Mill, Stuart. O Que e Poesia PDF

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‘=m dia em que o Tor’ Rinico,"’ com seus Edas," tem de retirar-se na obscuridade, bem como um bojumbo" africano e um Pajé Indio tém de = inteiramente abolidos. Pois todas as coisas, 10 08 Astros Celestes, mais ainda os mete- atmosféricos, tém sua ascensio, seu climax eseu declinio. Estreito é 0 que me dizes, que o Cetro Re- passa de um pedaco de madeira dourada; © Sacrario tornou-se a mais desprezivel das everdadeiramente, como pensou o Velho © “de baixo prego”. Eu poderia chamar-te verdadeiro Prestidigitador, pudesses tu de- iver 2 esses utensilios de madeira a virtude di- gue eles uma vez encerraram. Disso, contudo, estejas certo: se quiseres see2r para a Fternidade, entao planta nas pro- faculdades infinitas do homem, sua Fan- © seu Cora¢ao; se quiseres plantar para 0 © para 0 Dia, entéo planta nas suas facul- = rasas ¢ superficiais, seu Amor-proprio mento Aritmético, 0 que lé cresceré. Um portanto, e Pontifice do Mundo nés 0 0s, 0 Poeta e Criador inspirado; que, ‘Prometeu, pode configurar novos Simbo- sazer Fogo novo do Céu para la colocé-lo. sembém nem sempre faltardo, nem talvez ‘2gora. Entrementes, no geral, reputamos or e sdbio aquele que dispoe do poder de quando um Simbolo envelheceu, remo- ‘sem que se perceba. enquanto se preparava a ultima Inglesa," [...] li no Jornal deles que oda Inglaterra’, aquele que tem de com- ei germanice, um deus, filho de Odin, a divindade ford, a Terra. [NT] -ranas’ sistema de escrita dos antigos povos germa- + &: de mitologia escandinava, encontradas no século ‘india; existe um Eda em versos, do século XI, ¢ ose, da passagem do século XII para o XIIL[N.T. dembnio muito temido, especialmente pelas mu- "potas da Africa ocidental subsaariana. [N.1 eee eee Ney We Wind bater o Universo pelo seu novo Rei, havia ido tao longe que agora podia “montar seu cavalo com pequeno auxilio”, eu disse a mim mesmo; Aqui também temos um Simbolo préximo ao esgota- mento. Ah, para onde quer que te possas mover, nao estiio os trapos e andrajos de simbolos es- gotados e gastos (nesta Feira de Trapos de um Mundo) fenecendo em toda parte, te antolhando, encabrestando, peando? E, de mais a mais, se nao te desvencilhares deles, nao ameagam acumular- -se, e talvez produzir sufocacao? John STUART MILL (Londres, 1806 - Avignon, 1873) > ‘Teve uma severa formacdo no utilitaris- ‘mo filoséfico de Jeremy Bentham, cuja secura ¢ estreiteza, segundo ele mesmo narra em sua Autobiografia (1873), 0 teriam conduzido a uma crise espiritual de que sairia em parte gracas a leitura dos poetas liricos. Isso possibilitou que pudesse ocasionalmente escrever sobre poesia e literatura, em meio a suas preocupagées reflexi- vas principais, dominadas pela logica, psicolo- gia, ética, filosofia da ciéncia, economia ¢ temas politico-sociais, O que é poesia?* (1833) Pergunta-se com frequéncia: 0 que & poe- sia? E muitas e varias sdo as respostas obtidas. A mais comum de todas ~ com que jamais pode satisfazer-se 0 individuo dotado das faculdades as quais a poesia se dirige - ¢ aquela que con- funde poesia e composigo métrica. Muitos, nao obstante, regrediram para esse infeliz arremedo de definigao, devido ao fracasso de todas as suas tentativas de encontrar qualquer outra capaz de distinguir entre o que se acostumaram a chamar * In: Adams, Hazard (Ed). Critical Theory since Pato. San Di- ego: Harcourt Brace Jovanovich, 1971. p. 537-543. Tradugio de Paulo Galvio e Roberto Acizelo de Souza. A reflexdo ontoldgica | John STUART MILL poesia e muita coisa que conhecem somente sob outros nomes. A palavra poesia, no entanto, envolve algo muito peculiar em sua natureza, algo que pode existir tanto no que se chama prosa quanto no verso, algo que nem sempre requer o instrumen- to das palavras, podendo também falar mediante aqueles outros simbolos audiveis chamados sons musicais, € mesmo pelos simbolos visiveis, que so a linguagem da escultura, pintura e arquite- tura. Tudo isso, segundo acreditamos, é e deve ser sentido, embora talvez vagamente, por todos aqueles nos quais a poesia, sob qualquer de suas formas, produz alguma impressio além do delei- te auditivo, Para 0 espirito,' a poesia tanto nao é nada quanto é 0 que hé de melhor em todas as artes e também na vida real; e a distingdo entre poesia e 0 que nao constitui poesia, independen- temente de ser ou nao explicada, é sentida como fundamental. ‘Onde todos sentem uma diferenga, uma di- ferenca necessariamente existe. Qualquer outra aparéncia deve ser falaciosa, mas a aparéncia de uma diferenga é ela propria uma diferenca real. ‘Também as aparéncias, como outras coisas, tem de ter uma causa, e aquilo que pode causar al- go, mesmo uma ilusdo, tem de ser uma realidade. Daf que, enquanto certa meia-filosofia desdenha as classificagdes e distingdes indicadas na lingua- gem popular, a filosofia conduzida a seu ponto mais elevado pode tecer novas classificagées, mas nunca despreza as antigas, satisfeita com re- gularizé-las e corrigi-las. Ela abre novos canais 40 pensamento, mas nao os enche como se ja os encontrasse prontos, delineando, ao contrario, de modo mais profundo, amplo e nitido aqueles hos quais a corrente flui espontaneamente. ‘Tentemos assim, sob a forma de modesta in- vestigacao, nao coagir e confinar a natureza nos 1 Osubstantivo mind em geral se traduz por “mente” ou “espirito” embora possa significar ainda “entendimento’ “pensamento” “intelecto’ “inteligéncia’ “meméria’, "lembrang2’, “mentalida- de" Neste texto, foi sempre traduzido por “espirto’, conside: rando que a palavra “mente” encerra referéncia fisiologica ou “organicista inexistente no contexto do original. [NT] BB) vetdeanodena cetera limites de uma definigao arbitréria, mas sim achar as fronteiras que ela propria estabeleceu, erigin- do uma barreira ao seu redor, sem cobrar dos ho- mens explicagdes por haverem empregado mal a palavra poesia, porém tentando esclarecer-lhes a concepso que ja vinculam a ela, expondo aos seus espiritos, como principio claro, aquilo que, como vago sentimento, realmente os guiou no emprego efetivo do termo. O intuito da poesia é confessadamente agir sobre as emogées; nisto é a poesia distinta o sufi- ciente do que Wordsworth afirma ser seu oposto légico, a saber, ndo a prosa, mas realidade factual ou ciéncia, Uma dirige-se a crenga, a outra aos sentimentos. Uma opera convencendo ou per- suadindo, a outra comovendo, Uma atua apre- sentando proposi¢des ao entendimento, a outra oferecendo as sensibilidades sedutores objetos de contemplagio. Isso, entretanto, deixa-nos muito longe de uma definicao de poesia. Distinguimo-la de uma s6 coisa, mas nosso fim é distingui-la de todas, Apresentar pensamentos ou imagens ao espiri- to com o propésito de atuar sobre as emogdes nao é pertinente apenas a poesia. £ igualmen- te competéncia, por exemplo, do romancista, e, no entanto, a faculdade do poeta e a faculdade do romancista sio tao distintas como quaisquer outras duas faculdades, como a faculdade do ro- mancista e a do orador, ou a do poeta ea do me- tafisico. Os dois caracteres podem estar unidos, como o podem caracteres os mais dispares, mas ndo possuem conexao natural, Muitos dos mais refinados poemas sio em forma de romances, e em quase todos os bons romances ha verdadeira poesia. Mas existe uma radical distin¢ao entre o interesse despertado por um tal romance e o provocado pela poesia, pois aquele deriva do incidente, e esta da representa- 40 do sentimento. Na poesia, a fonte da emo- ao provocada é a exibicdo de um estado ou de estados de sensibilidade humana; no romance, é a exibigio de uma série de estados de meras circunstancias exteriores. Ora, todos os espiri- tos so susceptiveis de se deixarem afetar mais ou menos por representagdes da tiltima espécie, ¢ todos, ou quase todos, por representacdes da primeira; as duas fontes de interesse correspon- dem, nao obstante, a dois distintos caracteres do espirito, além de mutuamente exclusivos, com relagao a seu desenvolvimento maior. A natureza da poesia € tao dissimilar em relagdo a natureza da narrativa ficcional que paixao realmente forte por qualquer das duas parece pressupor ou indu- zir correlativa indiferenca para com a outra. Em que idade é mais intensa a paixio por uma hist6ria, por quase qualquer tipo de historia, meramente como histéria? Na infancia. Mas é também aquela a idade na qual a poesia, mesmo a da descricéo mais simples, é menos saboreada © compreendida, porque os sentimentos que lhe concernem ainda nao se desenvolveram e, nao tendo sido experimentados sequer no mais ligei- ro grau, no podem ser sintonizados. Por outro ado, em que estégio do progresso da sociedade €o contar histérias mais valorizado, o contador de hist6rias mais requisitado e reverenciado? No estado rude, como 0 dos tartaros ou dos arabes atualmente, e o de quase todas as nagées nas ida- des mais primitivas. Entretanto, nesse estado da sociedade ha pouca poesia, a exceco das bala- das, que sio principalmente narrativas, ou seja, em esséncia, histérias, e fazem derivar dos inci- dentes seu principal interesse. Consideradas co- smo poesia, so da espécie mais baixa e elementar: ‘os sentimentos pintados - ou antes, indicados ~ so 0s mais simples que nossa natureza possui, alegrias e tristezas, como aquelas que a pressio imediata de algum evento exterior provoca nos espiritos rudes, que vivem completamente imer- sos em coisas externas, e nunca - seja por esco- ha, seja por forca a qual nao pudessem resistir — se yoltam a contemplagaio do mundo interno. Passando agora da infincia, e da infincia da so- ciedade, aos homens ¢ mulheres adultos des- *2 €poca, de todas a mais adulta e nada infantil: 9s espiritos e coragdes de maior profundidade e elevacéo usualmente so aqueles que alcangam maior deleite com a poesia; os mais frivolos e va- ‘ios, a0 contrério, sao, por observacdo universal, ‘os mais afeitos 4 leitura de romances. Isso se coa- duna, também, com toda experiéncia andloga da natureza humana. As pessoas que, néo somente nos livros mas também em suas vidas, encontra- mos perpetuamente engajadas na caca de exci- tacdo vinda de fora sao invariavelmente aquelas que nao possuem, nem no vigor de seus poderes intelectuais nem na profundeza de suas sensi- bilidades, aquilo que as capacitaria a encontrar vasta comocao mais perto, no seu préprio inte- rior. As mesmas pessoas cujo tempo se divide entre excursGes, conversas ociosas e dissipagdes da moda alcancam natural deleite com narrati- vas ficcionais; a excitagao que elas provocam é da espécie que vem de fora. Tais pessoas raramente sio amantes de poesia, embora possam alimen- tar tal pretensio, porque saboreiam romances em verso. Mas a poesia, que é 0 tracado das mais profundas e secretas elaboragdes do coracao hu- mano, $6 interessa aqueles a quem ela recorda © que sentiram, ou cuja imaginacdo ela move a conceber 0 que poderiam sentir, ou 0 que pode- riam ter sido capazes de sentir, fossem diferentes suas circunstancias exteriores. A poesia, quando é realmente poesia, é ver- dade; e a ficcdo também, se for de alguma ser- ventia, é verdade; mas sao verdades diferentes. A verdade da poesia consiste em pintar verdadei- ramente a alma humana; a verdade da ficcéo, em oferecer um quadro verdadeiro da vida. Os dois tipos de conhecimento sao diferentes e trilham caminhos diferentes, dirigindo-se quase sempre a pessoas diferentes, Grandes poetas so, com frequéncia, proverbialmente ignorantes da vida. O que sabem provém da observacao de si pré- prios; ld encontram uma espécie de natureza hu- mana altamente delicada, sensivel e refinada na qual as leis da emogao humana estio escritas em amplos caracteres, que podem ser lidos sem mui- to estudo; e outro conhecimento da humanidade, como 0 que vem aos homens do mundo por via da experiéncia exterior, nao lhes é indispensdvel como poetas. Para o romancista, porém, tal co- nhecimento é tudo; ele deve descrever coisas ex- teriores, nao o homem interior; agdes e eventos, A reflex ontligi | John STUART MIL 7 no sentimentos; e nao Ihe bastard ser incluido entre os que, conforme Madame Roland? disse a Propésito de Brissot,* conhecem 0 homem, mas nao os homens. Nada disso é barreira para a possibilidade de combinacio de ambos os elementos — poesia € narrativa ou incidente - no mesmo trabalho, para chamé-lo tanto romance quanto poema; mas assim podem vermelho e branco combinar has mesmas feiges humanas, ou na mesma tela; € assim podem éleo e vinagre, nao obstante as naturezas opostas, misturar-se no mesmo sabor composto. Hé uma ordem de composicao que re- quer a unio de poesia e incidente, cada um em. sua mais elevada espécie: a composigéo dramiti- a. Mesmo af, os dois elementos sao perfeitamen- te distinguiveis, podendo cada qual existir de modo distinto, ¢ na mais variada proporgao. Os incidentes de um poema dramatico podem ser escassos ¢ ineficazes, embora o tracado de paixio € personagem possa ser da ordem mais elevada, como no glorioso Torquato Tasso, de Goethe; ow ainda a histéria como mera historia pode ser bem-organizada para produzir efeito, como no caso das mais despreziveis produgées da editora Minerva; pode até ser, 0 que nao é 0 caso da- quelas, uma série coerente e plausivel de eventos, apesar de ser raro o sentimento exibido que nio © seja falsamente, ou de maneira absolutamente banalizada. A combinagdo das duas exceléncias 0 que torna Shakespeare tao geralmente aceito, cada espécie de leitor achando nele o que é con- forme as suas préprias faculdades, Para a maio- ria, ele é grande como contador de histérias; para poucos, como poeta. Limitando-se a poesia a0 delineamento de estados de sentimento, ¢ renegando-se tal nome onde nao se delineiam sendo objetos exteriores, 2 Marie-Jeanne Roland dela Pltiere (1754-1793), ativsta da Re- volugio Francesa, 3 Jacques Pierre Brissot (1754-179 dda Revolugo Francesa. um dos politicos destacados 4 The Minerva Press era uma prolifica editora londrina do tempo ddo autor, especializada em romances géticos, histiricos e de terror. — pode-se pensar que fizemos 0 que prometemos evitar: ter ndo achado, mas criado uma definicao, €m oposigo ao uso da lingua inglesa, uma vez que se encontra estabelecido por consenso que existe uma poesia chamada descritiva. Negamos Aacusagao. A descricao nao é poesia porque exis- te poesia descritiva, tanto quanto a ciéncia no € poesia por haver algo como o poema didético; tampouco ~ poderfamos quase dizer - 0 grego ou o latim sao poesia, por existirem poemas gre- 80s ¢ latinos. Mas um objeto que admite ser des- crito ou uma verdade que pode ter lugar em um tratado cientifico podem também oferecer opor- tunidade para a geragio de poesia, a qual entao escolheriamos chamar descritiva ou didatica. A poesia nao est no objeto em si, nem na pré- pria verdade cientifica, mas no estado de esptri- to em que um e outra podem ser contemplados. O mero delineamento das dimensées e cores de objetos externos nao é poesia, tanto quanto uma planta da Abadia de St. Peter ou de Westminster nao € pintura. A poesia descritiva consiste, sem diivida, em descrever, mas na descri¢ao das coi- sas como aparecem, nao como sao; ¢ ela as pinta ‘nao em seus tracos simples e naturais, mas com- postos nas cores e vistos por meio da imaginacio acionada pelos sentimentos. Se um poeta deve descrever um ledo, nao se aplicaré em descrevé-lo como o faria um naturalista, nem mesmo como um viajante cuja intengio fosse afirmar a verda- de, toda a verdade e nada além da verdade. Ele o descrevera por imagens, isto é, pela sugestio das analogias ¢ dos contrastes mais marcantes que poderiam ocorrer a um espirito contemplando 0 leo, no estado de temor, espanto ou terror que 0 espetéculo naturalmente suscita, ou que, na oca- sidio, deve suscitar. Ora, isso é descrever 0 ledo de maneira manifesta, mas é descrigao fiel do estado de comogio do espectador. © ledo pode ser des- ctito de modo falso ou em cores exageradas, ¢ a poesia ser da melhor qualidade, mas, se a emo- sao humana nao for pintada com a verdade mais escrupulosa, a poesia é ma poesia, isto é nao é em absoluto poesia, mas um fracasso. Até aqui, nosso progresso em direcio a uma clara visio dos tragos essenciais da poesia trou- xe-nos para muito perto das duas tiltimas tentati- vas de defini¢ao que ocorreu vermos publicadas, ambas feitas por poetas e homens de génio. Uma é de Ebenezer Elliot,’ 0 autor de Corn-law Rhy- ‘mes e outros poemas de mérito ainda maior, “A poesia’, diz ele, “é.a verdade apaixonada” A outra 6 de um escritor publicado no Blackwood’s Ma- gazine, e chega - pensamos ~ ainda mais perto do alvo; esquecemos suas palavras exatas, mas em substancia ele definiu a poesia como “os pensamentos do homem matizados por seus sentimentos”. Hé em ambas as definigées muita proximidade com o que estamos buscando, Toda verdade que o homem pode anunciar, todo pen- samento, mesmo qualquer impressdo exterior, que possam penetrar em sua consciéncia, podem tornar-se poesia quando exibidos através de um meio apaixonado, quando revestidos com 0 co- lorido da alegria, ou da dor, ou da piedade, ow da afeicao, ou da admiracio, ou da reveréncia, ou do temor, ou mesmo do édio ou terror; e, se nao assim colorido, por mais interessante que possa ser, nada é poesia. Mas ambas essas definigées fa- Iham na discriminagao entre poesia e eloquéncia. A eloquéncia, tanto quanto a poesia, é a verdade apaixonada; a eloquéncia, tanto quanto a poesia, & pensamento colorido pelos sentimentos. Toda- via, a percepgio comum, do mesmo modo que a critica filoséfica, reconhece uma distingao entre as duas: existe muito do que todos chamariam eloguéncia que ninguém pensaria em classificar como poesia. Em algumas ocasides, surgiré uma questo: se algum autor especifico é poeta. E os que insistem na negativa normalmente admitem que, embora nao um poeta, ele é um escritor al- tamente eloquente. A distingao entre poesia e eloquéncia apare- ce-nos como tao fundamental quanto a distingao entre poesia e narrativa, ou entre poesia e descri- cao. Ela esta ainda mais longe de ter sido satisfa- toriamente esclarecida que qualquer das outras, a menos que ~ e isso ¢ altamente provavel - os artistas e criticos alemaes lhe tenham lancado 5 Poeta inglés (1781-1849). alguma luz que ainda nao nos tenha alcancado. Sem conhecimento perfeito do que tém escrito, constitui algo proximo a presungao tratar de tais assuntos, e devemos ser os primeiros a insistir em que qualquer coisa que estejamos prestes a propor seja aceita por eles e submetida a sua cor- regio. Poesia e eloquéncia so ambas semelhantes & expressio ou a articulagio do sentimento. Mas se pudermos ser desculpados pela aparente afetacio da antitese, deveriamos dizer que a eloquéncia se destina intencionalmente a audicao, ao passo que a poesia se ouve como que por acaso e a revelia do poeta.” A eloquéncia pressupde um audité- rio; a peculiaridade da poesia parece-nos consis- tir na total inconsciéncia do poeta quanto a um ouvinte. A poesia é sentimento confessando-se a si mesmo, em momentos de solidao, e corporifi- cando-se em simbolos que sao as representagdes possfveis mais préximas do sentimento na forma exata em que ele existe no espirito do poeta. A eloquéncia é sentimento derramando-se em ou- tros espiritos, cortejando-lhes a simpatia, ou em- penhando-se para influenciar-lIhes a crenca, ou mové-los a paixio ou A aco. Toda poesia é da natureza do soliléquio. Po- de-se dizer que a poesia, que é impressa em papel ¢ vendida numa livraria, constitui soliléquio em trajes completos e sobre o palco. Mas nao existe nada de absurdo na ideia de tal espécie de soli- Iéquio. O que dissemos a nés mesmos podemos dizer aos outros em seguida; 0 que dissemos ou fizemos na soliddo podemos voluntariamente re- produzir quando sabemos que outros olhos estio postos sobre nds. Mas nenhum trago da conscién- cia disso deve estar visivel no préprio trabalho. O ator sabe que ha uma audiéncia presente; contudo, se representar como se soubesse, representa mal. Um poeta pode escrever poesia com a intencio de publicd-la; pode até escrevé-la com 0 propésito 6 Tendo em vista a dificuldade de tradugdo dessa passagem, re- produzimos a frase no original: “But if we may be excused the seeming affectation or the antithesis, we should say that elo- quence is heard, poetry is overheard” (p. 539). [NT] A reflexdo ontoligica | ohn STUART MILL expresso de ser pago. Que o produto deva ser poe- sia, sendo escrito sob quaisquer de tais influéncias, é muito pouco provavel, embora nao imposstvels mas nao ¢ possivel senao pela capacidade do poeta de excluir de seu trabalho qualquer vestigio de tais atengdes ao mundo externo e cotidiano, ¢ de ex- primir seus sentimentos exatamente como os sen- tiu na solidao, ou como sente que deveria senti-los, ainda que tivessem de permanecer para sempre inarticulados. Mas, quando ele se volta e se dirige a outra pessoa, quando 0 ato da articulagéo nao é em si mesmo o fim, mas meio para o fim — ou seja, quando trabalha sobre os sentimentos, ou sobre a crenga, ou sobre a vontade de outrem, mediante 0s sentimentos que ele mesmo expressa -, quan- do a expresso de suas emocdes ou de seus pen- samentos, matizada por suas emogdes, é também matizada por aquele propésito, por aquele desejo de impressionar outro espirito, entao ela cessa de ser poesia, tornando-se eloquéncia. De acordo com isso, a poesia ¢ fruto natural de soliddo e meditacao; a eloquéncia, do intercur- so com 0 mundo. As pessoas que tém mais senti- mento seu proprio, caso a cultura intelectual lhes tenha dado uma linguagem para express4-lo, pos- suem a faculdade mais alta da poesia; aqueles que melhor entendem os sentimentos alheios sao os mais eloquentes. As pessoas - ¢ as nacdes - que comumente se distinguem em poesia sao aquelas cujo carater e cujos gostos as tornam menos de- pendentes, para sua felicidade, do aplauso, ou da simpatia, ou da participagao do mundo em ge- ral. Aqueles para os quais 0 aplauso, a simpatia, a participagio do mundo sao mais necessérios geralmente distinguem-se mais na eloquéncia. Por isso, talvez, a nagao francesa, que é a menos poética de todas as nagdes grandes e refinadas, estd entre as mais eloquentes, sendo também a mais socidvel, a mais pretensiosa e a menos au- todependente. Se 0 que se disse constitui, como acredita- mos, a verdadeira teoria da distingéo comumente admitida entre eloquéncia e poesia, ou, embo- ra nao 0 seja, a0 menos se a distincao afirmada constituir, como nao podemos duvidar, distingao Uma ideia moderna de literatura real de boa fé, seré sustentavel nao meramente na linguagem das palavras, mas em qualquer outra, e cruzara todo o dominio da arte. Tome-se, por exemplo, a miisica: encon- tramos naquela arte, que é tao peculiarmente a expressio da paixao, dois estilos perfeitamente distintos, um dos quais se pode chamar a poesia da musica, e 0 outro, sua oratéria. Apreendida essa diferenga, pér-se-ia um fim a muito secta~ rismo musical. Tem havido muita controvérsia sobre se o carater da musica de Rossini’ — a mu- sica, queremos dizer, que é caracteristica deste compositor ~ é compativel com a expresso da paixdo. Sem divida, a paixéo que expressa ndo € a suavidade contemplativa e meditativa, ou o pathos, ou a magoa de Mozart, o grande poeta de sua arte, Nao obstante, é paixao, mas paixao Joquaz, a paixio que se derrama por outros ou- vidos, portanto a mais bem-calculada para efei- to dramatico, dispondo de natural acomodacio ao didlogo. Mozart também ¢ grande em oraté- ria musical, mas suas composi¢des mais tocantes encontram-se no estilo oposto, 0 do soliléquio. Quem pode imaginar “Dove sono”* intencio- nalmente destinada @ audigéo? Imaginamo-la ouvida como por acaso, independentemente da vontade do poeta? O mesmo é 0 caso das me- Ihores cantigas nacionais. Quem pode ouvir es- tas palavras, que falam, de modo tio tocante, das tristezas de um montanhés no exilio? My heart’sin the Highlands, my heart is not here; My heart in the Highlands, a-chasing the deer, A-chasing the wild deer, and following the roe; My heart’ in the Highlands, wherever I go.” 7 Gioachino Antonio Rossini (1792-1868), compositor italiano. 8 Ariada épera As bodas de Figaro (1786), de Mozart (1756-1791). 9 Tendo em vistaa dficuldade de tradugao, reproduzimos afor- rulagio do original: “Who can imagine ‘Dove sono’ heard? ‘We imagine it overhead (p. 540): [NT] 10 “Neu coragio esd nas Terra Altas, meu coracio nie estéaquis/ “Meu coracio esti nas Terra Alta, carando o veado, / Cagando 6 veado selvagem e seguindo o cabrito montés:/ Meu coragio esti nas Terras Alias, onde quer que eu vé° [N.T]. Quem pode ouvir essas palavras comoven- tes, conjugadas a uma can¢ao sentida, e pensar que enxerga 0 cantor? Essa cancéo sempre nos pareceu o lamento de um prisioneiro numa cela solitaria, nés préprios ouvindo, invisiveis, na cela vizinha, Como 0 oposto direto disso, tomemos “Scots wha hae wi’ Wallace bled’;"' onde a musica é tio oratéria quanto a poesia, A miisica puramente patética participa do soliléquio. A alma é absorta em sua dor, e, em- bora possa haver espectadlores, ela nao est pen- sando neles. Quando 0 espirito esta olhando para dentro e nao para fora, seu estado nao varia com frequéncia ou rapidez; dai fluéncia serena, inin- terrupta, aproximando-se quase da monotoni: que um bom leitor, ou um bom cantor, conce- der as palavras ou 4 musica de feicao pensativa ou melancélica. Mas a tristeza, tomando forma de prece, ou de lamento, se torna oratéria; nao mais humilde, serena e suavizada, assume ritmo mais enfatico, acento de retorno mais veloz; em vez de poucas notas lentas, iguais, seguindo-se umas as outras em intervalos regulares, ela acu- mula nota sobre nota, e muitas vezes se contrafaz na alegria da precipitacio e do alvoroco. Aqueles que tém familiaridade com algumas das melho- res composicdes sérias de Rossini, como a dria “Tu che i miseri conforti’, da épera Tancredi, ou 0 dueto “Ebben per mia memoria’, de La gazza la- dra, imediatamente entenderio e sentirao nossa ideia. Ambas sao altamente trégicas e passionais; 2 paixio de ambas é a da oratéria, ndo a da poe- sia. Coisa semelhante pode ser dita da prece mais comovente do “Fidelio”, de Beethoven - “Komm, Hoffnung, lass das letzte Stern / Der Miide ni- cht erbleichen”® -, na qual Madame Devrient,” no ultimo verdo, exibiu consumados poderes de expressio patética. Que diferenca do belo “Paga pil’; de Winter;"* a propria alma da melancolia #1 angio patriética da Escdcie, com letra de Robert Burns (2759-1756) © Em alemio no origina. Em portugués; "Vem, Esperanca, nio scxesapagar-seu derradeiraestela dos fatigados: [NT]. © Madame Schroder Devrient, cantra lirica, da época do autor © Peter Winter (1754-1824), compositor de épera alemio. exalando-se na solidéo, mais repleta de significa do, ¢, portanto, mais profundamente poética do que as palavras para as quais foi composta, pois parece exprimir ndo simples melancolia, mas a melancolia do remorso. Se, da miisica vocal, passarmos agora & ins- trumental, podemos ter um exemplar de ora- t6ria musical em qualquer boa sinfonia militar ou marcha, enquanto a poesia da misica parece ter atingido sua consumagio na ouverture para Egmont, de Beethoven. Perguntamo-nos se ex- Pressio téo profunda de mescladas grandeza e melancolia ter4 jamais sido produzida por meio de meros sons em qualquer outro caso. Nas artes que falam para os olhos, serao sus- tentéveis as mesmas distingdes, nao apenas entre poesia e oratéria, mas também entre poesia, ora~ t6ria, narrativa e simples imitagao ou descrigio. A descri¢ao pura exemplifica-se num mero retrato ou numa simples paisagem, produces da arte, é verdade, porém das artes mecdnicas, mais do que das belas-artes, sendo trabalhos de sim- ples imitagao, nao de criago. Dizemos um mero Tetrato ou uma simples paisagem porque é pos- sivel, para um retrato e para uma paisagem, sem deixar de sé-los, serem também pintura. Um re- trato de Lawrence!’ ou uma das vistas de Turner* nao so meras cépias da natureza. O primeiro combina com os tragos dados aquela expressio Particular - dentre todas as boas e agradaveis - que aqueles tragos sio mais capazes de apresen- tar, e que, por isso, em combinagao com eles, & capaz de produzir a maior beleza efetiva. Turner, por seu lado, vincula os objetos de dada paisagem a certos céu, luz e sombra que capacitem aqueles objetos particulares a impressionar a imaginacao mais fortemente. Em ambos, existe arte criativa, ndo trabalhando segundo um modelo real, mas realizando uma ideia. Tudo que na pintura ou na escultura expressa Osentimento humano, ou o carter humano — que é apenas um certo estado de sentimento tornado 15 Thomas Lawrence (1769-1830), pintor inglés 16 Joseph Maltord Wiliam Tarner (1775-1851), pintor inglés. A reflexdo ontol6gica | John STUART MILL habitual -, pode ser chamado, de acordo com as circunstancias, a poesia ou a eloquéncia da arte do pintor ou do escultor: poesia, se o sentimento se declara por sinais que deixamos escapar quan- do inconscientes de ser observados; oratéria, se 05 sinais sio aqueles que usamos com 0 propési- to de comunicagao voluntaria. A poesia da pintura parece ter sido conduzi- daa sua maior perfeigéo no Moga camponesa, de Rembrandt, ou em qualquer Madona ou Mada- lena de Guido;"” a da escultura, em quase todas as estatuas gregas dos deuses. Nao considerando estas em relagio a mera beleza fisica, de que sio modelos perfeitos, nem procurando defender ou contestar a opiniao de filésofos, segundo a qual mesmo a beleza fisica em ultima instancia se re- solve em expresso, podemos afirmar com segu- ranga que em nenhum outro dos trabalhos do homem jamais realmente brilhou tanto da alma através da matéria inanimada. O estilo narrative corresponde ao que se chama pintura hist6rica, que € moda entre os co- noisseurs tratar como o climax da arte pictérica. Esse € o mais dificil ramo da arte, néo duvida- mos, porque, em sua perfeigao, abarca, de certa maneira, a perfeicao de todos os outros ramos. Como poema épico - embora, como épico (isto 6, narrativo), nao seja de modo algum poesia 6,no entanto, considerado 0 maior esforco do gé- nio poético, porque nao ha espécie de poesia que nao possa apropriadamente encontrar nele um lugar. Mas uma pintura histérica, como tal, ou seja, como representagao de um incidente, deve necessariamente, como nos parece, ser pobre ¢ ineficaz, Os poderes narratives da pintura sio extremamente limitados. Raramente uma pintu- ra, raramente mesmo uma série de pinturas, de que tenhamos conhecimento, conta sua propria historia sem o auxilio de um intérprete; deve-se conhecer a histéria previamente, para entao sim perceber-se grande beleza e adequagio no qua- dro. No entanto, as figuras singulares & que sao, 17 Guido Reni (1575-1642), pintor italiano. Uma ideia moderna de literatura para nés, o grande encanto até da pintura his- torica. E nestas que se vé realmente o poder da arte; no esforco de narrar, signos visiveis e per- manentes sio muito inferiores aos fugazes signos audiveis, que se seguem ligeiros um apés 0 outro, enquanto as faces e figuras num quadro narrativo, mesmo que sejam de um Ticiano,* quedam-se iméveis. Quem nao prefere um Virgem e menino, de Rafael, a todos os quadros que, com suas Vé- nus holandesas gordas ¢ desarrumadas, Rubens” pintou? Rubens, no entanto, além de superar a quase todos no dominio dos aspectos mecanicos de sua arte, frequentemente demonstra real gé- nio em agrupar suas figuras, o problema pecu- liar da pintura histérica. Mas quem, entao, exceto um simples estudante da técnica de desenhar e colorir, jé teve 0 cuidado de olhar duas vezes para quaisquer dessas figuras em si mesmas? O poder da pintura se funda na poesia, da qual Rubens nao tinha a mais leve tintura, e nao na narrativa, em que pode ser que ele se tenha distinguido. As figuras singulares, porém, num quadro histérico, sio mais a eloquéncia da pintura do que sua poesia; elas principalmente - a menos que estejam muito deslocadas no quadro - ex- pressam os sentimentos de uma pessoa como modificados pela presenca de outras. De acor- do com isso, 0s espiritos cuja inclinagéo conduz mais para a eloquéncia do que para a poesia cor- rem para a pintura histérica, Os pintores fran- ceses, por exemplo, raramente ensaiam ~ porque com isso nada poderiam fazer - cabecas singula- res, como aquelas gloriosas dos mestres italianos, com as quais poderiam fartar-se dia apés dia em seu proprio Louvre.”! Elas todas tém de ser his- téricas e constituem, quase sem excecio, poses afetadas. Se quiséssemos dar a um jovem artista a mais impressiva adverténcia que nossas imagina- Ges pudessem conceber contra essa espécie de vicio no pictérico, que corresponde a grandilo- 18 Tiziano Vecellio (ou Vecell) (cirea 1490-1576), pintor italiano, 19. Rafael Sanzio (1483-1520), pintor e arquiteto italiano. 20 Peter Paul Rubens (1577-1640), pintorflamengo. 21 © Museu do Louvre. quéncia na arte histriénica, nés 0 aconselharfa- mos a subir e descer a galeria de Luxemburgo,” mesmo agora, quando David, 0 grande corrup- tor do gosto, passou desta para a melhor, e da Luxemburgo, consequentemente, para a esfera mais elevada do Louvre, Toda figura na pintura ou estatudria francesas parece estar-se exibindo aos espectadores; encontram-se no pior estilo de eloquéncia corrupta, mas absolutamente em ne- nhum estilo de poesia. As melhores sao rigidas e sem naturalidade; as piores lembram figuras de pacientes catalépticos. Os artistas franceses jul- gam-se imitadores dos classicos, contudo pare- cem nao ter compreensao e sentimento daquela serenidade que foi o carater peculiar e dominan- tena arte grega, até que comegou a declinar: uma serenidade dez vezes mais indicativa de forca do que todo o seu esforgo e sua forcagao, pois a for- 4, como diz Thomas Carlyle, ndo se manifesta por espasmos. Hi algumas produgées da arte que, em prin- cipio, parece dificil enquadrar em quaisquer das classes ilustradas anteriormente. O objetivo di- reto da arte como tal é a produgio da beleza; e como ha outras coisas belas além dos estados de espirito, ha muito da arte que pode parecer na- da ter a ver nem com a poesia nem com a elo- quéncia conforme as definimos. Tome-se como exemplo uma composicao de Claude* ou Sal- vatore Rosa. Existe ali criacdo de beleza nova, pelo agrupamento de cenério natural, de modo verdadeiramente conformado 4s leis da natureza exterior, mas ndo segundo qualquer modelo real, tendo como resultado uma beleza mais perfeita © acabada do que talvez se deva encontrar numa paisagem real. Nao obstante, existe um cardter de poesia mesmo nestas, sem as quais no po- deriam ser tio belas. A unidade, e totalidade, e congruéncia estética do quadro ainda se fundam 22 O Museu de Laxemburgo. 25 Jacques-Louis David (1748-1825), pintor francés, figura maxi- ima da pintura neocléssica europeia. 24 Claude Gellée (ou Lorrain), ou Cliudio de Lorena (1600-1682), pintor francés. 25 Pintor e poeta italiano (1615-1673). na expresséo da singularidade, mas trata-se de expresso num sentido diferente daquele em que até aqui empregamos o termo. Dos objetos nu- ma paisagem imagindria nao se pode dizer, co- mo das palayras num poema ou das notas numa melodia, que sao a real articulacdo de um sen- timento, mas tem de existir algum sentimento com que se harmonizem, e que tenham tendén- cia a despertar no espirito do espectador. Devem eles inspirar sentimento de grandeza, amabilida- de, jibilo, impeto selvagem, melancolia, terror. pintor deve cercar seus principais objetos com imagens tais como espontaneamente surgiriam em um espirito altamente imaginoso, ao con- templé-los sob a impressio dos sentimentos que pretendem inspirar. Isto, se nao for poesia, en- contra-se to prximo que dificilmente exigiria dela ser distinguido, Nesta acep¢o, podemos falar da poesia da arquitetura. Toda arquitetura, para ser impressi- va, tem de ser a expressdo ou o simbolo de al- guma ideia sedutora, algum pensamento que tenha poder sobre as emogdes. A razio por que a arquitetura moderna é tao medfocre acha-se simplesmente no fato de que ela nao constitui a expresso de qualquer ideia; é um mero papa- guear da linguagem arquiteténica dos gregos, ou dos nossos ancestrais teuténicos, sem qualquer concepgao de um significado. Para nos confinarmos, por ora, aos e cios religiosos: estes participam da poesia, na Propor¢ao em que expressam os sentimentos da devogao ou com eles se harmonizam, mas esses sentimentos sao diferentes de acordo com a con- cepgao nutrida acerca dos seres por cuja suposta natureza sao eles produzidos. Para a concepgao grega, esses seres eram encarnagées da maior beleza fisica concebivel, combinada com 0 po- der sobrenatural. Os templos gregos expressam isso, sendo a forca graciosa seu cardter predomi- nante; em outras palavras, solidez, que é poder, € leveza, que é também poder, alcangando com parciménia de meios o que parecia requerer pro- fusdo; resumindo tudo em uma palavra: majesta~ de, Para a concepgao catélica, por outro lado, a A teflexio ontolégica | John STUART MILL Deidade era algo muito menos claro e definido; um ser de poder ainda mais irresistivel que o das divindades pagas, em boa medida para amar-se € mais ainda para temer-se, ¢ envolto no vago, no mistério, no incompreensivel. Uma certa so- lenidade, um sentimento de divida e esperanca trémula ~ como 0 do homem perdido numa flo- resta sem fim, que pensa conhecer 0 caminho, mas nao tem certeza ~ misturam-se em todas as genufnas expressdes da devogao catélica. Essa é eminentemente a expressao da pura catedral g6- tica, igualmente notavel na fusdo de majestade e melancolia das abébadas e alas soberbas, bem como na “sombria luz religiosa” que se insinua pelos vitrais. Nao existe distingao genérica entre as ima- gens que constituem a expressao de sentimento eas imagens que se percebem como harmonizé- veis com os sentimentos. Elas sao idénticas. As imagens em que o sentimento se articula des- de dentro sio também aquelas que deleitam ao apresenté-lo desde fora, Toda arte, portanto, na proporcao em que produz seus efeitos mediante apelo as emogées, participa da poesia, a menos que participe da oratéria, ou da narrativa. E a distingao que essas trés palavras indicam perpas- sa todo o campo das belas-artes. Tais indicagdes nao tém pretensio ao status de teoria, Séo apenas lancadas para a considera- 40 dos pensadores, na esperanga de que, se ndo contiverem a verdade, possam de algum modo contribuir para sugeri-la, Nem teriam sido elas, cruas como esto, consideradas dignas de publi- cago, sendo num pais em que a filosofia da arte é tdo completamente negligenciada que nenhu- ma contribuigdo capaz de servir para situar uma inteligencia perquiridora nesse tipo de investi- gacio, ainda que em si mesmo imperfeito, pode fracassar inteiramente quanto a utilidade. 1 Lima ea modern de Rertra Vissarion Grigoryevich BELINSKI (Sveaborg, 1811 - Sao Petersburgo, 1848) ‘Costuma sér apresentado como pai da intelectuali- dade radical russa, Matriculadona Universidadede Moscou em 1829, foi expulso em 1832, por conta de suas opiniges contrérias a instituigio da servi- dio, passando entdoa viver da colaboracao parao periddico Telescépio. Em 1839, transferiu-se para Sao Petersburgo, tornando-se critico literario dos Anais da Pétria e posteriormente colaborador do Contemporaneo, além de atuar como ensaista e pensador social, Inicialmente muito identifica- do com diversos matizes das teorias romanticas alemas ~ Herder, Goethe, Schiller, os Schlegels, Schelling, Hegel -, incorporou progressivamente concepcdes tributérias do que viria a ser 0 rea- lismo-naturalismo, entre as quais a nogao de um vinculo constitutivo entre arte e sociedade. Muito valorizado na Russia apés a Revolugao de 1917, € considerado o critico mais importante da historia da literatura russa, permanecendo, contudo, qua- se desconhecido no Ocidente. Sobre o significado da palavra “literatura™*(1841)! A literatura é a mais decisiva e elevada for- ma de expresso do pensamento de um povo, manifestada em palavras. Um desenvolvimento * In: Sobranie sotchinentv triokh tomaith. Edigio de F. M. Go- tovenchenko. Moskva; Khudojestvenaia Literatura, 1948. v, 2, p.84-117, Tradugdo de Larissa de Oliveira Neves, 1 René Wellek informa que o enssio teria sido escrito para 0 pro- jeto “Curso tedrico ecrtco da literatura russ” (1841), do qual se publicaram apenas fragmentos: “A divisio da poesia em gé- neros” (1841); "A idia de arte”, “O significado geral da palavra “titeratura”” “Lima visio geral da poesia popular estes és ile timos postumamente, em 1862 (f. Histéria da critica moderna Sto Paulo: Herder / Edusp, 1971. v. 3. 240 e 332). A edigdo- -fonte por nds utlizada para a traduio india a data 1841-1845, Uma terceira fone consultada, a antologia de textos crticos ‘onganizada por Gay Wilson Allen ¢ Harty Hayden Clark, sem maiores esclarecimentos data o ensaio de 1834-1840 (ef. Literary Criticism: Pope to Croce. Detroit: Wayne State University Press, 1962. p. 437).

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