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livro,surgiu do désejo de divulgar possiveis agBes do Psicanalista no campo da Edueagio, mediante intervengGes, Propostas pela professora Ana Lydia Santiago, que se baseiam nna teoria da inibig&o intelectual e na Clinica Pragmética, prdtioa deaplicagio da psicandlise. Tai agdes visam, esseneialmente,a destrincharo sintoma do fracasso escolar ou, maispprecisamente, incidr sobre formas sintomdticas que se manifestam emeriangas durante a trajetéria escolar e resistem a quaisquer pedagdgicas implementadas, a pontode inviabilizay, tas vezes, a prépria escolaridade preciso considera neste trabalho, os psicanalistas como um objeto ndmadeeapsteandlis como uma instalagiio portatil, suscetivel de se deslocar para contextos e, em particular, para as instituigdes!,Os 680s utidos na presente obra demonstram apossiblidade de haver um lugar analitico nas instituigées eseolares, a que, quando ocorre, se designa, de acordo com proposta de Jacques-Alain ler, Lugar Alfa” COO SSW Coe eee ean een Se Cua nite eee ma eee tt eee een eet eee ee cete Cee ee ee ST ae or oe eno etary Assotlacao Mundial de Psicandlise. Coordena i Interdisciptinar de Pesquisa em Psicanalise p COTM CUS a ee TeD OSes onhecimento e incluso social, na inh etc r See eSquisas naBdreas de Histéria da Psi i ete ees WL ONIN 3893 an0 0 jana lydia sant (Sobre alunos que nao aprendem ea intervencao da psicanalis edigao ere eeu Pico mene comer c acne Pecan oen: Bein uiay a ecnet esta publidagio gonstitul macontai Crete ort Crate Gees Rte etre Orrmueemtinee cece Rene catenin peel iyore carat sean ere cea tenets etre een etree anne Pobereecer ure eter um cesieany Pinte agri aes Raquel Martins de 0 QUE ESSE MENINO TEM? Sobre alunos que nao aprendem e a intervencao da psicandlise na escola (0 QUE ESSE MENINO TEM? Sobre alunos que nao aprendem e a intervengao da psicandlise na escola ‘Ana Lydia Santiago Raquel Martins de Assis a “ars courcto iP Nicério ——pguorca no test be Peas ‘As pessoas no percebemn muito bem o que querem fazer quando educam. Tentam, assim mesmo, ter uma pequena ideia, mas raramente refletem sobre ela | Osinal de que, nao obstante, hd alguma coisa capaz de os inguietar, pelo menos de tempos em tempos, 6 que &s vezes ‘80 tomados por alguma coisa de multo particular, que s6 08 analistas para conhecerem bern, isto é, a angistia. Eles sdo tornados pela anglstia quando pensam no que cansiste educar. Contra a angiistia, hd um monte de remédios, em particular certo nlimero de “concepcées do homem”, do | que seja o hommem. sso varia muito, a concepgio que se pode ter do homem, embora ninguém o perceba. I. E disso que se ocupam os analistas, de modo que, ao contrério, i do que se acredita, eles sao muito mais conirontados ao real que 05 préprios cientistas. Eles sé se ocupam disso. S20 forcados a sofré-lo, isto, esticar as costas o tempo todo. Convém para esse fim que estejam excepcionalmente couragados contra a angiistia Jacques Lacan © Relicirio Baigdes SUMARIO. © Ana Lydia Santiago, Raquel Martins Assis Brasil Catalogagdo-na-Fonte | Sindicato Nacional das Edtares de Livro, a) (© que ese menino tent: sobre alunos que no aprenden einervensto da pslandlise na escola Ana Lyla Santago; Raquel Martins Assis. 2 digo - Belo Hovizone: Relictio Edges, 2018 tod p. (Colegio BIP = Bibioeca do Insti de Pscanlise) Inca notes ISBN: 97-85-66786.80-8 1 Pileandlic. 2. Educaio especial L Santiago, Ana Lyla 1. Asis, Raquel Martins 4 DD ssous COU: 58.964 0LEGH0 BP ~ BIRLOTECA DO INSTTUTO OE PSIANALISE DOREFAO Ana ya Sueiago ‘CONSELMO EDITORIAL Anténio Beneti lisa Alvarenga fu. Francisco Paes Barreto Sérgio Lala CCOORDENAGAO EDITORIAL Maira Nassif Passos APA Ana C, Bahla DIAGRAMAGAD Caroline Gischewski ewssko Lucas Morals RELICARIO EDICOES wwwrelicarioedicoes.com contato@relicarioedicoes.com Apresentacao 9 Introdugdo ‘A DESSUPOSICAO DE SABER NA ESCOLA: ALUNO-PROBLEMA E OUTRAS NOMEAGOES 15 ‘Ana Lydia Santiago ALUNO LUNATICO OU AUGUSTO. "TENHO MEDO DO ESCURO 23 ‘Ana Lydia Santiago @ Raquel Martins de Assis Conversacio diagndstica: O que a escola sabe do sintoma de Auguste? 23 LLeitura do sintoma: names e discursos na abordagem do fracasso escolar 27 Entrevista clinica: do sintoma do Qutra ao sintoma do sujeito 31 Nova entrevista clinica: o que se insereve de singular na escrita 35 Intervenc3o pedagégica sobre a defasagem escolar 38 Conversacao devolutiva do estudo de caso: releitura do sintoma Augusto 39 [MENINA IMATURA, INFANTIL OU ARIANE: "BONECA DA MAMAE” (1 Ana Lydia Santiago A tamilia@ o social na explicagao do fracasso escolar 42 ‘A que solucdes pedagégicas recorrer? 43 Entrevista clinica: “saida’ da posicao estatica 45 Intervencao pedagégics: da alfabetizarao ao letramento 48 DEFICIT COGNITIVO E DISTURBIO DE CONDUTA OU ARISLEY: “E SO JUNTAR LETRAS E VER 0 QUE VAI DAR" 1 ‘Ana Lydia Santiago Verses da causa do sintoma na escola 52 Os impasses da crianga: doengas enomes: O enigma do sujeito com o nome préprio: a diferenca captada no real do corpo 57 ML. vu. ABACAXI OU BEATRIZ: ;POSSO SER MUITA COISAY 61 Ana Lydia Santiago e Raquel Martins de Assis Entrevista clinica: a incégita da senualdade na Matemética 62 Intervengéo pedagégica: uma ao indeterminado 64 Antes e depois do ernbargo a inibigdo: a reinsergao na escola 46 DOIDO INTELIGENTE OU BENICIO: "RECUSO 0 QUE ME OFERECES, POIs NAO EISSO” 67 Ana Lydia Santiago Entrevista clinica: falar do sintoma faz despertar 69) Tratamentos para a recusa a copiar 70 Sobre o sintoma apenas o sujeito ensina 74 LUM CASO DE DEFICIENCIA INTELECTUAL OU HELENA: I..J TENHO QUE PENSAR NO GUE VOU ESCREVER?” 77 ‘Ana Lydia Santiago Entrevista clinica: emergéncia de ritornelo 78 Intervengio pedagdgica: na escrita, dissociagao entre pensamento e acie 81 “EDUARDO BRUNO VAI SER DOUTOR?” OU 0 FILHO QUE SE TORNOU UM ENIGMA PARA 0S PAIS 85 ‘Ana Lydia Santiago e Raquel Martins de Assis Entrevista clinica: Médico ou advogado? "Eu gosto mesmo éde caminhdes!” 95 Opai: seu saber e suas questées 87 O ftho erm cena: propostas novas e cancretas 91 Notas 99 APRESENTACAO Este livro surgiu do desejo de divulgar possiveis ages do psicanalista no campo da Educagao, por meio de intervencdes propostas por Ana Lydia Santiago, que se baseiam na teoria da inibigdo intelectual e na pratica de aplicagio da psicanalise designada Clinica Pragmitica!. Tais ages visam, essencialmente, a destrinchar o sintoma do fracasso es- colar ou, mais precisamente, incidir sobre formas sintom: manifestam em criangas e jovens durante a trajet6ria escolar e resis tema quaisquer intervensdes pedagogicas implementadas, a ponto de inviabilizar, muitas vezes, a propria escolaridade. E preciso considerat, neste trabalho, os psicanalistas “como tum objeto nomade e a psicanilise como uma instalagao portal, sus- cetivel de se deslocar para novos contextos e, em particular, para as Instituigdes”, Os casos discutidos na presente obra demonstram a possibilidade de haver um lugar analitico nas instituig6es escolares, a que, quando ocorre, se designa, de acordo com proposta de Jacques- -Alain Miller, Lugar Alfa. © Lugar Alfa nao & um lugar de escuta, mas de respostas. Pela ‘mediacio do psicanalista o falar & toa revela sentidos novos, em que se inclui 0 saber do inconsciente. Um lugar de respostas é, portanto, aquele em que, pelo fala livre, se produz uma mutagao. Por intermédio do psicanalista, “o falar assume a forma de questi ea propria questo, 4 forma de resposta”, uma resposta diferente da que, até entio, era possivel, Pode ser que surja algo novo, no ponto em que, antes, havia ‘um impossivel de se dizer, uma inibigdo, um medo ou qualquer outra resposta sintomética que, para se expressar, engendrou uma barseira ao saber, um fechamento a aprendizagem. Nos casos estudados, evidencia-se que “os efeitos psicanaliticos propriamente ditos se produzem no seio de contextos institucionais, que se ° ‘do importando 0 quanto esses contextos autorizem @ instalacio de ‘um lugar analitico”', Operadores do Lugar Alfa em escolas, os psica~ nalistas tentam provocar, em encontros pontuais com cada sujeito, a emergéncia de um novo saber relativo ao inconsciente, que favorega a reconexo com a realidade social, Nesse contexto, esses profissionais “esto em conexio direta com o social, encarnam eles préprios o social exestabelecem o lago social dos sujeitos que acolhem”®, © foco das agbes sio alunos que, com nove e 10 anos de idade, ainda nfo foram alfabetizados e, por isso, constituem, na pritica, de- safios inveneiveis para os docentes: nao aprendem ou nio retém ensi- ;namentos ~ ou seja, o que, num dia, parece ter sido apreendido, no dia seguinte, ja esta esquecido, Eles nao apresentam lauds médicos nem diagnésticos em que se expliquem suas dificuldades, apesar dos habi- tuais encaminhamentos para avaliagao em servigos de Saiide Piblica € Centros de Atendimento Psicolégico. Ninguém sabe o que eles tém. As vezes, chegam a concluir o Ensino Médio sem aprender nada ou, em algum ponto da trajetdtia, se evadem da escola. Os que persistem geram, no entanto, profunda angustia nos docentes, que se empenham em experimentar métodos, adotar estratégias pedagégicas, tentar de tudo, apesar de jamais conseguirem atingir os resultados esperados. Muitas questées sio levantadas a respeito de alunos que, difi- cilmente ou nunca, avangam no proceso de ensino/aprendizagem: Softem de limitacio orginica ou de transtorno mental? O problema advém da familia de cada um deles, dos professores ou da escola? En- im, a pergunta que persiste & O que esse mentno tem? Aintervengao da psicanalise na escola Osalunos que nio aprendem tornam-se alvo de inquietagées que mo- ilizam politicas piblicas e programas especificos a Educacio Especial, Quanto mais se mostram fechados a aprendizagem, mais consolidam a probabilidade de existéncia de transtornos globais do desenvolvimento ‘ou de possiveis deficiencias intelectuais, Numa Conversacio realizada, previamente, com os gestores da rea da Educagio Especial do mu cipio de Belo Horizonte e do estado de Minas Gerais, destacou-se que ‘omaior obstéculo para a execugio de medidas de inclusio consiste em casos de suposigto de deficiéncia intelectual Em face desse desafio,a Faculdade de Educasio da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), responsive pela formacio de profissionais que, em futuro breve, se vao confrontar com essa realida- de, também foi convocada a apresentar respostas plausiveis para tais problemas, Nos cursos de Graduagdo em Pedagogia e Licenciaturas em geral, 0s estudantes expressam suas inquietudes mais frequentes, «que se resumem a néo se sentirem preparados para lidar com 08 tipos de aluno em foco, Dai formalizar-se uma questio fundamental: Que pesquisas poderiam contribuir para a formagio docente articulada a obsticulos especificos @ atividades de inclusio escolar? Nessa perspectiva, as professoras Samira Zaidan e Cristina Gou- vea ~ respectivamente, Ditetora ¢ Vice-ditetora dessa Faculdade, ges- ‘0 2010-2014 ~ convidaram o Nicleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicandlise ¢ Educacao (Nipse), que j4 funcionava nessa instituigio implementado e coordenado pela professora Ana Lydia Santiago, a direcionar seus projetos de pesquisa/intervengao centrados na invest ‘gnglo clinica de formas de inibicio intelectual e de sintomas na esfera ‘da aprendizagem para o ponto de convergéncia das preocupagées da Educagio Especial e Inclusiva e da formagio docente. Os integrantes do Nipse vem-se responsabilizando, desde 2004, pela realizacio de pesquisas/intervengées em escolas, fundamentadas na pritica da psicandlise aplicada, que remetem a agao de psicanalistas nao se restringem ao enquadramento do consultério, processo clini- co estabelecido entre o analista, o paciente que o procura eo discutso analitico. Como a psicandlise aplicada busca instituir, em escolas, 0 jé referido Lugar Alfa, o trabalho assim direcionado pela coordenadora do Nipse nio visa apenas a constatar sintomas, mas a produzir um encontro pontual do sujeito com o analista, que, nesse contexto, deve se revelar capaz de engendrar arranjos originais e de ser fonte de res- Postas que modifiquem impasses inciais Para conhecer melhor os impasses do campo da Educagio Es- pecial e Inclusiva, Ana Lydia Santiago convida Raquel Martins de As- sis a integrar-se & nova proposta de pesquisa/intervengao e o Nipse fo propés-se, entio, promover Conversagdes com gestores responsiveis pela rea da Educagao Especial na perspectiva da incluso escolar no sistema educacional piblico de Minas Gerais. O objetivo era o de, por essa via, elencar os principais problemas enfrentados pelos educadores cenvolvidos em projetos especificos aessa érea de ensino e que, portanto, deveriam possuir amplo conhecimento da rede de assisténcia especia- lizada articulada 4 Educagio, além de serem responséveis diretos por cuidados na implementagdo das politicas de Educagio Inclusiva no cotidiano das escolas, Ente os impasses mencionados nas Comversagées que se fizeram. necessirias para tanto, destacou-se a grande dificuldade dos educadores em trabalhar com alunos suspeitos de deficiéncias intelectuais ou de transtornos mentais, que se configuram hipéteses explicativas, principal- ‘mente para os casos de alunos sem diagndstico médico ou psicoldgico, que enfrentam importantes obstéculos relacionados & aprendizagem: Diante do limite da aprendizagem, ficamos cegos is potencialidades. 0 ertucador paralisa, a0 certifi presente nos casos de psicose, autismo ¢ outros, sem diagndstico, Os mais dificeis sto os casos de deficiente intelectual, pois a deficiéncia mpde o particular ea pritica pedagégica quer ensinar para todos do _mesmo jeito, escola nfo sabe lidar com o particular se da insuficiéncia para aprender “Aescola nao sabe lidar com o particular” é,entio, a mais relevan- te conclusio dos gestores ouvidos. Na perspectiva dos alunos, pode-se considerar que os casos enigmaticos para os educadores sio justamen- te aqueles em que hé impedimentos dos sujeitos para, no processo de aprendizagem, incluir sua particularidade, em que sobressaem, acima de tudo, o fracasso, 0 sofrimento ea desinsersao social, mesmo quando les se encontram no ambito da escola, Trata-se,talver, de uma forma de sintoma que traduz a prépria resisténcia a inclusio. A propésito, os {gestores perguntam-se: Como dar atengdo as necessidades especificas cada sujeito segundo um modelo educacional elaborado para atingir 2 todos? Em outros termos: Como incluir o particular? a 1 t Nessa pergunta, resume-se 0 desafio das pesquisas de orientagao psicanalltica que, no campo da educagio, comumente, objetivam intervir «em impasses com alunos-problema, assim designados por apresentarem ‘ou obsticulos na aprendizagem ou comportamentos perturbadores, marcados por conotagao de violencia ou de sexualidade. Em algumas situagdes, ambos os fatores se fazem presentes. Definida essa contesta- «io predominante ao saber fazer da psicandlise aplicada, elaborou-se ‘um projeto de pesquisa/intervengio, que foi firmado com a Diretoria de Educagio Especial (Deesp) da Secretaria de Estado de Educagéo de Minas Gerais (Seemg), para estudo de casos de alunos-problema. Isso feito, uma apresentagao da oferta da psicandlise a diretores de escolas, programada pela Deesp, antecedeu a intervengio propria- mente dita, Apenas se tal apresentagdo gerasse uma demanda, 0 discurso analitico poderia comesar a atuar. Para se desenvolver uma pesquisa intervengio em uma escola, é fundamental, pois, que a queixa quanto 4 ocorréncia de determinados sintomas na instituigio parta dos res- pectivos diretores. Séo eles que, inicialmente, podem reconhecer de- terminadas situagdes como indese)iveis, excessivas ou invulneréveis a iniciativas de controle e reditecionamento. Somente quando as medidas pedagégicas disponiveis se esgotam, os recursos educacionais a dispo- siglo dos educadores se revelam inoperantes ou, ainda, os problemas se repetem, uma instituigao permite-se ser atravessada pela psicandlise. Na promogiio de pesquisas/intervengdes, a acdo de psicanalistas acon- tecem em duas esferas: (1) sobre um coletivo ~ de alunos de uma mes- ‘ma sala de aula ou de professores de uma mesma escola -, por meio dda metodologia da Conversagio% ou (2), no Ambito do caso a caso, se 0 sintoma produzido ¢ o de evidente inibigo em aprender, ja que al- gumas dificuldades de aprendizagem, bloqueios intelectuais, dispersio constante, agitagio ou apatia frequentes e falta de ateno, assim como atuagdes das mais diversas ordens ou a perda do desejo de estudar, podem se constituir respostas individuais que veiculam, para além do rocesso educativo, impasses subjetivos, Em tais casos, pela metodo- logia da Entrevista Clinica de Orientagdo Psicanalitica’, os sintomas focados merecem abordagem cuidadosa, visto que a intervengio de Psicanalistas é pontual e de curta duragio, Por outro lado, é possivel 3 acontecer, também, que os sintomas identificados na escola se tra- duzam em sinais diseretos da foraclusdo, em fendmenos clementares infimos ou em desligamentos sucessivos da familia e de tudo aqy que se situa ao redor dessa instituigio — ou seja, as relagdes socias, 0 mundo", Mesmo nestes iltimos casos, acredita-se que a escolarizagio nio precisa ser inviabilizada Em tal contexto, a psicandlise propée-se intervir, ofertando a palavra e promovendo a associagdo livre de saberes inconscientes, a fim de,que possa advir alguma reconciliagio dos sujeitos com seus de- sejos singulares. O desafio da psicandlise em sua aplicagio no campo a educagéo consiste, portanto, em criar um respiradouro no seio do espago institucional, em que a singularidade finalmente se insereva, Em ‘outros termos, os psicanalistas de orientagio lacaniana chamam para sia instigagio resultante do fato de privilegiarem o real dos sintomas ©, com essa referéncia, desconcertarem 0 ambiente institucional deli- itado por normas e préticas simbdlicas consolidadas, para incluirem, de outra forma, o inreconcilidvel do que perturba, pois este constitui, igualmente, 0 mais singular de cada sujeito, Neste livro, apresenta-se uma selegio de casos, frutos de inter- vengies e priticas vivenciadas, em diferentes escolas, por integrantes do Nipse, Embora as Entrevistas Clinicas de Orientagdo Psicanalitica te- inham sido conduzidas por Ana Lydia Santiago, os textos foram escritos ‘@ quatro maos em coautoria com Raquel Martins de Assis, eo trabalho ‘em que se fundamentam foi realizado por muitos colaboradores ~ en- tre 08 qual, psicanalistas membros da Escola Brasileira de Psicanlise (BBP), psicanalistas e pedagogos alunos do curso de Pés-Graduagio em Educagio - Conhecimento e Inclusao Social da FaE/UFMG, bem como estudantes de Graduagio em Psicologia e em Pedagogia da mes- ‘ma Universidade, No estudo de casos, aprende-se com sujeitos diversos 6 que eles ensinam sobre as préprias dificuldades, sobre seus sintomas, ‘No mesmo sentido, pretende-se, coma divulgagao do trabalho desenvolvido em diferentes circunstincias, que @ pragmética da psi- ccanélise ¢ 0s casos ora apresentados possam ressoar na experigncia de cada letor e contribuir para a instituigdo de um lugar vazio, em que 0 particular se inscreva em suas relagdes com o saber, 4 INTRODUGAO A DESSUPOSICAO DE SABER NA ESCOLA: ALUNO-PROBLEMA E OUTRAS NOMEAGOES “Educagao para todos’, ou seja, todas as criangas e adolescentes, sem excegio, devem estar na escola, Atualmente, esse movimento politi- co, cultural e pedagégico é identificado como Educagao Inclusiva e preconiza que todas as pessoas devem ter direito & Educagao, inde- pendentemente de quaisquer caracteristicas pessoais ou sociais que as singularizem', Mais que isso, espera-se que todas sejam acolhidas por instituigoes escolares, tendo sua diversidade reconhecida e respeita- da, Em propostas que se pretendem universais ~ com destaque, entre tras, & da Bducagao Inclusiva ~, é fundamental incluir, no leque de diferencas culturais, tnicas, de crenga ou de género, bem como de de- ficiéncias intelectuais morais ou fisicas ~ que tipificam grupos comu- mente objeto da atengio dos responséveis pela promogao da inclusio ~ a subjetividade, elemento dispare e tinico, que particulariza cada ser falante, Caso contrério, um ideal igualitirio de tal envergadura pode promover segregagio e contribuir para neutralizar, com suas normas, justamente o que singulariza os diversos sujeitos. Oapagamento do que individualiza um sujeito pode gerar efei- tos que interferem, de maneira negativa, nas iniciativas, estratégias e resultados de programas de Educagio Inclusiva. Em sua aplicagio no ‘campo da Educagio, como anteriormente afirmado, a psicandlise ofe- rece contribuigéo sui generis para se abolirem tais problemas: aposta na pelavra, vefculo do saber do inconsciente, para que criangas e jovens incluidos num projeto educacional possam se tornar sujeitos de sua ‘experiencia escolar; Isso apenas & possivel em decorréncia da relagio 5 exclusiva que cada um deles estabelece com 0 mundo e com o saber, bem como com a prépria linguagem e corpo. Geralmente, as criangas e adolescentes representam o tempo Presente ou, como afirma Arendt, a emergéncia do novo. Por isso, sio vistos tanto em decorréncia de seus relacionamentos especificos € de sua propria histéria, quanto através de lentes que lhes imprimem ‘marcas sociaise culturais de determinada época, marcada por utopias ‘especificas. A cada geragdo, 4 medida que incorporam caracteristicas de certo momento da civilizagao ou conforme aderem, por exemplo, as relagdes temporais e espaciais que vivenciam, os sujeitos passam a se distinguir nio s6 pela modernidade, mas também pelas angiistias ue tais modos de ver suscitam, Assim, estilos de linguagem, modos de vida inovadores, moda reinventada, gostos musicais e comporta- Imentos controversos, assim como medos ¢ inquietagdes compartilha- dos, esbosam o que criangas e adolescentes representam como grupo, ‘mas pouco informam sobte o que, particularmente, cada um deles é, Variedades da moda e formas de ser grupais desenham uma imagem que pode gausar estranheza, gerar alienacio ou engessar a diferenga “inca dos diversos sujeitos que insistem em se esculpir em consonan- cia com desejos peculiares. E por meio desse fendmeno de identificagio com o tempo pre- sente que, na percepgao dos adultos, as ameagas contemporiineas véo integrar a personalidade de criangas e adolescentes. Para os mais ve- thos, as novas geragdes sio sempre ameagadoras, pois, “do ponto de vista dos mais novos, o que quer que 0 mundo adulto possa propor de novo € necessariamente mais velho do que eles mesmos”, Assim, por causa do inusitado que as geragdes mais jovens podem represen- tare de sua incrivel capacidade de vir a ser para o mundo, elementos jd perdidos pelos adultos ~ a aceleragio do momento e a agitagio de comportamentos, o individualismo exacerbado, a intolerancia, aindi- ferenga e, mesmo, certo potencial de violéncia e agressividade ~ sio atribuidos, de preferéncia, a criangas e adolescentes, que, por via de consequéncia, se tornam alunos-problema ¢ restam subsumidos sob tal olhar, que Ihes projeta uma ameaga futura do desconhecido, Nio sao escutados, mas apenas falados em fungao do que evidenciam desse 16 ins6lito ameagador: Além disso, & medida que rompe com as tradigdes eideais consolidados em épocas passadas, o nao conhecido étido como algo indesejével, que deve ser controlado e climinado. Estruturalmente, essa ruptura entre geragdes no que concerne a ideais é o que faz com que muitas criangas e jovens sejam rejeitados por sua maneira autén- tica de ser e estar no mundo, Na escola, esse fendmeno acontece sempre que os professores ino conseguem interagit com seus alunos nem entender por que estes nao aprendem, nao se interessam pelos estudos nem prestam atengio nada, parecem estar com “a cabega em outro mundo’, conversam sem parar, se agitam ou introduzem temas diferentes dos propostos na sala de aula, E preciso considerat, no entanto, que a incidéncia do mundo digital em que, hoje, criangase jovens vive promove um curto-ci t0 no acesso ao saber, Antes, 08 adultos ~ professores ou pais ~ impu- nham-se como mediadores do acesso ao saber, que era um objeto a ser buscado no Outro e, para tanto fazia-se necessério seduzir esse Outro, ceder is suas exigéncias ou obedecer a elas. Agora, 0 saber nao é mais do Outro nem se relaciona ao desejo deste, pois esté automaticamente disponivel mediante uma simples demanda formulada ao computador ou a outras méquinas digitais', Nesse contexto, os educadores enfren- tam dificuldades e vivem a nostalgia do tempo passado. Nas cenas de sala de aula em que, de modo geral, nfo figuram alunos ideais - bem comportados, conectados a transmissio mediada pelo mestre, capazes de aprender o que Ihes é ensinado -, abre-se es- ‘Paco para que algum elemento, ainda que indefinido, mas ameagador para os professores e irteconciliével com eles, seja capturado ¢ loca- lizado em corpos que exibem aderegos, em falas nem sempre com- preendidas ou em comportamentos “estranhos” Assim, presente na relacio ensino/aprendizagem e na transmissio do saber, tal elemento, ‘que sempre gera ansiedade, situa-se nesses alunos e o passo seguinte consiste em nomeé-lo. (Os nomes sto diversos e dependem da experiéncia pessoal ¢ profissional dos docentes envolvidos, bem como dos contextos a que as tealidades escolates se circunscrevem, Os educadores nomeiam quando elaboram a probabilidade de transtornos ou sindromes, que parecem 7 traduzir 0 que foi captado como diferente no comportamento de certos alunos; e nomeiam, também, quando pressupdem que, ao néo se en- quadrarem em normas escolares ou ao recusarem atividades pedags- _gicas,tais alunos esto sujeitos a algo que a prépria cultura produz de indesejado no momento atual - em suma, violéncia ou perversio. Em definitivo, trata-se da emergéncia de um real irreconcilidvel que convoca ‘uma localizagio imagindria e uma nomeagdo simbélica, para aplacar 4 angiistia suscitada por aquilo que nao pode ser dominado, no plano pessoal, ou controlado, na relagéo pedagégica, e que, por isso, ameaca fazer fracassar 0 plano mais global do ideal civilizat6rio contemporiineo. #nnas entrelinhas da palavra dos educadores, ao estabelecerem ‘normas para turmas de estudantes, ao formularem propostas ou langa~ em brincadeiras jocosas, que os alunos apreendem mensagens veicu- ladas nesse processo, Se se est no dominio da educagio pliblica, po- dem-se captar criticas que vinculam algumas criangas e adolescentes & desestruturasio de suas familias e & precariedade econdmica, moral ou educacional de seus pais, No dominio do ensino privado, nio é diferente € as censuras associam certos alunos a “filhos de papai’, que néo tém conhecimento pleno da vida como esta é, on a criangas “abandonadas’, cujos pais trabalham demais ou nao se preocupam devidamente com «las, Em face da recorrenteideta de relacdo causal entre fracasso escolar e conflits familiares, ndo é dese estranhar tal ocalizacio de problemas ‘no Ambito da familia, Em ambos os casos, porém, as reprovagdes com- portam uma dessuposicio de saberes concernente a criangas e jovens, ji que nao sfo vistos em sua singularidade, mas como um produto de sua familia ou do ambiente em que se inserem, Bssa maneira de olhar, que cala os sujeitos em foco, pode re- percutir no processo escolar e dar origem a consideragées ~ “Eles no sabem de nada por causa de stas condigbes de vida’; “Eles nao sio capazes’; “Nao tém educagio’ entre outras ~ que restam subentendi- dase acabam traduzindo 0 olhar dos professores e as expectativas que hnutrem em relagao a seus alunos, Esse tipo de avaliagio mina silencio- samente o relacionamento de transmissio de saberes, dando corpo a ‘uma hostilidade latente, Em algumas situagées, tal hostilidade torna- se, na escola, o manancial de que emanam aluagoes diversas ~ mais 8 | i i | | i | ' | frequentemente, agressividade, atos de vandalismo, comportamentos indesejacios ou inadequados ~ de criangas e adolescentes, o que reforsa 4 identificagio deles a “alunos-probleme’ Em alguns casos, o hostil do Outro atinge o plano da subjetivi- dade de criangas ejovens,originando mal-estar em relacio a escola ou fazendo se revelarem sintomas, que se tornam fonte de impedimentos ou, até mesmo, de bloqueios no processo de aprendizagem, Em ou- ros, as atuagbes podem ser caracterizadas como o que a psicanilise designa acting-out ~ ou seja, uma formagao do inconsciente que, ela- borada segundo o modelo do sintoma, encena a questio do sujeito e, a0 mesmo tempo, requer a correspondente interpretacao. O acting-out 4 pois, uma mostragio, que, velada 20 sujeito, se comprova visivel no maximo de sua articulagdo com a causa do desejo', Na escola, estas atuagdes precipitam-se de um momento para outro e no implicam intengao consciente por parte dos alunos que agem de forma néo es. perada, Porém, mediante intervengdes de analista, tendo-se em vista os atos praticados,tais atuagdes podem resultar em rellexdes, que, por sua vez, vao permitir a detecgio daquilo a que visam ou daqueles a que se enderecam, Impde-se, no entanto, considerar que essas atuagdes represen tam o sujeito junto ao Outro simbilico ~ escolar ou social ~ e, por via de consequéncia, acabam sendo submetidas a interpretacdes varias, B importante para o sujeito ter suas atuagdes traduzidas, pois, se elas atingem 0 Outro, este deve ter condigdes de devolver-Ihe a mensa- gem recebida, de forma invertida, Hi, porém, chance de essas inter- pretagdes Ihe serem retornadas com apenas uma carga de conotagdes dominadas por principios morais, angiistias e tendéncias atuais, sem conter qualquer indicagao do priptio ao sujeito, o que deixa obturada ‘a possibilidade de tradugio do particular de seu desejo, Assim sendo, a dimensio sintomatica da atuagdo, ou do acting-out, ésilenciada por ‘nomes consonantes com ameagas ou sintomas sociais contemporineos. Naescola, esses nomes adquirem conotagao de violencia ede aberragio sexual ou, ainda, sinalizam transtornos em voga e patologias frequen- temente divulgados pelos meios de comunicagio, O plano do “eu” é ‘atingido por intermédio dessa nomeagio externa, uma marca estigma~ 19 tizante, uma designagio que, embora indesejada, passa a identificar 0 sujeito, autor do ato em questio. Nos casos relatados neste livro, destaca-se 0 modo como esses ‘nomes, ainda que inoportunos e fonte de desconfortos, sio acolhidos pelos alunos focados ereforgam o sentido das respectivas atuagdes sub- sequentes. Como se vers, quanto mais uma adolescente se defende de ser um “abacaxi!, mais seu desempenho a aproxima dessa nomeacio. ‘Outro aluno, independentemente de comprovagio de seu envolvimento em deferminadas situagoes, € apontado como “Iadrio” a cada ver.que desaparece um brinquedo ou qualquer material escolar de algum cole- 2. A recusa em esctever de outro menino fortalece-Ihe o diagnéstico de “doido’, embora todos reconhegam que ele & dotado de inteligéncia. Em escolas, os psicanalistas devem atentar As nomeagdes que 0 ordenamento da trama social e escolar do Outro simbélico impe a criangas e adolescentes, apesar, muitas vezes, do desconforto aloja- do em determinadas posigdes, sem qualquer vislumbre de “saida’. E 0 ‘que ocorre com um aluno, de nove anos de idade, que, numa conver- sa com um dos pesquisadotes no Nipse, poe em evidéncia seu desejo: “Ex queria tanto ser outra coisa... Mas quem mora aqui onde eu moto ou € visto como bandido, ou como traficante™. A essa manifestagio seguiu-se, na oportunidade, este didlogo: ~ Seu pai ébandido? — Nio, Meu pai nto faz nada, nto trabala...Joga videogame o dia todo. Até bigar coma gente ele briga, para ogar mais Ah, sim? Entao, seu pa é ume ian, = Ba.Maso pai do Wesley, da minha sala, no. O pa dele axis — Ble mora agit — Mora. He tem caro ena casa dele tem antenae tudo, Tem as coi- s45.. Quando eu eresce, vou se axl Considerando-se citcunstinciasjé expostas,éimportante ressaltar quehé um social a se acolher e um social ase rejeitar, Nessa breve con- versa, por exemplo, um passo muito significativo & dado pela crianga na diregao de ela se livrar do peso das nomeagdes a ele impostas pelo SE Outro. As intervengdes de psicanalistas, em Conversagdes orientadas & desconstrugio de nomeagées do Outro escolar - entre elas, “Iunitico’, “imatura’, “infantil’; bem como “deficiéncia intelectu global do desenvolvimento’ “deficit de atengao’,“hiperatividade’, “dis- lexia” e outros transtornos on patologias que, fabricados pelos efeitos do discurso da ciéncia, também sdo ofertados como identificacio -, inscrevem-se no ponto em que uma falha do saber interroga fendmenos associados ao fracasso escolar, Mobilizar esas identificagies constitui 0 desafio do discurso analitico, com vistas a promover uma possivelre- conciliagao do sujeito com o que Ihe é mais intimo e pode estar prestes «ser segregado pelas nomeagdes do Outro escolar, S6 produzem efeito sobre 0 sujeito as nomeagdes que carregam a marca do go70’. No pro- rnunciamento “Rumo ao Pipol 4”, Miller recorre ao sintagma “insergio de gozo"',elaborado por Lacan, a fim de destacar que a reconeiliagio do sujeito com a propria satisfagao ¢ 0 que faz. emergir 0 desejo. Numa via contréria, situam-se as nomeagdes do Outro que se poem servigo da eliminacdo da angustia concretizada diante de tudo ‘o que resiste & norma social, Nesse caso, obtém-se como resposta sin~ tomas que variam bastante em sua forma de manifestagio no corpo abrangem comportamentos que vao da apatia & agitagio, embora a ‘mais importante das consequéncias seja a inviabilizagao da escolarida- de oua exclusio que ocorre no ambito do préprio projeto de inclusio, Suprimir uma desinsereao é uma “safda”inesperada, que se comprova quando se verifica um destocamento para o campo social daquilo que se adquire mediante intervengdes clinicas ou pedagégicas. Em outros tetmos, a insergio ocorre somente se ha transcrigao, no campo do ‘Outro ~ familia ou escola -, de um dizer até entao impossivel. Todos (08 casos relatados nesta obra tém a marca inicial da desinsergao social ‘em escolas e podem gerar, em fungao de encontros com psicanalistas, outras respostas, que se consiumam sob novas formas de insergdo, * “transtorno a SEE caso ALUNO LUNATICO OU AUGUSTO: “TENHO MEDO DO ESCURO” “Tor acho que a crianga eo saber sto duas palavras ute vio muito bem juntas, pots a crianga 6, se podemos dizer, 4 vitima completamente designada do saber” Jacques-Alain Miller Augusto, com 10 anos de idade, esté cursando o quarto ano do Ensino Fundamental, mas ainda nao aprendeu aller. Reconhece algumas letras do alfabeto, mas nao sabe junté-las para formar silabas, escrever pala- ‘ras ou, menos ainda, elaborar frases. A persisténcia dessa dificuldade no processo de alfabetizagio por trés anos consecutivos ¢ 0 insucesso recorrente dos professores em tentar mudar tal situagao interferem na forma como esse aluno é visto na escola, Marcado pelo fracasso, muitos de seus comportamentos passam a ser considerados “estranhos": ora si- nalizam a possibilidade de transtorno mental; ora remetem a problemas ‘riundos do meio familiar ou a outros quaisquer, capazes de explicar a resposta “negativa’ dele em face da oferta da escola, Exatamente em faangio desse tipo de resposta, Augusto é um sintoma para aescola, pois ele poe em evideéncia o que falha com vistas ao propdsito da instituigao. Conversagao diagnésti O que aescola sabe do sintoma de Augusto? Augusto constitui, pois, um impasse para a escola. Como todo aluno problema, muito se fala dele entre pares, durante reunides pedago- Bicas, nos corredores da instituigdo, na hora do lanche dos docentes. Busca-se uma solugdo para 0 caso; varios encaminhamentos sio feitos 2 We nesse sentido, Tal falago vai, no entanto, deixando marcas, fixando estigmas, definindo nomes e modos de relacionamento com a crianga. Para o estudo de casos desse tipo, a primeira investigacio a que a pesquisa/intervengéo de orientagao psicanalitica se dedica consiste em saber a que ou a quem os alunos-problemas se identificam. Nessa perspectiva, no encontro inicial - designado Conversagéo diagndstica =, 0s psicanalistas atém-se ao relato de diretores, coordenadores peda- _g6gicos e professores sobre os sintomas da escola, visando-se a isolar, do disgurso produzido nesse processo/contexto, nomes que condensam ‘o enigma que cada crianga em questo representa. Nessa Conversagéio, a respeito de Augusto, informam que se tra- tava de um menino “Iunético” e “fora do pramo’, caracteristicas que suas atitudes evidenciavam, Uma ver, ele se arrastara pelo chio, o que, para os educadores comprovaria algum comprometimento no plano do desenvolvimento geral da crianga, Noutra oportunidade, discutiu com jum colega por causa do desaparecimento de algum objeto, episédio demonstrativo, para todos, de sta tendéncia a furtos. Antes mesmo da apuragio dos fatos relacionados a este evento, foi-lhe afixada a etique- ta de “ladrac” e, desde entdo, diante de qualquer queixa de sumigo de brinquedo ou perda de material escolar, na escola ou na sala de aula, a responsabilidade recafa sobre 0 menino, Certa ocasio, Augusto deixou cair de sua mochila uma nota de 50 reais, A professora da sua classe, du- vidando de que um morador de favela pudesse portar tamanha quantia, concluiu que se tratava de dinheiro roubado. Assim, mesmo em face da alegacio insistente do aluno de que a tinha ganhado da mae, aprofessora confiscou a nota esolicitou & Coordenagio da escola entrar em contato coma familia do aluno para comunicar 0 acontecido, De fato, Augusto recebera o dinheiro de sua mae. Apés os devidos esclarecimentos, po- 6m, a comprovagao do julgamento equivocado da edueadora nio co- laborou para modificar a fama de “autor de furtos de pequenos objetos” do menino, Manteve-se a pressuposigio de que ele era uma crianga de comportamentos preocupantes na esfera moral, o que era reforgado por outras atitudes dele avaliadas como “sexualidade aflorada’, Que é "sexualidade aflorada’? Indagados sobre essa expressio, 60s professores explicaram; “E ele viver contando vantagens de suas 24 SERRE conquistas sexuais para os colegas e aitmar que dava conta dle ‘comer’ as meninas’, A propésito do exposto, contudo, é preciso ressaltar 0 que se segue: A psicandlise nao é apenas uma questio de escuta, de listening, ela lumma questo de lettura, reading, No campo da linguagem a psicand- lise toma o seu ponto de partida na fungao da palavra, mas ela refere esta escrita, Hd uma distancia entre falar eescrver E esta distancia ‘que a psicanalise explora.’ Assim, na prética de intervengio em espagos sociais como es- colas, diferentemente do que é amplamente divulgado como “escuta’, 4 psicanslise realiza a “leitura” de um sintoma, procedimento nio sé desenvolvido pelo analista, mas também transmitido Aquele que fala de seu mal-estar. Discutindo com educadores, portanto, o psicanalista de orien- tagfo Jacaniana questiona e interroga as certezas que serve para tam- ponar 0 incémodo advindo de fatos que nao se explicam. Qualquer fracasso — entre outros o escolar ~ gera angtstias e convoca justificati- vas. Geralmente, como no caso de Augusto, as explicagdes para o que resiste alfabetizago vio-se construindo a exemplo de “castelos no ar’, parecem grandiosos aos olhos dos educadores, tornam-se, a cada dia, ‘mais consistentes, porém podem desaparecer como “fumaga” frente a uuma pergunta bem elaborada, Ao psicanalista compete tentar desfazer cessas elaboragdes imagindias que impedem os adultos de acolher 0 que 4 infancia e, particularmente, cada crianga Ihe apresentam de inédito. Portanto, desde o primeiro contato com diretores, coordenado- res pedagogicos ¢ professores para uma Conversagio diagndstica sobre casos de alunos dificeis, interessa nao explicar, mas decifrar 0 emara- nhado confuso de discursos e saberes, que, até entio, vinha servindo para justificar o fracasso detectado na instituigio. Antes de tudo, no entanto, é fundamental considerar que “crianga é0 nome que damos 20 sujeito desde que o enviamos para o ensino, sob a forma de educagio. (..] Assim, a erianga & por exceléncia 0 sujeito entregue ao discurso do ‘Mestre pelo viés do saber, quer dizer, através do pedagogo”. 5 A revelia das boas intengdes dos educadores na busca de tornar evidentes as causas do fracasso, as conversas que circulam nas institui- es escolares, bem como as imagens ¢ etiquetas afixadas em determi- nados alunos, as hipdteses de diagndsticos clinicos e outras pressupo- sigdes sociol6gicas e psicolégicas construldas @ respeito de diferentes casos, servem mais para nomeagdes segregedotas que para superagio dos problemas que os fundamentam. Como estudos anteriores indicam, certas nomeagbes ~ “sexualidade aflorada’, “lunético’ “avoado’, “furio~ 50° “agressive, “disléxico’,“sindrémico, com transtorno” ~ pesam nas costas de algumas eriangas como tijolos colocados em sua mochila e clas nio tém chance de se desfazer, sozinhas, de tal peso. Alunos que nao aprendem ou nao se desenvolvem no ritmo esperado no processo de ensino/aprendizagem podem, &s vezes, carregar o peso desse tipo de nomeagio por mais tempo que o de sua escolaridade. Os r6tulos segregam, porque reduzem os sujeitos a saberes que dominam, com- primem e manipulam o gozo daqueles que designados “criancas” Tor- znam-se identificagoes que favorecem exclusdo e geram mal-estar no apenas para os alunos e seus familiares, mas também para alguns do- centes, que se veem As voltas com certa impoténcia na tarefa de ensinar: ‘Ao explicarem a “sexualidade aflorada’ atribuida a Augusto, os ceducadores fazem ressaltarirrefutavel incoeréncia entre causa eefeito ~ mais precisamente, entre uma suspeita de sexualidade desviante, como causa, ea comprovagio de fracasso escolar, como efeito. Como se sabe, qualquer crianga, depois de certa idade, pode enunciar a colegas con- quistas na esfera da sexualidade para afirmar masculinidade, virilidade ~ ou seja, sua poténcia filica, Esse tipo de enunciado é comparivel ao de um menino que desafia outro para uma corrida, com o objetivo de, zo final, se declarar vencedor. Entretanto,diante do enigma de fracasso, até as sutilezas das preocupagoes de meninos e meninas, que o préprio desenvolvimento impde, se tornam suscetivels de receber conotagies de anormalidade ou de patologia no ambito do comportamento. Em face disso, pode-se precisar que, no caso em foco, ‘vengio do psicanalista visou a mobilizar as identificagées manifestas de “sexualidade aflorada’, “fora do prumo” ou “lundtico” Apenas dessa forma foi possivel esvaziar a mochila de Augusto, abrir um vazio em 26 r | que algo do sujeito ~ algo singular e criativo, que, inicialmente, na es- cola, s6 pode aparecer sob a forma de sintoma de nao aprendizagem «= tivesse chance de emergir. Leitura do sintoma: nomes e discursos na abordagem do fracasso escolar (0 psicanalistasolicitado a investigar casos de alunos-problemas é bem acolhido na escola, assim como suas intervengdes sao, normalmente, bem aceitas, Entretanto é preciso considerar que, para os educadotes, rio é tarefa facil rever certezas e demolir identificagdes que, no curso dos anos, em fungao da convivéncia com tais alunos, se foram conso- lidando, Pesquisas/intervengoes tém demonstrado que, entre as ideias ais dificeis de remover, se destaca @ possibilidade da existéncia de comprometimentos mentais ou neuronais hereditatios, envolvidos em sittuagdes de no aprendizagem. No caso em foco, uma consideracio dos professores corroborava essa ideia: “A mae de Augusto éinteligente, ‘mas, na familia, outras pessoas ja safram da escola sem aprender a ler’ ‘Além dos pressupostos biol6gicos e hereditarios, outra expli- cagio recorrente para as dificuldades de aprendizagem era a da “falta de estrutura familiar”, Apés a intervengao do psicanalista voltada & “sexualidade aflorada” de Augusto, no momento mesmo da conclusio da Conversagio promovida, foram formuladas novas suspeitas sobre a conduta moral de seus familiares: “Eles mentem muito”; “A mae do aluno, depois de sua separacio, ocupa o filho com as tarefas domésti- case sai para namorar”; “Existe algo ai que a gente desconhece!” Esta ltima exclamagio conclusiva aponta para duas causas anteriormente mencionadas: “desestrutura familiar” e uma suposta heranga de “de- ficiéncia intelectual’, Na leitura de sintomas, um segundo passo consiste no levanta- ‘mento de dados registrados nos documentos escolares dos alunos-pro- blemas: ficha de matricula, relat6rios pedagégicos, laudos diagndsticos € de tratamentos efetivados, entre outros. No que concerne ao caso em estudo, pode-se tragar 0 seguinte hist6rico: a verificagao de que Augusto nio aprende no mesmo rittno ” dos colegas aconteceu nos primeiros meses de frequéncia & escola, ‘quando ele gstava com quase seis anos completos de idade. Antes, fre- ‘quentou por dois anos a Educacao Infantil em uma creche. No segundo semestre letivo do mesmo ano escolar, pata favorecer seu processo de alfabetizacao, 0 menino foi convidado a acompanhar, no contraturno escolar, aulas de reforgo, sob atengio individualizada, Logo depois, também foi-lhe indicado participar de outras atividades de alfabetiza- 0 na “Sala de Recursos” da instituigéo, que dispée de material peda- g6gico ¢ hidico apropriado para priticas educacionais especializadas. Nesse espago, uma eduicadora ~ contratada como professora de apoio = €encatregada do acompanhamento de alunos sobre os quais recaem suspeitas de deficiéncia intelectual. No segundo ano de Augusto na mesma escola, as dificuldades iniciais associadas & alfabetizacio persistiram. Ble permaneceu em horatio integral, acompanhado pela mesma professora de apoio, du- rante os dois semestres letivos, No Relatério Anual concernente a esse processo, notificou-se: Ansiedade na fla, dficuldade para se comunicar, embora nio se ob- serve gagueira. Aprendizagem lente: reconhece as leiras do alfabeto, algumas slabase Iépalavras simples. A maior difculdade é no guar- dar as letrinhas [no momento da escrta. Registra o préprio nome e conhece niimeros até 0 9, Nao obedece is regras da escola, Em decorréncia das observagies desse Relatério, solicitou-se & familia do menino procurar um atendimento fonoaudiologico. Augusto cursava, entéo, o terceiro ano do Ensino Fundamental. Seu insucesso na alfabetizacio continuava a gerar incbmodose propostas de solugio por parte dos educadores da instituicéo, Uma delas chama 4 atengao, pois, na opiniéo dos pesquisadores, escamoteava dados do fracasso escolar e, por isso, podia tornar-se bastante desorganizadora para o aluno, que precisava se situar na escola e no préprio processo de ‘ensino/aprendizagem: incluido nominalmente numa turma do terceiro ano, ele assistia a aulas em outra sala, onde se agrupavam alunos que cestavam se iniciando na alfabetizaco. No quarto ano, mais uma vez, 28 sem se levar em conta a idade dele e independentemente de aprovacio ou retengdo, Augusto foi relacionado numa turma, enquanto continu- ava a frequentar aulas em outra classe, de criancas mais novas ou que, como ele préprio, comprovavam impasses para aprender, Na época, em relatério especifico, o especialista em fonoaudiolo- gia consultado pela mde de Augusto apontou “alteragdes da linguagem oral, troca e distorgio de fonemas, conhecimento de grafemas, sem conseguir registrd-los Tal avaliagdo, até esse ponto, ia a0 encontro do “observado pela professora de apoio, salvo no tocante ao comportamento: diferentemente do que acontecta na escola, nas sessdes com o fonoau- didlogo, o menino respeitava as regras, comprovava conduta exemplar ‘endo demonstrava embaragos na realiza¢ao de atividades lidicas ‘Com base neste relatério, estabeleceu-se importante contradi- ‘glo entre diferentes discursos sobre Augusto. O menino de comporta- mento adequado na relagdo com o profissional de fonoaudiologia era ‘© mesmo que, na escola, se revelava indisciplinado, se arrastava pelo cho e parecia “lundtico’ Contradigoes como essa permitem questionaro que umacrianga, em situagio de fracasso escolar, passa a representar para seus profes- sores. O enigma do insucesso na aprendizagem convoca explicagbes médicas, psicoldgicas e saberes de diversas éreas, Nesse apelo ao saber 20 discurso de outras disciplinas, o conhecimento que os educadores {tém ¢ elaboram em préticas aperfeigoadas em processos de aprendi ‘gem fica relegado a segundo plano, Ainda nessa via, 0 aluno em foco omega a ser visto como possivel portador de déficit de inteligencia, caréncia cultural ou desvio associado & situacio socioecondmica de sua familia, Nesse contexto, a intervengao do psicanalista visa a evi- denciar discrepancias entre hipdteses e diagnésticos formulados sobre 6 fracasso da crianga e pode ser considerada bem-sucedida quando produz, como efeito, um “vazio” ~ ou seja, a suspensio das certezas, dos saberes rigidos constituidos e a criagdo de espago para que novo olhar possa se instituir ‘No curso dos anos, pesquisas/intervengdes desenvolvidas pelo ‘Nipse junto a criangas que, como Augusto, frequentam regularmentea 29 escola por mais de trés anos ¢ ainda ndo se abriram alfabetizagio tém possibilitado observar uma tendéncia dos educadores em reafirmar a cexisténcia de deficits em criangas que nao aprendem, Assim, muitas vveres, os laudos e diagndsticos de médicos e especialistas da rea da Saiide e de outras afins vem ajudando a corroborar essa predisposigao. Na escola, termos empregados nesses documentos sio tomados como verdade cientifica, que comprova a presungio de impossibilidade de algumas criangas aprenderem e, consequentemente, justifica a inacei- ‘vel impoténcia dos docentes para ensinar. Quando, ressalte-se, leram o relatério do fonoaudislogo, em vez de formular perguntas sobre o contraditério no plano do comporta- mento de Augusto, os professores ativeram-se & indicagio de “alteragies da linguagem oral, roca e distorgio de fonemas” Cumpria-se, assim, a predigfo “oracular”: problemas na fala interferem no aprendizado da escrita, Essa consideragio servia para desangustié-los e, a partir disso, ‘muitos deles deixavam de se sentir responsaveis pelo processo do aluno de aquisi area da Saiide ~ mais especificamente da Satide Mental ~ mediagdes aptas para aadaptagio da crianga com vistas a solucionar os problemas de aprendizagem desta’ Se, pois, as certezas tivessem se movimentado e “vazio” se produzido, os professores conseguirlam colocar-se como pesquisado- res na investigacio dos impasses de Augusto na escola. E questiona- iam: “Vejam: esse menino comporta-se muito bem quando nio esté na escolal Entio, 0 que serd que acontece aqui?” Ou ainda: “Augusto consegue estabelecer um bom contato com 0 fono. Por que, com seus professores, ele & diferente?” Como, na ocs 10, 0 parecer do especialista contribufa para garantir a verdade da hipétese de déficitconferida a Augusto, passou despercebido a todos os educadores que as poucas informagoes pre- sentes no relatdrio do fonoaudislogo sobre as dificuldades verificadas na fala, na leitura e na escrita da crianga jé tinham sido avaliadas na escola, Por isso, nesse momento, termos como “alteragoes" e “distor- es” conferiam "cientificidade” definicdo do problema de Augusto, Por via de consequéncia, apoiada nos dados do referido relat6rio eem 30 r tum curso de formagao continuada, a professora da classe de Augusto chegou a este I: “Jé sei o que ele tem. F dislexia’ ‘Na continuidade da empreitada para explicaras dificuldades do ‘menino também no ambito de outras disciplinas, os demais educadores tentaram verficara probabilidade de “deficiéncia intelectual” Sugeriram, enti, 4 mie dele procurar uma Unidade de Satide para uma avaliagio psicolégica da crianga, No consequente laudo do psicélogo, também arquivado na Secretaria da escola, relata-se: “Apresenta problemas de ‘comportamento e atraso escolar”, Essas constatagdes nao implicaram, porém, nada de novo; etam semelhantes as apontadas, antes do enca- ‘minhamento do aluno a atendimento especial. O que, ao contrario, « anilise dos pesquisadores do Nipse destacou neste iltimo documento, ‘como um dado essencial para o esclarecimento do caso em discussio, foio parecer desfavoravel ao pressuposto de “deficiéncia intelectual” — nas palavras do profissional:“Auséncia de transtorno mental grave, que justifique tratamento”, ( impacto desse laudo sobre a mae de Augusto implicou con sequéncias significativas para a crianga: “Jé que ele nio tem nada, nio precisa de tratamento, $6 pode ser preguica!” Desde entao, sempre que recebia alguma notificagio da escola ~ de dever incompleto ou com- portamento inadequado do filho ~, ela passou a bater nele, Por sua ve7, os profissionais da escola foram igualmente impac- tados pelo mesmo laudo, porém de forma diversa:jé que o aluno que no aprendia nio apresentava deficiéncia intelectual, 96 podia explicar- se, entio, por problemas familiares, Em decorréncia dessa conclusio, todas as justificativas para o fracasso de Augusto foram associadas, de ‘maneira determinante, a condigdes sociais e econdmicas da sua familia a sabidos conflitos interpessoais entre seus genitores, Entrevista clinica: do sintoma do Outro ao sintoma do sujeite "O que esse menino tem?” E a prépria crianga em situagao de fracasso que pode esclarecer sobre seu sintoma, que se manifesta como dificul- dade de aprenclizagem. Cada crianga confrontada com 0 aprendizado da leitura e da escrita produz uma resposta singular. A alfabetizagéo a ~ 1um dos projetos integradores da civilizagao que, consensualmente, eve atingir todos os individuos -, nfo se resume apenas daquisigdo do cédigo da lingua escrita e das habilidades de ler e escrever. Tampouco se restringe & incorporagio mecanica dessas habilidades. A propdsito, far-se necessétio considerar nao s6 0 ato de ler, mas também a capacida- de de interpretar, compreender e se apropriar de novos conhecimentos. Levando-se em conta varios aspectos do desenvolvimento hu- mano, estabelecen-se, em algum momento, a faixa etiria mais indicada para a introdugio da crianga no processo de alfabetizagio. Por outro Jado, impds-se atentar a fungdo e a0 uso dessa aquisi¢do para cada su- jeito. Uma menina de seis anos, por exemplo, expressa sua urgéncia em escrever utilizando letras cursivas, dizendo & mie que queria aprender, ‘© quanto antes, “esta coisa dos adultos” Tal aspecto concerne apenas um desejo singular dessa crianga e, nas circunstincias descritas, de- termina algo exclusivamente relacionado A escrita. (0 processo de ensino/aprendizagem em massa ndo garante & todos a alfabetizagao plena no mesmo tempo e da mesma forma, Hé sempre uma maioria que cede a ele de modo impar e os que restam refratirios a tal processo, s vezes durante toda a vida, Na apropriagio de cédigos simbélicos, revela-se algo tinico, Mesmo que o cédigo uti- lizado sirva & comunicagio e & socializagdo, ninguém faz uso dele da ‘mesma maneita ~ ou seja, pessoa alguma fala, escreve ou interpreta ‘sem reproduzit, por seus atos, o impacto da linguagem sobre o prd- prio corpo falante, Entre os diferentes usos possiveis, a leitura pode se constituir uma abertura ao mundo - refiigio para uns; tormento para outros. A escrita, por sua vez, caracteriza-se tanto como esforgo quanto como solucéo, ‘Augusto é convidado para uma Entrevista Clinica de Orienta- «0 Psicanalitica (ECOP), que tem como ponto de partida interrogar co sujeito sobre o sintoma que ele representa para a escola, Apés breve aptesentacdo do entrevistador e do trabalho da pesquisa/intervengio pretendida, pergunta-se o que ele pode dizer sobre seu problema com telagdo & aprendizagem. Ele responde: “Meu nome comega com ‘A”, ‘Omenino mostra, em seguida, o que jé tinha aprendido na esco- 1h, Diferentemente do que fora avaliado antes, ele comprova conhecet 3 as letras e as silabas de seu nome. Na continuidade da conversa, in forma corretamente o ano do Ensino Fundamental que esté cursando ‘e apresenta informagdes completas e precisas sobre seus genitores, as profissdes deles e o restante da prole de que faz parte. Depois acres- ccenta: “Meus pais sio separados”. Olhando para o papel e os apis de cor em cima da mesa, Augus- to pede para fazer um desenho, Esbosa, ent, a figura de sua mie, a dele proprio ea de um irmao, bem como, ainda, 0 sol, algumas nuvens, ‘uma flor, uma borboleta, uma drvore e uma joaninha, ) ; 8 4 hh © entrevistador, explorando esse desenho, aponta para a boca aberta do irmio dele, de doze anos de idade, e pergunta a Augusto: — Oqueeele esta dizendo? — Para minha mie ir para o servigo. — Por que ele precisa dizer isso? — Minha mie demora para acordar. — Por que voce acha que isso acontece? © menino explica a situacio e, apds um breve intervalo de si léncio complementa: “A noite, tenho medo do escuro. A rua € muito escura, Tenho medo de morrer’ Nesse ponto, nfo se esté mais no registro do sintoma que a crianga constitui para a escola, mas no registro do sintoma do préprio sujeit. 3 Entdo, a conversa prossegue focada no medo do menino, que esclarece: — Tem uns caras, que mata pessoas. = Que tipo de caras sto esses? — Bandidos...Um dia, um bandido entrou na casa de minha avé ¢ roubou o dinhelro da passagem dentro da ole dela, ~ Por que alguém te materia? = Meu tio roubou abolsa de uma mulher e foi pres. = Que voce acha disso? Augusto responde, com uma interjeigdo no compreensivel. Es- timulado a se fazer entender, ele repete a palavra virias vezes, apesar da dificuldade evidente na promiincia, e, depois, recorre a explicagdes. Finalmente, consegue expressar a expressio desejada: “Um adulto!” O tio adulto, autor do roubo mencionado pelo menino, mora atualmente com o pai de Augusto, de quem este sente muita fata des- dea separacio do casal, Sua mae néo permite visitas regulamentadas. ‘No final dessa primeira entrevista, ressalta-se que a crianga nao precisa arecer com o tio para estar perto do seu pai. Sugere-se, ainda, que ele converse com a mae a respeito e que, posteriormente, caso ainda se fizesse necessirio, os pesquisadores poderiam interceder a favor dele, a fim de favorecer sua convivéncia com o pai. Nessa oportunidade, 0 menino declara: “Tenho saudade do meu pai’. Como se pode observar no discurso da crianga, 0 significante “ladrao” surge sinalizando aquele que esti ao lado do pai, Estar junto 0 pai nfo ¢ justamente o que deseja Augusto? E, na escola, ele jé nio esti identificado a “Iadrao’, mesmo que por furtos suspeitos e no comprovados? Como a intervengio em andamento objetiva garantir 40 menino a possibilidade de realizar seus anseios de maneira diferente, todo o empenho se concentra no sentido de que ele possa se separat dessa nomeagio. O efeito vai-se verificar, pouco tempo depois, pelo completo desaparecimento de tal identificagao no ambito da escola. Nova entrevista clinica: 0 que se inscreve de singular na escrita Uma semana depois, chamado para uma segunda ECOP, Augusto consente em comparecer, nas entra na sala com cara de choro. Resga- tando-se 0 ponto conclusivo da entrevista anterior é-Ihe perguntado se ele conversou com a mie sobre as vistas ao pai. Ele diz que nio e declara que precisava de ajuda para fazer isso. Ao longo da conversa que se segue, retomam-se as dficuldades de aprendizagem do menino, Sugere-se, a propésito, que ele escreva cesta frase: “A bola caiu na rua’, Ele registra algumas letras, tentando formar palavras, e, depois, preenche os intervalos com outras letras, Pode-se notar que ele elege as consoantes de seu: nome para cobrir os espagos vagos¢, se nio sabe que letra usar, também recorre as mesmas

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