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HS V2 Ye ‘Artes Piésticas @ Literatura — Carlos Zio, Ligia Chieppini e J. Luiz Lafeté ONaclonate 6 Popular ne Cultura Braicra i ep i \ . i . Rw ne rp iA « Cineme ~-Jeon-Clausle Bernardet eM. ita Galo ea UA Ibaa © Masica — Enio Squeff e José Miguel Wisnik Hf eg 9 meh * ° See ee ee Pete ate . Cultura brasileira + Sertio Mar — Glauber Rocha e a Estética da Fome — ismeil “es pete roe _emae Pn ; e identidade nacional tong) Coleco Primeiros Passos: 3? edigéo +O que Culture ~ José Lue dos Santor 4 # O que é Cultura Popular — Antonio Augusto Arantes _ SOque 6 Faldore = Caos. Brandto ‘ O que é Nacionalidade — Guillermo Red! Rubem 1 a4 Coleg Tudo & Historia t OY «A Aveura da Jovem Guarda — Paso de Tarso C. Medeiros if {A Chanchoda no Cineme Brasiro ~ Airnio M, Ctanie | Ny José Inécio de M. Souza «= Cultura e Participago nos anos 60 — Heloisa B. de Hollanda @ Marcos A. Gongatves Yl ow + Teatro Oficina (1958-1962) Trajetéria de Uma Rebeldia Cultural \ ‘Fernando Peixoto « Tio Sum Onoge 00 Bras — A Penetaro Cultural Americana " \ X ~ Gerson Moura i + Um Palco Brasileiro — 0 Arens de Sio Paulo — Sébato | \ Magale a Vv : } editora brasiliense z Da raga a cultura: a mesticagem e o nacional Frorestan Fernandes, ao tratar da questio racial no Bra- sil, afirmava que o brasileiro tem 0 preconceito de nao ter Preconceitp.' Com esta boutade ele sintetizava toda uma si- tuagdo na qual as relagbes raciais sio obscurecidas pela ideo. logia da democracia racial. Sao varios os autores que tém insistido sobre 0 aspecto da questo racial, mas se é verdade ue hoje existe uma ideologia da miscigenagao democratica, é interessante observar que ela ¢ um produto recente na histéria brasileira. Houve um tempo em que tinhamos preconceito tout court. Até a Aboligio, 0 negro nfo existia enquanto ci- dadao, sua auséncia no plano literdrio € tal que um autor Pouco progressista como Sflvio Romero chega inclusive a de- nunciar esse descaso, que tinha conseqiléncias nefastas para as Cigneias Sociais. Os primeiros estudos sobre 0 negro so- mente se iniciarto com Nina Rodrigues, j4 na tltima década do século, mas sob a inspiracto das teorias raciolégicas que vimos no capitulo anterior. Muito embora essas teorias sejam questionadas a partir da Primeira Guerra Mundial, sua in- (1) Florastan Fernandes, © Negro no Muni ance uh oon ‘Negro no Mundo dos Brancos, S8o Paulo, CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL a fluéncia ¢ tal que um autor como Oliveira Viana pode, em plena década de 20, desenvolver um pensamento fundamen- tado nas premissas racistas da virada do século.’ Fica porém uma pergunta: qual a razio de uma mudanga tAo radical, que transubstancia o elemento mestico, produto do cruzamento com uma raga considerada inferior, em categoria que apreen- de a propria Identidade nacional? Creio que se considerarmos as relacdes entre cultura e Estado a questo pode ser melhor esclarec! 7 Parece nao haver duvidas de que a ideologia de um Bra- sil-cadinho.comega a se forjar no final do século XIX. Procu- ramos mostrar como a categoria de mestigo é, para autores como Sfivio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, uma linguagem que exprime a realidade social deste momento histérico, € que ela corresponde, no nivel simbélico, a uma busca da identidade. © movimento romintico tentou cons- truir um modelo de Ser nacional; no entanto, faltaram-lhe condigées sociais que the possibilitassem discutir de forma mais abrangente a problemAtica proposta. Por exemplo, 0 Guarani, que é um romance que tenta desvendar os funda- mentos da brasilidade, é um livro restritivo. Ao se ocupar da fustio do indio (idealizado) com o branco, ele deixa de lado 0 negro, naquele momento identificado somente A forca de tra- balho, mas até entio destituido de qualquer realidade de cida- dania. Por outro lado, 0 modelo que se utiliza para pensar a iedade brasileira é o da Idade Média. Nisso o nosso roman- tismo se diferencia pouco do romantismo europeu, que se vol- ta para o passado glorioso para entender o presente. Nao foi por acaso que os estudos do folclore se fazem na direcaio ‘oposta ao que se denominou na época os exageros do roman- tismo. No entanto, até mesmo nas anAlises do folclore, escri- tas na década de 70, o elemento negro se encontra ausente. E interessante observar que os estudos de Silvio Romero sobre a poesia popular trazem, em 1880, uma novidade em relagdo aos de Celso Magalhies, que sto de 1873, O que Silvio Ro- mero critica neste autor é justamente a ausGncia da categoria do mestigo, o que o impossibilita de pensar o Brasil como um Oliveira Viana, Evalucso do Povo Brasileiro, Sto Paulo, 1838, - Sone todo.’ A gscravidio colocava limites epistemoldgicas para 0 sesenvolvimento pleno da atividade intelectual. Somente © ‘© movimento abo! €0 produto da mesti- sagem de trés ragas: a branca, a negra ea india, E, portanto, a, Virada do século que se engendra “fabula das trés ragas”, como a considera Roberto da Matta” A idéia de fabula € sugestiva, mas talvez fosse mais preciso falarmos em mito das trés ragas. O conceito de mito sugere um pento de origem, um cegtro a partir do qual se irr. historia mitica. A ideologia do Br: gico, ¢ conta a origem do moderno Estado brasileiro, ponto de partida de toda uma cosmogonia que antecede a prépria rea- lidade. Sabemos em Antropologia que os mitos tendem a se apresentar como eternos, imutaveis, o que de uma certa forma se adequa ao tipo de sociedade em que sio produzidos. Torna- se, assim, dificil aprender 0 momento em que sdo realmente elaborados. O antropélogo classico opera sempre a posteriori e tem poucos elementos para fixar a origem hist6rica dos uni versos simbélicos. Numa sociedade como a nossa, o problema se coloca de maneira diferente; pode-se datar 0 momento da é é il constatar que essa fabula é engendrada no momento em que a sociedade brasileira sofre transformagdes profundas, passando de uma economia escravista para outra de ti it organizacio mondrquica para republicana, ¢ que se busca, por exemplo, resolver o problema da mao-de-obra incenti- vando-se a imigragao européia. Se o mito da mestigagem é ambiguo é porque existem dem sua plena re Roberto da Mata, Relativizando, Petropolis, Vozes, 1981 CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL, » tropoldgico eu ainda se ritualizar, pois as con: téncia so puramente simbélicas. Ele é linguagem e no cele- bragio. “Quando se I¢ um livro como O Cortico, publicado em 1880, pode-se perceber as uldades que rondam os intelec- retacdo de uma sociedade como a nossa. O des- tino que Aluisio de Azevedo reserva a um dos personagens centrais da trama literdria, JerOnimo, é exemplar. JerSnimo, imigrante portugués, chega ao Brasil com todos os atributos conieridos 4 raga branca: forga, persisténcia, previdénci gosto pelo trabalho, espirito de célculo. Sua aspiragao basic: subir na vida. Porém, ao se amasiar com uma mulata (Rita Baiana), ao se “aclimatar” ao pais (troca a guitarra pelo vio- lio baiano, 0 fado pelo samba), ele se abrasileira, isto €, torna- se dengoso, preguigoso, amigo das extravagancias, sem espi- rito de luta, de economia e de ordem. No inicio do romance Jerénimo ocupa a mesma posigao social que Joao Roméo, ou- tro portugués que participa também das qualidades étnicas da raga branca. E bem verdade que Aluisio de Azevedo apresenta Joo Romao com grande desprezo; ele nao se deixa seduzir pelo cardter alegre e sensual do mulato brasileiro. No entanto o desfecho do romance é parabélico. Joao Romio, calculista ¢ ios0, ascende socialmente no momento em que se dis- tancia da raga negra (ele se desvencilha da negra Bertoleza, com quem viveu grande parte de sua vida); Jerdnimo, ao se abrasileirar, nao consegue vencer a barreira de classe, € per- manece ‘“mulato”, junto a populagdo mestica:do cortico. Em linguagem sociol6gica, Simmel diria que as qualidades atri- buidas & raga branca sao aquelas que determinam a raciona- lidade do espirito capitalista. Ao se retirar do mestigo.as qua- lidades da racionalidade, os intelectuais do século XIX esto negando, naquele momento histérico, as possibilidades de desenvolvimento real do capitalismo no Brasil. Ou melhor, eles tém davidas em relagdo a esse desenvolvimento, pois a identidade forjada é ambigua, reunindo pontos positivos € negativos das racas que se cruzam. A partir das primeiras décadas do século XX, 0 Brasil sofre mudangas profundas. O processo de urbanizagao ¢ de industrializagdo se acelera, uma classe média se desenvolve, S RENATO ORTIZ movimento cultural trouxe consigo uma consciéncia historica ‘que até entio se encontrava de maneira esparsa na sociedade. Ao se cantar 0 fox-teot, 0 cinema, o telégrafo, as asas do vito, © que se estava fazendo era de fato apontar para uma le transformagdes que ocorriam no seio da sociedade brasileira, Com a Revolugao de 30 as mudancas que vinham ocorrendo sao orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar ‘ Dentro deste quadro, as rnam-se obsoletas, era necessirio.su- Peri-las, pois a realidade social impunha um outro tipo de interpretagio do Brasil. A meu ver, o trabalho de Gilberto Freyre vem atender a esta “demanda social”. Carlos Guilherme Mota, em se Tdeologia da Cul- tura Brasileira, considera que os anos 30 foram decisivos na reorientagdo da historiografia brasileira. Partindo de um tes- temunho de Anténio Candi alisa trés obras mestras, desse periodo: Evolueao Politica do Brasil, de Caio Prado Jr. (1933), Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1933), ¢ Raizes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1936). A colocacdo, tal como esté formulada, se tornou classica. Eu me Pergunto, no entanto, se ao considerarmos desta forma nao estariamos tomando o testemunho de um autor pela propria explicacdo historica. A meu ver, Sérgio Buarque e Caio Prado Jr. esto na origem de uma instituigio recente da sociedade brasileira, a universidade. Neste sentido eles sto fundadores de uma nova linhagem, que busca no universo académico uma compreensio distinta da realidade nacional. Nao é por acaso que a USP é fundada nos anos 30, ela corresponde & criacio Ge um espago institucional onde se ensinam técnicas e regras cificas 20 universo académico. Gilberto Freyre representa © dpice de uma outra estirpe, que se inicia no século anterior, ‘mas que, como veremos outros capitulos, se prolongou até hoje come discurso ideolSgico. Sérgio Buarque e Caio Prado am rupturas ndo tanto pela qualidade de pensa- que produzem, mas sobretudo pelo espaco social que cram ¢ que dé suporte as suas produgies. Gilberto Freyre re- presenta continuidade, permanéncia de uma tradigo, ¢ ndo é Pot acaso que ele vai produzir seus escrites fora desta institui- so “moderna” que ¢ a universidade, trabalhando numa or- CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL. a ganizagio_que segue os moldes dos an ricos e Geogréficos. Nao h4 ruptura entre 3 berto Freyre, mas reinterpretacdo da mesma problematica para constitui-la, como se fazia no passado, em objeto privilegiado de estudo, em chave pata a compreensio do Brasil. Porém, ele no vai considerd-la em termos raciais, como faziam Euclides da Cunha ou Nina Rodrigues; na época em que escreve, as teorias dade. Mas, a operaciio que Casa Grande e Senzala realiza vai mais além, Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestico em pos idade, o que permite com- ivamente os contornos de uma identidade que hi inha sendo desenhada. S6 que as \digdes sociais eram agora diferentes, a sociedade brasileira j4 no mais se encontrava num periodo de transi¢&o, os rumos do desenvol- vimento eram claros ¢ até um novo Estado procurava orientar essas mudangas. O mito das trés ragas torna-se entAo plausi vel e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mest gem, que estava aprisionada nas aml cistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relagdes do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestigo torna-se nacional, Eu havia afirmado anteriormente que a obra de Gilberto Freyre atendia a uma “demanda social” determinada. Niio ‘quero com isto estabelecer uma aco mecanica entre o autor e sua obra. Tenho clara para mim a observacio de Sartre de que se Paul Valéry é um burgués, nem todo burgués é Valéry. (5) Ver Arthur Ramos, Le Métissage au Brési, Paris, Hermann, 1952. O problema que procuro tratar é outro. © que me interessa discutir’nao é o trabalho de Gilberto Freyre como um todo, que € certamente multifacetado — por exemplo, sua aproxi. macao antropolégica da histéria, sua tentativa de analisar historicamente a sexualidade, etc. E 0 tema da cultura brasi- leira, da mesticagem, que é relevante para a discussio. Neste sentido cabe entendermos como a continuidade do pensa- mento tradicional se inscreve na descontinuidade dos anos 30. Existe hoje um certo tabu em torno de Gilberto Freyre que dificulta a apreciagao de seus escritos. Freqientemente a ar- gumentagao se encerra num circulo vicioso. Ele é um autor genial porque escreveu Casa Grande ¢ Senzala, e vice-versa: trata-se de um grande livrb porque foi escrito por Gilberto Freyre. Colocar a questao da continuidade do passado mento de reorganizagao do Estado brasileiro é, na verdade, Procurar fora da obra as razBes do sucesso do livro. Muito embora existam contradigdes internas entre a estrutura da obra ¢ o Estado centralizador (abordaremos este tema no ca- Pitulo sobre Estado autoritério e Cultura), o livro possui uma qualidade fundamental, ele une a todos: casa-grande € sen- zala, sobrados mucambos. Por isso ele € saudado por todas as correntes politicas, da direita a esquerda. O livro possibilita a afirmagao inequivoca de um povo que se debatia ainda com as ambigiiidades de sua propria definicdo. Ele se transforma em unicidade nacional. Ao retrabalhar a problematica da cul- tura brasileira, Gilberto Freyre oferece ao brasileiro uma car- teira ntidade. A ambigiidade da identidade do Ser na- ional forjada pelos intelectuais do século XIX nao podia re- sistir mais tempo. Ela havia se tornado incompativel com 0 proceso de desenvolvimento econémico e social do pais. Basta Jembrarmos que nos anos 30 procura-se transformar radical- mente 0 conceito de homem brasileiro. Qualidades como “preguica"’, “indoléncia”, consideradas como inerentes 4 raga mestica, séo substituidas por uma ideologia do trabalho. Os como esta ideolo- gia se constituiu na pedra de toque do Estado Novo." O mes- mo proceso pode ser identificado na ago cultural do governo (6) Ver Licia Lipp (cord.), Bite intelectual e Debate Poltica nos Anos 30, Fo de Janwien, £6. Fundorho Getta CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL “a de Vargas, por exemplo na ago que se estabelece em diregio misica popular. E justamente nesse periodo que a musica da malandragem é combatida em nome de uma ideologia que propée erigir o trabalho como valor fundamental da sociedade brasileira.’ O que se assiste neste momento é na verdade uma transformagao cultural profunda, pois se busca adequar as do mestico, que diferentes setores sociais procuram orientar para uma ago racional mais compativel com a organizacio social como um todo. Nao tenho diividas de que esta ideologia possi a questao nacional em novos termos. Dai eu ter afirmado que 0 sucesso da obra se encontra também fora dela. Ao permitir ao brasileiro se pensar p si proprio, tem-se que as oposigdes entre um pensador tradi- cional e um Estado novo nao sao imediatamente reconhecidas como tal, ¢ sio harmonizadas na unicidade da identidade nacional. O mito das trés ragas, ao se difundir na sociedade, per- mite aos individuos, das diferentes classes sociais e dos diver- 30s grupos de cor, interpretar, dentro do padrio proposto, as relagdes raciais que eles proy vivenciam. Isto coloca um problema interessante para os movimentos negros. Na medida ‘em que a sociedade se apropria das manifestagdes de cor e as integra no discurso univoco do nacional, tem-se que elas per- dem sua espe ide. Tem-se insistido muito sobre a difi- culdade de se definir 0 que é 0 negro no Brasil. O impasse nao €a meu ver simplesmente tedrico, ele reflete as ambigidades da prépria sociedade brasileira. A construcdo de uma identi- mestica deixa ainda mais dificil o discernimento entre as fronteiras de cor. Ao se promover o samba ao titulo de ional, o que efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especi- lade de origem, que era ser uma miisica negra. Quando os ‘movimentos negros recuperam o soul! para afirmar asua negri- tude, o que se esta fazendo é uma importagao de matéria sim- (7) Ver Ruben Olven, Violéncia e Cultura no Brasil, Petropolis, Vozes, 1982; ¢ Claudia Matos, Acertei no Milhar: Samba e Malandragem no Tempe de Getiiio, Bio-de Janeiro, Paz e Terra, 1982. “ RENATO ORTIZ bélica-que é ressignificada no contexto brasileiro. & bem ver- dade que o sou! nfo supera as contradigdes de classe ou entre es centrais e periféricos, mas eu forma ele “serve” melhor para exprimir a angustia e a opres- so racial do que o samba, que se tornou nacional. O pro- blema com que os movimentos negros se deparam € de como retomar as diversas manifestagdes culturais de cor, que ja vem muitas vezes maraadas com o signo da brasilidade. Uma vez que os préprios negros também se definem como brasileiros, tem-se que 0 processo de ressignificac4o cultural fica prot mitico, O mito das trés ragas € neste sentido exemplar, ele n&o somente encobre os conflitos raciais como possibilita a todos de se reconhecerem como nacionai Alienacio e cultura: o ISEB Roland Corbisier costumava dizer que antes do movi- mento modernista o que tinhamos no Brasil era simplesmente pré-historia. A como os intelectuais dos anos 50 estabeleciam sua uma corrente de pensamento distinta daquela representada por Silvio Romero ou Gilberto Freyre. Os isel como 0 conceito de raga cede lugar ao de cultura, é necessari agora compreendermos como nos anos $0.0 conceito de cul- tura ¢ remodelado. Contririos a uma perspectiva antropol6- gica, que toma o culturalismo americano como modelo de re- feréncia, os intelectuais do ISEB analisam a questio cultural dentro de um quadro filosético ¢ sociolégico. A critica que Guerreiro Ramos faz do estudo do negro realizado por autores Arthur Ramos revela uma posiglo epistemoligica dife- Proposta anteriormente. ‘ategorias como idas por outras ada", ete. Se- jo que as objetivagdes do espirito humano. Mas eles tudo no ° RENATO ORLZ tido eles privilegiarao a historia que est por ser feita, a ago social, ¢ nao os estudos historicos; por isso, temas como pro- jeto social, intelectuais, se revestem para eles de uma dimensi fundamental, Ao se conceber 0 dominio da cultura como ele- mento de transformagio sécio-econdmica, STSEB se afasta do passado intelectual brasileiro e abre perspectivas para se pen sara problematica da cultura brasileira em novos termos. A leitura dos isebianos nos traz um misto de sentimento de atualidade ¢ passado sem que muitas vezes saibamos nos situar de maneira segura no tempo. Quando, nos artigos de jomais, nas discussdes politicas ou académicas, deparamos com conceitos como “cultura alienada”, “colonialismo” ou “autenticidade cultural”, agimos com uma naturalidade es- pantosa, esquecendo-nos de que eles foram forjados em um determinado momento histérico, e creio eu, produzido pela intelligentsia do ISEB. Penso que nao seria exageroconsiderar o ISEB como matriz de um tipo de pensamento que baliza a discussao da questo cultural no Brasil dos anos 60 até hoje. O livro de Corbisier Formacao ¢ Problema da Cultura Bra- sileira é, neste sentido, paradigmitico, pois desenvolve filoso- ficamente uma argumentacao que se tornou fa1 ir nos meios do cinema, do teatro, da literatura e da musica. Apesar de alguns estudos recentes estabelecerem uma critica profunda da ideologia dos intelectuais isebianos, o trabalho de Caio Na- varro Toledo é pioneiro e abre uma perspectiva nova, perma: nece um descompasso entre a realidade ¢ a critica, uma vez que os conceitos sio articulados a nivel politico e a critic sobretudo de carter filoséfico.? Eu diria que o que é atu pensamento do ISEB ¢ justamente que ele ndo se constitui em “fabrica de ideologia” do governo Kubitscheck. Se de fato o Estado desenvolvimentista procurou uma legitimagao ideol6- gica junto a um determinado grupo de intelectuais, nao é me- nos verdade que os avatares desta ideologia caminharam em um sentido oposto ao do Estado brasileiro. O periodo Ku- Roland Corbisier, Formapio e Problema da Cultura Brasitra, Rio de Ideologies, Sac Paulo, Atica, 1977. Dentro da mesma linha, Maria Silvia Cor- vatho Franco, “O Tempo das tusGes", in /deologia e Mobiizacao Popular, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. cuL JRA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL “7 bitscheck se caracteriza por uma internacionalizagao da eco- nomia brasileira justamente no momento em que se procura “fabricar” um idedrio nacionalista para se diagnosticar e agir sobre os problemas nacionais. Por outro lado, o golpe de 64 encerrou, definitiva © autoritariamente, as atividades deste grupo de intelectuais.’ O que se propunha, portanto, como. ideologia reformista da classe dirigente que procurava moder- nizar 0 pais é estancado, e paradoxalmente no momento em que 0 capitalismo brasileiro irt tomar uma forga até entdo/ nunca vista em nossa historia. A critica que Maria Silvia Car- valho Franco faz a Alvaro Vieira Pinto sobre sua concepgao da alienagao do trabalho ¢ correta; ele certamente ndo percebe que, a0 erigir a nacido como categoria central de reflexio, en- cobre as diferengas de classe ¢ elabora uma ideologia que uni- fica capitalista ¢ trabalhadores. Porém, apesar da justeza da critica, seria dificil argumentar que esta ideologia serviu de algum modo para que se desse uma hegemonia da classe diri gente no pais. Para que isso pudesse ocorrer, seria necessario que os trabalhadores internalizassem a ideologia produzida; a propria histria se encarregou de eliminar no entanto essa possibilidade. O golpe de 64 erradicou qualquer pretensao de oficialidade das teorias do ISEB, entretanto, curiosamente esta ideologia encontrou um caminho de popularizagao que ganhou pouco a pouco terreno junto aos setores progressistas e de esquerda, A meu ver esta é a atualidade de um pensa- mento datado, produzido por um grupo de intelectuais, mas que se popularizou, isto é, tornou-se senso comum e se trans- formou em “religiosidade popular” nas discussdes sobre cul- tura brasileira. Naeesfera cultural a influéncia do ISEB foi profunda. Ao me referir a este pensamento como matriz, o que procurava descrever é que toda uma série de conceitos politicos e filos6- ficos que so elaborados no final dos anos 50 se difundem pela sociedade ¢ passam a constituir categorias de apreensio ¢ compreensio da realidade brasileira. No inicio dos anos 60 dois movimentos realizam, de maneira diferenciada, é claro, (3) Ver N. W. Sodré, A Verdede sobre o Iseb, Rio de Jan ir a, 19 sobre io de Janeiro, Aver (4) M.S. Carvalho Franco, op. ci. “ RENATO ORTIZ is politicos tratados teoricamente pelo ISEB. Refiro-me a0 Movimento de Cultura Popular no Recife e a0 CPC da UNE. Se tomarmos, a titulo de referéncia, dois intelectuais Proeminéhtes desses movimentos, Paulo Freire e Carlos Este- vam Martins, observamos que as relagdes com 0 ISEB sao Carlos Estevam foi assistente de Alvaro Vieira Pinto e trabalhava no ISEB no momento em que assume a direcdo do CPC.* As filiagdes do pensamento de Paulo Freire com o ISEB sio conhecidas, Vanilda Paiva mostra muito bem como a filosofia existencialista, o conceito de cultura e de po- pular orientam difetamente seu método de alfabetizacao.° Nao resta duivida de que existem matizes entre as duas abor- dagens, no entanto creio que se pode genericamente afirmar que os dois movimentos se construfram em grande parte com base no conceito de alienagao cultural. A teoria isebiana, ou pelo menos parte dela, penetra tanto as forcas de esquerda marxista quanto 0 pensamento social catélico. mento teérico que era posse exclusiva de alguns intelectuais dsica (Trilhdozinho), € nas cartithas escolares. isebiana ultrapassa o terreno da chamada cultura popular, ela se insinua em duas areas que sio palco permanente de debate sobre a cultura brasileira: 0 teatro e 0 cinema. suficiente ler os textos de Guarnieri e de Boal sobre © teatro nacional para se perceber 0 quanto eles devem aos conceitos de cultura alienada, de popular e de nacional. Fala- se, assim, na necessidade de se implantar um “ nal” em contraposiclo a um seria 0 Teatro Brasileiro de Comédia; em algumas passagens, figuras de expressio do ISEB, como Guerreiro Ramos, sio esses textos analiticos formaram a base de um pensamento que informa toda uma dramaturgia que se desenvolve na (5) Sobre 0 CPC. ver 0 cap. 3 deste lito e 0 trabaino de Manuel Ber feck, “Proto pars Culture Brasiiera nos Anos 60°, UNICAMP, mimeo (8) V. Pana, Paulo Frere ¢ 0 Necionalsme Desenvolmentist, Pi de Jerero. Corsaro Brasiers, 1960, (7) G Gusmen. “O Teatro como Expresso da Reaidade Naciona. A Bow “Tentatwe Ge Anibine de Deservaivenento do Teatro Brasiewo", Arte on Recta ot 6 196, CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL, ° época. Na Area cinematogrifica dois documentos situam de influéncia isebiana: Uma Situagao Colo- nial, de Paulo Emilio Salles Gomes, e Uma Estética da Fome, de Glauber Rocha." O Iho integralmente desse ponto de ‘a compreender. Como essa filosofia pode se materializar enquanto tal, e mais ainda se populari- zar a ponto de ser determinante em qualquer discussao sobre a questio cultural?" Se nao respondermos corretamente a esta pergunta, o que nos é imediatamente sugerido é que essa ideologia seria pura e simplesmente uma insensatez. Neste andlises de Caio Navarro Toledo e de Maria Silvia Carvalho Franco. Nao creio que os escritos do ISEB sejam um “coquetel ‘um arranjo indigenista” do marxismo, e muito itura sem rigor” dos textos. Seria dificil, dentro desta perspectiva, entender o porqué da hegemonia de um pensamento que se difunde praticamente em toda a esquerda Seo periodo Kubitscheck um tempo de ilusdes, & idade essas ilusdes correspon- diam. ‘A compara com Fanon, que me proponho desen- volver, vem no sentido de responder a essa indagacao. & im- (8) Ver P. E, Salles Gomes e Glauber Rocha em Arte em Revista, n* 1, aienada surge com toda sua expres- 0, que em Os Brasileiros, Ino de 10 cia respeito & alienagto @ 8 ques: tho da conscitncia RENATO OnTiZ Portante, porém, antes de iniciarmos nossa anilise, dissipar- ‘mos possiveis diividas que possam surgir. Nao estou insi- nuando que exista uma filiagao direta entre o pensamento de Fanon e dos intelectuais do ISEB, algo como uma influéncia de um sobre outro. Tudo indica que os trabalhos de Fanon sio elaborados sem maiores conexdes com os pensadores nacio- nalistas brasileiros. Mas é justamente essa independéncia de Pensamentos que torna o problema mais interessante. A refe- réncia a um tipo de ideologia nao brasileira introduz novos elementos para a compreensao do discurso isebiano e nos per- mite entender como a histéria penetra e estrutura o préprio discurso politico. Por outro lado, ela da uma abrangéncia maior a“Giscussdo da problematica do nacional, pois nio se restringe & particularidade do quadro brasileiro. + Aventuras e desventuras das idéias O que chama a atengdo nos escritos de Fanon e do ISEBE que ambos se estruturam a partir dos mesmos conceitos fun- damentais: 0 de alienaco ¢ 0 de situacdo colonial. As fontes originarias sio também, nos dois casos, idénticas: Hegel, 0 jovem Marx, Sartre ¢ Balandier. A categoria de alienagdo, de origem hegeliana, se reveste nos textos de uma acentuada in- terpreta¢éio francesa do idealismo alemao. E que a obra de Hegel, traduzida e comentada por Hyppolite © Kojéve nos anos 40, difunde pouco a pouco uma compreensdo do sistema hegeliano calcada na problemitica da alienacio. A dialética do senhor e do escravo torna-se assim classica nas discussdes so- bre a dominagao social, econdmica ¢ cultural. Paralelament te, € neste periodo que é traduzido para o francés Manuscritos de 44, onde Marx retoma o pensamento hegeliano sobre a alie- nagdo para aplicd-lo 4 compreensio da luta de classes." Sua analise profundamente humanista ira reforgar a interpretagiio de Hegel proposta pelos exegetas franceses. Cabe lembrar que (11) Sobre a presenca de Hegel na Franca 6: tential Marxism in Postwar France. Nova Jersey Ver ainda Koitve, tar Mark Poster, Exis: 19, Uni. Press. 1977 voducvon $ ly Lecture oe Megel, Pave, 1846. 0 J. HypoC- ture de la Phenomenciogie ve /Esant de Hegel, Pars, CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 31 ‘a questiio do humanismo torna-se 0 eixo central das discus- sdes que se realizam no final dos anos 40 junto & comunidade intelectual francesa. O célebre livro de Sartre L’Existentia- lisme est un Humanisme € somente um dos escritos que enfa- tizam a dimensio humana da libertagao, e mostra que 0 de- bate entre marxismo e existencialismo se realiza sob 0 signo do humanismo." © debate teré influéncias diretas em'Fanon, que nao hesitaré em pensar a libertagao nacional em termos de humanizacio universal do proprio homem. As repercussdes sio também nitidas nos pensadores do ISEB, e Alvaro Vieira Pinto nao deixa de considerar 0 problema em seu livro Cons- ciéncia e Realidade Nacional." O conceito de situagio colonial foi pr rado por Balandier, que em 1951 publica um primeiro esse respeito nos Caltiers Internationaux de Sociologi¢. tre, que muitas vezes é apresentado como um dos elaboradores do conceito, publica Le Colonialisme est un Systéme, em data bem posterior (1956), mas seu texto terd certamente influén- cias tanto em Fanon quanto nos isebianos."* A originalidade de Balandier consiste em aprender 0 colonialismo enquanto fendmeno social total. Bom leitor de Mauss, ele procura se afastar das visdes particularistas dos antropélogos anglo-sa- xdes (aqui talvez devéssemos sublinhar duas excegdes, Glucks- man e Fortes), e tenta pela primeira vez compreender 0 con- tato entre civilizagdes dentro de uma perspectiva globalizante que leve em consideragio os diferentes niveis da realidade: so- cial, econémico, politico, cultural e até mesmo psiquico. Neste sentido, Balandier procura entender os aspectos da domina- Ho colonialista, seja a nivel do imperialismo ccondmico seja em suas manifestagdes mais profundas que engendram a pro- (12) A poldmica entre Sartre @ Lukas & conhecide de todos, no entanto ppode-se compreender © quanto a discussio sobre o humanismo| era central ‘quando notamos que um autor menor, membro do PCF, escreve para refuter - RENATO ORTIZ mento, e chega até mesmo a i i subjetivas ao colonialismo, inten ened nae seees Para Os movimentos messi: ini reac a i i ® aot a dominacdo colonial. Balandier ira mais longe em conceita desig Be? Sia 0 primeiro intelectual que associe & oon le alienacdo ao de situagao colonial. Mui a (luestio no seja o cerne de sua abordagem, Problema da “‘tomada da consci intou acusando as relagbes de dominador a dominado, os 0s entre esses dois termos — el f tomada deconsciéncia que aspi transformagio died que aspira a uma transformaga io radical Ga situacdo, a um progresso. Isto Hegel jé exprimiu afimacae mano, social e histérico. M; Si i Historico do proleteredo re Seeds, anunciou o papel evolucao das forgas produ dus&o, mas ainda de uma cia a se dar & nogdo de consciéncia dependente” no aspecto da tomada de consiénca et por sinc nee ita consondncia com os ensinamentos 0s de Sartre {ik em seu estudo sobre a questio judia vai trabathar o pro, Hiatt da autentcidade e da inautentcidade do homer ju. de vinealandier nto se limita, porém, aos aspectossubjetvos fa gituasio colonial, mas procura entendé-la em sua total eu diagnéstico, de que as ‘sociedades coloniais seriam cnr St ie eto ip ett Si sro ner lwo & paradigmético para Fanon Para. Seu sgost® Par Fann quando excreve Peau Nore Masques Blane CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 83 “globalmente alienadas”, serviré de ponto de partida para o ensaio de Corbisier sobre a cultura brasileira. No entanto, uma vez ressaltada a importéncia de sua contribuicdo, é necessario sublinhar que as preocupacdes de Balandier sao distintas dos intelectuais ¢ dos ensaistas poli- ticos do mundo periférico. A conclusio de um outro artigo seu, que procura dar um balango das andlises sobre 0 com- plexo colonial, revela o carater pronunciadamente académico de seus estudos, que esto mais preocupados em pensar como a sociologia e a economia politica podem retirar maiores ensi- namentos da observacio cientifica dos efeitos da dominagdo colonial."* Sua polémica com Malinowski, sua insisténcia em compreender a ‘ago colonial enquanto “fendmeno social total” mostram que seus interesses, embora possuam uma di- mensto politica, tém sobretudo um cardter académico. As anélises de Sartre se revestem sem davida de uma outra colo- ragio. Les Temps Modernes 6 uma das poucas revistas de es querda que denunciam o colonialismo em todos os sentidos, € nao hesita em tomar partido contra 0 pensamento colonialista dominante na época até mesmo no interior dos partidos Co- munista e Socialista franceses. Mas os interlocutores de Sartre jropeus, a quem ele procura mostrar por todos os meios istificagao da moral colonialista. No prefacio ao livro de Memmi, Sartre faz.uma bela anélise do processo de desuma- ido, mostrando que 0 colonizado é tratado ‘A impossivel desu- manizago do oprimido volta-se e transforma-se em alienagio do opressor”; eu diria que é este 0 objeto privilegiado por Sar- tre em sua luta anticoloni :nacao do colonizador, s intelectuais do mundo periférico falarao pelo “outrolado”, seja de uma forma reformista como o ISEB ou revoluciondria como Fanon. Os conceitos de alienagao e de situago colonial so reto- mados pelo ISEB e por Fanon dentro de uma perspectiva poli- preticio de R. Corbisier, £4, Paz e Terra, 1967. tica que aponta para a superagao a E verdade que esta superagio sera soneetian genni fenciada, como procuraremos mostrar mais adiante, mac‘p due é importante frisar no momento é que tanto 0 ISEB sean, ‘anon, a0 operarem com 0s conceitos propostos, vRo vat, los a realidade objetiva que vivem enquanto atores so. G5, categoria de nacdo esta ausente tantoem Sartre quan, em Balandier ela 6 no entanto fundamental para cs penn dores do mundo periférico. A superacdo colonialists wy nek ser pensada quando associada aos movimentos nacionaters concretos aos quais os te6ricos politicos estio vinculsdec e nicamente. E dentro deste quadro de pen: oh sier pode construir toda uma abordagem da cal a partir da afirmacao de Balandier de que a “alienagio oon titui a esséncia do comp ® Fanon caminha na mesma direedo, em seu livro Peau Noire Masques Blaxas que s6 ocorreré em icar na Argélia e se Por isso a categoria integra & luta pela libertago nacion, de nacao ‘se encontra ainda ausente deste seu texto. A colonial recebe, portanto, um: lerpretacao um tai - forica, pois o que retém sua atengao é a dominagio do nearo pelo homem branco. O objetivo do livro é porém, buciarte claro. Escrito na esteira de O que é a Literaiura, de Serna Fanon propde levar ao leitor negro uma reflexdo sobre eon situacdo social.” A leitura funcionaria como uma especie de espelho que revelaria ao Regro sua imagem real, o que the Permitiria se engajar em um processo de desalienagdo de ses Proprio Ser. O tema da “tomada de consciéncia’" a que vapi. damente se referia Balandier, reaparece agora no interior tin discurso do dominado. No mesmo sentido dirdo os intelestuais do ISEB: “A falta de consciéncia nacional, a falta de cons, CULTURA GRAS IR AEE ~ ciéncia critica em relagdo a nés mesmos se explica pela alie- is 6 contetido da col6nia nao é a propria colénia, mas a metropole... A tomada de consciéncia de um pais por ele éprio nfo ocorre arbitrariamente, mas é um fendmeho his- que implica e assinala a ruptura do complexo colo- A importancia dada a tematica da consciéncia que Alvaro Vieira Pinto chega a estruturar sua Consciéncia € Realidade Nacional em dois volumes: 9 primeiro dedicado & ‘consciéncia ingénua, alienada, o segundo a consciéncia cri- tica, desalienada, e que aceleraria o processo de desalienagao nacional O que permite no entanto que dois assuntos distintos, a problematica racial e.a nacional, possam ser tratados ¢ com- preendidos através das mesmas categorias tedricas? Dito de outra forma, o que existe de comum entre a tematica da domi- nacio racial e da dominaco colonial? Creio que os movimen- tos negros como os movimentos nacionalistas tém uma neces- sidade premente de busca de identidade. Para além das cate- gorias de colonizador/colonizado, branco/negro, opressor/ oprimido, permanece a pergunta, “quem somos nés' “por que estamos assim?”. Fanon quando escreve se dirige ‘aos negros ¢ propée uma leitura da realidade racial que os leve a uma escolha entre uma situacao auténtica ou inauténtica do homem negro. © mesmo tipo de inquietacdo orienta os inte- sular, opde-se uma sociologi *naci Can- dido Mendes, ao definir as fungdes dos intelectuais e da uni- 4 que sua tarefa fundamental sera a “procura da nos que se voltam para o passado na busca de uma identidade (23) Cotbisier, op. ct, pp. 40 682. (26) Guerreiro Ramas, Introdugio Crkica & Sociologia Bresilea, op. cit. (25) Candida Mendes, Nacionslismo @ Desenvolvimento, Rio de Ja- 70, IBEA, 1962. RENATO ORTIZ nacional, escreve Fanon: “Este criador que decide descrever a verdade nacional se volta Paradoxalmente para o Passado, Para o inatual. O que ele visa na sua intencionalidade pro: funda so os excrementos do Pensamento, o que esta fora, os amente estabilizado. Ora, o inte- deve saber que a verdade * A énfase na au- Austria. Os inftelectuais do mundo perteico tn mie Pacdo constante com o sujeito colonizado, por isso encontra, ‘mos recorrentemente nos diversos autores 0 tema do “com. le do colonizado em relag&o ao coloni- de Fanon da qual foi engendrada. A cultura define portanto um espaco privilegiado onde se processa a to. nada do contexto social no qual mada de consciéncia dos individuos e se trava a luta politica, bisier: “Em um contexto globalmente alienado, a cultura esta inevitavelmente condenada a inautenticidade. Se uma cultura auténtica é a que se elabora a partir e em fungdo da realidade prépria, do ser do pais, a colénia nao pode pro. duzir uma cultura auténtica por si mesma que nao tem ser ou destino préprio. A sua cultura s6 podera ser um reflexo, um subproduto da cultura metropolitana, e a inautenticidade que a caracteriza € uma conseqiéncia inevitével da sua aliena- s40”.” Da mesma forma considera Fanon que a libertagao nacional € 0 tinico quadro possivel para a realizacio de uma cultura auténtica e nacional. * A autenticidade marca por- tanto os diferentes niveis de manifestacao da situago colo- nial, ela € subjetiva, cultural e em iiltima instancia se realiza no interior de um espaco nacional. Por isso a procura da iden- 8) non, Ls Domes dl Tare, Pais, Maser, 170 (27) Corbisier, op. cit., p. 78. lites 28) Fanon, ver om parca 0 cap. IV, “Sobre & Ctra Nacion”, in Les Damnés..., op. cit. a . i CULTURA BRASILEIRA F IDENTIDADE NACIONAL. 7 tidade leva a uma indagacdo sobre o homem negro ou 0 ho- mem colonizado. No € por acaso que a escravo é recuperada por rico, ela permite o diagnéstico de uma realidade col unificando os niveis subjetivo e objetivo que a constituem. O ro de Fanon sobre 0 racismo contém especi capitulo sobre “O negro e o reconhecimento”, e um sutzapi- tulo é dedicado a "O negro e Hegel”. Ele parte da nogio de reconhecimento e procura mostrar como o negro para se cons- tituir como pessoa tem de passar pela referéncia ao homem branco. Como todo ser humano, o negro sente a necessidade de se ver reconhecido enquanto tal, mas este reconhecimento torna-se impossivel numa sociedade onde existem senhores brancos e escravos negros. Fanon capta muito bem esta situa- Ho quando afirma que o negro nao pos: ‘ontol6gica” diante do olhar do branco, pois ele s6 consegue se enxergar enquanto escravo, reflexo do dominador. Neste sen- tido, sua “esséncia” esta alienada no Ser do senhor branco. Sua abordagem da situaco colonial, embora mais politizada, pois é escrita no momento da guerra da Argélia, ¢ também marcada pela presenca de Hegel. Ao descrever 0 mundo co- lonial como maniqueista, dualista, separado entre dois p6los antagonicos que se excluem, 0 mundo dos dominadores e dos dominados, ele retoma o texto hegeliano. Mas nfo se trata mais do Hegel filésofo, ou do comentario critico dos exegetas, 0s principios filoséficos perdem em abstracdo e se transfor: mam em categorias s6cio-polfticas para o entendimento de uma realidade concreta. Preso a esfera da alienac&o, 0 colo- i: /escravo sera visto pelo senhor enquanto ica que o maniquefsmo do mundo colon: , diminui-lo como homem. Da mesma maneira que © negro, submisso & dominacao racial, 0 colonizado no conse- gue se reconhecer como ser humano, ele se vé através do olhar do colonizador. Fanon dird que o dualismo colonial “anim: liza” o colonizado, que 0 colonizador se rel nizado através de uma li que 0 coloca na situagio de uma “coisa”. Entre os intelectuais do ISEB, Corbisier é talvez quem melhor explora as implicagbes dos conceitos hegelianos. Comentando 0 conceito de situago co- lonial ele escreve: “O bindmio senhor e escravo, que marca as, 10 de Hegel sobre o senhor € 0 s RENATO ORTIZ, relagbes entre colonizado ¢ colonizador, nos parece caracteri- zar 0 complexo colonial. O colonizador é sujeito, ao passo que 0 colonizado € objeto. O primeiro ¢ titular de direitos ¢ pri légios, 0 segundo s6 tem obrigagdes e deveres, quanto aos reitos apenas aqueles que 0 senhor concede. O escravo nao € sujeito ¢ nao tem direitos, porque, como diria Hegel, nao é reconhecido pelo senhor, nao é visto por ele como se fosse também sujeita O escravo ndo tem ser proprio, nada é em si mesmo, pois 0 seu ser se fundamenta no ser do senhor, de cuja vontade ¢ apenas o reflexo”.” Dentro desta perspectiva, 0 co- lonialismo impde aos paises colonizados uma dupla domina- sao, ela € exploragao econdmica das matérias-primas e im- portacdo de produtos acabados, mas sobretudo dominagao cultural. A analogia com a economia levard alguns autores a afirmar que a importagao do Cadillac, da Coca-Cola, do chi- clete, do cinema implica 0 consumo (antropofgico?) do Ser do Outro. Dito de outra forma, 0 colonizado importa a sua consciéncia, ele é 0 reflexo do reflexo. Este tipo de andlise marca até hoje as discussdes sobre cultura brasileira. Um exemplo da sua atualidade, e de seus equivocos, pode ser dado na recente discussao sobre a penetragdo da miisica soul junto as comunidades negras. Para muitos criticos isto nao seria nada mais do que uma nova absorcdo, pelos negros brasilei- 0s, do imperialismo cultural american Eu havia dito anteriormente que os intelectuais do mundo periférico falavam de um lugar diferente daquele ocupado por Sartre e Balandier, e que por isso os conceitos, que jé se apre~ sentavam nesses autores europeus, sofreram um movimento de rotagdo e passaram a ser considerados a partir de uma po- sigdo terceiro-mundista. Na verdade, a dialética do senhor e do escravo possibilita uma dupla operacdo, 0 diagnéstico da realidade e, por conseguinte, uma ago politica que visa trans- formé-la. Hegel, ao descrever as relagdes entre o senhor © escravo, sublinha a necessidade de reconhecimento, mas, adianta, a relacdo corresponde a um momento da objetivacao do Espirito. Ela deve portanto ser superada, ¢ 0 escravo cor- responde ao pélo ativo da relagao. E 0 escravo quem trans- forma o mundo pelo seu trabalho, ele € a mediacao entre 0 (23) Corbisier, op. cit., pp. 29-30. | (CULTURA BRA, Fea = senhor eo mundo, 0 que Ihe confere uma posicdo de dina- mismo em contraposicdo a ociosidade estatica do senhor. O escravo é a negagio libertadora, ele est do lado da superaczo, da historia. A identificagao do senhor ao colonizador e do es- cravo a0 colonizado é certamente ideolégica, mas permite aos pensadores periféricos se situarem do lado da Histéria, e pos- sibilita articulagdo de um discurso politico que se insurge con- tra a dominagio colonialista. Ao tratarem a situagdo colo- nial em termos de alienagao, imediatamente eles podem con- ceber a sua contrapartida, o processo de desalienagao do mundo colonizado. Se, como dizem alguns isebianos, o Ser do homem colonizado esta alienado no Ser do Outro, é necessdrio dar inicio a um movimento que restitua ao colonizado a sua “esséncia’. Isto s6 pode ocorrer se o discurso extravasar do terreno filoséfico para o dominio politico. O mesmo tipo de operagio discursiva, a passagem da fi- losofia para a politica, se da em relagao A categoria de totali- dade, pelo menos no que diz respeito aos isebianos. |Alvaro ieira Pinto, por exemplo, procura mostrar como a totalidade é um carater distintivo do pensar critico, ¢ ele a opde a. um outro tipo de pensamento que para compreender a realidade tem necessidade de mutilé-la.” A apreensdo seria neste caso somente parcial. De uma certa forma Vieira Pinto retoma a critica que Balandier faz. aos antropélogos anglo-saxdes, ¢ ab- sorve a perspectiva tedrica proposta por Mauss e amplamente divulgada por um sociélogo como Gurvitch, que tinha na épo- ca uma importincia considerdvel junto intelligentsia brasi- leira, No entanto, a categoria de totalidade se reveste logo a seguir de um outro significado, e passa a se identificar sobre- tudo com a nagio, Criticando 0 pensamento causal, que com- preende a realidade social a partir de pontos de vista par- ciais, Vieira Pinto reabilita 0 pensamento total, mas|em se- guida falaré de “pais subdesenvolvido como totalidade” e da “nagdo como totalidade envolvente”’. Esta passagem do plano metodolégico para o diagnéstico concreto acarreta certamente problemas teéricos, mas, como no caso da dialética do senhor € do escravo, permite uma leitura ideol6gica, portanto poli- (90) Ver A. V. Pinto, cap. IV, “A Categoria de Totalidade’, in Cons- o RENATO ORTIZ tica, da situacao colonial. Nao é dificil perceber que Vieira into passa sem grandes sutilezas da abstracio filosofica de “estar no mundo” para a materialidade do “viver em um mundo colonizado”. Pode-se, desta forma, associar 0 conceito de totalidade aos principios da dialética hegeliana, pois 0 ho- mem que vive numa nagao subdesenvolvida s6 pode realizar 0 seu Ser ao transformar esse mundo, ¢ para os isebianos trans- formacio significa desenvolvimento.” Ressurge neste ponto 0 tema do humanismo ao qual ja nos haviamos referido ante- riormente. O desenvolvimento é um humanismo porque res- titui a nacdo a sua esséncia e devolve ao homem colonizado sua dimensdo humana, Um novo homem surgiré das cinzas do anterior, mas isto s6 se concretizard se 0 mundo colonizado superar a histéria do colonialismo, isto é, criar um Estado “verdadeiramente" nacional. Falando sobre a luta argelina, Fanon se refere a “verdade” da nagio ¢ afirma: “A nagdo ar- selina nao esta mais num céu futuro. Ela no é mais o produto da imaginagao nebulosa ou dos fantasmas enrijecidos. Ela est4 no centro do novo homem argelino. Existe uma nova na- tureza do homem argelino, uma nova dimensio de sua exis- téncia”” As convergéncias de pensamento entre Fanon e Vieira Pinto so interessantes. Bons leitores de Hegel, ou de seus comentadores, intérpretes dos movimentos politicos que vi- venciam, eles nao se limitam a discutir a possibilidade de exis- téncia de um “novo” homem brasileiro ou argelino. Pelo me- nos filosoficamente a superacao do colonialismo implica nao somente o desaparecimento do senhor, mas abre perspectiva Para que uma nova humanidade se concretize. Interessa-lhes assim descobrir o homem por tras do colonizador, este homem que é simultaneamente ordenador e vitima de um sistema de opressdo. A superagdo remete portanto a um universal, & hu- manidade. Torna-se, assim, comum dizer que a morte do co- lonizador é também a morte do colonizado. Fanon leva esta Perspectiva as uiltimas conseqiéncias e chega inclusive a pen- sar 0 Terceiro Mundo como matriz de libertagdo do homem (31) A.V. Pinto, ideologia ¢ Desenvolvimento Nacionel, Rio de Ja- ISEB, 1959, (32) Fanon, Sociologie d'une Révolution, Paris, Mespera, 1968, p. 12. CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL, oy universal.” Dramaticamente ele escreve nas tiltimas linhas de seu libelo contra o colonialismo: “Camaradas, por nés mes- mos, pela humanidade, é preciso criar uma pele nova, desen- volvermos um pensamento novo, tentarmos edificar um ho- mem novo". As idéias e seus reflexos Até 0 momento vinhamos buscando as convergéncias entre o pensamento de Fanon com o dos intelectuais do ISEB. Devemos sublinhar agora as difereneas, e 0 que é mais impor- tante, interpretar o porqué das discrepancias, uma vez que as, perspectivas tedricas so semelhantes. Como entio, a partir das mesmas premissas, podem resultar respostas politicas tio distintas? Para equacionar este problema gostaria de comen- tar uma passagem na qual Fanon descreve o dualismo da si- tuaco colonial. “Nos paises capitalistas, entre o explorado eo poder se interpde uma variedade de professores de moral, de conselheiros, de ‘“desorientadores’. Nas regides coloniais, pelo contrario, 0 policial e 0 soldado, pela sua presenga imediata, suas intervengdes diretas e freqiientes, mantém o contato com co colonizado eo aconselham a golpes de coronha e de napalm angio se mexer.”"* Uma primeira conclusio que se pode tirar € sobre a violéncia nas sociedades coloniais, este sera por sinal um dos eixos em torno dos quais gira o pensamento fano- niano. Para Fanon, a violéncia é 0 fundamento do colonia- lismo. Ela se expressa no nivel econémico, politico, adminis- trativo, e até mesmo psiquico. Suas andlises dos sonhos dos colonizados silo interessantes, elas mostram, por exemplo, como esses homens tém sonhos “musculares", “agressivos", que denotam no nivel do inconsciente uma liberac&o da opres- sio do cotidiano.” Por isso se afirma que nas sociedade colo- nizadas existe uma ‘‘violéncia atmosférica” que paira no ar; é essa violéncia-resposta, que € proporcional a violéncia exer- cida pelo opressor, que leva a revolugaio. Mas é essencial per- (33) Ver Fanon, Pour la Révolution Africaine, Paris, Maspero, 1969. (34) Fanon, Les Damnés..., op. ct., p. 233. (35) Fanon, idem, p..8. (38) Fanon; Les Damnds..., op. cit ~~ - ceber qe para Fanon (0 que é discutivel) ela é distinta da violéncia. exercida pelo colonizador. Fanon retoma a interpre- taco da dialética do senhor e do escravo e entende que so- mente 0 escravo pode ser revolucionario e que isto se realiza através da morte do senhor. Neste sentido a violéncia expr. mida na guerra anticolonialista é libertadora e transcende a condicao do oprimido para se revelar como libertagio do ho- memem geral. Mas 0 que permite esta violéncia de se concretizar? A Fesposta se encontra no préprio dualismo colonial. Entre colo- nizador e colonizado nao existe mediagao possivel, oconfronto €direto. A situacio colonial nao se define, portanto, pela luta de classes, pois a classe dirigente nao é aquela que detém a ropriedade, mas primeiramente aquela que vem de “fora”, E-se rico porqueé-se branco, é-se branco porque é-se rico.” Esta passagem condensa bem o pensamento de Fanon. Mas © que se afirma, quando se diz que na colénia nao existem “professores de moral” ¢ “desaconselhadores", é que a situa- sao colonial se caracteriza pela auséncia de uma sociedade civil. Gramsci certamente diria que ela nao se define pela he- ‘gemonia, mas pela forga, A zona intermediairia que existe nas sociedades ocidentais, ¢ que serve para amortecer os conflitos, inexiste nas sociedades coloniais. Dentro deste quadro nao hd Possibilidades para que a luta ideolégica se institua, 0 embate €aberto e violento, ¢ leva necessariamente a revolugio. Nada mais distante do pensamento do ISEB do que uma reflexdo sobre a violéncia ou a revolugdo. Somente Glauber Rocha recuperou no Brasil uma discussio do tema proposto por Fanon. E aqui, creio eu, podemos falar de influéncia di- reta, pois 0 manifesto sobre uma “Estética da Fome” possui uma inspiraco acentuadamente fanoniana, Mas 0 que Glau- ber propic é simplesmente uma estética violenta, isto é uma violéncia simbélica que exprima no cinema a miserabilidade dos povos do Terceiro Mundo, Existe porém uma distancia entre a violéncia como realidade e a violéncia como metéfora, Mas por que os isebianos nao retiram de Hegel as mesmas conclusdes? Acredito que a resposta pode ser encontrada quando se aborda o argumento da sociedade civil. Um tema (37) dem, p.9. CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 63 constante nas preocupacies isebianas diz respeito as discus- soes sobre a auséncia ou presenga de um “povo" brasileiro. Candido Mendes, ao definir a situagao colonial, dira: “Fun- damentalmente nao se encontra na colonia lugar para as posi- des intermedirias atenuando os contrastes entre os extre- mos, no cimo ¢ na base do edificio coletivo. Numa palavra: faltam as classes médias para exercerem esse papel € permi- tirem que, em tais coletividades, surja um verdadeiro povo”.* Entre a dialética do senhor e do escravo e o diagnéstico da realidade brasileira se insinua portanto a historia. Paraios ise- ‘nos a independéncia nao continha ainda as condigdes que se articulavam suficientemente entre si a ponto de se consti- tuir um povo brasileiro. Alguns, como Corbisier, chegam a dizer que até a Semana de Arte Moderna existia no Brasil uma pré-hist6ria. Mas a partir da industrializagao ¢ da urbaniza- 0 brasileira, assim como da revolugdo de 30, 0 passo da his- toria caminha cada vez mais para a constituicao de um ele- mento novo: o advento do povo no Brasil. No final dos anos 50 escreve Guerreiro Ramos: “Hoje, porém, o povo comega a ser um ente politico, maduro, porque portador de vontade e dis- cernimento proprios. O povo esta substituindo, desta maneira, aqueles grupos e classes no papel de principal ator do pro- cesso politico”.” Mas 0 que seria concretamente este povo brasileiro, como defini-lo e diferencid-1o dos segmentos oligat- quicos que em prinefpio deteriam 0 controle politico do pais? Acesta pergunta, que perpassa a obra dos mais diversos inte- lectuais do ISEB, Nelson Werneck Sodré responde: sio, as partes da alta e da média burguesia, a pequena burguesia, o campesinato, 0 proletariado, e 0 semiproletariado.® Esta enumeragdo exaustiva deixa poucos setores fora do que se en- tende por nagio brasileira, mas ela tem um significado pro- fundo que é justamente o de negar a afirmativa de Fanon e confirmar a existéncia de uma sociedade civil. Maria Silvia Carvalho Franco captou bem este aspecto do pensamento ise- biano quando dizia que seus intelectuais eram fundadores da

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