciéncia histérica, ressaltando sua contuibuigio especifica para uma compreensiio mais ampla das sociedades humanas. Mas pensar sobre Histéxia Antiga, como veremos, é também refletir sobre a artificialidade das proptias fronteiras internas que a Histézia Cientifica criou dentzo de si mesma e sobse suas conseqiiéncias para uma compreensio mais global de sociedades Inumanas, A PRATICA DA HISTORIA: TEORIAS, MODELOS E FORMAS Comecemos com uma pergunta bastante ampla: o que é Histéria Cientifica? Qual seu objeto de estudo? Nao é uma pergunta fécil. Em minha perspectiva, o objeto da Historia nao é algo real, no sentido de ser uma coisa, algo que possa ser definido com precisio dentro de claros limites espaciais, cronolégicos e conceituais. A Histézia cientifica, em todos seus campos de especializacio, opera de fato com formas (ou, antes, {(6)tmas), mediante as quais os historiadores tentam dar sentido ao passado, criando uma sensacio de realidade e de completude (ANKERSMIT, 1988). Esta afirmacio tem tons pos-modernistas, sem diivida, mas ndo estou preocupado aqui com o debate sobre © suposto carter retérico ou ficticio da disciplina. Aceito o estatuto cientifico da Histozia e a validez e utilidade de seus produtos.' O problema que desejo investigar so essas “formas” que ha pouco mencionei, pelas quais 0 historiador tenta fazer o passado inteligivel para o presente. O que é uma forms no trabalho de um historiador? Para entender o sentido dado aqui a esta palavra tenho que fazer algumas observacées * Contento-me aqui em transecever as palaveas de Cameron (1989, p, 206) “Atleast some elements in most historical nareatsres can in principle be falsified: it follows then that a bistorian’s relation to some such concepts ab ‘xuth’ must of necessity be diffexent Hom that of, sa, a novelist ox a ktecay cxitic, The sbandouement of thio celation not only brings History in a Dexidesa denial of its own value, but also removes all distinctions between it and other narrative forms” pista x An. Lp ALG ams, pal Uma marfoiegia da Elistinia: as formas da Hlistéria Antiga B preliminates. Primeiramente, ¢ importante ter em mente 0 modo como os histotiadoces produzem e escrevem Histéria. Normalmente, Histétia é pensada como res gestae, ou como narratia rerum gestarum ow seja, © passado como tal, como aconteceu realmente, ou sua reconstrucao ou narrativa por um especialista, um cientista moderno. Porém, os historiadores nio narram ou reconstroem © passado, pela razio simples que 0 passado nos é inacessivel, nio existe mais ¢ nio pode sez reavivado ou recuperado como realmente foi. O tinico acesso que temos ao passado é pelo presente, por objetos, textos ou recordacées de individuos vivos que existem hincet nunce que os historiadores, com seu olhar treinado, identificam como restos de um passado que j4 nfo existe, como sobrevivéncias que podem ser tratadas como documentos. O universo desses vestigios constitui um terceizo sentido para o termo Histézia: o de passado realmente existente hoje. Tris vestigios, contudo (e este ¢ um ponto crucial), nio importa sua quantidade ou qualidade, nio sio 0 proprio passado, mas algo bastante diferente. Nao sao representativos do que acontecen de um modo uniforme ou regular; niio so 0 passado como se reduzido a uma versio pequena de si mesmo. Sfio mais como escassos pontos de luz na escuridio: isolados, desordenados, cadticos, filtrados, irregulares. Permitem-nos falar sobre 0 passado sem jamais vé-lo. Esta possibilidade tem, porém, um custo, porque estes restos caéticos também determinam nossas visdes do passado. Realidades que nao deixaram vestigios, fossem importantes ou nfo, desapareceram completamente, estio fora de alcance, permaneceréo sempre desconhecidas, coisas esquecidas. Mas até mesmo o que sobreviveu s6 nos permite representa: o passado de um modo muito indireto, por miltiplas mediagdes. Estas mediagées sio precisamente o que denominamos “Ciéncia da Histéria”, e as formas sio uma parte decisiva delas. Algumas dessas mediagdes, como teorias ou modelos, sio freqiientemente explicitas, Outras, como as formas, sfio bem menos visiveis? Pensemos um momento sobre essas mediacdes, antes de olhar especificamente para as formas. Sobre 0 que é a Histéria dos historiadores? E uma producio especitica das sociedades modernas, mas também uma parte da memétia coletiva, ou antes, uma parte da producio social da memoria, ¢ muito particular. Seu “The demonstzation could be sepeated from what one is tempeted to call primary evidence, but evidence conveys nothing outside a feamevork.. tis nota bad idea to inspect the foundations once in a wale and prod the framework” (REEVE, 2001, p 246). 44 Norberto Luig Guarinello principal pressuposto é sex uma Ciéncia e, portanto, diferente da ficcio histéxica e de outros produtos da meméxia coletiva. Isso é assim porque, entie outzas coisas, pressupde que haja ordem no passado ou, em outras palavias, que a Histézia (acontecida) é racional, que as sociedades humanas sempre foram organizadas e que seu desenvolvimento segue certos principios (até mesmo se © ptincipio for o puro acaso). Também é cientifica porque considera que os documentos sfio © fundamento de qualquer reconstrugio do passado, a base com a qual se pode confizmar ou negar sealidades e a prova detinitiva de que uma ordem existiu no passado. Essa ordem ¢ fixada por teorias ou modelos de realidade (cuja diferenca nao discutirei aqui). As teotias ¢ os modelos usados por histoziadores sto precisamente pressuposicées da existéncia de uma ozdem, da mesma maneiza que as varias teorias e modelos de sealidade da Fisica (relativ Na Histéri realidade social é mais complexa que a natuteza. E também, é preciso reconhecé- istica, quantica). contudo, os modelos diferem grandemente entre si, porque a lo, porque hé interesses sociais diferentes, e até mesmo contraditétios, na producio cientifica da meméria, e estes interesses mudam com o passar do tempo. Teorias e modelos sio mediagdes. Tém um papel fundamental na pritica da Historia, no modo como os historiadores a esezevem. Estes selecionam fatos entre os vestigios (os documentos), baseando-se em certas teorias da sociedade ¢ da acio humana e em modelos mais especificos da sociedade que querem estudar. Teorias ¢ modelos sio cmuciais; sio modos de encarar os objetos pesquisados, de selecionar fatos pertinentes e pé-los em relacio. Mesmo quando implicitos, teotias e modelos so modos de transformar os vestigios em intespretagdes do passado e de propor seconstrucées especificas da histéxia humana ou de partes dela. Eles relacionam os fatos desconexos que aparecem nos documentos de varios modos, por exemplo, coasiderando-os concomitantes ou colocando-os em relagao de causa ¢ efeito. Se, para um historiador, eventos politicos ou a atitude das elites forem fatoes decisivos na Histézia, ele selecionara informagées dos documentos para extrair eventos relacioné-los, explicando ow interpretando uma realidade passada de modo a que faca sentido. Se confesir, porém, prioridade 4 economia como a dimensio explicativa na estruturacio das sociedades humanas, selecionaza fatos econémicos € os colocar em uma certa oxdem, seja privilegiando as relacdes Uma marfoiegia da Elistinia: as formas da Hlistéria Antiga 6 de propriedade e producio, como o fazem os marxistas, seja attibuindo mais importiincia as relacdes de toca, ao mercado, e assim por diante. Teoria, modelos e documentacio sio assim complementazes e inseparaveis, Isto é mais ou menos consensual. Queto ressaltar outro ponto, Ha uma outza dimensio dentro da pritica da Historia para a qual os historiadores raramente voltam sua atencio. A associacio entre teoria, modelos e documentos niio basta para explicar o trabalho do histotiador e a interpretactio do passado que propée. Aqui entram as formas. Pata definir o que so formas, temos que ix por partes. O passado, ou antes, 0 tempo, pode ser pensado como um fluso continno de eventos infinitos. J4 os vestigios do passado, pelo contritio, so necessariamente descontinuos e desconex s. O passado, como realmente aconteceu, nfo é idades passadas, os historiadores tém que relacionar vestigios que foram produzidos sintetizado por ov: nos documentos. Para narsat, descrever ou explicar res em tempos ¢ lugares diferentes, por agentes sociais diferentes, com propésitos diferentes. Para estabelecer essas relacées, tém que pressupor que fazem parte de uma mesma realidade, que esto dentro de uma mesma tnidade de sentido. E assim que impéem ordem a0 caos da documentacio, assumindo coeréacia ¢ continnidade no que é, por simesmo, incoerente ¢ descontinno. O procedimento basic para relacionar informagées extraidas de documentos no universo incoerente dos vestigios do passado ¢ um processo de generalizacko que cria formas ou, em outras palavras, grandes contextos? A Histéria Cientifica é, assim, um jogo interpretativo entre certos modelos ¢ teorias € certos documentos com base em generalizagoes on contextos — as formas — que sio admitidos ou aceitos como validos pelos esctitores e seus leitores, E tais formas ou contextos sao necessitios porque os documentos sao sempre singulares ¢, do ponto de vista de um historiados, nao tém sentido em si mesmos. Hi witios graus no proceso de generalizacao no trabalho do historiador. Definic um periodo é um deles: os historiadozes assumem que um perfodo especifico tem certas caracteristicas comuns, de modo que documentos produzidos numa mesma “época” podem ser relacionados uns 20s outros, podem ser comparados, podem dialogar entre si. > Sobee a nevessidade das formas, veja-se Marron (1978, p. 118-119). Esse processo de contextualizacio, de aprozimacio de coisas apaentemente distintas, € obea das escolhas do historiador e, por conseguinte, de sua capacidade de “imaginacio” (BLOCH, 1993, p. 159.162). 46 Norberto Luig Guarinello Quanto mais longo © petiodo, mais rico 0 didlogo, mais documentos podem ser postos em relactio. Por conseguinte, um petiodo histéxico confere ou atzibui contemporaneidade a documentos que, rigorosamente, nao sio contempoxineos. Outra forma de generalizacio é nomear ou definir uma sociedade, ou uma cultura, ou ums dzea cultural, de modo que documentos atribuidos & mesma sociedade ou cultura possam ser relacionados entre si. E isto mesmo que os documentos tenham sido produzidos por agentes diferentes, para propésitos diversos e sejam de natureza muito diferente (como, por semplo, objetos arqueologicos e textos). A agzicultuza romana é um caso entre tantos de uma pequena forma ou contexto, que permite aos historiadores textos remanescentes dos escritores conectar diferentes tipos de informaca agricolas romanos, que escreveram em periodos totalmente diferentes e com. propésitos distintos (de Cato, no século IT a.C., a Palidio, no século IV 4.C.); historiadores como Tito Livio, Apiano ou Plutarco; documentos epistolares, como as cartas de Plinio, o jovem; enciclopédias, como a Historia Natural de Plinio, 0 antigo; e uma imensa série de restos arqueolégicos, de Anforas a edificios rurais. Mas, houve mesmo uma agricultura “romana” que nos permita relacionar fontes tao dispares? “Agricultura antiga” seria também uma forma, ainda mais ampla, assim como “economia antiga” representaria uma forma ainda abrangente.*Tais formas fazem parte de qualquer reconstrucio histérica. Até mesmo os Estados- nacionais, que so o nticleo de boa parte da disciplina histérica desde 0 século XIX, sao formas, alids, bastante amplas. As maiores formas sao as que tentam apresentar uma visio de Historia mundial Formas menores ¢ maiores estio intimamente relacionadas. Os contex ‘tos menores si mais ficeis de controlas, porém mais pobres; as formas amaplas sao mais inteligiveis, mas muito mais abitcatias. Nas grandes nazsativas, que tentam dar sentido a grandes periodos da Histéria, tais formas/contestos tendem a se tornarem entidades por si mesmas, quase naturais. Rasamente se pensa nelas, mas € por meio dessas formas que os historiadozes reconstituem fatos e realidades e aplicam suas teorias e modelos de Historia ou de sociedade. “economia antiga” é, precisamente, um dos pélos centszis do debate contemporineo sobre 2 relaco centre contemporaneidade ¢ mundo classico. A bibliografia é vastissima. Um cléssico € Finley (1980). Ve- jam-se, por tiltimo, 2 visio equilibeada de Schiavone (1999) e os artigos ceunidos em Scheidel, Reden (2002). A revista Annales dedicos todo um mimero, em 1995, ao tema de economia antiga (ef ANDREAU etal, 1995) ams, pal Uma marfoiegia da Elistinia: as formas da Hlistéria Antiga 7 Talvez seja intexessante fornecer alguns exemplos. Para evidenciar que a questio da forma nfio diz respeito apenas 4 Histéria Antiga, mas é gezal, utilizemos um exemplo tirado de uma Historia que nos € bem mais préxima, a chamada “Historia do Brasil”. Deixo claro que é um exemplo entze outros quaisques, sem nada de especial. HA uma pequena cidade perto de Sitio Paulo — Santana do Parnaiba — cuja existéncia como povoaciio remonta ao século XVI. De seus registros cartoriais, possuimos uma pequena mas valiosa colecfio de testamentos e inventdzios, em parte publicada, em patte conservada em forma manuscrita no Arquivo Piiblico do Estado de Sao Paulo. Tais documentos cobrem, em sua totalidade, um periodo bastante longo, de modo gezal do século XVI ao XIX. Tal colecio possui, em si mesma, unidade e coeréncia interna. Documenta formas de propriedade da terra, de bens méveis de escravos, relacdes familiares e formas de sociabilidade dessa pequena e circunscrita comunidade ao longo de quatro séculos. Esta colegio de documentos fornece informacées para uma Historia que é bastante inteligfvel e coerente, mas completamente local. Para um entendimento mais amplo, é necessério pér esses documentos em didlogo com ontras colegdes, ow seja, inseri-los em um contexto maior. A estrutura da proptiedade territorial, os tipos de bens produzidos e consumidos, as relacdes, pessoais ¢ familiares aparecem sob uma luz nova se confrontados com documentos da Provincia de Sao Paulo, & qual Santana do Parnafba pertencia Essa ampliacao do didlogo explica certas peculiaridades encontradas nos documentos, como a escassez de moeda cunhada nos periodos mais antigos, a presenca de indios nativos como escravos on a grande quantidade de dividas legadas pelos defiuntos aos herdeizos. Estas sto caracteristicas da colonizacio muito especifica da segito de Sao Paulo, a primeira cidade fondada pelos portugueses no planalto do interior do Brasil. Esta Histézia, no entanto, adquise ainda mais sentido se vista no contexto documental mais amplo da Histézia do Brasil colonial ¢ imperial e, em um nivel ainda mais abstzato, da Histécia da Europa. E possivel, com efeito, confiontar muitos aspectos dos rituals e das concepeées relacionados & morte com aqueles da Europa catélica dos séculos XVI a XVII. As semelhancas so muitas, e as transformacées ao longo do tempo seguem caminhos semelhantes. De certo modo, assim, a colecio de Santana faz com que Parnaiba se tore parte da Histézia da Europa e da colonizacio ¢ expansio do Cristianismo para os trépicos. 48 Norberto Luig Guarinello Mas em que sentido isso € verdade? Empregando contextos mais vastos, entiquecemos nossa compteensiio do passado, damos maior significado a realidades locais ou colecdes documentais, mas também cotremos maiozes riscos, As formas tornam-se mais abstratas e intangiveis. Os periodos de cada forma niio conespondem exatamente uns aos outtos, e as realidades sociais que produzizam os vestigios podem sex muito diferentes no tempo e no espaco (por exemplo, os cemitérios s6 foram intzoduzidos no Brasil em meados do século XIX, enquanto na Euopa datam de cinglienta anos antes). Como disse, esta é um via de nyo dupla. Contestos menozes siio meios paza se construire contextos maiores, ¢ vice-versa. A colecio de Santana do Parnaiba faz parte da Historia do Brasil. Nos ajuda a entender sua Historia e é mais bem compreendida dentro dela. O especialista em Santana do Parnaiba também é uma especialista em Histésia brasileira. Ora, Brasil € agora um Estado-nacional plenamente constituido, mas também é uma forma para se escrever uma Histéria especifica, de um objeto definido. O que é este objeto? A resposta poderia ser talvez todos 0s fatos, acdes € idéias produzidos por pessoas que viveram no espaco territorial que hoje é 0 Brasil. Mas tal raramente é 0 caso. A Histétia brasileita comeca tradicionalmente com a chegada dos enropeus em 1500, ¢ 0 restante do tertit6rio, que hoje é 0 Brasil, s6 adentra a Histéria na exata medida da expansio da colonizacao. A Historia do Brasil ainda é a Historia do Estado ¢ da sua transformacio de colénia em pais independent. A grande maioria dos historiadores brasileiros concorda, hoje, que este éum ponto de vista eurocéntrico ¢ que se deveria comecar com os primeiros habitantes do territério brasileio. Mas que tertitétio? O atual? Como definic os limites espaciais dessa Historia ao longo do tempo? Note-se que o Brasil sé se tornou um Estado-nacional em 1822 e que suas fronteiras atuais s6 se fixaram no principio do século XX. A propria idéia de uma identidade brasileica é bastante recente, um produto consciente do Estado imperial e das elites do século XIX, que criszam ¢ impuseram um idioma unificado e escreveram as > A ecbiteaiedade de focma “Histésia do Brasil” é, sobsetudo, evidente na subdivisio “Brasil colonial”, temo que 2 historiografia contemporinea, sintomaticamente, tende a substitur pelo de “America portuguesa” “O ttrulo que se peefesiu para este volume — Coridiano e vida privada na Amésica portuguesa — no &, pois, apenas uma questio de modéstia ou de prudéncia. E que descjamos, desde logo, patentear nossa preacupacio de cevitar 0 anacronismo subjacente a expresses como Brasil Colénin’, ‘pexiodo colonial da Histéxia do Brasil etc’ Fois nfo podemos fazer a histédia desse petiodo como se 05 protagonistas que a viveram soubessem que 2 Colénia ina se consbitir, no século NIX, num Estado nacional’ (NOVABS, 1997, p 17). Uma marfoiegia da Elistinia: as formas da Hlistéria Antiga 9 ptimeiras versGes de uma Historia nacional. Obviamente, Brasil ¢ um tema de estudo assaz importante, mas é também evidente que se trata de uma forma ptojetada do presente sobre o passado para criar contextos significantes. A mesma intezacio entze formas mais amplas e mais resititas aplica-se 4 Histétia Antiga e podemos pensar em exercicios andlogos. Colegdes coerentes de documentos sio, para a Antigiiidade Classica, bem mais raras, mas nao de todo inexistentes. Uma das mais interessantes é o chamado arquivo de Hier6nimo, uma enorme col cio de papiros escritos em grego que agrupa, ptincipalmente, cartas selativas a uma grande propriedade privada no Egito romano, localizada numa circunscricéo denominada nomo Arsinoita, e datadas do III século 4.C. (entze aprosimadamente 247 e 270). A maioria das caztas refere-se a uma mesma unidade de producio agricola na aldeia de Thealdelphia. Por si s6, esta colecio tem um carter unitario e foi base de um recente e instigante debate.‘ lumina, de modo notavel, varios aspectos da Historia social, agricola e econdmica de ...? Como preencher esses trés pontos? Esta é a chave da questio. Dependendo de quio longe se esteja disposto a it, no curso das generalizagées, a colecio de Hierénimo ilumina a Historia de um tinico proprietirio, ou da aldeia de Thealdelphia, on do nomo de Arsinoe, on do Egito romano no século ITT d.C. ¢ assim por diante. Se posta em didlogo com outros documentos, como a grande colecio de papiros encontrados na localidade de Oxyrtinco, pode ajudar a entender o Egito sob dominacio estrangeira, grega ¢ romana. Ou, em um contesto ainda mais amplo, por exemplo, as formas de agricultura ¢ administracio de propriedades mrais no Impétio romano. Podemos comparar, digamos, as atitudes do administrador da propriedade, um tal de Hermégenes, com informacées que encontramos em outros tipos de fontes. Por exemplo, com Columella e seus raciocinios sobre a producao de vinho, ou com Varrao e seus calculos sobze a lucratividade da ctiacio de pequenos animais, Com uma forma ainda mais ampla, podemos comparar © conjunto de Hierdnimo com outzos azquivos de proptietirios de tetra, como o famoso arquivo de Zeno, que é da mesma regio, mas data do Egito ptolomaico.’ Em um contexto muito vasto, por exemplo, a “Economia antiga”, 0 arquivo de Hiexénimo pode dialogar com uma verdadeiza biblioteca « Sobte o arquivo de Herdnimo, veja-se Reviandson (1996) e Rathbone, (1991) Sobre 0 arquivo de Zeno, vejarse Rostovtzeff (1922) 50 Norberto Luig Guarinello de documentos e assim nos ajudar a pensar um jogo inteiro de semelhancas e difezencas entue passado e presente. Quanto mais vasto o contesto, tanto mais rico, mas, tanto maior sua arbituariedade, tanto maiozes os 1iscos de relacionar coisas nfo relacioniveis. Nao devemos secusar as grandes formas. Nos precisamos delas. Mas devemos ter muito cuidado ao empregé-las ¢ estar plenamente conscientes de sua existéncia ¢ influéncia. Nao podem ser consideradas como puros fatos, elementos concietos da realidade. E impossivel para um historiador entender o passado sem formas. Mas deveriamos estar muito conscientes de sua arbitrariedade, porque elas no sio inocentes ou totalmente inofensivas. Por exemplo, a historia tradicional do Brasil reforcou a identificacio da elite com a Europa e ajudou a apagar as raizes afticanas e indigenas do pais. Ainda hoje, os indios nativos biasileixos nio tém, praticamente, nenhuma Historia. Isto significa que todas as formas produzem, ao mesmo tempo, memézia e esquecimento, visibilidade e invisibilidade. Ese nilo é possi vel passar sem as formas, é necessitio determinar com clareza como e por que foram criadas e quais seus efeitos para nossa compreensio do passado e da historia humana como um todo, Esta consciéncia abre para os historiadores a possibilidade de produzir visdes alternativas, de ctiar ou escrever outros passados. E isto pode ser titil (¢ é mesmo necessétio) numa época de grandes transformacées como a atual. Para tornar a compreensio do passado mais titi para o presente, devemios repensar as formas tradicionais pelas quais ainda pesquisamos, escrevemos e ensinamos Histéria. A Histéria que € produzida em muitas universidades no Brasil e no exterior, ow aque é ensinada nos curriculos escolares de diversos paises, ainda é em grande parte eurocéntrica. Baseia-se em uma concep¢io evolutiva de histéria humana que ainda mantém a Europa no centro dos fatos, aces ¢ idéias mais pettinentes para serem interpretados, compreendidos ¢ nartados Alterar as formas nao é uma tarefa facil. O préprio sistema educacional as divisées de pesquisa tradicionais tendem a se reproduzir por inércia Historiadores s6 pensam nestas grandes formas muito raramente, tomam-nas por dadas, como entidades naturais. As formas influenciam e até mesmo. determinam suas interpretacdes de um modo quase inconsciente, o que é evidente nas narrativas maiores, mas ocorre mesmo nos trabalhos altamente especializados e circunscritos ams, pal Una morfologia da Histéria: as formas da Histéria Antiga ot HISTORIA ANTIGA? Os mesmos processos de producio de meméria ¢ esquecimento e de esteutuzacao do passado por uma forma artificial ¢ arbitrdsia aplicam-se 4 Histéria Antiga. E verdade que ¢um objeto muito mais distante que, digamos, a histésia contempozinea dos Estados-nacionais, mas também € concebida portma projecio do presente no passado, embora de um modo mais complexo. Meu segundo objetivo neste artigo seri examinar 0 modo de producio dessa forma. Como qualquer forma, Histéria Antiga é ttil e arsiscada. Aqui explorarei apenas os tiscos, as incongruéncias ¢ astificialidades, comecando pelo préprio. termo pelo qual nomeamos a disciplina. Por que € antiga? O que significa antigo? E, obviamente, © oposto de recente, moderne, ou contemporineo. Histézia Antiga deveria ser assim a parte mais antiga da Histézia Contemporines, a historia de suas origens, de seus comecos. Define um periodo na Histéria. Mas um periodo de que Histoxia? A idéia da existéncia de uma Historia antiga foi desenvolvida por pensadores do Renascimento (DEMANT, 2000, p. 997). Pressupunha, ao mesmo tempo, uma ruptura e uma recuperacio, religiosa e cultural, entre dois mundos. Uma ruptura que dava um certo sentido a Histéria, como a recuperacio de algo perdido, como a restauracio de um laco que tinha sido rompido durante a assim chamada Histéria do Meio, a Historia Medieval. Deste modo, associava seu mundo contemporineo, a Europa dos séculos XV-XVI, com tm certo passado, Para eles, era a Histéria antiga do seu mundo. Mas é ainda a Histéria antiga de nosso mundo? Muitos manuais contemporineos e curriculos escolares € universitarios ainda a denominam de Histéria do Mundo Antigo. Mas é evidente que nao se trata da Historia antiga do mundo. De fato, a préptia idéia de Histéria Antiga representa uma visio enropéia da Hi européia (MOMMSEN, 1965, p. 153; BENTLEY, 2001). E um ponto de vista muito particular, mas que se apresenta como universal e natural. E uma forma t6tia, um certo modo de ver a Histéria mundial de uma perspectiva ¢,como disse, formas nao sio inocentes. Em escolas ¢ universidades brasileiras, (0 que também é verdade em muitos ontros paises), a Histéria é ensinada como ima sucessio evolutiva que chega ao presente seguindo certos periodos: Pré-Histéri que normalmente é mais geral, ainda que normalmente nfo inchua 52 Norberto Lutz Cuarinello as Américas; depois Historia Antiga; Medieval; Moderna e Contemporinea. $6 existe Histéria na Europa. Até mesmo o Brasil eas Américas $6 so incluidos em programas e cuziculos de Historia depois de sua “descoberta” por europeus, isto é, s6 quando se tornam uma parte da Histéria da Europa. Mas os problemas com esta forma nao se restringem a seu eurocentuismo. Ha outros entraves, mais conceituais. Até mesmo dentro do que podezia ser considezado uma Histéria da Europa, a posicio e 0 significado da Histéria Antiga nfo sfio totalmente claros. E realmente a Histéria antiga da Europa ¢, caso seja, em que sentido especifico? Nao hé, certamente, nenhuma continuidade social ou politica entre o mundo da Historia antiga e a Europa contemporinea. Mas nfo ha nem mesmo continuidade espacial. O Império romano, que constituiu a maior unidade politica dentro do que chamamos Histézia antiga, incluiu éreas que ninguém hoje definiria como européias: 0 norte de Africa, partes do Oriente Médio, talvez a Tucquia. Por ontro lado, no alcancon outras reas que hoje reivindicam ser parte da Europa, como a Riissia, todos os paises europens orientais e a Peninsula escandinava. De um modo curioso, a Histéria Antiga é enrocéntrica, mas nao é em absohuto, a Histézia da Enzopa. Nao é s6 uma projecio da Europa no pasado, é outro tipo de projecio. ‘As incongméncias conceituais da Historia Antiga nao se restringem a0 qe poderiamos chamar de seu contetido ideolégico. Hé outras incoeréncias em seu interior. Hé outras formas dentro da Histésia Antiga. Em muitos paises, como 0 Brasil, Histéria Antiga é ensinada e pesquisada dentro de trés divisdes prineipais: Antigo Oriente Prdsimo (principalmente Egito e Mesopotamia), Grécia e Roma. E deste modo que a Histésia Antiga aparece nos livros didéticos, e assim ¢ estruturada uma grande pazcela da pesquisa académica (ainda que nao toda). Esta divisao tripactite ¢ apresentada ao piiblico em geral na forma de uma sucessao cronolégica, como se a tocha da Histésia, na corsida de revezamento que € 0 progresso da humanidade, tivesse sido transmitida progressivamente de Leste a Oeste. Como se a Histézia se apagasse progressivamente a Leste, para reacender-se a Oeste, a medida que 0 foco da civilizagio se deslocav: 8 Veja-e, por exemple, pare 0 caso inalés, o AL CURRICULUM (1991) pista x An. Lp ALG ams, pal Uma marfoiegia da Elistinia: as formas da Hlistéria Antiga 5B Um segundo problema diz sespeito & diversidade de critézios desta divisio tripartite. Em termos conceituais, ela é bastante incongruente. O Oriente Prosimo é uma particio geografica, definindo um vastissimo espaco terzitorial, mas nfo, necessariamente, tipos de sociedade ou culturas especificas. Nenhuma unidade essencial marca a longuissima Histéria do assim chamado Ouiente Prosimo e sim, muito pelo contuitio, uma grande diversidade de povos, culturas © o1ganizacdes sociais. © ciitério que define a Histézia da Grécia é mais compleso. Afinal de contas, o que dé unidade histéria grega? Nao é a Histézia de um pais especitico ou de um territério, j que “gregos se espalharam por toda a bacia do Mediterrineo e além”. Seria um idioma comum, ou uma cultura comum, ou uma teligiio compartilhada? Mas, recentes estudos mostram que a formacio de uma identidade grega foi um longo processo, que assumiu diferentes sentidos a0 longo dos séculos. Nunca correspondeu a uma sociedade uniforme, a uma mesma cultura ou a um Estado unificado, Além disso, nunca se tornou uma identidade precisa. Atenas e Esparta, para citar 0 exemplos clissicos, eram ambas cidades gregas, mas social e culturalmente bastante diferentes. E 0 que dizer sobre os tessélios, os epirotas, os arcédios, 0s macedénios, os gregos do Mar Negro, 0s gregos sob 0 Império romano? De que trata uma Histéria da Grécia Antiga? Qual é sen objeto especifico, no espaco € no tempo? Quais sto 0s parimetros para se definir uma Histéria da Grécia?? Esta forma, na pritica e tal como empregada cotidianamente, reine alguns parimetros vagamente culturais a um parimetro politico que é claramente dominante. O que é denominado Histéria da Grécia normalmente éapenas a Histésia de algumas cidades-Estados enquanto permaneceram como Estados independentes. Uma Histéria que comeca com Homero vai até Alexandse ou, quando muito, até a conquista somana. Em livros didéticos manuais, tende a ser essencialmente uma Histéria de Atenas e Espasta, precisamente as duas cidades menos tipicas que poderiamos pensar como fazendo parte do mundo grego. A Histéria de Roma apresenta algumas dificuldades especificas. E a Historia de uma cidade ou de um Império? Se for a Historia de uma cidade, * A histosiografis mais recente tem clertado, cada vez mais, para 2 necessidade de se considersr a “identida 6c” da Geécia antiga em seus proprios termos, como uma identidade constraida ao longo de séculos e em. permanente tansformacio, Vejam-se, entre outros, os artigos reunidos em Malkin (2004), 54 Norberto Lui Guarinell por que os histoziadozes privilegiam Roma entte tantas cidades contemporineas que, ao longo de sua historia, foram até mesmo mais potentes ou importantes? Sera por causa de seu destino manifesto de um dia tornar-se centro de um Impétio? Mas deste modo projeta-se, retrospectivamente, o futuro no passado, explica-se 0 passado pelo futuro j4 conhecido. E as outras cidades contemporaneas, por que sio omitidas dessa Histéria ou, quando muito, aparecem como coadjuvantes, como objetos de conquista? Nada acontecia nelas enquanto Roma, por sua propria vontade de poder e incomparivel virtude, acumullava podes? A Historia da cidade de Roma so faz sentido no contexto de um mundo de outras cidades e Impérios. Sua expansio nio se deu mm vacuo. Podemos perfeitamente considerar que seu Império constitain-se nao pela forca de uma vontade particular e tinica na Histéria, mas pelas préprias fraquezas e necessidades estruturais do mundo a seu redor. Mas ainda ha outro problema. De tepente, “Roma” j4 nio significa uma cidade, mas um Império. Ou antes, e de maneira confusa, significa ambos ao mesmo tempo. E mmitas Historias de Roma, acima de tudo as que se centram, na Histéria constitucional ou politica, nio se preocupam com esta ambigitidade.'? Mnuitos livros artigos falam de “sociedade romana”, “cultura romana”, “economia romana” etc, sem sentir qualquer necessidade em especificar se esto falando sobre Roma, a cidade, ou sobre a Italia, on o Império como um todo.!'Na verdade, sob o Império, néo ha uma tinica sociedade ou economia “somanas”, mas uma imensa diversidade de idiomas, costumes, cultucas ¢ sociedades.*A Histézia de Roma tradicional, que é uma Histécia constitucional, cadenciada pela sucessio dos imperadozes, nao dé conta dessa vasta multiplicidade e variedade culturais, das mtltiplas Histésias que podemos identificar em seu intetion Estas sio algumas incongruéncias conceituais nas formas que empregamos para pensar € produzir Histéria Antiga. E possivel mostrar algumas razes para estas incongruéncias, © © caso é pacticulacmente nitido nas historias de viés constitucional, como, para citar um exemplo, em Reafinsb & Toher (159°) **Veamvse, por exemplo, as incongroéacias do influente manual de Gasnser & Salles (1957) ov otto de uma coletanea recente de artigos de Paul Verne (1991) ov a série da gual faz parte 0 volume L’homme romain, disgido por Andrea Giardina (1992) 8 Diversidade da qual a historiografia recente vem, pouco 2 poueo, dando-se conta. Vejam-se, por exem- plo, Lepelley (1998) e os artigas editados por Huskinson (2000) ams, pal Uma marfoiegia da Elistinia: as formas da Hlistéria Antiga Os historiadores da Antigtiidade tém a sua disposigio uma extensa gama de tipos diferentes de fontes: papiros, moedas, vestigios arqueolégicos, textos epignificos. Mas as fontes determinantes, que moldaram a constitui¢io da ptdptia concepedo de uma Histéria Antiga, foram os livros produzidos ao longo de mais de um milénio, principalmente em grego ¢ latim. Tais obras so o produto de uma tradic&o literaria e escolar que denominamos Tradicio Classica (hd poueas tradicées literétias semelhantes no mundo). Como sabemos, essas obras niio foram produzidas num mesmo tempo e lugar. Nao formam o que poderfamos denominar de um mundo literitio contemporineo. Sao, propriamente falando, uma tradico, um longo processo de actimulo e desearte de textos ao longo de séculos (HIGHET, 1949; WILAMOWITZ- MOELLENDORFF, 1982). Trata-se de um magnifico instrumento para 0 pensamento, um estoque para realizacées intelectuais e 0 que podemos considerar como a meméria expandida de diferentes sociedades numa longuissima duracio, Mas o fato é que nfo representa nenhum periodo ou sociedade em particular. E antes a condensacao de todas as sociedades, culturas e séculos que produziram os textos contidos em seu interior. E verdade que a Tradicio Classica tem uma unidade interna, pois os livros recorrem uns aos, outros, estio organizados em géneros especificos, sio a base de uma tradicio que segnimos ainda agora ¢ que alguns chamam de Civilizagio Ocidental. Mas a propria unidade da tradicao representa um petigo para os historiadores. No final século XVITI e durante o século XIX, os historiadores comecaram a produzir Histésia a partir dessa tradicao, empregando ¢ desenvolvendo métodos novos de critica documental para extrait dos textos a sociedade ¢ a cultura que os tinham produzido. As narrativas histéricas das pzéptias fontes exam, ao mesmo tempo, um limite e um guia (AMPOLO, 1997), De qualquer modo, suas informacées tinham que ser investigadas para atender 0 intezesse dos novos historiadores. Deum modo bastante natural, 0s historiadozes do século XIX ordenaram as informacées que encontraram nas fontes, ctiando formas ou contestos para hes dar significado, Contextos que, como vimos, exam capazes de unix e separar documentos e de pé-los em diferentes tipos de dilogo. Um primeizo contexto exa dado pelo idioma das fontes: latim e grego exam pezcebidos como possuindo duas tradic6es relacionadas, mas diferentes. Formavam, assim, a base pata duas Histénias (CLARKE, 1959, p. 99). Mas Histésias de qué? 56 Norberto Lui Guarinell Se tivermos em mente que a disciplina da Historia desenvolveu-se a0 longo do século XIX, em grande parte a servico dos Estados-nacionais emergentes, e sob 0 pano de fundo de seus conflitos, torna-se compreensivel que a politica e, até mesmo, a idéia de “nacio” tenha sido um dos fundamentos das formas criadas naquele momento (HENTSCHKE; MUHLACK, 1972, p. 91-127; PAVAN, 1977, p. 94; AMPOLO, 1997, p. 86). A Histéria da Grécia foi concebida como a Histéria de uma nagio politicamente dividida, cuja unidade eza antes cultural ou, até mesmo, racial (MOMIGLIANO, 1992, p. 459). A Histézia de Roma derivou, em parte, das narrativas das proprias fontes antigas, mas relidas como contando a Histéria de um Estado-nacional expansionista, de um povo com suas virtudes especiais e seu carter particular. A passagem da cidade-Estado para o Império, por outro lado, era descrita (e ainda, muitas vezes, o €) por um Angulo exclusivamente constitucional: a transformacio de um sistema politico republicano em um sistema imperial. Como se a escala da propria Historia nio mudasse! De certo modo, ainda estruturamos nossa disciplina ao redor da idéia de nacio, por mais que hoje isso pareca anacrénico (GOLDHILL, 2000). ‘As duaas outras nocdes que determinaram e ainda influenciam as formas da Historia Antiga foram as de civilizacao e de progresso. Os livros da Tradicio Classica foram considerados produtos de civilizagées diferentes, cada qual com suas prdprias caracteristicas. Oriente Préximo, Grécia e Roma foram assim colocados numa espécie de sncessao, num proceso civilizatério que culminaria na civilizacao ocidental européia. Ainda falamos a sen respeito em termos de “civilizagdes” quando, na sealidade, a idéia de civilizacao é extremamente ambigua. Se servin aos propésitos de legitimar a hegemonia mundial ensopéia no século XIX e em grande parte do XX nao € um conceito muito cientifico. As vezes, é empzegado como sindnimo de cultuza em geral; As vezes, refere-se apenas a uma parte da producao cultural de uma sociedade; outras, é usado para diferenciar povos “primitivos” daqueles “desenvolvidos”. Nao est claro © que lhe da unidade conceitusl: um espizito comum, uma raca, um idioma? De certo modo, civilizacio é um termo igualmente anacronico e excessivamente vago ¢ ideolégico.* Talvez nio precisemos 1¢jeité-lo por completo, desde que © Vejam-se 09 textos ceunidos em Rundell: Mennell (1998), em pacticular os artigos de Lucien Febvee, ore a histéria do termo € a de Norbert Elias, sobre a zelacio entze os concertos de civikzacio e cultura € 2 formacio dos Estados-nacionais. pista x An. Lp ALG Urea morpolegia da Elitiriac as formas da Histéria Antiga 57 o restrinjamos, com mais preciso, a cultwia erudita, esctita, ou seja, a propria tradigio de pensamento, ensino e esctita que produziu a Tzadicio Clissica e da qual a Tradicio Crista, também escrita, representa a continuidade com a qual se construiu uma identidade que chamamos de Civilizacio Ocidental. A Tradicio Classica forma uma unidade real. Mas isso nos apresenta um tiltimo problema. Nio foi o produto de uma tinica cultura ou de uma tinica sociedade, mas de uma grande diversidade de culturas e sociedades ao longo de milénios. Cada um dos textos dessa tradicfio foi produzido em contes stos completamente diferentes, em sociedades diferentes, em momentos ¢ lugares distintos, Nao ha nenhuma sociedade grega unitatia por detrés da tadicio de livros gregos, nem uma sociedade ou uma cultura romana incorporada na tradi¢ao em latim. A relacio entre sociedade e literatura € aqui eXtremamente complexa, acima de tudo porque estamos lidando com uma tradicao de longo prazo. $6 0 Impétio Romano dew uma certa unidade a este mundo, principalmente uma unidade politica, é verdade, mas que progtessivamente tornou-se também, até certo ponto, social e culnural. CONCLUSAO As idéias aqui apresentadas nao pretendem nega: a existéncia ou a importincia de se estudar Historia Antiga. Seu objetivo é desenvolver uma consciéncia mais claza do que fazemos e de como apresentamos 0 passado para nossas audiéncias, leitores, estudantes ou o piiblico geral. O que chamamos Histéria Antiga é ainda um recorte itil para o presente, desde que reconhecamos sua arbitratiedade. Em primeiro Ingar, porque se baseia numa tradi¢io intelectual, que é muito rica em termos humanos. Os textos clissicos so interessantes eme por si mesmos, Vale a pena lé-los: alguns sto verdadeiros tesouros para a humanidade. Em segundo Ingar, a tradi¢io que estudamos e transformamos em Histéria 6, ainda, nossa propria tradic¢ao. Somos parte dela, mesmo no Brasil. A propria Ciéncia é herdeira direta da Tradigio Classica. Por fim, a histéria daquele mundo é uma Histéria interessant unda que nao seja a histéria antiga do mundo. Vale a pena estudé-la, mas creio que deva ser transformada para atender As necessidades do presente. Ela deve libertar-se das formas que se tornaram anacrénicas. 58 Norberto Lui Guarinell Deve, antes de tudo, abandonar suas pretensées a universalidade. Trats- se de uma Histézia particular, especifica. Deve, além disso, ultrapassar as velhas divises em seu interior € romper com a idéia de uma linha de progresso. Algumas tentativas interessantes foram feitas em anos recentes para ver este mundo com olhos diferentes. Curiosament: , duas das mais instigantes tm uma forte influéncia de F, Braudel e I. Wallerstein e de sua capacidade e ambicio de construir vastos objetos histéricos: a determinaciio de diferentes sistemas- mundo no passado (CHASE-DUNN; HALL, 1991; FRANK; GILLS, 1993) eo estudo do Mediterz’ineo como unidade bisica de estudo, mas agora com uma perspectiva eminentemente ecolégica (HORDEN; PURCELL, 2000; SHAW, 2001). Outras maneiras sto possivei: Uma possibilidade, talvez inescapével, é a de conscientemente projetar no passado as preocupacées de nosso presente. Ecomo mostram as tendéncias mais recentes da disciplina, esse “mundo antigo” pode ser pensado como resultante de um longo processo de integracio de povos: cidades, impérios, tribos, que povoaram as margens do Mediterraneo e as terras continentais adjacentes, como uma “micto-globalizacio” regional, que pode nos ajudar a pensar problemas do mundo contemporineo. De certo modo, o Império Romano culmina essa Histéria e representa uum fendmeno de integracio, senio andlogo, ao menos paralelo ao que vivemos, pois se sobrepés as cidades-Estado, ttibos ¢ impérios, da mesma maneira que as forcas do capital hoje se sobrepdem aos Estados-nacionais. As diferencas sio muitas: a unificacdo hoje se da por mecanismos econdmicos e nio politicos, embora a forca militar dos ELIA seja um fator de grande importancia na manutencio do atual sistema internacional. O Império Romano nos faz pensar, ¢ temer, na possibilidade de uma grande integracio mundial, que seja econémica, cultucal ou social, mas que nos retica o espaco de decisio politica que os Estados-nacionais ainda cepresentam. Creio que essa histézia de integracio ainda é capaz de propor questées nmuito pertinentes ao presente, que se vé diante de problemas semelhantes, mesmo que de modo totalmente proptio e diverso. O didlogo entte essas duas expetiéncias histéricas pode ser tico ¢ revelador. A Historia que produzimos, escrevemos ¢ ensinamos, a Historia Antiga, como a chamamos, ainda nos diz xespeito. Uma marfoiegia da Elistinia: as formas da Hlistéria Antiga 59 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AMPOLO, C, Storie Greche. La formazione della moderna stotiogzafia sugli antichi Greci, Trim: Einaudi, 1997. ANDREAU, 50, 5, 1995. ANKERSMIT, F. R. Historical Representation. History and Theory, 27, 3, p. 205-228, 1988. BENTLEY, J. H. Shapes of World History in Twentueth-Century Scholarship. 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WILAMOVITZ-MOELLENDORFF, U. von. History of Classical Scholarship. Ed. with introduction and notes by Hugh Lloyd-Jones. London: Duckworth, 1982 A MORPHOLOGY OF HISTORY: THE FRAMES OF ANCIENT HISTORY ABSTRACT History as a scientific discipline is the objece of this article. Tis aim is to define the ways Distorians narrate the past through budding “frames” that give sense and unity to disconnected information. The an jele analyzes particularly the shapes that are putin operation in the so- called “Ancient History”, revealing rhe prejudices that underlie the disefpline

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