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FUNDAGAO CALOUSTE GULBENKIAN Heliport a Letras ime 2095 Sentero 2029 O «reacordar-se» de um mito UMA LEITURA DO ‘AUTO DO FRADE” DE JOAO CABRAL DE MELO NETO ANco MArcio TENORIO VIEIRA EM ENTREVISTA AO JORNALISTA Luiz Carlos Lisboa, d’O Estado de S. Paulo, a 4 de abril de 1984, Joao Cabral de Melo Nero expunha os motives que 0 levaram a escrever 0 Auto do Frade: Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca, era um liberal, um homem inteligente que néo se contentava com palavras, uma personalidade interessante que sempre me atraiu. Li um artigo de Mario Melo, historiador pernambucano, que cstudava com minficia os tiltimos momentos de vida de Frei Caneca, do instante em que € acordado até quando cai, fuzilado. Ali havia cenério, roteiro, personagens. Tirei c6pia do artigo e mandei para amigos ligados ao cinema, sugerindo a filmagem da histéria. Mas née houve interesse, ninguém quis filmar, embora todos achassem interessante 0 assunto, Resolvi entéo escrever um auto — um «auto para vores», como denominei — ¢ para isso precisei conseguir ‘uma cépia do artigo que me inspirou, porque havia dado todas as que possuia. ‘Acho que fiz alguma coisa muito visual, consequéncia daquela minha pri- imeira impressio de que os iltimos momentos de Frei Caneca dariam um bom filme. E éestranho, um auto ¢ feito para teatro, nao para cinema, O resultado €0 Auto do frade, imaginado como um filme, escrito em versos ¢ estrururado como para o teatro. (Lisboa, 1984: 146) Dos muitos homens ¢ mulheres que abragaram as chamadas «insurrei- ges liberais> que agitaram a primeira metade do século xix, poucos, creio, encerram com tanta propriedade o espirito insurrecto desses eventos quanto © do publicista, poeta, escritor, professor de geometria ¢ frade carmelita, Joaquim do Amor Divino Caneca, 0 Frei Caneca (1779-1825). Figura proemi- nente de duas insurreigdes que tiveram, como epicentro, a entéo provincia de Pernambuco (a insurreicéo de 1817 e a Confederagio do Equador, em 1824), Frei Caneca encerrou em suas ages € nas suas ideias os conflitos sociais, 137 politicos, econémicos ¢ culturais que permearam e urdiram esses movimentos itocentistas: a) o cultivo de certos valores republicanos ou protorrepubli- canos; b) a defesa de um Estado organizado politica e juridicamente dentro de certos prineipios liberais ou protoliberais; c) a oposigao ao absolutismo monarquico representado pela Coroa portuguesa e, depois da Independéncia do Brasil, no caso especifico da Confederacio do Equador, ao modo arbitrério como D, Pedro I dissolvera, em 12 de novembro de 1823, a Assembleia Geral Constituinte ¢ Legislativa do Império do Brasil (aberta em 3 de maio daquele mesmo ano); d) € um profundo espirito reacionério quando se tratava de defender as transformagses liberais e republicanas no campo socioeconémico: a reforma no sistema de propriedade ¢ a aboligao da escravidao. Neste caso, a consciéncia senhorial de classe ¢, no campo religioso, o ultramontanismo levavam esses insurgentes a sequestrarem, em beneficio proprio, determina- dos principios liberais e republicanos e, principalmente, a resistirem contra 0s direitos universais e certas priticas civilizatorias apregoadas pela revolugéo burguesa. Em texto publicado em 1824— «Bases para a Formagao do Pacto Social, Redigidas por Uma Sociedade de Homens de Letras» —, Frei Caneca resume muito bem esses idedrios que conciliavam proposigées liberais ou protoliberais, ¢ proposigées reacionétias. No seu Art. 1.°, lemos que «os direitos naturais, civis ¢ politicos do homem sao a liberdade, a igualdade, a seguranga, a pro- priedade e a resisténcia 4 opressao» (Caneca, 2001: 494). No Art. 8.°, somos. informados que esses «direitos» s4o prerrogativas apenas do «cidadao» (ibid,), eno Are. 17.° que «o direito da propriedade consiste nisto, em que todo ohomem [leia-se, 0 cidadio] seja senhor de dispor a sua vontade de seus bens, dos seus capitais, dos seus rendimentos ¢ industria» (ibid.: 495). O Art. 20. complementa: « seriam privilégios que recaiam somente sobre proprietatios de escravos ¢ homens livres. Como se sabe, a Insurreiggo de 1817, a Confederagio do Equador ¢ as demais insurreigées dos séculos xviii e xix foram violentamente com- batidas e vencidas pelas Coroas portuguesa e brasileira. Com o fracasso da Confederagao do Equador, onze dos seus proceres foram condenados & morte, inclusive Frei Caneca. As penas capitais pouparam, em geral, os insurretos das chamadas «familias espirituais> da Provincia: os grandes comerciantes € os proprietatios de engenhos de agiicar e de escravos. Porém, ao contritio dos outros condenados, a morte de Frei Caneca foi envolvida em mistério, ou assim 138 se acreditou & época, Sentenciado a forca em 1825, teve, apés ser execrado das ordens canénicas, a pena alterada para fuzilamento. A mudanga foi motivada pelo facto de nenhum carrasco se dignar a cumprir a sentenga do juiz. Corria ‘um boato no Recife segundo o qual Nossa Senhora do Carmo teria aparecido a um dos verdugos e rogado pela vida do afilhado. Enfim, fuzilado em 13 de janeiro de 1825, seu féretro foi entregue aos irmaos carmelitas e sepultado em alguma das centenérias paredes do Convento do Carmo, no Recife. Até hoje 0 paradeiro dos seus restos mortais é desconhecido, como se o seu corpo tivesse se encantado (cf. Mello, 2001: 11-50; Mello, 1979: 5-55; Porto, 1979: s.p.). Frade revolucionério, intervengao divina, corpo desaparecido: cis os ingredientes de uma narrativa mitica que nunca deixou de ser alimentada por aqueles que se debrugaram sobre a vida do frade carmelita, De um lado, essa narrativa reforga as convicgdes nativistas de que a Histéria estava com os insur- gentes € no com a Coroa (partindo da crenga, no caso, de que a Historia tem algum sentido!); do outro, promove a construgao de um mito historico que encarnaria, na pessoa de Frei Caneca, a perspetiva de um Brasil que poderia ter sido (caso sua insurreigao fosse vencedora), mas que nio foi. ‘Mito histérico, Frei Caneca ¢ um construto da histéria moderna; particu- larmente, do seu mais importante artefacto: as histdrias nacionais. Como qual- quer mito moderno, personagens como ele vio surgindo na cultura ocidental a0 mesmo tempo que o homem vai tomando consciéncia do processo hist6- rico, quando a histéria vai se firmando como «a razao, a justiga, a verdade», <«o grande juiz>>, «a fonte de emancipagio> (Ellul, 1958: 40, 41). Um dos mitos resultantes dessa consciéncia — o da Nagio — é tido por Jacques Ellul (ibid: 43) como um dos «mitos essenciais». Estes, por sua vez, condicionam as «imagens mais reduzidas>, compostas de «mitos de segunda ordem>>, como, por exemplo, os mitos histéricos. final, se o mito, dentro do seu caré- ter ontolégico, é o espelho em que a sociedade se vé refletida (ou deseja tal espelhamento), o mito histérico, enquanto artefacto da Nagao, firma-se como © ponto de unio entre a sociedade e a tradigao cultural, moral e estética dessa Nagao. Afinal, os mitos — sejam etiolégicos ou ontolégicos (penso aqui a luz de Sigmund Freud de Claude Lévi-Strauss) — expressam «desejos incons- cientes que, de algum modo, sao incompativeis com a experiéncia consciente> (Leach, 1977: 56) dos homens e da sociedade. Assim, entre 0 homem ¢ o mito histérico, entre o Brasil que poderia ter sido ¢ 0 que nio foi, as narrativas que formam as biografias ou os perfis de Frei Caneca encerram uma personagem que, nao raramente, transige com 0 ito histérico, ¢ vice-versa, Sendo 0 mito, hist6rico ou imemorial, «o conhe- cimento em sua origem> exprimindo «o desejo de saber, como defende Gennie Luccioni (1977: 7), facilmente se transforma em «ilusio» que, por sua ver, gera.a «ideologia» ea «idolatria>>, Se a ideologia, enquanto discurso 139 que se quer tinico ¢ verdadeiro, degrada o mito, aciéncia historica, por sua vez, acaba por mati-lo. Entre a degradacéo promovida pela ideologia ¢ a morte executada pela historia, o oxigénio restante que pode alimentar a sobrevivén- cia do mito s6 continuard a circular se este se > (ibid.). Mas como manter 0 «desejo de conhecer> sem gue esse proprio conhecer degenere também ele em «ilusio» e, por decorréncia, se transforme em «ideologia» e «? Por outro lado, se (© maior sofrimento do homem moderno é a sociedade na qual esta inserido viver divorciada dos «mitos que ela cria € nos quais ela nao se reconhece> (ibid.: 8), como se reconhecer em narrativas que sio apenas «ilusio», «ideo logia> e «idolatria»? Eis 0 né que envolve os mitos modernos. Afinal, se eles vio surgindo na cultura ocidental ou ocidentalizada ao mesmo tempo que o homem vai tomando consciéncia do processo histérico, quando a historia vai se firmando como «a razio, a justiga, a verdade», «o grande juiz>, «a fonte de emancipa- sao» (Ellul, 1958: 40-41), nao seria a propria natrativa histérica um construto também afeito a ideologia e & idolatria: discursos promovidos pelo mito e tio caros A «ilusio»? Ao mito histérico parece aplicar-se o que Roland Barthes (1977: 11) denomina de reflexo invertido. Ou seja, ele nao existe para superar os con- flitos e as contradicdes da divisto de classes, da heterogeneidade moral, cultural e estética da sociedade, mas apenas para limitar-se a «transpor a cultura em natureza, ou, pelo menos, o social, o cultural, 0 ideolégico, 0 histérico em ‘natural’». Diverso dos mitos imemoriais, os mitos modernos € contemporineos so «descontinuos», enunciam-se apenas em «discursos> (endo mais como narrativas sagradas ou «grandes narrativas constituidas>), quando muito, assinala Barthes, como «uma fraseologia, um corpus de frases (de estereétipos); 0 mito desaparece, mas permanece, tanto mais insidioso, 0 mitico» (ibid.). Eis 0 impasse: a ideologia degrada o mito; a ciéncia histérica o mata. Por sua vez, nao ¢ a propria historia uma narrativa que, sem poder se desvencilhar das ilusoes ideolégicas que lhe calgam a teoria e o método, termina por cons- truir mitos, mesmo quando procura superd-los ou mesmo destruf-los? Como escapar desta esquizofrenia promovida pela busca do saber? Talvez a resposta para aprender ¢ compreender os eventos histéricos € os mitos por eles pro- duzidos passe por um artificio que penetre na légica intrinseca ao pensamento ‘mitico; uma légica que as teorias e os métodos histéricos nao podem plasmar. No caso, uma linguagem que persiga mais uma perspetiva conotativa (permi- tindo uma produgao de significados, de inconstincias e de mutabilidades dos signos) do que uma linguagem denotativa; que antes revele do que afirme; e, principalmente, que tente dizer o indizivel. Estamos falando da linguagem que “0 ordenha a arte, de maneira geral, ¢ literatura, em particular: ambas, formas de conhecimento que, ao mesmo tempo que produzem ilusdes, interrogam. com frequéncia 0 mundo e, por decorréncia, as ilusdes produzidas por esse mesmo mundo. Interrogam 0 mundo nao em busca de respostas, a exemplo do que aspiza a filosofia e a ciéncia, mas sim de novas interrogagées (dai 0 cariter conotativo ¢ instavel da sua linguagem). Ao proceder dessa forma, a literatura instabiliza as ilusdes encerradas pelo mito, deslocando-o perma- nentemente, colocando em suspensio tanto a ciéncia histérica (que pretende maté-lo) quanto os discursos que buscam transpor a cultura em narureza: a «ideologia» e a «idolatria». Nao s6: a linguagem literéria permite a quem a constréi (0 autor) firmar um pacto de fingimento com o leitor de que a sua narrativa é apenas um discurso mimético (ou nao) que finge assemelhar-se (ou nao) a realidade: seja essa realidade interior subjetiva, seja colhida dos referentes que a cercam. Este fingimento intencional por parte de quem detém a fungio extralinguistica (0 poeta ou o prosador) permite utilizar a linguagem nao somente para penetrar na légica intrinseca ao pensamento mitico, mas também para redimensionar, & sua maneira, 0 véu que o encobre. Assim, é pelas armas da literatura que Joao Cabral de Melo Neto, valendo- -se da «irrupgio do desejo de conhecer> (Luccioni, 1977: 7), transforma um mito histérico em matéria fabulatéria, ao compor, em segunda pessoa, 0 Auto do Frade, Esse «poema para vozes>, publicado em 1984, no ano em que se comemoravam os 160 anos da Confederagio do Equador, fala do derradeiro dia de Frei Caneca. Como lemos no depoimento que Jodo Cabral concedeu a Luiz. Carlos Lisboa, o Auto foi inspirado na descrigao que Mario Melo fizera do frade carmelita (Melo, 1924: 365-374)'. Mas, enquanto o historiador per- nambucano reforca a imagem de um carmelita em vias de se tornar um mito hist6rico, o poeta volta-se para a estéria de um homem que, nas tiltimas horas da sua existéncia, mergulha cada vez mais em si mesmo, tentanto compreender o sentido da vida e do viver. ‘Ao seu modo, Cabral desconstréi a figura mitica de Frei Caneca. Descons- truco essa presente na estrutura do Auto do Frade, organizado em sete «atos> ou «estagbes» («Na Cela, «Na Porta da Cadeia», «Da Cadeia a Igreja do Tergo», «No Adro do Tergo>, «Da Igreja do Tergo ao Forte», «Na Praga do Forte» ¢ «No Patio do Carmo>), que nos remetem para os passos de Jesus rumo a crucificagéo, morte ¢ ressurrei¢ao. Com um detalhe: nessa correlagao centre 0 mito cristéo ¢ o mito histérico, subjaz.a ideia de que estas duas persona- gens histéricas foram injustamente condenadas & morte, pagando com a vida por suas ideias ¢ ideais. Porém, fugindo da narrativa histérica que persegue a mitificagao de Frei Caneca, Cabral divide os «atos» ou «estagbes» que sero percorridos pela personagem em metade (sete) das «estagSes> (quatorze) que perfizeram a caminhada de Jesus, nao obstante o Meirinho enunciar, durante ua © cortejo, quinze vezes a sua sentenga: «<— Vai ser executada a sentenga de morte natural na forca, proferida contra o réu Joaquim do Amor Divino Rabelo, Caneca» (19, 24, 27, 34, 38, 44, 48, 54, 60, 64, 68, 72, 77, 89, 95). Assim, ao invés de promover uma relagao simétrica entre Frei Caneca e Jesus, © poeta evoca a passagem da via crucis para construir uma personagem que s6 por subtragao encerra a imagem e a semelhanga de Jesus; uma personagem. cujas qualidades nao o elevam ao mesmo pantedo em que se inscreve o filho de Deus, mas humanizam-no. Essa construcao de Frei Caneca como um Cristo que ¢ mimetizado naquilo que ele — Frei Caneca — nao foi nem ¢ endo foi nem é por ser apenas um mero mortal de carne ¢ osso), ainda nos leva, dentro de uma perspetiva crista, a uma tensio dialética que, mais uma vez, advém do niimero sete: 0 conflito permanente do homem entre seguir as tentagdes, misérias ¢ desejos do corpo (definidos nos Sete Pecados Capitais — gula, avareza, lucia, ira, inveja, preguica e orgulho) ou, inversamente, abragar os valores espirituais e salvar a alma (sinalizados pelas Sete Virtudes Cristas — castidade, genero- sidade, temperanga, diligéncia, paciéncia, caridade e humildade). Dualidade gue desvela e da a medida da condigao humana: ao mesmo tempo que aspi- ramos a santidade somos prisioneiros dos sentidos ¢ dos desejos mais vis, como enunciava Santo Agostinho (1988: 244-265) em sua tese da «triplice tentagéo»: a tentago «da concupiscéncia da came, da concupiscéncia dos olhos e da ambicio do mundo». Ora, se 0 Frei Caneca histérico nao esta ligado «concupiscéncia da came e dos olhos», estaria ele, em seu projeto protorrepublicano e protolibe- ral, relacionado com a «concupiscéncia da ambig4o do mundo>? Se sim, duas perguntas se impéem: a percorridas por Frei Caneca encerrarem uma analogia com os sete m2 dias em que outra personagem de papel — «Dante Alighieri» — percorreu 605 reinos dos mortos, iniciando a sua jonada no Inferno ¢ concluindo-a no Paraiso. No caso de Frei Caneca, temos o inverso: ele, apesar de encarcerado, inicia o iiltimo dia da sua vida dormindo e sonhando, alheio as tentagées do mundo, como se estivesse no Paraiso, € o conclui no préprio Inferno: 0 seu fuzilamento, Porém, se no recorre aos decassilabos heroicos, Cabral langa mio dos versos que sao pedestres na gesta da literatura de cordel: 0 heptassi- labo, para os monélogos de Frei Caneca («— Cortaram-lhe a lingua na cela / para que nio se confessasse>, 35); 0 octossilabo e 0 eneassilabo, para os dislo- ‘gos das demais personagens (os «Oficiais», 0 «Soldado», os «Carrascos>, 0 «Vigirio Geral», 0 «Provincial», o « ou «estagio> intitulado «Na Cela». Nesse, 0 Carcereiro e 0 Provincial vao ao encontro do prisioneiro ¢ registram que ele nao somente «Dorme como uma crianga dorme>>, mas que «Dorme fundo como um morto», ¢ que, apesar de dormir como (22). Das trés tentag6es elencadas por Santo Agostinho, nao é a «concupiscéncia da carne» muito menos a . De todos os sentidos, s4o os olhos, «espelhos da alma, que se impoem agora, Ao acordar fora de si o frade parece liberto dos seus sonhos utépicos (a utopia s6 se pode concretizar durante 0 sono? Autopia que acorda, que se materializa na realidade, torna-se pesadelo?). Nao s6: a luz que perfaz-e da forma s coisas ¢ a0 mundo penetra no interior de Frei Caneca, como se os seus sonhos ¢ utopias pudessem ser reescritos ao modo dos palimpsestos. Ou seja, se o Frei Caneca mitico projeta um desenho do que deveria set mundo, a personagem do Auto do Frade experimenta uma rela- ‘¢4o inversa: é 0 mundo que procura moldé-lo, como lemos neste monélogo: «Acordo fora de mim: / como fora nada eu via, /ficava dentro de mim / como vida apodrecida, / Acordar nao é de dentro, / acordar é ter saida. / Acordar 6 reacordar-se / a0 que em nosso redor gira» (23). Nesse «reacordar-se>, 0 mundo vai penetrando nas suas retinas ¢ o leva a perceber e sentir o que até enttio nunca percebera nem sentira com tanta clareza: «Eis as pedras do Recife / que o professo carmelita, / embora frade calgado, / sente na sola despida. / Como estou vendo melhor / essa grade, essa cornija, / 0 azulejo mal lavado, / a varanda retorcida! / Parece que melhor vejo, / que levo lentes na vista; / se antes tudo isso milv, / as coisas estao mais nitidas» (66). ‘Assim, A medida que é conduzido pelas ruas do Recife, como a per- sonagem principal de um «espeticulo», Frei Caneca «reacorda-se> para si mesmo passa a procurar o sentido da vida e do viver; reconhece que ‘enquanto tracava no papel o mundo ideal esquecera-se de ver © mundo real que 0 cercava, Esse «espeticulo», organizado pelas autoridades do Império, assemelha-se ao ritual de uma «procissao sem andor» (67), de uma procissio que «é um espeticulo / como o Carnaval mais aceso. // — Nao ha miisica, € bem verdade, / ainda nio se inventou o frevo» (35). Nesse «espeticulo», o modo como Frei Caneca é visto pela «Gente nas Calgadas> pouco difere do modo como ele, serenamente, esta a sentir e perceber 0 mundo que o cerca. Para essa «Gente nas Calgadas», ele é «um homem como qualquer um, / € profeta nao se pretende. // — E um homem e isso nao chegou: / um homem. plantado e terrestre> (73); para Frei Caneca, ele esta antes preso a concretude das coisas do que ao Olimpo dos mitos: «— Dentro desta cela mével, / do a4 curral de gente viva, / dentro da cela ambulante / que me prende mas caminha, / posso olhar de cada lado, / para baixo e para cima» (65-66). No entanto, depois de perder as simbélicas sagradas que o distinguiam dos demais mortais (na ceriménia de degradacao eclesidstica, realizada na Igreja do Terso, retiram-lhe o célice, a héstia, a patena, o casulo, a estola, 0 cingulo, a alva, o amito e a batina religiosa), de ser entregue ao Oficial e con- duzido até a Praga do Forte onde ser executada a sentenga, a voz interior de Frei Caneca emudece. Mas nao sem antes lembrar, resignadamente, que teme «a morte, embora saiba / que é uma conta devida. / Devemos todos a Deus / © prego de nossa vida / ¢ a pagamos com a morte / (o poeta inglés ja dizia)> (70). © monélogo interior de Frei Caneca s6 se manifesta no segundo, terceio, quarto e quinto «atos» ou «estagdes» do Auto do Frade, Esses quatro «atos> ou «estagées» parecem encerrar as simbélicas da completude (tio caras a0 professor de geometria que ele fora): os mimeros cardeais, os quatro ventos, 05 pilares do universo, as fases da lua, as estag6es do ano € os elementos da natureza (terra, fogo, 4gua ¢ ar). Em contrapartida, 0s trés «atos» ou «esta- ‘gGes> em que ele emudece parecem conter a alegoria das idades da vida (cres- cimento, maturidade e morte), que, ao se perfazerem, acabam por dar unidade A existéncia humana. Nao por acaso, os «atos» ou «estagdes> em que a sua voz emudece so 0 primeiro e os dois tiltimos: os que tratam do acordar, da execragio das ordens canénicas ¢ do fuzilamento. Emudecida a sua voz, tudo 0 que ouvimos agora sio as falas da (92). Proibido de ver a execugao, resta a0 povo do Recife tomar conhecimento do feito pelas descargas das espingar- das: «— Assim, nao 0 podemos ver mais? / Quando o veremos estar morto? // — Ver nao. Ouviremos sua morte, / quem de todo ainda nao esta mouco>> (93). Mais uma vez, diferentemente da via crucis que perfaz as tiltimas horas de Cristo, a morte de Caneca nfo é testemunhada por aqueles que o acompa- nharam na «procisséo sem andor» (67), muito menos as doze testemunhas do seu iltimo minuto de vida s4o os seus apéstolos, Pelo contritio, sio, aqui, 0 doze algozes do pelotao, que nao estao ali para celebrar a sua vida, mas para promover a sua morte. Destes versos de Joao Cabral de Melo Neto nasce um homem que, em vex de se inscrever na medida mitica que lhe foi imputada pela Histéria ou por alguns historiadores, encerra a medida humana, com todos os seus sonhos € com todas as stias deceges. Ao transformar o mito histérico em elemento de linguagem, em signos intencionalmente fingidos, Joao Cabral cria uma 145 personagem historica (nada obstante ser de papel) em que nés, pobres mor- tais, viventes de um pais chamado Brasil, possamos nos reconhecer, enquanto , como inscritos nos segmentos sociais, culeurais, ideolégicos e histéricos dessa sociedade; uma personagem que nio procura superar ou mesmo substituir os conflitos e as contradigées da divisao de clas- ses, da heterogeneidade moral, cultural ¢ estética dessa sociedade, mas que & parte, ¢ apenas uma parte, do seu corpus social. Mas Joao Cabral também esti ccriando uma personagem hist6rica em que homens € mulheres, indiferente- mente da nacionalidade, do credo, do género, da etnia e dos valores sociocultu- rais, possam, assim como Frei Caneca, «reacordar-se» para as coisas concretas que formam e desenham o mundo que os cerca. Talvez, como querem alguns, © mito nao oferega nenhuma sabedoria iiltima ao homem e & sociedade que © criou, No entanto, a personagem de Cabral ao ser acordada do seu humilde Olimpo, uma cela sem luz «com toda a vida, / com todos cinco sentidos»» (22), parece nos oferecer uma derradeira utopia, um desejo que estaria latente nos elementos, concretos ou nao, que calgaram e construiram os seus sonhos: © de que «Debaixo dessa luz crua, / sob um sol que cai de cima / e é justo até com talvezes / ¢ até mesmo todavias, / quem sabe um dia vira / uma civil geometria» (66-67). * As citagbes de Auto do Frade serio doravante indicadas apenas pelo niimero de pagina. Em. W665 Pagina 1931, Mario Melo volta a tratar de Frei Caneca, agora ndo mais narrando o seu derradeiro dia de vida, e sim escrevendo uma biografia do carmelita (cf Melo, 1931: 7-37) AGOSTINHO, Santo, Confsies, trad. J. Olivera Santos e A. Ambrosio de Pina, Petropolis, RJ, ‘Voues, 1988. Barrutes, Roland, «Mudar 0 Proprio Objeto>, Atualidade do Mito, trad, Catlos Arthur R. do ‘Nascimento, Sio Paulo, Livaria Duas Cidades, 1977, p. 1-14 Canc, Frei Joaquim do Amor Divino, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca org, e introdugao de Evaldo Cabral de Mello, Rio de Janeito, Editora 34, 2001, Exot, Jacques, «Mythes modemes», Diagin, Paris, Gallimard, jul. 1958, n° 23, p. 29-49. Leacu, Edmund, As Ideias de Lévi-Strauss, trad, Alvaro Cabral, ed. Sao Paulo, Culex, 1977. ‘L180, Luiz Carlos, «Jodo Cabral de Melo Neto: © que a pessoa tema dizer nasce com ela», (0 Estado de 8. Paulo, 4 /4/1984,¢. Culkura,p. 146, Lucctont, Genie, «Introdugio», Arualidade do Mio, ad. Catlos Arthur R. do Nascimento, ‘io Paulo, Livraria Duas Cidades, 1977, p.7-9. us M0, Miro, «0 Suplicio de Frei Cancea>, Revista de insint Arqueliice, Histrco eGeogrd- fico Peruamboucano, Reif, vol XXVI,n* 123-126 jan. 1924p 365-374. Frei Cancea>, Revista do Insiuto Arguolgcn, Histhrica€ Gegrfica Pernambucano, Recife, vol. XXX, n? 147-150, jan, 1931p. 7-37. Mato, Antonio Joaquim de, «Novicia Biogrifica», in Obras Politica ¢Littrarias de Frei Joaquim do Amor Divino Cane e,fa-similada, Recife, Assemble Leysativa do Estado, 1979,p. 555. ‘Masu10, Evaldo Cabral de, «ei Caneca ou A Outra Independencia», in Fre oaguim do Amor Divino Caneca org. intodusio de Evakdo Cabral de Mello, Rio de Janeiro, Edita 34,2001, plea. Nero, Jofo Cabral de Melo, ut do Frade: Poema para Vozs, 2 ed Rio de Jancro, Nova Frontera, 1984. Powro, Cost, «Reviso Imperiosa>, in Obs Politics e Litters de Frei Joaguim de Amor Divino Caneca, ed fa-similads, Reef, Assemble Leysativa do Estado, 1979, “wr

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