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SIMONE DE BEAUVOIR A VELHICE I. A Realidade Incébmoda Tradugaéo de Hetoysa ve Lima Dantas Capa de MarIANNE PERETTI DIFUSAO EUROPEIA DO LIVRO Rua Bento Freitas, 362 Rua Marqués de Itu, 79 SKO PAULO PREAMBULO Falei até agora da velhice como se esta palavra encer- rasse uma realidade bem definida. Na verdade, quando se trata de nossa espécie, nao é facil delimit4-la. E& um fendmeno bioldgico: o organismo do homem idoso apresenta certas singularidades. Acarreta conseqiiéncias_psicoldgicas: determinadas condutas, com justa razdo, sio_consideradas tipicas da idade avancada. Tem uma dimensao existencial como todas as situagdes humanas: modifica a relagio do homem no tempo e, portanto, seu relacionamento com o mundo e com sua propria histéria. Por outro lado, o homem nunca vive em estado natural: se estatuto Ihe é impésto tanto na velhice como em tédas as idades, pela sociedade a que pertence. A complexidade da questio é devida & estreita interdependéncia désses pontos de vista. Sabe-se, hoje em dia, que considerar isoladamente os dados fisiolégi- cos e os fatos psicoldgicos constitui uma abstragao: éles so interdependentes. Veremos que, na velhice, esta relacdo 6 particularmente evidente: ¢ ela, 0 dominio por exceléncia do psicossomético. Todavia, 0 que denominamos vida psi- quica de um individuo sé pode ser compreendido & luz de sua situaco existencial; também esta, portanto, tem reper- cussdes no organismo e vice-versa: 0 relacionamento com 0 tempo é sentido de maneira diferente, segundo esteja 0 corpo. mais ou menos alquebrado. Finalmente, a_sociedade determina o lugar e o papel do velho, levando em conta suas idiosincrasias individuais: sua impoténcia, sua experiéncia; reciprocamente, o individuo é condicionado pela atitude pratica e ideolégica da socie- dade a seu respeito. De modo que, uma descrigao analitica dos diversos aspectos da velhice nfo pode ser suficiente: Be 2 cada um déles reage sdbre todos os outros & por éles afe- tado. E no movimento indefinido desta circularidade que temos de apreendé-la. £ por éste motivo que um estudo sdbre a velhice deve procurar ser exaustivo. Sendo meu objetivo essencial focalizar © que 6 hoje, no seio de nossa sociedade, o destino das pes- soas idosas, pode parecer estranho que eu dedique tantas pagifias & condicéo que lhes é imposta nas assim chamadas- comunidades primitivas, assim como aquela em que se viram” inseridas nas diferentes fases da histéria humana. Todavia, muito embora seja a velhice, na sua qualidade de destino bio- légico, uma realidade trans-histérica, ainda assim subsiste o fato de que éste destino é vivido dé maneira_varidvel, segun- \-d0_o contexto_social. Inversamente, o sentido ou o contra- senso que reveste a velhice no seio de uma sociedade, coloca téda esta sociedade em questéo, visto que, através dela, se desvenda o sentido ou o contra-senso de téda a vida anterior. A fim de poder julgar a nossa, torna-se neces- sdtia comparar as solugdes por ela escolhidas com as que foram adotadas por outras coletividades, através do tempo e do espaco. Esta comparacio tornard possivel apreender os aspectos inelutaveis da condicéo do velho, descobrir em que medida e por que prego seria possivel paliar as difi- culdades e qual é, por conseguinte, a parte de responsabili- dade que cabe ao sistema em que vivemos, com relacio aos velhos. Téda situacdo humana pode ser encarada em exteriori- dade — tal como se apresenta nos demais — ou em interio- ridade, na proporcio em que o sujeito a assume, ultrapas- sando-a. Para os demais, o velho constitui objeto de um conhecimento; para si mesmo éle possui de seu préprio es- tado, uma experiéncia vivida. Adotarei 0 primeiro ponto de vista, na parte inicial déste livro. Examinarei a contribuigdo que a biologia, a antropologia, a histétia, a sociologia con- tempordinea trazem ao estudo da velhice. Na segunda parte, procurarei descrever a maneira pela qual o homem idoso interioriza seu relacionamento com 0 prdprio corpo, com © tempo, com os demais. Nenhuma dessas duas pesquisas tornard possivel definir a velhice; verificaremos, pelo contré- tio que ela assume miltiplos aspectos, irredutiveis uns aos outros. No decorrer da histéria, tal como hoje em dia, a luta i de classes determina a maneira pela qual_um_individuo se torna_présa_da_velhice eo velho eupatrida, um antigo operdrio que recebe uma pensfio miserdvel e um Onassis. A diferenciagio das velhices individuais ainda tem outras causas: satide, familia ete. Sao, entretanto, diias_categorias de velhos, uma extremamente ampla e outra restrita & pequena minoria, e criadas pela oposi¢ao de exploradores e de explorados. Qualquer alega- Go que pretenda referir-se.4 velhice em geral deve ser recusada, visto constituir uma tentativa no sentido de mas- carar éste hiatd. 0 t Meats , _ Propie-se imediatamente uma questéo. A_ve é nao é um fato estatico: € 0 término e o prolongamento de_um proceso, Em_que consiste ésse processo? Em outras pala- ( vras, que éenvelhecer? Esta idéia se acha ligada i de trans- formacio. Mas _a_vida_do—embrifio,.do_recém-nascido, da ‘ crianga,_constitui_uma_incessante_transformagio. —Seremos levados a concluir, como o fizeram alguns, que nossa exis- téncia é uma morte lenta? Certamente nao. Semelhante pa- radoxo desconhece a verdade essencial da_vida: ela é um sistema instdvel no_qual se perde_e se reconquista o equilibrio a cada instante; a inércia 6 que ¢ sinénimo de morte. A lei{ da vida é mudar, O que caracteriza o_envelhe é ‘ nea irreversivel e desfavoravi 4 certo tipo de mu nio, Eis a definicéo proposta por Lansing, gerontdlogo ame- ricano: “Um processo progressivo de alteracao desfavordvel, ligado habitualmente A passagem do tempo, tornando-se aparente apés a maturidade e invariavelmente terminando com a morte.” Topamos imediatamente, entretanto, com uma dificul- dade: que significa a palavra desfavordvel? Implica um julgamento de valor. Nao existe progresso ou regressio, a nio ser relativamente a um objetivo visado. No dia em que esquiou menos bem que as mais jovens, Marielle Goi- tschel deve ter-se considerado velha, no plano esportivo. E no Amago do empreendimento de viver que se estabelece a hierarquia das idades e 0 critério é muito mais incerto. Seria preciso conhecer a meta visada pela vida humana para Gecidir quais so as transformagées que dela a afastam, e quais as que dela a aproximam. 15 O problema 6 simples quando, no homem, sé se consi- dera 0 organismo. Todo organismo tende a subsistir. Para isto, élhe necessatio restabelecer 0 equilibrio tédas as vézes que éste se vé comprometido, defender-se contra as agres- s6es externas, apreender o mundo da maneira mais ampla e mais firme. Em semelhante perspectiva, as palavras: favo- raveis, indiferentes, prejudiciais, tém um significado muito claro. Do nascimento até a idade de 18 a 20 anos, o desen- volvimento do organismo tende a aumentar suas probabili- dades de sobrevivéncia: fortifica-se, torna-se mais resistente, crescem seus recursos, multiplicam-se suas possibilidades. O conjunto das capacidades fisicas do indivfduo se acha no apice da expansiio, por volta dos 20 anos. Assim, considerada em sua totalidade, a mutagdo do organismo é benéfica, durante os primeiros vinte anos. Algumas alteragdes nio acarretam nem melhoria nem diminuigao da vida orgdnica, sao indiferentes: assim, a invo- lucio do timo que ocorre logo na primeira infancia; a dos neurénios cerebrais cujo ntimero 6 imensamente superior As necessidades do individuo. Muito cedo, produzem-se alteragdes desvantajosas. A amplitude da margem de acomodacao sé reduz depois dos— 0. . Ja antes da adolescéncia baixa o limite da altura de sons audiveis. A partir dos 12 anos, vai-se enfraquecendo uma certa forma de meméria bruta. Segundo Kinsey, a poténcia sexual do homem decresce depois dos 16 anos. Estas perdas, bastante limitadas, no impedem 0 desenvol mento infantil e juvenil de prosseguir em sua linha as- cendente. Depois dos 20 e sobretudo a partir dos 30 anos, tem inicio uma involugio dos drgiios. Dever-se-4 falar em enve: Ihecimento desde ésse momento? O corpo mesmo, no homem, nio~é ‘produto exclusivo da natureza. Perdas, alteragdes, desfalécimentos, podem ser compensados por montagens, automatismos, um conhecimento pratico e intelectual. Nao se falaré em envelhecimento enquanto as. deficiéncias per- manecerem esporddicas e forem facilmente remediadas. Quan- do elas adquirem importancia e passam a ser irremedidveis, e 0 corpo se torna frdgil e mais_ou menos impotente, po afirmar, sem equivoco, que esta declinando. 16 uito_mais_complexa_quando con: 05-0. i teiro. Comeca-se a declinar depois de se haver atingido um apogeu: onde situd-lo? Apesar de sua interdependéncia, o fisico e 0 moral nao seguem uma evolugio rigorosamente paralela. O individuo pode sofrer perdas morais considerdveis antes que tenha inicio sua degra- dagao fisica; pode, ao contrario, suceder que no decurso desta decadéncia éle consiga importantes ganhos intelectuais. A qual déles atribuiremos maior valor? Cada qual dara uma resposta diferente, _segundo_valorize_mais_as_aptiddes corpo- rais ou_as faculdades mentais, ou entéo um feliz equilfbrio elas. & de acdrdo com opcées desta ordem que os individuos e as sociedades estabelecem_uma_hierarqui: idades: nfo existe nenhuma universalmente_aceita. ‘A crianca vence 0 adulto pela riqueza de suas possibili- imensidao de suas aquisicoes, pelo frescor de suas sagoes to suficiente para considerar que se degrada quuando_avaiiga-em_anos? Parece ter sido esta, até certo ponto, a opiniao de Freud: “Pense no contraste entristecedor que existe entre a inteligéncia brilhante de uma crianga sadia e a fraqueza intelectual de um adulto médio”, escreveu éle. £ a idéia desenvolvida com freqiiéncia por Montherland: “Quando se extingue o génio da infancia, é para sempre. Sempre se afirma que é de um verme que sai a borboleta; com o homem, é a borboleta que se torna verme”, diz Fer- rante em La Reine Morte. ‘Ambos tinham raz6es pessoais — que muito divergiam i para o outro — para valorizar a infanci i jovem: _acumulou_ conhe .experiéncia, capacidades._ SAbios, fildsofos, escritores colocam em geral o apogeu do individuo no meio da existéncia(*). Alguns consideram a (1) Segundo Hipécrates, éle a atinge aos 56 anos, Para Aris- tételes, a perfeigio do corpo seria alcancada aos 35 anos, a da alma 2os 50. Segundo Dante, atingese a velhice aos 45 anos. & geralmente 20s 65 anos que as sociedades industriais modernas aposentam os. tra- balhadores. Denominarei velhos ¢ pessoas de idade aqueles que ja hou- verem atingido os 65 anos. Quanto aos outros especificarei_o ntimero de anos que contam, quando a éles me referis, 2 7 prépria velhice como a época . privilegiada: traz, julgam éles experiéncia, sabedoria e paz. A vida humana nio conheceria declinio. y, ~ Definir_o_que_representa_para_.o_homem_progresso_ou si \plica_que nos estamos referindo a determinado fim? porém nenhum_é dado_a_priori, no_absoluto. Cada _so- ciedade cria seus préprios_valores:_é no_contexto social que / a palavra de irir um sentido preciso. ~~ Esta discussio confirma o que eu havia afirmado antes: a velhice sé poderia ser compreendida em sua totalidade; nao representa somente um fato biolégico, 6 também um fato cultural. 18

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