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CXLIAP LEZPELOOELZ snivaga STHOTdd - one0y 6 ‘Compagnon, Antoine © demnia ds tora erature senso comumy Antoine Compagnon; taducao de {leonice Paes Belo Hor 2305p. ‘Tradugio de: Le démon de la théorie linéatre et sens comsmn TEVISNO DE TEXTO E NORMALIZAGAD hear keanoeeC ME N T O'S de Coltimbia, em Nova \irio intitulado “Some Puzzles for Em torno de mos alguns textos fundadores da teoria lite- ‘dos como definitivos € cuja avaliacao ja nto nos js. Posteriormente, na Sorbonne, dediquei um eratura. Desta vez, diante de um piiblico i-me necessirio fazer um discurso magistral, sem bordagem aporética, Este livro € fruto desse gradleco aos estudantes que 0 tornaram possivel. ago de La Troisiéme République des Lettres ica clas Letras) (1983), criticaram-me varias o de haver interrompido a pesquisa no momento em interessante: esperavam pelo fim da histr ou uma Quinta Repiiblica das Letras. Como des- jento em que a histria literdria foi substituida pela ar os epis6dios seguintes, sem que nossa ria intelectual neles se integre? Para romper 0 € por fim as controvérsias, decidi escrever um 10, Les Ging Paradoxes de la Modernité (Os Cinco Modernidade) (1989), do qual este € também a o. Sou grato a Jean-Luc Giriboni, que me estimulou assim como a Marc Escola, a André Guyaux, a mbardo e a Sylvie Thorel-Cailleteau, que o releram. pogos do Capitulo II foram publicados com os titulos logie” {Alegoria e Filologial, em Anna e Carla Locatelli, Ed., Retorica e Interpretazione, Roma, 1994, € “Quelques Remarques Sur la Méthode des 's Paralléles® [Algumas Observacdes sobre 0 Método s Passagens Paralelas], Studi di Letteratura Francese, 0.22, * APETULO 3 35 38 Comper dt enn: «Toma da expresdo 39 Lteredade 08 econo 2 cons € ert “ cartruio wo AUTOR ” 1 teve dere do stor ® Xx Voluntas © actio — Algor flog 36 loops © herent 9° Jeng « consdtocia 65 © eo da psmgens parks 6s ‘Sait fom the bo’: moth n Inteogdo coer %5 (Os dos agumertos cone 3 itengdo 9 Reino a neneo a Sendo nto 6 sgiagio 85 Inengo no € premedasto 30 2 presunio de ienconaldade 93 cavimiwo m0 MUNDO 7 Conte 4 mate 2 Anite 102 . 6 realm, reflexo 0 contengto 106 1, reference intend 10 ‘A resiséncia do leitor Recepcio e influgecia ae 0 gr cone moach de ee ere L Searvemer oma: | cans aoe ea cee eeeoed Sa Oa se pana es Boe cnet men or tees crme a | ines ee ee ess aos pa rs ad cole ee ee * flog Ste acre ian es ae onan | ome So ml poems so ing ease aes he cose De wee rca em es Valor € posteride Poe um relativism modersdo 46 “7 153 156 157 159. 163 165 166 173 176 180 0 QUE RESTOU DE NOSSOS AMORES? ¢ Socrates, s6 havia 0 Demnio da proibio; 0 meu nador, © meu é um Demdnio de ago, um Deménio de combate. Baudelaire, “Expanquemes ox pobre” > uma célebre frase: “Os franceses no tém a Pelo menos até a explosio dos anos sessenta ‘A teoria literiria viveu entio seu momento de gh se a f€ do prosélito Ihe houvesse, de repente, permi um século de atraso num fitimo de segundo. Os mo fuss0; ao citculo de Praga, ao New Criticism mericano, sem falar da estilistica de Leo Spitzer nem pologia de Emst Robert Curtius, do antipositivismo de lenedetto Croce nem da critica das variantes de Gianfranco , ou ainda da escola de Genebra e da critica da cons- ou mesmo do antiteorismo deliberado de F. R. Leavis € de seus discfpulos de Cambridge. Para contrabalangar todos esses movimentos originais e influentes que ocuparam a pr ira metade do século XX na Europa € na América do Norte, 86 poderiamos citar, na Franca, a “Poética” de Valéry, segundo © titulo da cétedra que ocupou no Colégio de Franga (1936) — efémera disciplina, cujo progresso foi logo interrompido pela guerra, depois pela morte —, ¢ talvez as sempre enig- maticas Fleurs de Tarbes (Flores de Tarbes), de Jean Paulhan (1941), tateando confusamente a definigio de uma retérica geral, nao instrumental, da lingua: esse “Tudo € ret6rica’, que a desconstrugio deveria redescobrir em Nietzsche, por volta de 1968. © manual de René Wellek Austin Warren, Theory of Literature (Teoria da Literatural, publicado nos Estados Unidos em 1949, encontrava-se disponivel (ios fins ‘cio de bolso. Em 1960, pouco antes de morrer, buia esse atraso € esse isolamento franceses a trés| -s: um velho sentimento de superioridade ligado a uma “io literiria e intelectual continua e eminente; o espirito _geral os estudos literdrios, sempre marcaclo pelo positivismo ancilar das formas literirias, impedindo o desen- volvimento de métodos formais mais sofisticados. Acrescen- dle bom grado, mas isso é evidente, a auséncia de uma ca e de uma filosofia da linguagem compa invadiram as universidades de lingua alema ou inglesa, dlesde Gottlob Frege, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein Jolf Carnap, assim como a fraca incidéncia da tradigao hermenéutica transformada, entretanto, na Alemanha, intei- mente, por Edmund Husserl ¢ Martin Heidegger. fm seguida, as coisas mudaram rapidamente —aliés, come- Se mover, no momento em que Spitzer fazia aquele \andstico severo —,a tal ponto que, por uma muito curiosa ersio que leva a refleti, a teoria francesa viu-se, momen- taneamente, algada 2 vanguarda dos estudos literirios no undo, tum pouico como se tivéssemos, até entao, recuado ara saltar melhor, a menos que um tal fosso, subitamente sposto, tenha permitido inventar a polvora com uma ino- céncia e um ardot tais que deram a ilusto de um avanco, durante esses mirificos anos sessenta, que se estenderam, de fato, de 1963, fim da guerra da Argélia, até 1973, com o pri- meio choque petroleiro, Por volta ce 1970, a teora literdria \trativo sobre os jovens ‘poética”, “estruturalismo”, “semiologia”, “narratologia” —, el brithava em todo seu Jor. Quem viveu esses anos feé- ricos $6 pode se lembrar deles com nostalgia. Uma corrente poderosa arrastava a todos nds. Naquele tempo, a imagem do ‘estudo Merdrio, rexpaldada pela teoria, era sedut iriunfante, se uma pequena a quanto a expli- 10, energicamente. A estag- Depoi os estudos literdrios franceses alean- {ram 08 outros no caminho do form: de, as pesquisas te6ricas nao conheceram imentos na Franca. Seria o caso de incriminar ist6ria literiria sobre os estudos franceses, ica nao teria conseguido abalar em profiindl disfarcar provisoriamente? A explicagio — le Gérard — parece insuficiente, pois a nova critica, sino que nao tenha derrubado os muros da velha Sorbonne, 'u-se solidamente na Educagio nacional, sobretudo nsino secundario, Talvez por isso mesmo ela tenha se do tigida. £ impossivel, hoje, passar num concurso sem ur os distinguos sutis € 0 jargao da narratologia. Um lato que nao saiba dizer se 0 pedaco de texto que tem bos olhos € “homo-" ou *heterodiegético”, “singulativo” ou “iterativo", de “focalizagao interna” ou “externa” nao ¢ ilmitido, assim como outrora era necessario distinguir um nacoluto de uma hipalage, e saber a data de nascimento de Montesquieu. Para compreender a singularidade do ensino superior e da pesquisa na Franca, € preciso ter sempre em mente a dependéncia hist6rica da universidade em relacao ‘aos concursos de admissio de professores ao ensino secun~ dario. E como se nos tivéssemos provido, antes de 1980, de tudo 0 que é suficiente como teoria para renovar a peda gogia: um pouco de poética ¢ de narratologia para explicar O verso € a prosa. A nova critica, assim como, algumas geracoes antes, a hist6ria literaria de Gustave Lanson, viu-se rapida mente reduzida a algumas receitas, truques € astdcias para brilhar nos concursos. O impulso teérico estancou-se desde que forneceu uma certa ciéncia de apoio 4 sacrossanta explicagio de texto, B Franga, um fogo de path, © 4 usp n 1969 — sessenta e setenta nao tiveram sucessores. O proprio Barthes foi canonizado, o que nao é a melhor forma de manter viva e ativa uma obra. Outros mudaram e se entregaram a trabalhos Muito distanciados de seus primeiros amores; alguns, como Tavetan Todorov ou Genette, orientaram-se para a ética ou a estética, Muitos voltaram-se para a velha hist6ria literaria pelo viés da redescoberta de manuscritos, como revela a moda da critica dita genética. A revista Poétique, que existe ainda, Publica essencialmente exercicios de epigonos; 0 mesmo se 4 com Littérature, outra instituigao p6s-68, sempre eclética, acolhendo 0 marxismo, a sociologia e a psicandlise. A teoria acomodou-se € no € mais o que era: esti af assim como todos 08 séculos literdrios esto af, como todas as especiali- dades convivem na universidade, cada uma em seu lugar. Encontra-se compartimentada, inofensiva, espera os estudantes A hora certa, sem outro intercAmbio com outras especialidades em com 0 mundo a nao ser por intermédio desses estudantes que vagueiam de uma disciplina a outra. Nao est4 mais viva que as outras disciplinas, na medida em que nao € mais ela que diz por que ¢ como seria necessirio estudar a literatura, qual € a pertinéncia, a provocacio atual do estudo literério, Ora, nada a substituiu nesse papel, aliis, no mais se estuda tanto a literatura, voltaré, como tudo, e seus problemas serio redes- cobertos no dia em que Aincia for to grande que s6 produzira tédio.” Phi desde 1980, ao prefa (Teoria do Conjunto] — © outono que se sex pso volume publicado durante dle 1968 € cujo titulo foi extraiclo lers reconheceu posterior- Foucault, Roland Barthes, © todo o grupo de Tel Quel, 0 pice. A teoria ia, entao, de viver. “Desenvolver a teoria~ i decretado Lénine, € Louis inar “Teoria” a colecao que vento em pop: para nao se at Althusser invoca dirigia na Maypero, Pierre Macherey publicou ai, e1 1966, ano guia do movimento 1e Theorie de la Ateo sa e mesmo polémica ilo inquietante do livro de Boris 1m em 1927, Littérature, Théorie, Critique, Polémique Polémica], em parte traduzido por dos formalistas russos, in Todoray na sua antologi Theorie de la Littérature (Teoria ¢ ; mbém Fundar uma ciéncia da , escrevia Geinette em 1972, mo € 0 marxismo eram seus dois pilares para justi- a pesquisa dos invariantes ou dos universais da litera- Se essa teoria de caréter ambfguo — ao mesmo tempo marxista e formalista — ja tinha saido da moda em 1980, 0 et hoje? fomos suficientemente atingidos pela igno- € pelo tédio para desejarmos novamente a teoria TEORIA E SENSO COMUM Um balango, um mapa, da teoria literria se concebivel? Ele que forma? Nao seria esse um projeto ab s¢, como afirma Paul de Man, “o pritcipal interesse tecrico da teoria literaria consiste na impossibilidade de sua definiga0"? A teoria no poderia, entio, ser apreendida sendo gragas a uma teoria negativa, segundo o modelo desse Deus escon- dido do qual somente uma teologia negativa pode falar. Isso significa situar 0 horizonte alto demais, Gu longe demais as afinidades, alias reais, entre a teoria literaria € 0 niilismo. A “Yeoria nao pode se reduzir a uma técnica nem a uma pedagogia — ela vende sua alma nos vade-mécum de capas coloridas 6 expostos nas vitrinas das livrarias do Quartier Latin —, mas isso nao é motivo para fazer dela uma metafisica nem uma mistica. Nao a tratemos como uma religido. A teoria liter nao teria sendo um “interesse te6rico”? Nao, s€ estou certo a0 sugerir que ela € também, talvez essencialmente, critica, oposi- tiva ou polémica. Porque nao é do lado te6tico ou teolégico, nem do lado pritico ou pedagégico, que a teoria me parece principalmente interessante e auténtica, mas pelo combate feroz.€ vivificante que empreende contra as idéias preconcebidas dos estudos literdrios, ¢ pela resisténcia igualmente determinada que as idéias preconcebidas Ihe opdem. Esperariamos, talvez, de um balango da teoria literiria, que depois de ter oferecido sua propria definicao de literatura, como definicao contestivel —trata-se, na verdade, do primeiro lugar-comum te6rico: *O que € a literatura?” —, depois de ter prestado uma ripida homenagem as teorias literirias antigas, medievais € classicas, desde Aristételes até Batteux, sem esquecer uma passagem pelas poéticas nao-ocidentais, arrolasse as diferentes escolas que compartilharam a atengao te6rica no século XX: for lismo russo, estruturalismo de Praga, New Criticism americano, alema, psicologia genebresa, marxismo interna~ ismo e pés-estruturalismo franceses, herme- icanilise, neomarxismo, feminismo etc. Inimeros slo assim: ocupam os professores e tranqiiilizam os estudantes, Mas esclarecem um lado muito acess6rio da teoria. Ou até mesmo a deformam, pervertem-na; porque o que a caracteriza, na verdade, € justamente o contrario do ectetismo, é seu engajamento, sua vis polemica, assim como os impasses a que esta ultima a leva sem que ela se dé conta. Os te6ricos dao a impressio, muitas vezes, de fazer criticas muito sensatas contra as posigdes de seus adversarios, mas visto que este confortados por sua boa consciéncia de sempre, nao renunciam, € continuam a matraquear, os te6ricos se poem também el a falar alto, defendem suas propr absurdo, , as encantados de se verem posiclo adversi a Quando entrei no sexto ano do pequeno liceu Condorcet, nosso velho professor de latim-francés, que era também pre de sua cidadezinha na Bretanha, perguntava-nos a cada texto de nossa antologia: “Como vocés compreendem essa passage? O que o autor quis dizer? Onde esti a beleza do verso ou da prosa? Em que a visio do autor € original? Que ligio podemos tirar dae" Acreditamos, durante um tempo, que 1 teoria literdria tivesse banido para sempre essas questdes A respostas passam e as perguntas perma- necem, Estas so mais ou menos as mesmas. Ha algumas que no cessam de se repetir de geragio em geracio. Colocavam-se antes da teoria, jd se colocavam antes da hist6ria literdria, € se colocam ainda depois da teoria, de maneira quase idéntica, ‘tal ponto que nos perguntamos se existe itica literdria, como existe uma igiistica, pontuada de criagdes de conceitos, como 0 cogito 10 complemento, Na critica, os paradigmas niio morrem nea, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou. menos cificamente € jogam indefinidamente com as mesmas nogdes — nogdes que pertencem a linguagem popular. Esse € um «los motivos, talvez o principal motivo, da sensacio de repe- tavelmente, dante de um quadro ico da critica literaria: nada de novo sob o sol. Em teor ii p teriria no conseguiu desembaracar-se sobre a literatura, a dos ledores e dos se afasta, as velhas nocdes m “naturais” ou “sensatas' des sobre a lingua e a que quase ninguém de 1970, a teoria era um contradiseu as premissas da critica t clareza, Barthes assim resu € Verdadel, em 1966, ano 1 que punha em questao Objetividade, gosto e ritique et Vérité (Critica dogmas do “suposto substituir por uma 5 premissas do dis- expostas como cons- Em seu comego, tam- evidentes, quando si question: trugdes hist6ricas, como convengdes bém a hist6ria literdria se fundava numa teoria, em nome da qual eliminou do ensino literirio ret6rica, mas essa teoria perdeu-se ou edulcorou-se & medida que a hist6ria aria foi se identificando com a instituicao escolar e universi- tiria, © apelo a teoria é, por definicao, opositive, até mesmo subversivo e insurrecto, mas transformada em método pela recuperada, como diziamos. Vinte anos depois, 0 que sur preende, talvez mais que o conflito violento entre a hist6ria € a teoria literiria, é a semelhanga das perguntas levantadas Por uma € por outra nos seus primérdios entusiastas, sobre- tudo esta, sempre a mesma: “O que € a literatura?” Permanéncia das perguntas, contradigio e fragilidade das respostas: dai resulta que sempre pertinente partir das nogdes populares que a teoria quis anular, as mesmas que voltaram quando a teoria se enfraqueceu, a fim de nao s6 rever as respostas opositivas que ela propos, mas também tentar compreender por que essas respostas nao resolveram de uma vez. por todas as velhas perguntas. Talvez porque a teoria, & custa de sua luta contra a Hidra de Lerna, tenha levado seus argumentos longe demais eles tenham se vol- tado contra ela? A cada ano, diante de novos estudantes, é preciso recomecar com as mesmas figuras de bom senso e clichés irreprimiveis, com 0 mesmo pequeno mimero de enigmas ou de lugares comuns que balizam o discurso cor- rente sobre a literatura. Examinarei alguns, os mais resis- tentes, porque é em torno deles que se pode construir uma apresentagio simpatica da teoria literéria com todo o vigor TEORIA E PRATICA DA LITERATURA Algumas distingdes preliminares sio indispensaveis. Primei- ramente, quem diz teoria — e sem que seja preciso ser mar- xista — pressupde uma pratica, ou uma praxis, diante da qual cédigo de trinsito: a teoria é, pois, o cédigo oposto A direcAo de veiculos, é 0 cbdigo da diregio. Qual € portanto a direcio, ow a pritica, que a teoria da literatura codifica, isto €, organiza a propria literatura (ou a atividade literdria) — a teoria da literatura nao ensina escrever romances como a ret6rica outrora ensinava a falar m piiblico € instrufa na eloqiiéncia —, mas sao os estudos erarios, isto é, a hist6ria literdria € a critica literaria, ou inda a pesquisa literdria. No sentido de cédigo, didatica, ou melhor, deontologia da pesquisa literdria, a teoria da literatura pode parecer 1 disciplina nova, em todo caso ulterior ao nascimento da literéria no’ século XIX, quando da reforma das univer- its, € posteriormente das americanas, segundo ‘ivamente nova, em si mesma, é relativamente antiga. dizer que Platdo € Arist6teles faziam teoria da lite- iterétios na Reptiblica ica, € 0 modelo de teoria da literatura ainda 6, hoje, Pottica de Aristételes. Platao e Arist6teles faziam 1¢ se interessavam pelas categorias gerais, ou mesmo constantes literirias contidas nas obras parti- or exemplo, os géneros, as formas, os mods, o ilustragdes de categorias gerais. Fazer interessar-se pela que era o estudo lite- ratura em si mesma. teratura, tio sua tradigao antiga e cléssica, a teoria da literatura nao é em Prinefpio, normativa. Descritiva, a teoria da literatura é, pois, moderna: supde a existéncia de estudos literiios, instaurados no século XIX, a partir do romantismo. Tem uma relacio com a filosofia da iteratura como ramo da estética que reflete sobre a natureza e a funcio da arte, a definigio de belo e de valor. Mas a teoria da literatura nao € filosofia da literatura, nao € espe- culativa nem abstrata, mas analitica ou t6pica: seu objeto s40 fos discursos sobre a literatura, a critica e a hist6ria que ela questiona, problematiza, e cujas priticas organiza. A teoria da literatura nao é a policia das letras, mas de certa forma sua epistemologia. Nem nesse sentido € verdadeiramente nova fundador da hist6ria literiria france: XIX para 0 XX, ja dizia de Emest Renan e de Emile Faguet, os criticos literirios que o precederam — embora Faguet fosse seu contemporaneo na Sorbonne, Lanson o julgava ultrapas- sado —, que nao tinham “teoria literdria”? Era uma maneira polida de thes dizer que, a seus olhos, eram impressionistas € impostores, nio sabiam o que faziam, faltava-lhes rigor, espirito cientifico, método. Quanto a Lanson, este pretendia ter uma teoria, 0 que mostra que hist6ria literiria € teoria nao sio incompativeis. © apelo a teoria responde necessariamente a uma intengo polémica, ou opositiva (critica, no sentido etimolégico do termo): a teoria contradiz, poe em dtivida a pritica de outros. E til acrescentar aqui um terceiro termo a teoria € A pritica, conforme 0 uso marxista, mas ndo apenas marxista, dessas nogdes: 0 termo ideologia. Entre a pritica a teoria, estaria ja. Uma teoria diria a verdade de uma pra- tica, enunciaria suas condigdes de possibilidade, enquanto a ideologia nao faria senao legitimar essa pritica com uma men- nularia suas condigdes de possibilidade. Segundo is bem recebido pelos marx gosto, burgueses). A teoria se opde ao senso comum, Mais recentemente, depois de uma volta da espiral, a teoria jeratura levantou-se a0 mesmo tempo contra po: hist6ria literasia (representado por Lanson) € contra a simpatia na critica literiria (que havia sido representada por Faguet), assim como se levantou contra a associacio freqitente clos dois (primeiro 0 positivismo na hist6ria do texto, depoi humanismo na interpretagao), como ocorre nos austeros fil6lo- 08 que, depois de um estuclo minucioso das fontes do 10 de Prévost, passam sem problemas a julgamentos Manon, como se ela estivesse a nosso lado, uma jovem de Resumamos: a teoria contrasta com a pritica dos estudos s, torn explicitos seus pressupostos, enfim critica-os (ct iscriminar). A teoria seria, pois, numa pri a critica da critica, ou a metacritica (col uma linguagem e a metalinguagem que lelaire e, sobretudo, desde M: Apresentemos logo o exemplo: empreguei Deixemos mais de pe lores no necessaria- julga; procede \G0 OU projecao: seu € uma metamorfose, sua primeira forma € a conversacao, t6ria literdria compre m compensagao, um discurso que insiste nos fatores exteriores & experiencia da leitura, por exemplo, na concepcao ou na transmissio das obras, ou em outros elementos que em geral nao interessam a0 nao-especialista. A histOria literaria & a que surgiu ao longo do século XIX, mais conhecida, (© nome de filologia, Scholarship, Wissenschaft, ou pesquisa. As vezes opdem-se critica e hist6ria literdrias como um procedimento intrinseco e um procedimento extrinseco: a critica lida com o texto, a hist6ria com © contexto. Lanson observava que se faz historia literiria a partir do momento ‘em que se Ié 0 nome do autor na capa do livro, em que se da a0 texto um minimo de contexto. A critica literaria enuncia ipo “A € mais belo que B”, enquanto a hist6ria ia afirma: *C deriva de D.” Aquela visa a avaliar 0 texto, esta a explicé-lo. sobre os (bons) ‘mente cultos nem profissionai por simpatia (ou antipatia), por iclent lugar ideal é 0 sali, do q\ afirmagdes sejam explicitados. O que vocé chama de literatura? Quais so seus critérios de valor, perguntard ela aos ois tudo vai bem entre leitores que compartilham das mesmas ormas e que se entendem por meias palavras, mas, se nao € © caso, @ eritica (a conversacio) transforma-se logo em dilogo de surdos. Nao se trata de reconciliar abordagens diferentes, mas de compreender por que clas sio diferentes © que vocé chama de literatura? Que peso vocé atribui a suas propriedades especiais ou a seu valor especial, pergun- tara a teoria aos historiadores. Uma vez reconhecido que os textos literdrios possuem tracos distintivos, vocé os trata como documentos hist6ricos, procurando neles suas causas factuais: vida do autor, quadro social e cultural, intencdes atestadas, fontes. O paradoxo salta aos olhos: vocé explica pelo contexto tum objeto que lhe interessa precisamente porque escapa a esse contexto Retrouvé [0 Tempo Redescobertol, pelo menos naquilo que diz respeito 0s estudos literrios: “Uma obra onde Ind teoria € como um objeto no qual se deixa a marca do preco."* A teoria quer saber prego. Nao tem nada de abstrato, faz perguntas, aquelas perguntas sobre textos particulares com os quais historia- dores € criticos se deparam sem cessar, mas cujas respostas sio dadas de antemao. A teoria lembra que essas perguntas sio problematicas, que podem ser respondidas de diversas maneitas: ela € relativista, ‘TEORIA OU TEORIAS Empreguei, até aqui, a palavra teoria no singular, como se 86 houvesse uma teoria. Ora, todo mundo j4 ouviu falar que hi teorias literirias, a teoria do senhor fulano de tal, a teoria da senhora fulana de tal, Entao, a teoria ou as teorias seriam um pouco como doutrinas ou dogmas criticos, ou ideologias. 4 tantas teorias quanto te6ricos, como nos dominios em que experimentagao € pouco praticivel. A teoria no é como a lgebra ou a geometria: o professor de teoria ensina sua teoria, 1 que Ihe permite, como a Lanson, pretender que os outros no m nenhuma, Perguntar-me-ao: qual € a sua teoria? Respon- derei: nenhuma. E é isto que dé medo: gostariam de saber ‘minha doutrina, a f6 que é preciso abracar ao longo los, ou ainda mais preocupados. ilo do diabo, ou 0 diabo em pessoa: Forse tu non io loico fossi! Como Dante Ihe faz dizer, “Talvez do pensasses que cu fosse um logico” “Inferno”, canto XXVIL, ‘a doutrina, senaio a da diivida hiper- um ponto de iF os pressupostos de todas as 1m “Que sei eu?” perpéwuo. s, opostas, diver- —a respeito Ateoria da as palavras que conduzem a TEORIA DA LITERATURA OU TEORIA LITERARIA ei, nos Ultimos Uma outra pequena dist parigrafos, de feoria da literatura, no de teoria literdria, Seria pertinente es por exemplo, 0 modelo pp revesien eaermatay gored neler intese versus a anilise, 0 quadro da literatura em oposi¢ lolégica, como o manual de Histoire de ta Littérature Francaise (Historia da Literatura Francesal, de 1895, frente a Revue d'Histoire Littéraire de la France, fundada em 1894). A de Wellek e Warren que lo em inglés, Theory of Literature [Teoria da Litera- literatura, da critica da critica, ou a m A teoria literdria € mais opositiva € se apresenta mais como uma critica da ideologia, compreendendo af a critica dla literatura: é ela que afirma que temos sempre uma teoria € que, se pensamos nao té-la, é porque dependemos da te dominante num dado lugar e num dado momento. A teoria literaria se identifica também com formalismo, desde os forma- listas russos do inicio do século XX, marcados, na verdade, pelo marxismo. Como lembrava de Man, a te a existir quando a abordagem dos textos liter fundada em consideragdes nao lingUisticas, consideragdes, por exemplo, hist6ricas ou estéticas; quando o objeto de discussio no € mais 0 sentido ou o valor, mas modalidades de produgio de sentido ou de valor: Essas duas descricdes da teoria lite- riria (critica da ideologia, andlise lingbistica) se fortalecem mutuamente, pois a critica da ideologia € uma dentine Infelizmente, ess: teoria literiria), clara em inglés, por exemplo, foi ot em francés: o livro de Wellek e Warren, Theory of Literature, foi traduzido — tardiamente, como dissemos — com o titulo La Théorie Littéraire, em 1971, enquanto a antologia dos forma- tas russos, de Tzvetan Todorov, foi publicada, alguns anos tes, pelo mesmo editor, com o titulo Théorie de la Littérature (1966). E preciso examinar esse quiasmo para melhor nos situa. Como ja se tera compreendido, utilizo-me das duas tradigdes, a literatura: a reflexio sobre as nogdes gerais, os principios, os critério a critica a0 bom senso literirio € a referencia ao formalismo. Nio se trata, pois, de fornecer receitas. A teoria nio € 0 método, a técnica, (© mexerico. Ao contriirio, o objetivo € tornar-se dlesconfiado de todas as receitas, de desfazer-se delas pela reflexao. Minha intengio nao é, portanto, em absoluto, facilitar as coisas, mas ser vigilante, suspeitoso, cético, em poucas palavras: critico irOnico. A teoria é uma escola de ironia. \¢0 (teoria da literatura versus iterada A LITERATURA REDUZIDA A SEUS ELEMENTOS. ‘obre que nogdes exercer, agugar nosso espitito critico? A o entre a teoria e 0 senso comum é naturalmente cont psi E, pois, 0 discurso corrente sobre a literatura, desig- nclo os alvos da teoria, que permite colocar melhor a teoria todo discurso sobre ra, todo estudo ti sujeito, na sua base, a algumas grandes questoes, um exame de seus pressupostos relativamente a um no ntimero de nogdes fundamentais. Todo discurso issume posicio — implicitamente o mais das mente — em relagio a estas critica: que (© movimento, a evolt sobre o valor, inda: como com- no seu aspecto dint ist6ria) quanto no seu aspecto estitico (0 valor)? fete questoes encabecam 1ulo do meu literatura, 0 autor, o mundo, 0 lettor,o estilo, a bist6riae , 208 quais dei titulos inspirados no senso comum, eterno combate entre a teoria & o senso comum que ci seu sentido. Quem abre um livro tem essas nocoes ie. Reformulados um pouco mais teoricamente, os primeiros titulos poderiam ser os seguintes: literarie- representagao, recepgio. Em relago aos trés , historia, valor 1€ que nao ha motivo dos profissionais: uns fos tecorrem As mesmas a cada pergunta, gostaria de mostrar a variedade de pstas possiveis, no tanto 0 conjunto daquelas que foram na hist6ria, mas das que se fazem hoje: 0 projeto nao € ‘uma hist6ria da eritica, nem o de um quadro das doutrinas literirias. A teoria da literatura € uma ligio de relativismo, sio diferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes objetos. Antigo ou moderno, sincrénico ou diacrOnico, intrinseco ou extrinseco: nao € possivel tudo ao mesmo tempo. Na pesquisa a resposta que dou a uma delas restringe as opgdes que se abrem para responder as outras: por exemplo, se acentuo 0 papel do autor, € possivel que nao dé tanta importancia & lingua; se insisto na imizo o papel do leitor; se destaco a determinagao da historia, dliminuo a contribuigao do génio etc. Esse conjunto de escolhas 6 solidario. E por isso que qualquer questo permite uma entrada satisfatoria no sistema, € sugere todas as outras. Uma tnica, a intengao, por exemplo, talvez seja suficiente, para tratar de todas elas. E por isso também que a ordem de aniilise dessas questoes €,no fundo, indiferente: poder-se-ia tirar uma carta a0 a seguir a pista. Escolhi percorré-las fundamentando-me numa hierarquia que corresponde, também ela, ao senso comum, 0 qual, em relagao & literatura, pensa mais no autor do que no leitor, na matéria mais do que na maneira, Todos os lugares da teoria sero assim visitados, salvo, Ivez, 0 género (trataremos clessa questio brevemente, quando falarmos da recepcao), porque o género nao foi uma cau célebre da teoria literiria dos anos sessenta. O género é uma generalidade, a mediacao mais evidente entre a obra indivi- dual e a literatura. Ora, por um lado, a teoria desconfia das evidéncias, por outro, visa aos universais. sta tem qualquer coisa de provocagio, visto que constam, simplesmente, as ovelhas negras da teoria lite- ., moinhos de vento contra os quais ela se esfalfou para F conceitos salutares. Que nao se veja ai, entretanto, nenhuma malicia! Inventariar os inimigos da teoria parece-me ‘© melhor, 0 tinico meio, em todo 0 caso 0 mais econdmi odera através das convengdes que a negaram. mos levados a concluir que 0 “campo lite- Gm das querelas intermindveis que o obre um conjunto de pressupostos e de 's por todos. Pierre Bourdieu julgava que n “aeBnjonuo ou auduos vis apepiaa e anbiod ‘epee no opm anua ‘umtioD ostas 0 3 E091 e anua eM OIE vaneusATe e Msisas ap as-ten foupION opmsa © wresaoeyp anb sterey soxopesed sassa ‘sesta05ren saQSIpenuioo sevssa ‘Sejauel SESIE] Sessa sEqUIOME ap as-ees, StwWonp sostey ap 2u9s ewAL ‘ueuorside 0 waquits seus ‘omuatesuad o wesanis> anb ‘eet no opm 9p sows0) wo ‘SeInjosqe SeANeuIDNE ‘sIoatuodsuEsut ‘seRMoUNUE oo sopiqaDuo> 2 oo!mgjod oprssed wn 9p A LITERATURA Os estudos literdrios falam da literatura das mais diferentes maneiras. Concordam, entretanto, num ponto: diante de todo estudo literario, qualquer que seja seu objetivo, a primeira questo a ser colocada, embora pouco tebrica, € a da definigio que ele fornece (ou nao) de seu objeto: o texto literirio. © que torna esse estudo literdrio? Ou como ele define as quali- dades literdrias do texto literdrio? Numa palavra, o que é para ele, explicita ou implicitamente, a literatura? Certamente, essa primeira questio nao é independente das que se seguitio. Indagaremos sobre seis outros termos ou nogdes, ou, mais exatamente, sobre a relacao do texto literirio com seis outras nodes: a intenclo, a realidade, a recepeao, a lingua, a historia € o valor. Essas seis questoes poderiam, portanto, ser reformuladas, acrescentando-se a cada uma o epiteto literdrio, que, infelizmente, as complica mais do que as simplifica: © que é intencio literavia? © que é realidade © que € recepcao O que é lingua Ii © que € hist6ria literdria? © que € valor literario? Ora, emprega-se, freqilentemente, o adjetivo literdrio, assim como © substantivo literatura, como se ele nao levantasse problemas, como se se acreditasse haver um consenso sobre © que € literdrio € 0 que nao o €. Aristételes, entretanto, j@ observava, no inicio de sua Poética, a inexisténcia de um termo genérico para designar a0 mesmo tempo os didlogos socraticos, 0s textos em prosa € 0 verso: “A arte que usa apenas a linguagem em prosa ou versos (...1 ainda nao recebeu um. nome até 0 presente” (1447428-b9). Ha o nome e a coisa que la Poésie?” [O que E Poesia?] Jakobson, 1933-1934), Qu'kst-ce que la Littérature? (O que & Literatura?) (Charles Du Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947). A tal ponto que Barthes renunciou a uma defini¢io, contentando-se com esta brine: deira: “A literatura é aquilo que se ensina, € ponto final.”! Foi uma bela tautologia. Mas pode-se dizer outra coisa que nao “Literatura é literatura?”, ou seja, “Literatura € 0 que se chama aqui e agora de literatura?" O fil6sofo Nelson Goodman (197) propés substituir a pergunta “O que € arte?” (What is art?) pela pergunta “Quando é arte?" (When is art?) Nao seria necessirio fazer 0 mesmo com a literatura? Afinal de contas, existem muitas Iinguas nas quais 0 termo literatura é intradu- zivel, ou nao existe uma palavra que lhe seja equivalente, Qual € esse campo? Essa categoria, esse objeto? Qual € a sua “diferenca especifica’? Qual é a sua natureza? Qual é a sua fungio? Qual é sua extensio? Qual é sua compreensao? necessitio definir literatura para definir 0 estudo literirio, ‘mas qualquer definigao de literatura nao se toma o enunciado de uma norma extraliteriria? Nas livrarias britinicas encontra-se, de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Ficgai de um lado, livros para a escola e, de outro, livros para 0 lazer, como se a Literatura fosse a ficcao ente: Ficcao, a literatura divertida. Seria possivel ultrapassar essa cl cago comercial e prati A aporia resulta, pontos de vista possiveis e igualmente legitimos; vista contextual (hist6rico, psicolégico, socials cional) e ponto de vista textual (ingit © estudo literdrio, esté sempre imprensada e: dagens irredutiveis: uma abordagem hist6r amplo (o texto como documento), € uma abord: tica (0 texto como fato da Iingua, a literatur linguagem). Nos anos sessenta, uma nova quer € modernos despertou a velha guerra de trinc 30 partidirioy de uma definigto externa e partitirion de ina definigho ¢nzerna de liveratu sma arbi A EXTENSAO DA LITERATURA No sentido mais amplo, literatura € tudo o que (ou mesmo manuscrito), s80 todos os livros que contém (incluindo-se ai o que se chama literatura or vante consignada). Essa acepcio corresponde a nogio de *belas-letras” as quais compreendiam tudo 0 que 3 a poética podiam produzir, no somente a fiegio, mai a historia, a filosofia e a ciéncia, e, ainda, toda a eloqiéncia: Contudo, assim entendida, como equivalente & cultura, no sentido que essa palavra adquiriu desde 0 século XIX, a li ratura perde sua “especificidade": sua qualidade propriamente literfria the € negada. Entretanto, a filologia do século XIX ambicionava ser, na realidade, o estudo de toda uma cultura, qual a literatura, na acepcao mais restia, era o testemunho mais acessivel. No conjunto orginico assim constituido, segund pela lingua, pela literatura ¢ pela cultu identificada a uma nago, ou a uma raga, no sentido filol6gico, ndo bioldgico do termo, # literatura reinava absoluta, © 6 € © no literério) varia consideravelmente segundo as épocas € as culturas. Separada ou extraida das belas-letras, a litera- com 0 declinio do tradicional sistema de géneros poéticos perpetuado desde Arist6teles. Para ele, a arte poética — a Imente, 0 género épico eo género dramdtico, com exclusto do género lirico, que nao era ficticio nem imitative vez que, nele, 0 poeta se expressava na primeira pessoa > a ser, Conseqdentemente, € por muito tempo, julgado, ) género menor. A epopéia e o drama constituiam ainda os dois grandes géneros da idade classica, isto é, a narragio e a Jo, ou as duas formas maiores da poesia, enten- 10 ou imitagdo (Genette, 1979; Combe). Até , NO sentido restrito (a arte postica), era o verso. ocamento capital ocorreu ao longo do século XIX: 08 dois grandes géneros, a narracio e o drama, abandonavam cada vez mais 0 verso para adotar a prosa. Com o nome de poesia, muito em breve nao se conheceu senio, ironia da historia, o género que Arist6teles exclufa da poética, ou seja, a poesia lirica a qual, em revanche, tornou-se sinénimo de toda poesia. Desde entao, por literatura compreendeu-se 0 romance, 0 teatro © a poesia, retomando-se 2 triade p aristotélica clos generos épico, dramatico € lirico, m vante, 0 dois primeiros seriam identificados com a pros terceito apenas com 0 verso, antes que o verso livre € o em prosa dissolvessem ainda mais o velho sistema de géneros. O sentido moderno de literatura (romance, teatro € poesia) € inseparivel do romantismo, isto 6, da afirmagio da rel dade hist6rica e geogrifica do bom gosto, em oposigio doutrina clissica da eternidade e da univers estético. Restrita & prosa romanesca e dramit iteratura € concebida, além disso, em suas r com a nagdo € com sua hist6ria. A literatura, ou melhor, fiteraturas so, antes de tudo, nacionais. 32 critores que melhor rassit-se, assim, de uma escritos por grandes escritores, segundo este corolirio ico: tudo que foi escrito por grandes escritores pertence iteratura, inclusive a correspondéncia e as anot 18 pelas quais os professores se interessam, Nova literatura € tudo 0 que os escritores escrevem. Voltarei, no titimo capitulo, ao valor ou & hierarqui , 40 none como patrimOnio de uma nagio, No momento, mos apenas este paradoxo: 0 cinone é composto de um «le (pelo menos em nacional) do seu contetido; a grande obra é reputada ‘intico) amente contraposto A vontade le unidade nacional. Donde a zombaria irOnica de Barthes: teratura € aquilo que se ensina’, variagio da falsa eti mologia consagrada pelo uso: “Os classicos sao aqueles que lemos em classe.” Evidentemente, identificar a ira com © valor literario (os grandes escritores) &, a0 mesmo tempo, negar (de fato € de direito) 0 valor do resto dos romances, dramas e poemas, ¢, de modo mais geral, de outros géneros de verso € de prosa. Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusio. Dizer que um texto é literirio subentende sempre que um outro nao é, O estreitamento institucional da literatura no século XIX ignora que, para aquele que lé, 0 que ele Ie é sempre literatura, seja Proust ou uma foto-novela, € ne; gencia a complexidade dos niveis de literatura (como ha niveis de lingua) numa sociedade. A literatura, no sentido restrito, seria somente a literatura culta, nao a literatura popular (a Fiction das livrarias britinicas). 33 ade, exemplos de redescober mont, Os fom: turalista em seu aitgo “La Tradition et le 7 [A Tradicao e 0 Talento Individual] (1919), um novo escritor altera toda a paisagem da literatura, © conjunto do sistema, suas hierarquias € suas filiagdes: (Os monumentos existentes formam entre si uma ordem ideal que € modificada pela introdugio, entre eles, da nova (dla vei deiramente nova) obra de arte. A ordem existente € complet antes da chegada da nova obra; para que a ordem depois da intervengao da novidade, 0 « tente deve ser alterado, ainda que ligeiramente; assim as relagdes, as proporcdes, os valores de todas as obras de arte em Felagao a0 conjunto sio reajustados.? A tradigao literdtia € 0 sistema sincrénico dos textos literd- ros, sistema sempre em movimento, recompondo-se & medida que surgem novas obras. Cada obra nova provoca um rearranjo da tradicao como totalidade (e modifica, a0 mesmo tempo, © sentido € o valor de cada obra pertencente & tradiga0).. Apos o estreitamento que sofreu no século XIX, a literatura reconquistou dese modo, no século XX, uma parte dos terri- t6rios perdidos: ao lado do romance, do drama e da poesia rica, © poema em prosa ganhou seu titulo de nobreza, a autobiografia € 0 relato de viagem foram reabilitados, € assim por diante. Sob a etiqueta de paraliteratura, os livros para criangas, 0 romance policial, a histéria em quadrinhos foram assimilados. As vésperas do século XX1, a literat mente quase to liberal quanto as belas-letras ante: sionalizagio da sociedade. © termo literatura tem, pois, uma extensio mais vasta segundo os autores, dos clissicos escolares ‘em quadrinhos, ¢ € dificil justificar sua ampliacao contempo- \ea. O critério de valor que inclui tal texto nao é mesmo, literario nem teéric mas ético, social ¢ id de qualquer forma extraliterdrio, Pode-se, entret COMPREENSAO DA LITERATURA: A FUNCAO undo sua fungao parecem , quer essa fungio seja compreeni pbarsis, cle purgagio, ou de puri de emogdes or € a piedade (1449b 28). E uma nocao dificil de © prazer de aprender na origem da arte poéti 448b 13) que também Horicio reconheceri na poesia, qu: a de dulce et utile (Ars Poetica [Arte Poétical, v.333 e 343) ssa € a mais corrente definico humanista de literatur: enquanto conhecimento especial, diferente do conhecimento filos6fico ou cientifico. Mas qual é esse conhecimento mento que s6 a literatura dé ao homem? Segundo Aristoteles, Horicio ¢ toda a tradigao clissica, t conhecimento tem por objeto o que € geral, provivel ou verossimil, a déxa, as sentencas € maximas que permitem compreender e regular 0 comportamento humano ¢ a vid: respeito sobretudo ao que é individual e singular. A continui- dade permanece, no entanto, profunda: de Paolo e Francesca — que n'A Divina Comédia, descobrem estarem apaixonados endo juntos os romances da Table Ronde— a Dom Quixote — que pde em pritica os romances de cavalaria — e Madame Bovary — intoxicada pelos romances sentimentais que devora Essas obras, claramente parddicas, to prova da functo de aprendizagem atribuida a literatura, Segundo o modelo huma- nista, hd um conhecimento do mundo e dos homens propiciado pela experiéncia literiria (talvez.nlo apenas por ela, mas princi- palmente por ela), um conhecimento que s6 (ou quase s6) a experiéncia literdria nos proporciona. Seriamos capazes de Paixdo se nunca tivéssemos lido uma histéria de amor, se 35 da subjetividade moderna? O individuo é um leitor so um intérprete de signos, um cagador ou um adivinho, pode- rfamos dizer com Carlo Ginzburg o qual, por dedugio légico- matemitica, identificou esse outro modelo de conhecimento com a caga (dleciframento dos vestigios do passado) € a adivi nhagio (deciframento dos signos do futuro). “Cada homem traz em sia forma completa da condigio humana”, escreve Montaigne no livro III dos Essais [Ensaios] Sua experiéncia, tal como a interpretamos, parece exemplar quanto ao que chamamos de conhecimento literario. Depoi de ter acreditado na verdade dos livros, em seguida ter duvi- dado dela a ponto de quase negar a individualidade, ele teria, 0 final do seu percurso dialético, voltado a encontrar em si a totalidace do Homem. A subjetividade moderna desenvolveu- se com a ajuda da experiéncia literitia, ¢ o leitor é 0 modelo de homem livre. Atravessando 0 outro, ele atinge o universal nna experiéncia do leitor, ‘a barreira do eu individual, na qual ele era um homem como os outros, ruiu” (Proust), “eu € um outro” (Rimbaud), ou “sou agora impessoal” (Mallarmé). Evidentemente, essa concepgao humanista de conhecimento literirio foi denunciada, por seu idealismo, como visio de mundo de uma classe particular. Ligada & privatizagio da cena da leitura, depois do nascimento da imprensa, ela estaria ‘comprometida com valores dos quais seria 20 mesmo tempo causa € conseqiiéncia, sendo © primeiro deles burgués. Essa é, sobretudo, a critica marxista, literatura € ideologia. A literatura serve para prod senso social; ela acompanha, depois substitu 6pio do povo. Os literatos, principalmente Matthew Arnold, 1a Inglaterra vitoriana, por sua obra fundadora, Culture and Anarchy (Cultura e Anarquial (1869), mas tamb Brunetiére € Lanson, na Franga, adotaram esse ponto dle vista 36 no final do século XIX, julgando que seu tempo chegara ‘depois da cecadeneia dk pode-se, jetudo depois da metade do século XIX e da voga 1 maldito, F dificil identificar Baudelaire, itréamont com os ctimplices da ordem estabe- I voltaremos. A literatura precederia também outros saberes € priticas: os grandes escritores (os visiondrios) viram, antes dos demais, particularmente antes dos fil6sofos, para onde caminhava 0 mundo: “O mundo vai acabar” — anunciava Baudelaire em Fusées [Lampejosl, no inicio da idade do pro- gfess0 — e, realmente, 0 mundo nao cessou de acabar. A imagem do visiondrio foi revalorizada no século XX, num sentido politico, atribuindo-se a literatura uma pers politica e social que faltaria a todas as outras priticas. Do ponto de vista da func2o, chega-se também a uma aporia a literatura pode estar de acordo com a sociedad, mas também em desacordo; pode acompanhar 0 movimento, mas também precedé-lo. A pesquisa da literatura por parte leva a um relativism sécio-hist6rico herdeiro do roman- tismo. Prosseguindo na dicotomia, examinando agora o lado da forma, das constantes, dos universais, procurando uma definicao formal, depois de uma defini¢ao funcional de lite- ratura, voltamos aos antigos € classicos, passamos também da teoria da literatura a teoria literaria, segundo a distingao que fiz. anteriormente, x == COMPREENSAO DA LITERATURA: pela linguagem. f como tal que ela constitui uma fibula ou uma hist6ria (muthos). Os dois termos (mimesis e muthos) recem desde a primeira pagina da Poética de Arist6teles € luglio de mimesisas vezes 1 mentira, nem verdadeira nem falsa, mas verossim ntir-verdadeiro", como dizia Aragon. “O poeta’, escrevia les, “deve ser poeta de historias mais que de metros, : & em razdo da mimesis que ele € poeta, € 0 que ele a da poética ndo apenas a poesia diditica mas também a poesia lirica, que poe em cena o poeta, € nido preservava senao os géneros pico (natra- ) € trégico (dramatico). Genette fala de uma “poética ialista” ou, ainda, constitutivista “na sua versio temitic: Segundo essa poética, “a maneira mais segura para a poesia escapar do risco de dissolugio, no emprego corrente da nguagem, € se fazer obra de arte & a ficg’io narrativa ou dramatica’.‘ © qualificativo temdtico parece-me que deve ser evitado, pois nao h4 temas (contetidos) constitutivamente (eririos: 0 que Aristételes ¢ Genette visam é ao estatuto onto- logico, ou pragmatico, constitutive dos contetidos Ii 6, pois, a ficca0 como conceito ou modelo, nao como tema (ou como vazio, niio como pleno); e Genette, além disso, prefere chamé-la flecionalidade. Referindo-me as distingdes do ling Louis Hjelmslev entre substdncia do conteiido (as idéias), forma do contetido (a organizacao dos significados), subs- 1dncia da expressdo (os sons) ¢ forma da expressao ( - zagao dos significantes), direi que, para a poética cl: literatura é caracterizada pela fico enquanto forn tetido, isto é, enquanto conceito ou modelo. irios, ica, a do con- 38 ‘ria e suficiente da ‘adamente no Capitulo II, alguma, seja sempre corrente considera globalmente COMPREENSAO DA LITERATURA: ‘A FORMA DA EXPRESSAO A partir da metade do século XVIII, uma outra defi teratura se opds cada ver mais a ficclo, acentuando o , concebido dotavante — por exemplo, na Critica da Faculdade do Juizo (1790), de Kant, € na tradiga0 romantica — como tendo um fim em si mesma. A partir de ento, a arte ea literatura nao remetem senao a si mesmas, Em oposi¢ao inguagem cotidiana, que € utilitéria e instrumental, afirma-se que a literatura encontra seu fim em si mesma. Segundo © ssouro da Lingua Francesa, herdeiro dessa concep¢ao, @ literatura é simplesmente “o uso estético da linguagem escrita”. A vertente romantica dessa idéia foi, durante muito tempo, ‘a mais valorizada, separando a literatura da vida, conside- rando a literatura uma redencao da vida ou, desde o final do século XIX, a Unica experiéncia auténtica do absoluto € do nada. Essa tradigio pés-romantica e essa concep¢ao de lite- ratura como redengio manifestam-se ainda em Proust, que afirma, em O Tempo Redescoberto, que “a verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, logo a Gnica vida plena- mente vivida, é a literatura" ou em Sartre, antes da guerra, no final de La Nausée [A Nauseal, quando uma miisica de jazz. salva Roquentin da contingéncia. A forma, a metéfora, “os elos necessarios do belo estilo” em Proust,é permite escapar deste mundo, aprender “um pouco do tempo em estado puro"” ‘Mas tal idéia tem também um lado formalista, mais familiar hoje, que separa a linguagem literfria da linguagem cotidiana, ou singulariza 0 uso literario em relagio a linguagem comum, 3 fazer-se esquecer imperceptivel), enquanto a maneiras de aprender essa polaridade. A linguagem cotidiana € mais denotativa, a linguagem literdria € mais conotativa (ambigua, expressiva, perlocut6ria, auto-referencial) |, coerente, densa, complexa). uso cotidiano da linguagem é referencial € pragmatico, o uso literirio da lingua € imaginario e estético. A literatura explora, sem fim pritico, 0 material linguistico. Assim se enuncia a definigao formalista de literatura. Do romantismo a Mallarmé, a literatura, como resumia Foucault, “encerra-se numa intransitividade radical”, ela “se torna pura e simples afirmacao de uma linguagem que s6 tem. como lei afirmar (...] sua firdua existéncia; nao faz mais que se curvar, num etemo retorno, sobre si mesma, como se seu discurso nao pudesse ter como conteiido senao sua propria forma’ Valéry chegava a essa conclusio no seu “Cours de Poétique’[Curso de Poétical: a Literatura 6, ¢ ndo pode ser outra coisa sendo uma espécie de extensao e de aplicacao de certas propriedades da Linguagem.” Bis, portanto, nessa volta 208 antigos contra os modemos, aos clissicos contra os roman- ticos, uma tentativa de definicao universal da literatura, ou como arte verbal. Genette falaria de “uma poética ta na sua versio formal", mas eu diria que se trata, ratura através da ficelo era também formal, mas recaia sobre a forma do contetido. De Arist6teles a Valéry, pasando por Kant € Mallarmé, a definigio de literatura através da ficg@o cedeu, pois, lugar, pelo menos junto aos specialist definicao através da poesia (da dicedo, segundo Genette). A. menos que as duas definicdes nao partilhem 0 mesmo campo iterdrio. Os formalistas russos deram ao uso propriamente literirio da lingua, logo & propriedade distintiva do texto literirio, 0 nome de literariedade. Jakobson escrevia em 1919: “O objeto 40 m se encontrar nesse conceito, que também Jico. Os formalistas tentavam, gracas a ele, jo auténomo — sobretudo em relacao mo € ao psicologismo vulgares aplicados & litera- 10 da especificidacle de seu objeto. se opunham abertamente & definicao de literatura como sua definigio através da funcao de repre- os aspectos da obra literiria considerados especificamente literirios e distinguiam, assim, a linguagem literiria da lin- fagem nao literaria ou cotidiana. A linguagem literaria (e nao arbitréria), autotélica (€ nao linear), auto- referencial (e nao utilitaria). Qual 6, entretanto, essa propriedade — essa esséncia — que toma literarios certos textos? Os formalistas, segundo Viktor Chklovski, em “L’Art comme Procédé” [A Arte como Procedi- mento] (1917), tomavam como critério de Iterariedade a desfa- miliarizacdo, ou estranbamento (ostranénie): a literatura, ou le lingiistica dos leitores através de procedimentos que desarranjam as formas habi «la sua percepgio. Jakobson explicara, em seguida, que o efeito de desfami 0 resulta do dominio de certos procedimentos (Jakobson, 1935) que, tomados do conjunto das invariéveis formais ou tragos lingUisticos, carac- terizam a literatura como experimentacio dos “possiveis d linguagem”, segundo expresso de Valéry. Mas certos proce- dimentos, ov o dominio de procedimentos, tornam-se também, eles familiares: 0 formalismo desemboca (ver Capitulo VD. numa historia da literariedade como renovacio do estranha- mento por meio da redistribuigao dos procedimentos literirios. A esséncia da literatura estaria, assim, fundamentada em estudo literario dos pontos de vista estranhos 2 condigao verbal do texto. Quais so os invariantes que ele explora? Os géner0s, 05 tipos, as figuras, O pressuposto & que un € possiv viduals das diferengas LITERARIEDADE OU PRECONCEITO. Em busca da “boa” definigio de literatura, procedemos segundo 0 método platénico, pela dicotomia, deixando sempre de lado a via da esquerda (a extensio, a funcao, a represen- aco), para seguir a via da direita (a compreensio, a forma, a desfamiliarizacaio). Tendo chegado a esse ponto, finalmente, alcangamos éxito? Encontramos na literariedade uma condigio dria e suficiente da literatura? Podemos nos deter aqui? Afastemos, antes de tudo, esta primeira objec: como nao existem elementos lingtifsticos exclusivamente literitios, a literariedade nao pode distinguir um uso literdrio de um uso. nao literirio da linguagem. O mal-entendido vem, em grande Parte, do novo nome que Jakobson, bem mais tarde, no seu célebre artigo (1960), dew uma das seis fungdes que distinguia no ato de comuni ungoes expressiva, poética, conativa, referencial, met jlistica e fatica), como se a literatura (0 texto poético) abo- se as cinco outras funcdes, e deixou fora do jogo os cinco elementos aos quais elas eram geralmente ligadas (0 locutor, © destinatirio, o referente, 0 c6digo € 0 contato), para insistit unicamente na mensagem em si mesma. Tal como em seus artigos mais antigos, “La Nouvelle Poésie Russe" [A Nova Poesia Russa] (1919) ¢ “La Dominante” {A Dominantel (1935), Jakobson esclarecia, entretanto, que, se a funcio poética & dominante no texto lteritio, as outras fungdes nao sto, contudo, eliminadas. Mas, desd 1919, Jakobson afirmava 20 mesmo tempo que, em poesia, “a fungio comunicativa [..] € reduzida a0 minimo", ¢ que “a poesia é a linguagem na sua funcio cestética’, como se as outras fungdes puclessem ser esquecidas.”” A literatiedade (a desfamiliarizagio) nao resulta da ut de elementos lingiisticos proprios, mas de uma organi diferente (por exemplo, mais densa, mais coerente, plexa) dos mesmos materiais lingtifsticos cotidianos. Em outras Palavras, nao € a metifora em si que faria a literariedade de um a texto, man uma rede metaforiea mais cet que produz o interesse do leitor. mesmo esse critério flexivel moderado de ade € refutavel. Mostrar contra-exemplos € facil. Por (05 textos literarios no se afastam da linguagem, do que a auséncia de marca é, el que © ctimulo da desfamiliarizagao é a fami a (ou 0 cimulo da obscuridade, a insignificdncia), mas ‘dade no sentido restrito, como tragos especificos ou flexiveis, como organizacio especifica, nao é nenos contradit6ria. Por outro lado, mio somente os tragos considerados mais literarios se encontram também na lingua- n nio literdria, mas ainda, as vezes, sto nela mais vi is densos que na linguagem literéria, como € 0 caso da publicidade. A publicidade seria entao 0 maximo da literatura, 0 que nao é, entretanto, satisfatério. Seria, pois, toda a lite- ura o que a literariedade dos formalistas caracterizou, ou somente um certo tipo de literatura; a literatura por exceléncia, de seu ponto de vista, isto é, a poesia, e ainda nao toda poesia, mas somente a poesia moderna, de vanguarda, obs- cura, dificil, desfamiliarizante? A literariedade definiu o que se chamava outrora licenga poética, nio a literatura. A menos que Jakobson, quando descreveu a fungio poética como énfase na ‘mensagem, tenha pensado nao somente na forma da mensagem, como de um modo geral compreendemos, mas também no seu contetido. O texto de Jakobson sobre “A Dominante” deixava bastante claro, entretanto, que a idéia da desfat a fa séria, que suas implicagdes eram também éticas € p Sem isso, a literariedade parece gratuita, decorativa, Kidica, A literariedade, como toda definigio de literatura, compro- mete-se, na realidade, com uma preferéncia extraliterdria. Uma avaliagao (um valor, uma norma) esta inevitavelmente inclufda em toda definigao de literatura e, conseqtientemente, ‘em todo estudo literario. Os formalistas russos preferiam, B smpre preferéncia (um preconceito) erigiclo em universal (por exemp! a desfamiliarizacao). Mais tarde, 0 estruturalismo em geral, 4 postica e a narratologia, inspirados no formalismo, dev valorizar do mesmo modo 0 desvio e a autoconsciéncia literdtia, em oposico A convencio ¢ ao realismo. A distingao Proposta por Barthes, em S/Z, entre o legivel (realista) € 0 escriptivel (lesfamiliarizante), € também abertamente valo- rativa, mas toda teoria repousa num sistema de preferéncias, consciente ou nao. Mesmo Genette devia finalmente reconhecer que a liter: riedade, segundo a acepeao de Jakobson, nio recobria senio ‘uma parte dla literatura, seu regime constitutivo, nao seu regime condicional, ¢, além disso, do lado da literatura dita consti- tutiva, somente a dicedo (a poesia), nao a ficedo (narrativa ou dramitica). Dai inferia, renunciando as pretensdes do formalismo e do estruturalismo, que “a literariedade, sendo um fato plural, exige uma teoria pluralist constitutiva — ela prépria heterogénea e justaposta 2 poesi (em nome de um critério relativo a forma da expressao), 3 ficgio (em nome de um critério relativo a forma do contetido) —, nalmente litersri histéria, até 0 Cédigo Civil), anexada ow nao a literatura, a0 sabor dos gostos indi- viduais e das modas coletivas. “O mais prudente”, concluia Genette, “6, pois, aparente e provisoriamente, atribuir a cad: ‘um sua parte de verdade, isto é, uma porgao do campo lite- ratio’. Ora, esse provis6rio tem tudo para durar, porque ndo hd esséncia da literatura, ela € uma realidade comple: heterogénea, mutavel. LITERATURA E LITERATURA Ao procurar um critério de literariedade, caimos numa @ que a filosofia da linguagem nos habituou. A defini¢ao de um termo como literatura nao oferecerd mais que o conjunto “ za, sem reme- exto de origem, Presume-se iplicagio, sua pertinéncia) nio se enunciagao inicial. uma sociedade discurso sobre esses textos, mas deverd ser aquele c dade 6 atestar, ou contestar, sua incluso na literatura. dle origem nao tem a mesma pertinéncia que para outro: que toda anilise que tem por objeto reconstruir ircunstincias originais da composicao de um texto lite- {rio, a situacao hist6rica em que o autor escreveu esse texto recepcao do primeiro pablico pode ser interessante, mas nao pertence ao estudo literirio. O contexto de origem (eratura, revertendo 0 proceso que ivamente independent de seu contexto de origem), Tudo © que se pode dizer de um texto literdrio nao per tence, pois, ao estudo literdrio, O contexto pertinente par © estudo literdrio de um texto literdrio nio € 0 contexto de origem desse texto, mas a sociedade que faz dele um uso iterario, separando-o de seu contexto de origem. Assim, a critica biogrifica ou sociol6gica, ou a que explica a obra pela tradicao literria (Sainte-Beuve, Taine, Brunetiere), todas elas variantes da critica histérica, podem ser consideradas exteriores 2 literatura, Mas se a contextualizagao histérica nao é pertinente, o estudo lingiiistico ou estilistico 0 seria mais? A nogio de estilo pertence a linguagem corrente € é preciso primeiro refind-la (ver Capitulo V). Ora, a busca de uma definicio de estilo, tanto quanto de literatura, € inevitavelmente polémica. Ela repousa sempre sobre um invariante da oposi¢ao popular 45 significagao: sua pertinénci literdria. Nenhuma diferenga de citirio € um soneto de Shakespeare, a nao ser a complexi Retenhamos disso tudo o seguinte: a literatura € uma inevi- tavel peticio de principio. Literatura é literatura, aquilo que as autoridades (os professores, os editores) incluem na tura, Seus limites, as vezes se alteram, lentamente, modera- damente (ver Capitulo VII sobre o valor), mas € impossivel passar de sua extensio & sua compreensio, do c4none a esséncia, Nao digamos, entretanto, que nao progredim« porque o prazer da caca, como lembrava Montaigne, nao é a captura, e 0 modelo de leitor, como vimos, é 0 cacador. 0 AUTOR is controvertido dos estudes literdrios € o lugar é \do, tio veemente, que oso de ser abordado (seri também 0 capitulo | Sob o nome de intengao em geral, é 0 papel do »s interessa, a relagao entre o texto € seu autor, ile do autor pelo sentido e pela significacao, Ho texto. Po S correntes, a antiga € op6-las e elimind-las, ou conservar ambas, nte A procura de uma conclusdo aporética, A antiga rrente identificava o sentido da obra a intengao do habitualmente no tempo da filologia, do pos icismo. A idéia corrente moderna (¢ ademais ox New Critics americanos, 0 estruturalismo francés na. Os New Critics falavam de intentional fallacy, 10 intencional”, de “erro intencional”: 0 recurso & (0 de intengao Ihes parecia ndo apenas inttil, mas preju- 4108 estudos literirios. © conflito se aplica ainda aos ios da explicacao literaria como procura da intencao lor (deve-se procurar no texto o que o autor quis dizer), Jeptos da interpretacdo literdria como descricao das ces da obra (deve-se procurar no texto o que ele independentemente das intengdes de seu autor). Para 1 dessa alternativa conflituosa € reconciliar os irmaos 10S, uma terceira via, hoje muitas vezes privilegiada, 1.0 leitor como critério da significagao literaria: € uma ‘orrente contemporanea a que voltarei no Capitulo IV, mas arei tanto quanto possivel d de lado. no momento. Uma introducao & teoria da literatura pode limitarse a explorar um pequeno nimero de nodes em torno das quais a humanismo e o indi eliminar dos estudos nbém porque si mitica arrastava consigo todos os outros anticonce teoria literdria. Assim, a importincia atribuida as qu: especiais do texto literario (a literariedade) é inversamente proporcional & aco atribuida a intengao do autor. Os proce- dimentos que insistem nessas qualidades especiais conferem ‘um papel contingente ao autor, como os formalistas russos 08 New Critics americanos, que eliminaram 0 autor para asse- gurar a independéncia dos estudos literirios em relacao A historia e a psicologia. Inversamente, para as abordagens que fazem do autor um ponto de referéncia central, mesmo que variem o grau de consciéncia intencional (de premeditagao) ‘que governa o texto, ¢ a maneira de explicitar essa consciéncia (alienada) — individual para os freudianos, coletiva para os marxistas —, 0 texto nao € mais que um veiculo para chegar-se 40 autor. Falar da intengio do autor ¢ da controvérsia da qual nunca deixou de ser 0 objeto € antecipar em muito as outras nogdes que serio examinadas em seguic: Nao vejo melhor iniciacao a esse delicado debate do que apresentar alguns textos guias. Citarei trés. O prdlogo bem conhecido de Gargantua, no qual Rabelais parece primeiro hos encorajar a procurar o sentido oculto (o “mais alto sen- ido”, altior sensus) de seu livro, segundo a antiga doutrina da alegoria, depois zombar dos que acreditam nese método medieval que permitiu decifrar sentidos cristios em Homero, Virgilio e Ovidio — a menos que Rabelais remeta o leitor & sua prOpria responsabilidade por suas interpretagdes, even- tualmente subversivas, do livro que tem em maos. Nem sempre houve acordo sobre a intengao desse texto capital sobre a tengo, prova de que a questio é sem saida. Em seguida, © Contre Sainte-Beuve (Contra Sainte-Beuvel, de Proust, porque esse titulo deu seu nome moderno ao problema da intengiio na Franca: nele Proust defende a tese, contra Sainte-Beuve, que a biografia, 0 “retrato literirio”, ndo explica a obra, que € 0 produto de um outro eu que nao o eu social, de um eu profundo irredutivel a uma intengio consciente. Veremos, no Capitulo IV, sobre o leitor, que as teses dle Proust abalariam 4a textos diferentes, cujos sentidos podem mesmo contextos € as intengdes nao silo as mesmas, ot nos estudos literérios tradicionais tinha uma ampla aprovacio. Mas ao afirmar que o autor € indiferente no que se refere a significagio do texto, a teoria nio teria levado demais a légica, ¢ sacrificado a razio pelo prazer de bela antitese? E, sobretudo, nao teria ela se enganado € sempre fazer conjeturas sobre uma intengZio humana em ato? A ‘TESE DA MORTE DO AUTOR Partamos de duas teses em presenca, A tese intencionalista € conhecida, A intengio do autor € 0 critério pedagégico ou académico tradicional para estabelecer-se o sentido literirio. Seu resgate €, ou foi por muito tempo, o fim principal, ou mesmo exclusivo, da explicagao de texto. Segundo 0 precon- ceito cortente, 0 sentido de um texto € 0 que o autor desse texto quis dizer. Um preconceito nao € necessariamente despro- vido de verdade, mas a vantagem principal da identificagao lo sentido a intengio 6 a de resolver 0 problema da interpre- taco literdria: se sabemos 0 que o autor quis dizer, ou se podemos sabé-lo fazendo um esforgo — € se nao o sabemos. € porque nao fizemos esforgo suficiente —, nao & preciso interpretar 0 texto. A explicagao pela intengao torna, pois, a critica literiria inttil Cera o sonho da historia literdria). Além disso, a prépria teoria torna-se supérflua: se 0 sentido € inten- cional, objetivo, hist6rico, nao ha mais necessidade nem da critica, nem tampouco da critica da critica para separar os criticos. Basta trabalhar mais um pouco ¢ ter-se-4 a solucio, A intengio, € mais ainda o proprio autor, ponto de partida habitual da explicacio literdria desde 0 século XIX, consti tuiram o lugar por exceléncia do conflito entre os antigos (a 9 (Orla litera essenta. Foucault pronut 1969, intitulada *Qu’Est-ce qu'un A\ € Barthes havia publicado, em 1968, bistico, “La Mort de L’Auteus” {A Morte do Autor aos olhos de seus partidrios, assim como de seus adver slogan anti-humanista da ciéncia do texto. Tod literdrias tradicionais podem, alias, ser remetidas a nogao de intengio do autor, ou dela se deduzirem. Assim também, todos 0 anticonceitos da teoria podem partir da morte do autor. Afirmava Barthes: © autor & um personagem moderno, produto, sem divid nossa sociedade, na medida em que, ao sair da Idade Mé& ‘com o empirismo ingles, o racionalismo francés, e a f& pesso: se diz mais nobremente, da “pessoa humana’ Esse eta 0 ponto de partida da nova critica: 0 autor nao era senao o burgués, a encamagio da quintesséncia da leologia capitalista, Em torno dele se organizam, segundo Barthes, 05 manuais de hist6ria literiria e todo ensino da literatura: “A explicagdo da obra é sempre procurada do lado de quem 2 produziu’,* como se, de uma maneira ou de outra, a obra fosse uma confissdo, nto podendo representar outra coisa que nao a confidéncia. tura por Mallarmé, Valéry, Proust, pelo surrealismo, e, enfi pela lingiistica, para a qual “o autor nunca é mais que aquele que escteve, assim como ew nao € outro senao 0 que diz eu’! assim como Mallarmé jf pedia “o desaparecimento elocut6rio do poeta, que cede a iniciativa as palavras’.* Nessa compa- rac2o entre 0 autor e © pronome da primeira pessoa reconhe- ce-se a reflexio de Emile Benveniste sobre “La Nature des Pronoms” {A Natureza dos Pronomes] (1956), que teve uma grande influéncia sobre a nova critica. © autor cede, pois, o lugar principal 4 escritura, ao texto, ou ainda, ao “escriptor", que nao é jamais sendo um ‘sujeito” no sentido gramatical ou linguistico, um ser de papel, nao uma “pessoa” no sentido 50 a’, *pintar” 2 sua enunciagao, € que ela, 10 tém origem. Sem origem, “o ": a nogao de intertextualidade la morte do autor. Quanto a explicacio, © autor, pois que nao ha sentido tnico, io, no fundo do texto. Enfim, diltimo elo ma que se deduz inteiramente da morte do autor: of, € nao o autor, € o lugar onde a unidade do texto se no seu destino, nao na sua origem; mas esse leitor mais pessoal que o autor recentemente demolido, e ele também a uma fungio: ele € “esse alguém que Jos, num tnico campo, todos os tracos de que 6 constituida a escrita’? Como se vé, tudo se mantém: 0 conjunto da teoria lit le ligar-se a premissa da morte do autor, como a qualquer jutro de seus itens; mas a morte do autor € o primeiro, porque le mesmo se opde «to primeiro principio da histéria lite- Quanto a Barthes, ele the confere ao mesmo tempo a tonalidade dogmatica: “Sabemos agora que um texto...", € "Agora no somos mais vitimas de...". Como previsto, teoria coincide com uma critica da ideologia: a escritura ou © texto “libera uma atividade que poderfamos chamar de contrateol6gica, propriamente revolucionatia, pois recusar deter 0 sentido é, finalmente, recusar Deus € suas hipéstases, a razao, a ciéncia, a lei’.* Estamos em 1968: a queda do autor, que assinala a passagem do estruturalismo sistematico 20 p6s-estruturalismo desconstrutor, acompanha a rebelio anti- iia da primavera, Com a finalidade de, ¢ antes de exe- cutar 0 autor, foi necessirio, no entanto, identifi viduo burgués, & pessoa psicol6gica, e assim reduzir a questo do autor a da explicacio do texto pela vida e pela biografia, restrigio que a hist6ria literdria sugeria, sem divida, mas que nao recobre certamente todo problema da intengio, € nie © resolve em absoluto. Em “O que E um Autor?”, o argumento de Foucault parece depender, também ele, da confrontacao conjuntural entre a historia literdria € 0 positivismo, donde the vieram criticas 51

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