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alimentação, .· .
sociedade
e cultura
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
Presidente
Paulo Gadelha

Vice-Presidente de Ensino, Informação e Comunicação


Nísia Trindade Lima

EDITORA FIOCRUZ

Diretora
Nísia Trindade Lima

Editor Executivo
João Carlos Canossa Mendes

Editores Científicos
Gilberto Hochman e Ricardo ventura Santos

Conselho Editorial
Ana Lúcia Teles Rabel/o
A rmando de Oliveira Schubach
Carlos E. A. Coimbra Jr.
Gerson Oliveira Penna
Joseli Lannes Vieira
Ligia Vieira da Silva
Maria Cecília de Souza Minayo
alimentação,
sociedade
e cultura
Jesús Contreras e Mabel Gracia

ED ITC>R.A

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Copyright © 2011 dos autores
Todos os direitos desta edição reseivados à
FUNDAÇÂOOSWALDOCRUZ / ED!TORA

Projeto gráfico
Daniel Pose

Tradução
Mayra Fonseca e Barbara Alie Guida/li (cap. 2)

Revisão
Irene Emest Dias e Marcionílio Cavalcanti de Paiva

Normalização de referências
Clarissa Bravo e Amanda Gomes Basilio

Apoio acadêmico-administrativo no Brasil


Denise Barros e Janete Romeiro

Catalogação na fonte
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca de Saúde Pública
C764a Contreras, Jesús
Alimentação, sociedade e cultura. / Jesús Contreras e Mabel Gracia;
tradução de Mayra Fonseca e Barbara Atie Guidalli. - Rio de Janeiro :
Editora Fiocruz, 2011 .
496 p. : il. ; tab.
ISBN: 978-85 -7541 -219-0
1. Alimentação. 2. Antropologia. 3. Segurança Alimentar e Nutricional.
4. Cultura. 5. Hábi tos Alimentares. 1. Gracia, Mabel. II. Título.
CDD - 22.ed. -

2011
EDITORA FIOCR UZ
Av. Brasil, 4036 - 1º andar, sala 112 - Manguinhos
21040-361 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (21) 3882-9039 e 3882-9007
Telefax: (21) 3882-9006
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www.fiocruz.br/ed itora
Sumário

Prefácio 7

Nota à Edição Brasileira 11

Apresentação 13

1. Teorias Antropológicas sobre a Alimentação 25

2. A Alimentação Humana: um fenômeno biocultural 109

3. Os Condicionamentos Contextuais e a Variabilidade


Cultural dos Comportamentos Alimentares 147

4. Alimentação, Sociedade e Distinção Social 211

5. Corpos, Dietas, Culturas 289

6. Segurança e Insegurança Alimentar 333

7. Síntese: a modernidade alimentar, entre a globalização


e os particularismos 389

Epílogo - Uma Antropologia da Alimentação é Necessária 453

Referências 469
Prefácio

Embora seja um dos temas que fazem parte dos fundamentos


teóricos e empíricos da antropologia social, o comer, referente à espécie
humana, ou, dito de maneira erudita, o alimentar-se, em toda sua imensa
complexidade de demarcador de passagem da natureza à cultura,
considerado - aludindo-se a um dos ícones da disciplina - um "fato
social total" tardou a ganhar, tanto nas ciências sociais contemporâneas
como nas ciências da vida, a importância conceituai e estratégica que
obteve em alguns momentos da teorização socioantropológica clássica.
Tal relevância só se fez notar na segunda metade do século XIX, com o
pensamento marxista alemão (Friedrich Engels), e na segunda metade
do século XX, em três curtas décadas, com o pensamento estruturalista
francês (Claude Lévi-Strauss).
Mesmo que se trate de correntes teóricas radicalmente diferentes,
tanto em seus conteúdos epistemológicos como em sua abordagem
metodológica - a primeira, sócio-histórica, centrada nas ideias-força de
'determinação, lei e evolução', características do século de Darwin,
influenciada pela história e pela biologia, e a segunda, etnológica,
marcada pelas ideias-força do século XX oriundas da linguística e da
psicanálise, de 'estrutura e inconsciente' - , o pensamento marxista alemão
e o pensamento estruturalista francês tiveram em comum o fato de
buscarem no modo social de produzir, distribuir e conservar o alimento a
especificidade do 'agir humano', ou o que o qualifica como tal, em
comparação com tantas outras espécies animais com as quais
compartilhamos tantas atividades de preservação da vida. Assim, ambas
se debruçaram sobre o acasalamento, a reprodução, a proteção da prole,
o abrigar-se das variações sazonais da natureza por meio de qualquer
tipo de proteção, duradoura ou precária, inclusive a 'vestimenta' e,
sobretudo, o comer, o 'alimentar-se'.

7
Em outras palavras, essas correntes clássicas tentaram compreender
e 'interpretar' no 'campo das ciências sociais' o alimentar-se humano como
um dos fenômenos típicos que dão origem ao conceito de 'cultura', e
assim explicar como podemos caracterizar as sociedades de acordo com a
variação temporal e espacial (histórico-geográfica) do conjunto de sentidos
e de significados que as coletividades humanas atribuem a essa atividade,
assim como as práticas (ritualísticas, cerimoniais, religiosas, festivas,
convencionais, medicinais, rotineiras) que as exprimem e delas resultam.
E que tipo de relações e hierarquias sociais ensejam e tendem a conservar,
de acordo com o tipo de alimentação, de 'comida' destinada a cada uma
das referidas ocasiões.
Entre as questões aqui mencionadas, que constituem certamente
temas centrais da antropologia cultural, embora sejam pertinentes ao
conjunto das ciências sociais, interessa-nos salientar neste prefácio uma
em especial, que é o nutrir-se humano visto como um fato 'biopsicossocial',
isto é, como 'fato social total', e o caráter pluridimensional do ato de se
alimentar.
Acreditamos que foi essa pluridimensionalidade que se perdeu,
com a fragmentação disciplinar característica do paradigma científico
contemporâneo , sobretudo das últimas décadas do século XX, na
abordagem da pesquisa dos fenômenos relativos à alimentação humana.
Perdeu-se, com a extraordinária especialização disciplinar dos campos
do conhecimento científico, a totalidade temática envolvida em cada
objeto específico de pesquisa, e não apenas no plano epistemológico,
fruto da diversificação de métodos, teorias e conceitos, mas também na
própria prática de pesquisa, com a fragmentação metodológica expressa
em protocolos e procedimentos técnicos de pesquisa superespecializados.
Tal fragmentação não é isenta de julgamento axiológico, estando
submetida a critérios valorativos de veracidade, fornecidos pelo
enquadramento de projetos em procedimentos metodológicos de
disciplinas ditas " duras'', ou " exatas ", isto é, oriundas das áreas
disciplinares de campos científicos que desfrutam ao mesmo tempo de
prestígio acadêmico e valoração político-institucional em órgãos de
fomento à pesquisa, públicos ou privados. O favorecimento de
metodologias quantitativas e de técnicas estatísticas avançadas como
critério demonstrativo de rigor e exatidão é exemplar nesse sentido,
. aplicando-se predominantemente nas disciplinas relativas ao meio
ambiente e à vida.
A grande novidade, muito oportuna e fundamentada, que nos
traz a obra de Jesús Contreras e Mabel Gracia, cientistas sociais

8
experimentados em pesquisa e ensino em antropologia e sociologia, é
essa 'interiorização' das ciências humanas, sobretudo da antropologia,
para uma das disciplinas do campo das ciências da vida, a nutrição, até
muito recentemente (uma década, ousaríamos dizer) vista entre nós
brasileiros como integrante por excelência das biociências, sem
praticamente qualquer envolvimento com as disciplinas do campo das
ciências humanas - a sociologia, a antropologia, a história, a filosofia, a
psicologia social, para mencionar as mais importantes. São recentes, da
década de 1990, em geral, as tentativas de mostrar, por meio de pesquisas,
de teses e dissertações, o caráter 'miscigenado' com as ciências sociais
dessa área disciplinar, situando-se tais tentativas geralmente no campo
da saú de coletiva, um terreno mais acolhedor para as inovações
paradigmáticas.
A alentada obra de Contreras e Gracia não apenas preenche uma
lacuna acadêmica no campo da nutrição (seja no nível da graduação ou
no da pós-graduação), como enriquece o acervo da antropologia quanto
aos temas referentes à cultura e alimentação, além de fornecer à saúde
coletiva a informação e a formação necessárias para os estudantes que
estão chegando à nossa pós-graduação em sentidos lato e estrito com
questões relativas à nutrição (ou desnutrição) irrespondíveis nos termos
do modelo tradicional.

Madel T. Luz
Doutora em ciência política, professora titular aposentada da
Univers idade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, professora colaboradora dos Programas de Pós-
Graduação em Sociologia da niversidade Federal do Rio Grande do
Sul e em Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense

9
Nota à Edição Brasileira

Há autores e livros que nos despertam. Este livro é um desses. Fruto


de experiências e reflexões de autores europeus sobre antropologia social
em interface com a alimentação e a nutrição humana, sua importância
está em oferecer caminhos para a compreensão -de variados temas.
No Brasil, aspectos da cultura alimentar ainda não são priorizados
no âmbito do ensino da ciência da nutrição humana. Algumas razões
podem ter contribuído para isso, entre as quais a reconhecida urgência
histórica do país em atender ao debate sobre a fome e seus fatores
determinantes e a influência positivista no campo da ciência da
alimentação e nutrição humana.
A prioridade atribuída à discussão sobre a fome, entendida pelos
meios oficiais como desnutrição, levou a que se privilegiasse a descrição
de sua epidemiologia no país, assim como a compreensão das ações
políticas, econômicas e sociais voltadas para atender à demanda por sua
urgente superação. Na compreensão da rede causal da fome e da
desnutrição infantil no Brasil, a cultura era tratada como fator relacionado
aos hábitos alimentares, como um tema de interesse acadêmico e teórico.
O cenário político desse momento solicitava pragmatismo aos técnicos e
cientistas, com o desenvolvimento de projetos para a redução da fome.
Programas tanto de distribuição de alimentos quanto de orientação
e educação nutricional foram impleme ntados ao lado de modelos
econômicos de exclusão social; pesquisas e estratégias de avaliação de
políticas públicas no campo da alimentação e nutrição demonstraram a
inadequação de ações de intervenção. Dentre os temas de discussão,
estava o fato de os programas não contemplarem aspectos da cultura
alimentar de seus beneficiários. A rejeição histórica, por parte dos
assistidos pelos programas sociais no Brasil, aos grãos de soja, um dos

11
principais produtos brasileiros de exportação, é um dos exemplos que
atestam tal inadequação. A desconsideração das questões culturais
vinculadas à alimentação e nutrição favoreceu por muito tempo o
desperdício de recursos públjcos.
Entretanto, e contraditoriamente, no cenário ocupado pelo
pragmatismo da ciência da nutrição humana, principalmente no campo
da saúde coletiva, surgem pesquisadores que despertam para a necessidade
de contextualizar a problemática alimentar em sua interface com as
questões socioculturais. Esses abnegados pesquisadores, chamados por
alguns positivistas de utópicos, sonhadores e delirantes, mantiveram seus
estudos e permitiram fomentar uma nova abordagem que considera
elementos simbólicos e culturais relacionados ao flagelo da fome, além
de outros aspectos da alimentação e nutrição humana. E surge, também,
o debate sobre a compreensão da cultura - considerados os sentidos da
formação histórica, social, étnica da sociedade brasileira - como elemento
de importância para a formulação de políticas públicas.
A emergência desse interesse pela relação entre alimentação e
cultura no Brasil terá distintas origens no campo da nutrição, a exemplo
da educação alimentar nutricional libertária, inspirada no ideário do
educador Paulo Freire. Foi um processo de amadurecimento, como o de
uma semente que precisa ficar escondida em um terreno fértil para superar
a tempestade e os predadores.
Ainda que sejam contextos distintos, esta obra nos permite
compreender significações culturais para interpretar os objetos da alimentação
e cultura no Brasil. A excelente publicação Alimentación y Cultura:
perspectivas antropológicas - lançada em espanhol pela Editora Ariel em
2005 - rompe fronteiras e atravessa o Atlântico para estabelecer parceria e
cumplicidade de pensamentos, como se uma globalização de ideias nos
aproximasse na discussão das escolhas alimentares neste novo milênio.
Abordando de forma ampla as principais questões da cultura
alimentar no mundo, com base na experiência europeia, principalmente
na Espanha, e em resultados de algumas investigações por eles realizadas,
os autores revelam com profunda sensibilidade a oportunidade deste
debate sobre a cultura como componente essencial à compreensão da
alimentação e nutrição humana.

Denise Oliveira e Silva e Maria do Carmo Soares de Freitas


Membros do núcleo coordenador da Rede lnterinstitucional
de Alimentação e Cultura (Rede A&C)

12
Apresentação

Este livro é fruto de nossa dedicação à docência e à pesquisa de


temas relacionados com a alimentação e com a cultura. Nesta obra,
adotamos algumas considerações pessoais que acreditamos ser conveniente
explicar. Este texto não pretende ser nem um manual, nem um estado da
arte, ainda que se pareça mais com o primeiro. Pretendemos dar uma
visão do conjunto desse campo de estudo, ainda que isso não signifique
renunciar a determinadas opções. Trata-se de uma proposta que enfatiza
em primeiro lugar a pertinência da antropologia social para o estudo da
alimentação humana. Entretanto, nossas intenções vão além disso:
sabemos que estudar as "pessoas que comem" significa, obrigatoriamente,
convocar os saberes de diversas disciplinas - nutrição, psicologia,
economia, ecologia -, porque a alimentação é um fato 'biopsicossocial'
complexo que deve ser abordado como tal. Partindo dessa premissa,
decidimos dirigir aos diferentes temas tratados um olhar antropológico
holístico e comparativo, permitindo também a presença de diferentes
enfoques procedentes de outras ciências sociais e biomédicas. Essa decisão
está baseada na convicção de que esta obra deve servir como material de
discussão e reflexão tanto para os antropólogos que estão trabalhando
com o estudo da alimentação em perspectiva sociocultural como para
todos aqueles outros estudiosos que o fazem com base nas diversas
especialidades científicas e que, por diferentes motivos, podem ver
utilidade em um enfoque globalizante. Certamente, também elaboramos
o livro pensando que ele pode ser útil para os estudantes universitários
que cursam matérias relacionadas ao objeto de estudo.
As diferentes correntes teóricas produzidas pela antropologia
destacaram, de uma forma ou de outra, todas essas inter-relações. No
primeiro capítulo mostramos como esse campo de estudo compartilha

13
numerosas premissas teóricas e metodológicas e evoluiu ao compasso da
evolução da antropologia social. Entretanto, nos pareceu mais produtivo
construir uma história das diversas teorias e monografias que foram
desenvolvidas no âmbito da antropologia abordando algum aspecto das
práticas alimentares, definir a constituição do 'social' em torno delas
enfatizando o modo como os antropólogos trataram de explicar e tornar
inteligíveis as particularidades e recorrências dos comportamentos humanos
relativos à comida. Esse capítulo contempla, por um lado, as contribuições
da antropologia social para a compreensão do fenômeno alimentar. Por
outro lado, percorrer a história da antropologia mostra como esta,
abordando problemáticas consideradas fundamentais, se deparou com a
alimentação. O percurso teórico e metodológico proposto nos levou a
questionar até que ponto as ferramentas das pesquisas e dos estudos de
base estatística, tão utilizadas pelas instituições político-econômicas e
sanitárias no momento de caracterizar os comportamentos alimentares
atuais, podem nos indicar o que realmente comemos. Nossa proposta
metodológica defende o recurso etnográfico como aquele que, em primeira
instância, mas não em única, permite observar, descrever e interpretar de
forma pormenorizada e contrastada a articulação dos diferentes fatores
que se encontram em torno das maneiras de comer.
Nos capítulos 2 e 3 explicamos o modo como a alimentação oferece
um campo de estudo privilegiado para analisar as relações entre a natureza
e a cultura. No ato da alimentação, o ser humano biológico e o ser humano
social estão estreitamente vinculados e reciprocamente envolvidos.
O campo de estudo de uma antropologia da alimentação é constituído
especificamente sobre duas substâncias aparentemente opostas da
humanidade: a entidade biológica, produto da natureza e submetida a
suas exigências, e a entidade espiritual, dotada de pensamento e razão
capazes de transcender as leis naturais. Isso não significa adotar uma
concepção dualista entre o inato ou biológico e o adquirido ou cultural,
entre a fisiologia e o imaginário. O ser humano depende de ambos e
tem, além disso, passado e presente. Também pensa sobre seu futuro .
A evolução da qual surgimos não é somente uma evolução biológica
que, de alguma maneira, tornou possíveis a organização social, a técnica
e o desenvolvimento das faculdades intelectuais. A relação de causalidade
também se estabeleceu em sentido inverso: a evolução biológica de nossa
espécie se tornou possível por uma organização social complexa e pela
técnica.
De fato, no essencial, a evolução do comportamento humano se
realizou através de interações entre os comportamentos alimentares, o

14
ambiente ecológico e as instituições culturais. Reciprocamente, tal
comportamento influencia a anatomia, a fisiologia e, inclusive, a evolução
do organismo humano. Nesses dois capítulos, os comportamentos
socioculturais são poderosos e complexos: as gramáticas culinárias, as
categorizações dos diferentes alimentos, os princípios de exclusão e de
associação entre um e outro alimento, as prescrições e as proibições
tradicionais e/ou religiosas, os ritos da mesa e da cozinha etc., tudo isso
estrutura a alimentação cotidiana. Os diferentes usos dos alimentos, a
ordem, a composição, o horário e o número de refeições diárias, tudo
isso está codificado de modo preciso. Certo número de "indicadores"
gustativos afirma uma identidade alimentar, delimita muito fortemente
o pertencimento culinário a um determinado território. Assim, por
exemplo, o uso específico de uma gordura para cozinhar marca fronteiras
culinárias determinadas: azeite de oliva no sul do Mediterrâneo, gordura
de porco ou manteiga no Oeste etc. As histórias nacionais e as atitudes
individuais relativas à alimentação não podem ser compreendidas
completamente, mas estão relacionadas com os diferentes costumes
alimentares e as particularidades que lhes são próprias.
É óbvio, entretanto, que o interesse antropológico por estudar a
alimentação vá além do interesse de conhecer as relações entre o biológico
e o cultural. Assim tratamos de mostrá-lo nos capítulos restantes deste
livro. De diferentes ângulos, por meio da caracterização dos processos de
diferenciação social no consumo de alimentos, das representações sociais
do corpo e da comida, do fenômeno da fome ou da globalização alimentar,
ilustramos até que ponto a alimentação está estreitamente vinculada à
história dos povos, mostrando que só se pode tentar compreender sua
realidade e evolução, suas hierarquias e desigualdades, suas funções e suas
lógicas, seus significados plurais, considerando-se o peso dos respectivos
contextos em um amplo marco social. O fato de comer está necessariamente
ligado tanto à biologia da espécie humana como aos processos adaptativos
empregados pelos humanos em função de suas condições particulares de
existência, variáveis, por outro lado, no espaço e no tempo.
Conhecer os modos de obtenção dos alimentos e quem e como os
prepara traz um volume considerável de informações sobre o
funcionamento de uma sociedade. Assim como também conhecendo
onde, quando e com quem são consumidos os alimentos, temos condições
de deduzir, pelo menos parcialmente, o conjunto das relações sociais
que prevalecem dentro dessa sociedade porque, definitivamente, os
hábitos alimentares são uma parte da totalidade cultural. Por essa mesma
razão, seu estudo nos introduz na investigação da cultura em seu sentido

15
mais amplo. Sendo totalmente aceitável a afirmação de que "somos o
que comemos"' tentamos ilustrar a oportunidade de discorrer sobre esse
famoso aforismo alemão e afirmar que "comemos o que somos",
assumindo com isso que a alimentação está condicionada, por sua vez, à
nossa realidade biológica e psicossocial. Assim, juntamente a fatores como
a condição onívora ou as restrições genéticas, outros de caráter cultural
como classe social, idade, gênero, identidade ou grupo étnico determinam
nossas opções e preferências alimentares cotidianas. Comemos aquilo
que nos faz bem, ingerimos alimentos que são atrativos para os nossos
sentidos e nos proporcionam prazer, enchemos a cesta de compras de
produtos que estão no mercado e nos são permitidos por nosso orçamento,
servimos ou nos são servidas refeições de acordo com nossas características:
se somos homens ou mulheres, crianças ou adultos, pobres ou ricos.
E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiências
diárias e em nossas ideias dietéticas, religiosas ou filosóficas.
Nos capítulos 5 e 6, consideramos pertinente apresentar aqueles
temas que, de forma específica, abordam as consequências que hoje são
deriv adas do fato de alimentar-se de um ou de outro modo, ou
simplesmente de não fazê-lo, em relação com a ordem política e
econômica na qual são desenvolvidos e reproduzidos - ou da qual
dependem. É o caso dos problemas registrados nos países industrializados
ou em transição, tais como a má nutrição e a fome, a disseminação da
desconfiança em relação à comida de origem industrial ou às novas
tecnologias, a perda da diversidade das espécies locais, a deterioração
do meio ambiente e o esgotamento dos recursos, a dispersão do saber-
fazer culinário ou o aumento dos transtornos do comportamento
alimentar e de diversas doenças, entre outros. A pauta das agendas dos
pesquisadores dedicados à alimentação humana está repleta, como se
pode observar nesses itens, de temas 'quentes', de problemas que, em
nossa opinião, devem ser resolvidos mediante o 'reconhecimento' e o
'conhecimento' das diferenças culturais, do papel desempenhado pela
socialização no consumo de alimentos e das implicações sociais da comida
para a saúde e para o ambiente.
A produção, a distribuição e o consumo de alimentos envolvem
muitos setores em qualquer sociedade, da agricultura ao processamento
dos alimentos, do restaurante ao lar, do indivíduo ao grupo social. Apesar
da abundância aparente, o sistema de produção e divisão alimentar atual
não garante as necessidades básicas das pessoas, nem a divisão igualitária
dos alimentos, tampouco a capacidade regenerativa dos rec ursos
utilizados. Também não favorece a confiança nos alimentos produzidos,

16
nem o desejo, tão humano como legítimo, de preservar e melhorar a
qualidade de vida. Qualquer política pública ou privada que possa ou
queria incidir sobre esse sistema alimentar e/ou modificá-lo deverá fazê-
lo 'reconhecendo' e 'conhecendo' as numerosas incertezas e expectativas
que revestem, nesses momentos, o 'comer' e o 'não comer', e também
levando em conta que, hoje, 'ser o que comemos' reflete, talvez mais do
que nunca, a natureza complexa e contraditória da ordem social
dominante.
Por tudo isso, insistimos na conveniência de dirigir um 'olhar
totalizador' para o fato alimentar, um olhar que, além disso, coloque ênfase
em explicar e fazer inteligíveis as particularidades e recorrências dos
comportamentos humanos no que concerne à comida. Cremos, por outro
lado, que, partindo desse interesse, a antropologia social foi a ciência que
realizou o estudo da alimentação com maior grau de detalhamento e o fez
por diferentes motivos, alguns dos quais relacionados, basicamente, com
as constatações que serão esboçadas a seguir.
1) A constatação de que o estudo das práticas alimentares, mediante
o exame de seus aspectos materiais, sociais e dimensão simbólica,
constitui 'um meio' para analisar muitos outros aspectos da sociedade.
A sobrevivência de um grupo depende em boa parte da satisfação de
suas necessidades alimentares, daí que seja normal que a busca de
comida constitua um dos aspectos mais diversos e comuns de qualquer
cultura. Nesse sentido, a produção, distribuição e consumo de
alimentos, assim como o controle de todos esses processos, ou as
relações entre as sociedades e seu ambiente estiveram na base de
muitos estudos de antropologia econômica e ecológica. A seleção
cuidadosa de alimentos, a oferta sagrada dos manjares, as proibições
ou as referências que recaem sobre certos alimentos e pessoas
encheram capítulos de trabalhos sobre religião e sistemas de crenças.
A comida como meio para o estabelecimento dos direitos e obrigações
entre familiares, parentes ou amigos ou como forma de manifestar
agradecimento, compromisso, dívida ou carinho foi tema tratado pela
antropologia do parentesco. Do mesmo modo , o vocabulário
alimentar, assim como os campos semânticos ou as taxonomias
culinárias, foi objeto da antropologia cognitiva em seu interesse por
demonstrar certas relações entre linguagem, pensamento e realidade
e em seu interesse por destacar o valor das categorias êmicas ou o
ponto de vista dos atores sociais. A ritualização e as festas, a
comensalidade, os livros de culinária, os calendários de atividades e
comidas, os produtos da terra, a restituição ou a invenção de novas

17
formas de abastecer os mercados chamou, por sua vez, a atenção dos
pesquisadores do patrimônio cultural e dos estudos regionais. Os
alimentos como fonte de saúde e doença, de males e remédios, de
medos e obsessões também teve destaque nos trabalhos de
antropologia da medicina. No geral , o estudo dos papéis
desempenhados pelos alimentos e pela comida no estabelecimento e
na manifestação de relações sociais foi relativamente constante na
maior parte das diferentes áreas de estudo da antropologia. Desse
modo, a antropologia social foi se revelando mais ou menos precisa,
já que a alimentação constitui uma espécie de 'janela com vista' através
da qual se pode observar, conhecer e procurar compreender a
articulação de um emaranhado cultural mais amplo. O fato alimentar
é, no sentido dado por Marcel Mauss, um "fato social total",
entendendo-se que todas as áreas da cultura e todos os tipos de
instituições (econômicas, jurídicas, políticas, religiosas etc.)
encontram-se simultaneamente sob tal expressão e o influenciam de
algum modo. Consequentemente, a análise do fato alimentar pode
nos revelar, por sua vez, a natureza e a estrutura de determinada
ordem social em toda sua complexidade.
2) A atenção da antropologia social para com a alimentação humana
esteve relacionada com o interesse que outras disciplinas
demonstraram por este tema e com a circunstância de que essas áreas
do conhecimento, em grande parte de base biomédica, mas também
social, tenham convertido a produção, a distribuição e o consumo
dos alimentos em 'objeto de interesse científico' por suas implicações
na saúde, nos processos afetivos e cognitivos ou no desenvolvimento
econômico e social das populações. Em uma perspectiva médica, o
interesse pela alimentação não é questão recente. A ciência
nutricional, por exemplo, surge em meados do século XIX, estimulada
pelos problemas práticos que afetavam a saúde da população
relacionados com a qualidade dos alimentos produzidos -
frequentemente adulterados, "sofisticados", dizia-se então -, com
seu armazenamento e com as dificuldades no transporte através de
grandes distâncias ou pelos problemas de escassez e enfermidade
reinantes entre os trabalhadores europeus amontoados nos subúrbios
das cidades. Hoje, os problemas de saúde se deslocaram, nesses
contextos, daqueles relativos à desnutrição, tais como o raquitismo
ou a anemia, para aqueles vinculados com a superalimentação, ainda
que continuem subsistindo com características parecidas nos países
pobres. A importância da nutrição foi crescendo no rápido ritmo

18
que o multifacetado poder médico lhe imprimiu e, hoje, os
nutricionistas estão imersos em todas as organizações estatais e
internacionais, prescrevendo recomendações dietéticas e padrões de
conduta em qualquer parte do mundo.
Por outro lado, era lógico que esse questionamento fosse produzido
não só na antropologia mas também nos limites de qualquer disciplina
que tenha procurado abordar a dualidade humana. A alimentação,
como já insistimos, é um espaço intersticial cuja complexidade e
ininteligibilidade começam a ser compreendidas nos limites das
disciplinas, ou seja, quando a história se alimentou e se inspirou na
antropologia ou psicologia, quando a etnologia entrou nas arenas da
ecologia e da biologia, quando os antropólogos se converteram também
em nutricionistas, quando os psicólogos se interessaram pelo
pensamento mágico ou quando os naturalistas, fazendo perguntas
sobre a cultura e não somente sobre a agricultura, constituíram as bases
da etnobotânica. Essa realidade demonstra a necessidade de ampliar
um pouco os respectivos 'olhares' de cada disciplina e incluir uma
perspectiva integradora e transdisciplinar, o que, sob a influência de
trabalhos de Edgar Morin e Claude Fischler, caracteriza uma "atitude
interdisciplinar" que permita reunir essas imagens fragmentadas do
ser humano biológico e do ser humano social.
3) O vínculo histórico entre alimentação e saúde, unido ao surgimento
cada vez mais recorrente dos temas alimentares nas agendas políticas
dos anos 1990, fez com que aumentasse a preocupação com a dieta e,
em geral, com os comportamentos alimentares. Esse foi outro motivo
pelo qual a antropologia social se interessou pela alimentação, pois
não são, absolutamente, banais o aumento do interesse geral pela
alimentação demonstrado pela população e o seu reconhecimento
como um elemento articulador de um bom número de práticas e
representações sociais, e também de problemas. Essa 'centralidade'
do fato alimentar vitalizou , sem dúvida, a expansão paralela da
pesquisa acadêmica e, em particular, os estudos antropológicos. Tanto
o 'comer' como o 'não comer' expressam muitos significados. Nos
meios de comunicação, aparece com certa regularidade e frequência,
sobretudo em comparação com os conteúdos jornalísticos de
cinquenta anos atrás, grande diversidade de artigos e notícias que
incluem programas sobre cozinha ou remédios caseiros para
determinados males, documentários de viajantes narrando as
peculiaridades das cozinhas exóticas, deb ates sobre a saúde e a
inocuidade ou não dos alimentos e suas repercussões em nosso corpo

19
ou no meio ambiente. Também nos rankings editoriais aparecem livros
de regimes de emagrecimento como best-sellers. De forma paralela,
esse auge foi impulsionado pela proliferação e aceitação das
denominadas cozinhas étnicas ou temáticas, as quais chegaram de
lugares remotos para as cidades de qualquer parte do mundo em
pratos relativamente padronizados e/ou inventados, que contribuíram,
assim, para nutrir a já abundante oferta dos restaurantes e o imaginário
exótico das pessoas mais neófilas.
4) Uma última razão pela qual a antropologia social desenvolveu
interesse crescente pela alimentação e pela comida está relacionada
com uma mudança ocorrida no centro de gravidade da própria
antropologia, que nos leva dos processos de produção, distribuição e
consumo alimentar e suas consequências na dinâmica social,
econômica e política das culturas tradicionais à análise da organização
do consumo e dos fundamentos materiais e simbólicos desse processo
em qualquer sociedade. Nas duas últimas décadas, cada vez mais
antropólogos se interessaram pelo estudo dos processos de consumo
porque neles eram abordados os efeitos da introdução dos bens de
consumo industriais nas sociedades tradicionais, o que podia levar,
implicitamente, à aceitação da perda ou dissolução das culturas não
modernas e, consequentemente, ao fim do próprio objeto de estudo
da antropologia. Assim, durante esse período, foram aumentando os
trabalhos que, atendendo especificamente à entrada em massa dos
produtos derivados da modernização nessas e em outras sociedades,
têm abordado as relações complexas surgidas entre os processos de
alcance global e as respostas e interpretações locais. Nesse contexto,
os alimentos e, em um sentido mais amplo, os "produtos alimentícios"
como bens de consumo de massa deram outro impulso à agenda
antropológica. O mesmo pode ser dito do valor adquirido pelos temas
baseados nas experiências das mulheres a partir dos estudos e teorias
produzidas, sobretudo, nas perspectivas de gênero. O abastecimento,
a preparação e o serviço dos alimentos foram e são atividades diárias
principalmente femininas, vinculadas, em boa parte, ao trabalho
doméstico. O fato de que a esfera doméstica e a vida cotidiana tenham
adquirido maior relevância nos estudos antropológicos beneficiou
também a atenção a esses temas previamente desestimados pelo escasso
interesse em casar o pensamento científico com elementos
aparentemente tão desimportantes como um prato de legumes ou
uma técnica de fazer conservas.

20
A análise de todas essas questões não resolve as muitas dúvidas
que continuam aparecendo com relação à nova ordem alimentar. Uma,
por exemplo, é hoje particularmente importante e exige a aplicação de
todos os esforços possíveis: Por que o comer e o não comer têm, hoje,
papel tão importante? Quais são as razões e quais são seus efeitos? Por
que o consumo alimentar alcança significados tão díspares e contrastantes,
dependendo de onde os encontremos? Quando será que, de fato, uma
parte do mundo poderá garantir para a maioria de seus habitantes o
acesso relativamente fácil aos alimentos, que o fantasma da fome só
existirá na memória das pessoas mais velhas ou entre as extremamente
pobres e que a diversidade de opções se converterá em uma possibilidade
cotidiana? As sociedades industrializadas enfrentam novos problemas
derivados, agora, dessa nova situação. Os discursos registrados são,
principalmente, alarmantes: alerta com relação ao consumo (qualidade
duvidosa dos alimentos, consumo desproporcional de alguns nutrientes),
precaução quanto a práticas (desestruturadas , individualizadas,
'mcdonalizadas'), alerta pelas confusões ou erros (os 'não saberes') e
temores diante do aumento de certas doenças (cardiovasculares,
neoplasias, diabetes, obesidade, anorexia, bulimia, ortorexia, vigorexia).
Nos últimos anos, as tendências nos países industrializados atestam
homogeneização de consumos, desestruturação das práticas e saberes e
enfermidades derivadas de excessos e desordens alimentares. Entretanto,
a outra face da moeda, a outra parte do mundo - a menos industrializada
- continua enfrentando problemas derivados da escassez e da miséria.
Especificamente aí, nos países desestruturados pelos processos de
colonização e descolonização, as tendências são ainda mais alarmantes.
A fome não é nenhum fantasma, é uma realidade diária que custa a vida
de milhares de pessoas, especialmente crianças e mulheres. Como devem
ser explicados tais desigualdades e desequilíbrios sociais? O que o
conhecimento antropológico pode fazer diante de tudo isso? Como deve
participar da solução desses problemas, e até onde deve chegar?
Como consequência das abordagens anteriores, neste livro
pretendemos apresentar e analisar algumas das questões presentes nos
pontos anteriores e algumas das respostas oferecidas pelas diversas
pesquisas realizadas. Tudo isso permitiu desenvolver e constituir uma
bem fundamentada 'antropologia da alimentação', um campo de estudo
frutífero que se ocupa do estudo das práticas e representações alimentares
dos grupos sociais em uma perspectiva comparativa e holista, centrada
nos fatores materiais e simbólicos que influenciam os processos de seleção,
produção, distribuição e consumo de alimentos, assim como suas formas

21
de preparação, conservação ou serviço e tendo em conta, ao mesmo
tempo, que existem condicionantes de caráter ecológico, econômico,
cultural, biológico e psicológico que interagem entre si e devem ser
considerados a cada momento.
Além de apresentar as contribuições da antropologia social para a
compreensão do fenômeno alimentar e de definir as características do
fazer antropológico no estudo da alimentação humana, com este livro
pretendemos, também, estabelecer algumas pontes que permitam levar o
'social' ou o 'cultural ' - entendido como um espaço de inteligibilidade
dos fenômenos humanos e uma forma de argumentação específica - a
outras ciências mais especializadas nos determinismos da natureza e da
biologia, como as disciplinas biomédicas, com a finalidade de favorecer
uma aproximação integrada que permita superar as aproximações
reducionistas e descontextualizadas. As práticas alimentares não são
apenas 'hábitos', no sentido de repetição mecânica de atos, iluminadas
por um positivismo ingênuo segundo o qual conhecimento científico e
verdade seriam a mesma coisa. Consequentemente, as práticas alimentares
não podem ser interpretadas, como frequentemente aconteceu, como
hábitos relativamente inadequados, mas devem, sim, ser consideradas
como consequência, também, de 'razões culturais'. Aparentemente, para
a medicina e para a nutrição, o ser humano se 'nutre' apenas de glicídios,
lipídeos e protídeos, mas o certo é que os alimentos, além de nutrir,
'significam' e 'comunicam'. O desejo de encontrar esses significados é a
razão principal deste livro. Bom proveito.

Este livro recupera parcialmente resultados de algumas pesquisas


realizadas pelos autores e que foram apresentadas nas seguintes publicações:

CONTRERAS, J. Antropologí.a de la Alimentación. Madrid: Eudema, 1993.


CONTRERAS, J. Alimentación y Cultura: necesidades, gustos y costumbres.
Barcelona: Ed icions de la Universitat de Barcelona, 1995.
CONTRERAS, J. Alimentación y sociedad: sociología dei consumo alimentario
en Espaiia. ln: CENTRO DE INVESTIGACIONES SOCIOLÓGICAS.
Agricultura y Sociedad en la Esparza Contemporánea. Madrid: Centro de
lnvestigaciones Sociológicas, 1997.
CONTRERAS, J . Cambios socia les y cambios e n lo s comportamientos
alim entarios en la Espaiia de la segunda mitad dei siglo XX. Anuario de
Psicología , 30(2): 25-42, 1999.
CONTRERAS, J. Los aspectos culturales en el consumo de carne. Nutrición y
Obesidad, 4(3): 135 -149, 2001.

22
CONTRERAS, J. & ESPEITX, E. Tercem edad y aprovisionamiento alimentario:
entre la autonomía, las ayudas y el cuidado. Nutrición y Obesidad, 5(5): 209-
222, 2002.
CONTRERAS, J. La obesidad: una perspectiva sociocultural. Nutrición y
Obesidad, 5(6): 275-286, 2002.
GRACIA, M. Paradojas de la Alimentación Contemporánea. Barcelona: Icaria,
1996.
GRACIA, M. La Transformación de la Cultura Alimentaria: cambias y
permanencias en un contexto urbano (Barcelona, 1960-1990). Madrid:
Ministerio de Cultura, 1998.
GRACIA, M. Los trastornos dei comportamiento alimentario como transtornos
culturales o étnicos. Revista de Trabajo Social y Salud, 37, 2000.
GRACIA, M. La complejidad biosocial de la alimentación humana. Zainak.
Cuadernos de Antropología-Etnografía, 20 (monográfico: Nutrición, San
Sebastián), 2000.
GRACIA, M. Alimentación y cultura: nuevas direcciones en antropología de la
a limentació. ln: GAONA, C. & NAVAS, J. Los Modelos Alimentarias a
Debate: la interdisciplinariedad de la alimentación. Murcia: Universidad
Católica San Antonio, 2003.
GRACIA, M. Thoughts on eating risk and its acceptability: the case of transgenic
foods (AGMs). Brazilian Joumal of Nutrition, 17(2): 125-149, 2004.
GRACIA, M. Comer en Barcelona: entre las cocinas autóctonas y el mestizaje
cultural. ln: HOMOBONO, I. & RUBIO-ARDANAZ, J. A. (Comps.). Las
Culturas de la Ciudad, Zainak. Cuademos de Antropología-Etnografía, 23-
24, 2004.
OBSERVATORIO DE LA ALIMENTACIÓN. La Alimentación y sus
Circunstancias: place1; conveniencia y salud. Dir. J. Contreras y M. Gracia.
Barcelona: V Foro Internacional de la Alimentación, 2004.
OBSERVATORIO DE LA ALIMENTACIÓN. Comemos como Vi vimos:
alimentación, salud y estilos de vida. Dir. J. Contreras y M. Gracia. Barcelona:
VI Foro Internacional de la Alimentación, 2006.

23
1
Teorias Antropológicas
sobre a Alimentação

A alimentação é tema de interesse de diversas ciências não apenas


por sua complexidade, mas, principalmente, por sua íntima relação com a
reprodução biológica e social dos grupos humanos. Também por ser uma
ação cotidiana e frequente. De forma geral, as pessoas comem diariamente
e em vários momentos, e muitas das suas atividades durante o dia são
realizadas em função da alimentação ou para garanti-la. Ainda que,
atualmente, cada vez menos possamos afirmar que organizamos a vida
diária baseando-nos nos horários das refeições, mas sim que elas influenciam
os nossos ritmos cotidianos e nossa intimidade: no trabalho, nas atividades
de lazer, no estudo e no descanso. Além disso, trata-se de um fenômeno
tanto cotidiano como ambivalente, pois responde tanto a preocupações
médicas ou nutricionais como a interesses econômicos e políticos, além de
estéticos. A complexidade do fato alimentar e seu caráter multifacetado
fizeram com que numerosas disciplinas tenham convertido a alimentação
humana em seu objeto de estudo, com enfoque seja médico-sanitário,
econômico, político ou, por fim, antropológico, sociológico e histórico.
Cada uma das disciplinas que se ocuparam da alimentação humana dirigiu
sua atenção para os aspectos considerados prioritários segundo seus
interesses. As análises resultantes são, em geral, parciais e referem-se a
apenas algumas das muitas dimensões de um fenômeno que é, em essência,
complexo e multidimensional. Voltaremos a essas análises quando tratarmos
da abordagem interdisciplinar neste capítulo.
Seja do ponto de vista biomédico, arqueológico-histórico ou
sociocultural, a alimentação humana constitui uma preocupação básica

25
para todas as sociedades, e a complexidade e o caráter cotidiano a ela
inerentes nos indicam que, para qualquer caso, abordar a alimentação
como objeto de estudo significa analisar uma ação que, sendo fisiológica,
tem sua necessidade definida principalmente em sua projeção
sociocultural. Foi o que constataram alguns antropólogos quando, no
início do século passado, começaram a se interessar pelos usos e funções
atribuídos aos alimentos, pelas classificações culturais dos diferentes
produtos em comestíveis e não comestíveis, pelas regras de distribuição,
divisão e consumo ou pelas consequências nutricionais e médicas das
pautas culturais de consumo particulares (Messer, 1995). Assim, o estudo
por meio da alimentação não é novo para a antropologia. Pelo contrário,
a contribuição da antropologia durante o século XX foi bastante efetiva,
tanto no que diz respeito às ciências biomédicas como no que se refere a
outras ciências sociais, e também em uma perspectiva tanto teórica como
metodológica. Assim, por exemplo, diante dos estudos que destacam
mais os aspectos quantitativos da alimentação humana (como é o caso
da evolução das porções de determinados alimentos analisados pela
história de acordo com as classes sociais, das práticas orçamentárias
segundo o ciclo de desenvolvimento das unidades domésticas na
economia, ou das análises comparativas entre as necessidades nutricionais
das pessoas e suas condições de saúde e consumo energético considerados
pela medicina), a antropologia contribuiu com o estudo dos aspectos
qualitativos da alimentação, incluindo um foco comparativo e holista e
indicando algumas das contradições mais evidentes contidas nos focos
disciplinares anteriores.

Algumas Definições Prévias:


cultura alimentar, sistema alimentar
Se, como dissemos, o interesse social pela comida não é tão recente
em nossa disciplina, são recentes os esforços teóricos e metodológicos,
realizados a partir dos anos 80 do século passado, para definir o que
poderia ser a antropologia da alimentação como um campo de estudo
dentro da antropologia social. Um dos aspectos mais discutidos nas
últimas décadas foi, certamente, a definição e conceituação desse novo
campo de estudo, tendo em vista que, frequentemente, os conceitos
utilizados estavam relacionados a diferentes tradições acadêmicas, como
a anglo-saxônica ou a francesa , a diferentes ênfases e, inclusive, a
diferentes objetos de estudo (Carrasco, 1992a, 1992b). Assim, por exemplo,
os autores francófonos formados em etnologia e história são partidários

26
da utilização do termo "estilo alimentar'', aludindo com ele tanto às
representações simbólicas como às práticas materiais que configuram a
realidade alimentar e deixando para os enfoques eminentemente
biomédicos o conceito de "hábito alimentar", ao mesmo tempo que, por
sua vez, os antropólogos anglófonos preferem utilizar o conceito de
"hábitos alimentares" ou, mais recentemente, o de "hábitos de comer",
referindo-se também ao conjunto de práticas vinculadas à comida e não
somente às questões relacionadas com a saúde.
Entretanto, para fazer referência ao âmbito das relações entre
alimentação e saúde, prefere-se utilizar o termo "antropologia da
nutrição". Talvez por esse motivo, dentro dessa última tradição tenha
aparecido com mais força a antropologia nutricional, uma subdisciplina
de caráter aplicado desenvolvida especialmente nos Estados Unidos que,
combinando os interesses dos antropólogos sociais e físicos e dos
nutricionistas, especializou-se na análise das relações entre os processos
socioculturais e os processos nutricionais. Dentro dessas distinções, e do
mesmo modo como aconteceu com outros campos de estudo dentro da
antropologia social e da sociologia, 1 também se debateu sobre a utilização
do termo de antropologia "da" nutrição ou de antropologia "na" nutrição
(Poulain, 2002a, 2002b ). Assim, por exemplo, na tradição anglo-saxônica
é comum a distinção entre uma sociology of medicine e uma sociology in
medicine. A primeira, a sociologia da medicina, tem por objeto os papéis
sociais e sua transformação vinculados à emergência de doenças, os
aspectos sociais das organizações médicas, sejam ou não oficiais, e seu
modo de funcionamento, os processos de atendimento, o acesso ao
atendimento sanitário de acordo com os grupos sociais ou a influência
das políticas econômicas e de saúde pública, entre outras questões. Por
sua vez, a "sociologia na medicina" se interessa pelas causas sociais da
1
É cada vez maior o número de autores que apresentam a antropologia e a sociologia
da alimentação sem estabelecer distinções entre ambos os enfoques disciplinares.
Cabe destacar, entre outros, Goody (1984), Murcott (1988) e Mennell, Murcott e
Van Otterloo (1992), Fischler (1995a, 1995b), Lupton (1996), Beardsworth e Keil
(1997) e Poula1n (2002a, 2002b). É preciso salientar, porém, que a maioria dos
trabalhos de sociologia da alimentação parte das primeiras questões teóricas e
metodológicas geradas pela antropologia funcionalista e estruturalista. Com relação
à teoria, a tradição europeia concebe uma distância mínima entre os interesses
teóricos da antropologia social e os da sociologia, considerando que a comparação
sociocultural é a metodologia e o objetivo mais característico de aproximação
entre ambas (Goody, 1984). Essa é também a posição de Anne Murcott, que, em
suas primeiras revisões teóricas, inclui vários sociólogos e dá a um dos seus ensaios
relevantes para esse campo de estudo o título de Sociological and Social
Anthropologica!Approaches to Food and Eating (1988).

27
saúde ou da doença desenvolvendo uma pesquisa mais positivista e
determinista da epidemiologia e colaborando na pesquisa médica para
identificar as dimensões sociais associadas às diferentes formas e graus
de morbidade ou mortalidade. Essa posição, algumas vezes também
denominada social epidemiology, interessa-se principalmente pelos fatores
sociais contemplados como causas ou como fatores de risco de uma
doença.
Essa mesma distinção foi igualmente utilizada por Soba! (1991) e
r·Mclntosh e Zey (1996) para delimitar o objeto da antropologia/sociologia
da nutrição. A antropologia in nutrition seria uma ' parte da social
epidemiology e teria como objeto a investigação e a análise das causas
sociais das práticas alimentares consideradas "inadaptada$''. Na França,
os trabalhos de Hubert (1990, 1995) sobre o câncer da rinofaringe são um
exemplo disso. O ajuste de técnicas de avaliação nutricional ,do consumo
de alimentos por Lambert (1987) ou os trabalhos de lgor de Garine (1996a,
1996b) sobre a alimentação em Camarões correspondem também a esse
enfoque. Por sua vez, a antropologia of nutrition se interessaria, segundo
esses mesmos autores, pelas relações sociais do campo nutricional, ou
seja, pelas lógicas de ação dos nutricionistas e dietistas em função das
organizações nas quais tais lógicas se desenvolvem: hospitais públicos,
clínicas, empresas agroalimentares, restaurantes etc. Por sua vez, também
se interessariam pelas relações que se estabelecem entre doentes e médicos
ou pelos efeitos das-p,__olíticas econômicas.sobre o acesso aos alimentos e

e: .
os serviços nutricionai - ,...
-
Na vei:~ s às distinções são consequência do interesse por
estabelecer_, e r elação à. nutrição , um duplo olhar, baseado na
antropologia e n?- sociologia: um olhar interno - in - , que assume certo
número de hipóté'ses da pesqJlisa na nutrição humana e se coloca a serviço
de uma problemática epidemiológica contribuindo para o que os
nutricionistas cfiàrffam de "o ponto de vista sociológico", e um olhar
exterior - off-, que abordaria os sistemas de ações em que os nutricionistas
tentam fazer seu trabalho. Um olhar que, para ser mais completo, deveria
incorporar também outras contribuições possíveis da socioantropologia
às ciências da nutrição. primeira contribuição, particularmente
desenvolvida pela tradição francesa, tem como objeto o discurso
nutricional, sua elaboração, suas transformações e suas relações com as
normas sociais. Adota, segundo Poulain (2002a: 97), uma interpretação
crítica que aderia se classificar como "sociologia do conhecimento
nutricional'' ·ou " ociologia das ciências da nutrição" . Seu objetivo é
situar as flutuações do discurso nutricional inserindo-as novamente nos

28
contextos sociais de sua pro<jução e de sua difusão entendendo, conforme
a abordagem de Berger e Luckrnl:inn (1986), que os problemas sociais (e,
nesse sentido, certas doenças e certos. discursos sobre elas) são o resultado
de interações e representações.-A segunda contribuição da antropologia
está na compreensão do ato alimentar em si mesmo. Já faz muitos anos,
Margaret Mead e Guth " (1945) escreveram o seguinte: "antes de procurar
saber como mudar os hábitbs alimentares", questão que os nutricionistas ·
sempre propõem aos representantes das ciências sociais, convém
"compreender o que significa comei:"'. Essa postura tão simples diante
da abordagem científica dos alimentos e da comida tem servido de ponto
de partida para a maioria dos antropólogos e sociólogos da alimentação
contemporâneos, estabelecendo-se como a premissa de toda ação de
comunicação e de prevenção.
De nossa parte, preferimos utilizar o termo "antropologia da
alimentação", porque se refere a um âmbito de análises mais amplo e
não está sujeito exclusivamente ao interesse nutricional ou biomédico
da refeição, por mais lícito que esse seja. Trata-se, em nossa opinião, de
usar um conceito aglutinador que abranja o estudo dã cultura alimentar,
ou seja, "o conjunto de representações, crenças, conhecimentos e práticas
herdadas e/ou aprendidas que estão associadas à alimentação e são
compartilhadas pelos indivíduos de uma dada cultura ou de um grupo
social determinado". A antropologia da alimentação não é, para nós,
um enfqque teórico que apareça como alternativa a modelos explicativos
gerados pela disciplina antropológica, nem uma subdisciplina que dispõe
de suas próprias ferramentas conceituais e analíticas. É, na verdade, um
campo de estudo com vocação holista tanto em relação a outros campos
de estudo da disciplina como em relação a outras áreas científicas, no
qual, para qualquer um dos casos, os princípios epistemológicos e
metodológicos referentes à antropologia social são aceitos, discutidos e/
ou renovados. Nesse sentido, na antropologia da alimentação continua-
se trabalhando a partir das e para as velhas perguntas geradas na
disciplina, ainda que também tenham sido definidos novos problemas
que têm servido para revisar certas questões conceituais que afetam de
modo mais geral a antropológia.
Entretanto, se esse campo de estudo tem sido frutífero no tocante
às observações etnográficas realizadas, ainda não está bem definida a
sucessão de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da
alimentação, pois a cada uma das correntes que agora ilustraremos foram
vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que
necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma

29
/
invalidação decisiva das aproximações, perguntas ou respostas anteriores.
Não se pode dizer que estamos diante de um enfoque antropológico
unitário e oposto a outros modos de aproximação da realidade alimentar
(Menell, Murcott & Van Otterlo, 1992). Dentro desse âmbito de estudo,
encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros, ainda que já se comece
a definir um núcleo teórico sólido que conte com um mínimo de
generalizações e de hipóteses que podem ser organizadas em um programa
teórico comum cujo núcleo consiste em defender a ideia de 'sistema
alimentar', sem desconsiderar, contudo, a diversidade de definições e
atribuições que tal sistema tem recebido (Carrasco, 1992a, 1992b).
Neste capítulo, nos centraremos naqueles enfoques que destacam
as dimensões sociais e culturais do sistema alimentar, assumindo de saída,
de acordo com Poulain (2002a), que tal sistema faz referência ao conjunto
de estruturas tecnológicas e sociais que, desde a colheita até a cozinha e
passando por todas as etapas da produção-transformação, permitem que
o alimento chegue até o consumidor e seja reconhecido como comestível.
De fato, entre o universo natural onde esse alimento é produzido e a
mesa onde é consumido, o alimento se move na sociedade e passa por
uma série de transformações. O sistema social alimentar reagrupa o
conjunto de atores econômicos que, desde a produção até o consumo,
contribuem para a transformação, fabricação e distribuição dos produtos
alimentares, incluindo os atores do âmbito doméstico que realizam a
aquisição (comprando, na maioria dos casos, mas também cultivando,
pescando , caçando) e participam da transformação culinária e da
organização das condições de consumo. O sistema alimentar pode ser
representado por uma série de canais através dos quais os alimentos são
produzidos e depois se movem até serem consumidos. Em cada etapa do
sistema alimentar, os atores sociais mobilizam conhecimentos tecnológicos,
mas também representações sociais para tomar sua decisão e fazer com
que os alimentos sejam deslocados até o consumidor, assegurando a abertura
ou fechamento dos canais pelos quais os alimentos passam até chegar ao
momento e ao lugar de sua ingestão.
Essa descrição do sistema social alimentar pode ser ampliada se
distinguirmos os espaços de consumo alimentar e seus canais de
abastecimento. Em relação ao consumo, precisamos levar em consideração
que a distinção clássica da economia entre alimentação doméstica e
alimentação extradoméstica deve ser complementada com os espaços de
trabalho e de locomoção. Desse modo, os alimentos são consumidos no
espaço doméstico onde são cozidos, servidos e ingeridos, no espaço
relativo aos restaurantes, seja coletivo ou comercial, onde as transformações

30
culinárias estão profissionalizadas e o contexto do consumo público está
mais ou menos ritualizado e, finalmente, nos espaços de trabalho, transporte
ou rua onde os alimentos consumidos vêm do espaço doméstico, do espaço
relativo ao restaurante ou do espaço industrial. Os produtos alimentícios
que chegam à mesa procedem, então, de diferentes canais. Em cada
canal, o alimento passa por diferentes etapas técnicas regidas pelas leis
físicas e econômicas particulares. Também jurídicas. Porém, para abordar
plenamente a dimensão antropológica do sistema alimentar convém levar
em consideração o fato de que os alimentos não se movem sozinhos.
O funcionamento dos canais é controlado por pessoas que atuam dentro
de lógicas diferentes, sejam profissionais ou familiares, que também devem
ser consideradas.
Um número considerável de estudiosos tentou delimitar
conceitualmente as dimensões socioculturais da alimentação oferecendo
definições muito variadas sobre o que deve ser entendido por sistema
alimentar, alguns deles com base nas já clássicas concepções de cadeia
alimentar que foram sendo elaboradas nas diferentes ciências sociais
(Dodd, 1856; Raison, 1933; Malassis, 1975a, 1986; Leslie & Reimer, 1999;
Bell & Valentine, 1997; Crang, 1996; Cook et ai., 1999; Atkins & Bowler,
2001) e, em particular, na antropologia e na sociologia (Goody, 1984;
Calvo, 1982; Khare, 1988; Carrasco, 1992a, 1992b); Fischler, 1995a, 1995b;
Beardsworth & Keil , 1997; Poulain, 2002a). Ainda que, no início, os
trabalhos sobre sistemas alimentares estivessem altamente fragmentados
pelas tradições adotadas nas diferentes ciências sociais, nos últimos anos
parece ter se produzido um encontro transdisciplinar que constituiu um
lócus que está sendo mantido tanto empírica como conceitualmente pelos
diferentes enfoques.
Como ponto de partida, podemos tomar o esquema básico de
Goody (1984), segundo o qual o abastecimento e a transformação na
alimentação podem ser conceitualizados em termos de cinco processos
principais, cada um dos quais equivale a uma fase distinta e é produzido
em um lugar específico (cf., no capítulo 2, o item "Condicionamentos
biológicos da alimentação humana"). O primeiro processo refere-se ao
cultivo de alimentos e inclui a criação de animais. É equivalente à fase
de produção e se localiza nas granjas ou explorações agrícolas e/ou
pecuárias. O segundo processo , de partilha e armazenamento, é
identificado como a fase de distribuição, a qual se dá, por exemplo, nos
armazéns e nos mercados. Cozinhar coincide com a terceira fase de
preparação e acontece na cozinha, enquanto comer corresponde à quarta
fase de consumo e se localiza ao redor da mesa. O quinto processo, o de

31
recolhida, representa a fase de limpeza e acontece no que ele denomina,
em um sentido amplo, pia de cozinha.

Quadro 1 - Aprovisionamento e transformação da alimentação


Operação Fase Lugar
1. Cultivar, criar Produção Exploração agrícola
2. Repartir e armazenar Distribuição Armazéns, mercados
3. Cozinhar Preparação Cozinha
4. Comer Consumo Mesa
5. Recolhida Limpeza Pia

Ainda que o esquema de Goody seja algo rudimentar e omita


alguns dos vínculos-chave para o entendimento das relações no sistema
alimentar moderno, ele marca os processos básicos e nos dá ideias
interessantes para pensar nos diferentes aspectos antropológicos que
podem ser formulados em relação a cada uma dessas fases que constituem
a sequência principal do sistema alimentar. Um modelo mais elaborado
é proposto por Frecklenton e colaboradores (1989). Esses autores
empregam o termo biológico "cadeia alimentar" para explicar seu modelo,
ainda que o esquema em si mesmo seja uma descrição explícita da estrutura
social do sistema contemporâneo no qual destacam, por um lado, as
entradas pelos setores da agricultura, da pecuária e da piscicultura e,
por outro lado, o fato de que em qualquer sistema local há fluxos de
saídas (exportações) e de entradas (importações). O papel central está
nos processadores de alimentos, que são as organizações manufatureiras
que obtêm as matérias-primas alimentícias dos produtores primários
(normalmente em mercados especializados) e as transformam em
mercadorias ou produtos comercializáveis. O modelo também destaca o
papel desempenhado pelos atacadistas, que paralelamente se provêm de
artigos dos processadores de alimentos ou dos mercados especializados
para distribuí-los entre os varejistas ou fornecedores de diferentes tipos,
os quais, por sua vez, oferecem seus produtos diretamente 510 consumidor.
Em nosso entender, as definições mais interessantes entre as
apresentadas são aquelas que, de alguma maneira, relativizam a ideia de
sistema como algo fechado em si mesmo, independente ou derivado de
outras realidades, rejeitando-o como sinônimo de conjunto organizado
de partes e vínculos ordenados, por sua vez, como base de um plano ou
esquema predeterminado. É o caso de Sánchez Parga (1988). Esse autor

32
aborda o sistema alimentar como um subconjunto de ordem econômico-
nacional, no qual são localizados, operados e reproduzidos todos os
processos que vão desde a produção até o consumo. O conceito de Fischler
(1995a, 1995b) de "sistema culinário", apesar de lhe outorgar um caráter
estrutural e, em certa medida, autônomo, resulta mais eficaz que o anterior
porque contextualiza cultural e materialmente as atividades alimentares
- especialmente as culinárias. Para ele, um sistema culinário se caracteriza
não somente pelo conjunto de ingredientes e técnicas utilizados na
preparação da refeição e pelas combinações e relações que se dão entre
esses alimentos, mas também pelas normas que governam a escolha, a
preparação e o consumo de alimento. Da mesma forma, a tal conjunto
de ingredientes e técnicas são associadas representações, crenças e
hábitos, constituindo e refletindo, desse modo, parte da cultura. Essa
concepção coincide, em boa medida, com a definição facilitada por Khare
(1988), segundo a qual o sistema alimentar é uma réplica criticamente
importante dos ideais, valores, símbolos e experiências vividas por um
povo, ao mesmo tempo que é um sistema geral e íntimo de comunicação
cultural, que destaca o interesse comum pela segurança alimentar e pela
sobrevivência coletiva.
Enfatizar o aspecto cultural e específico das diferentes partes do
sistema não tem sido, entretanto, o mais frequente; já houve uma
tendência a insistir nas implicações econômicas globais da cadeia
alimentar. Recentemente, essa ênfase também foi criticada, contrapondo-
se às definições que destacam e traçam os fluxos das mercadorias em
escala global , para descobrir a habitual relação tendenciosa e de
exploração entre o provedor de matérias-primas e o lugar de consumo.
Segundo essas críticas, a análise em escala global desconsidera os núcleos
particulares da cadeia e oferece uma análise reduzida e superficial que
ignora, por exemplo, a agência humana ou as "biografias" ou trajetórias
dos alimentos. Levar em consideração a construção social dos alimentos
como mercadorias é relevante, por engendrar interações reflexivas entre
tais objetos e as mãos pelas quais eles foram passando e aquelas às quais
finalmente chegaram. Um exemplo dessa ideia é oferecido por Cook e
colaboradores (1999) em seu trabalho sobre a política de identidade dos
restaurantes e alimentos étnicos e seu papel no estabelecimento gradual
de uma "identidade britânica" multicultural.
Derivados do conceito de sistema alimentar, foram criados outros
termos como "redes alimentares" ou "sistemas de abastecimento" (System
of Provision - SOP), com a finalidade de contemplar, no geral, os
diferentes elementos e relações que se produzem no que diz respeito às

33
atividades alimentares: indústrias agrotecnológicas, representantes de
produção, indústria pecuária, intermediários, indústrias alimentícias,
organismos reguladores e consumo alimentar. A conceituação dos sistemas
de abastecimento se deve, em boa medida, às contribuições baseadas na
economia política, mas também na geografia cultural e nos enfoques
pós-modernos de outras disciplinas sociais (Fine, Heasman & Wright,
1996; Glennie & Thrift, 1996). Na perspectiva do sistema de abastecimento,
os alimentos são vistos como mercadorias que podem ser interpretadas
mediante uma aproximação vertical ou horizontal, ou ambas ao mesmo
tempo. A aproximação horizontal acentua os fatores de consumo que
podem ser identificados no conjunto da sociedade, tais como a classe
social, a idade ou o gênero dos consumidores, e vê as atividades do sistema
alimentar, tais como a produção ou a comercialização, em uma perspectiva
mais ampla. Algumas das propostas de caráter mais marcadamente
qualitativo foram situadas dentro desse enfoque, dando grande valor ao
processo de construção de significados e identidades por meio da comida.
Da economia política, o interesse centralizou-se na expansão do
papel do capital , descrevendo-se o poder econômico das indústrias
alimentícias e identificando-se as tendências em torno da industrialização
da agricultura (Atkins & Bowler, 2001). Essa aproximação enfatiza a
força motriz da indústria dentro do sistema alimentar, assumindo que
tal força provoca maior homogeneidade na produção e processamento
dos alimentos e nas práticas de consumo. A economia agrária, em geral,
está sendo arrastada e submetida às estruturas mais amplas do capitalismo,
como demonstra a ampliação dos condicionantes industriais de produção
que prevalecem em alguns setores agrícolas, pecuários e piscicultores.
O papel do capital financeiro, a organização do trabalho e da tecnologia
e os modos de acumulação do capital são aspectos dessas relações
agroindustriais que já foram analisados nos estudos de reestruturação
da indústria fordista e pós-fordista. Numa perspectiva global, esse
enfoque introduz o conceito de " regimes alimentares", considerando-os
como as novas formas que emergiram a partir das mudanças nos modelos
de comércio internacional. Esses modelos teriam evoluído das estruturas
mercantis e coloniais até a dominação crescente do poder aquisitivo e
organizacional por parte das corporações transnacionais e dos sistemas
reguladores da Organização Mundial do Comércio (OMC) .
A aproximação vertical (Fine, Heasman & Wright, 1996), também
promovida com base na economia política, mas à margem do consenso
geral, prefere abordar os produtos alimentícios ou grupos de alimentos
separadamente do resto das mercadorias, pois acredita que suas

34
características são significativamente diferentes. Assim, os alimentos mais
perecíveis e de uso diário, como o leite, por exemplo, requerem uma
produção, um processamento e um marketing distintos de outros que
não o são, ou que o são em menor escala, como o trigo. Além disso, os
alimentos têm propriedades orgânicas que os situam à parte do resto de
manufaturas, como as têxteis ou automobilísticas. O sistema alimentar
está na interseção da linha difusa entre ambiente e sociedade e, como
tal , condicionado pelos fenômenos naturais. O controle humano foi sendo
cada vez maior, mas os sistemas alimentares ainda dependem amplamente,
em primeiro lugar, das condições de produção que são definidas pelo
solo, pelo sol e pela água e, em segundo lugar, da validade dos alimentos
que obriga à sua manipulação com cuidado em cada fase, desde o campo
até a mesa. Essas considerações determinam pressões tecnológicas e
organizacionais que são de uma ordem diferente em relação a outros
setores industriais. Fine, Heasman e Wright (1996) também enfatizam o
fato de que existem necessidades biológicas dos consumidores ao fim da
cadeia alimentar. Essa circunstâ ncia é muito significativa, porque a
frequência de consumo dos alimentos transforma a comida em uma
questão de vida ou morte para os seres humanos.
Além disso, outro dado importante é o fato de que existe um
limite físico para consumir alimentos que não se aplica a outro tipo de
bens, tal como carros, roupas, equipamentos eletrônicos ou serviços
de diversos tipos. Existe um máximo real com relação ao que podemos
comer ou beber durante uma refeição ou no decorrer de nossas vidas, o
que é diferente da suposta demanda inesgotável que as sociedades
modernas apresentam por outros artigos. Consumimos mercadorias em
forma de signos e símbolos que são absorvidos por nossa mente, que é
potencialmente insaciável (Baudrillard, 1974b ). Essa consideração
é aplicável apenas parcialmente aos artigos alimentares. Quando uma
pessoa come, não consome exclusivamente ingredientes com atributos
simbólicos, mas também seus componentes físicos e seus nutrientes. Tais
ingredientes proporcionam, através da sua ingestão e da sua absorção,
uma saciedade fisiológica real de forma única, que outras mercadorias e
bens não produzem (Beardsworth & Keil, 1997). Nesse sentido, sempre
há limites físicos para as demandas socialmente construídas do apetite.
Ainda que um alimento em particular, por exemplo, o marisco em nossa
sociedade, seja dotado de um alto status social e sirva para incrementar a
própria autoestima, uma pessoa só pode consumi-lo em quantidades
limitadas e com frequência também limitada sem que o corpo exerça as
sanções de náusea ou vômito. Isso nos faz ver que ainda que, em uma

35
perspectiva analítica, os pesquisadores em ciências sociais tenham insistido
em dar conta principalmente dos aspectos socioculturais que rodeiam o
ato alimentar, os alimentos, como bens consumíveis por nosso organismo,
têm características únicas em relação a outros produtos e isso impõe um
tratamento particular ou específico.
Em geral, o enfoque holista do sistema alimentar revela-se útil,
no sentido de que traçar a cadeia que vai desde a produção até o consumo
ajuda a compreender as combinações dependentes dos fatores que
comportam, sejam eles de ordem biológica, econômica, política, ecológica,
cultural ou tecnológica. Por outro lado, sugere que a evolução dos
modelos tem relação direta com essas contingências, evitando assim que
as descrições históricas dos sistemas alimentares sejam menosprezadas.
No âmbito desse tipo de estudos, há quem acredite que é melhor não
enfatizar nem um nem outro enfoque, considerando que os aspectos
verticais e horizontais do sistema alimentar não são mutuamente
excludentes. Reconstruir o sistema de abastecimento com base na
distinção entre mercadorias alimentares individualizadas ou separadas
traz o risco de menosprezar os vínculos que se produzem dentro do
próprio sistema, ao passo que parece mais eficaz dar atenção aos aspectos
repetitivos ou intuitivos do consumo. Dessa forma, a população, e não
somente as mercadorias ou alimentos, é convertida em um objeto de
estudo relevante, especialmente em relação aos seus hábitos, crenças e
formas de conhecimento, assim como também em relação à reconstrução
da história do consumo, do comércio e dos estabelecimentos alimentares.
Leslie e Reimer (1999), com um enfoque mais marcadamente culturalista
e em consonância com os trabalhos de Cook e colaboradores (1999),
criticam as noções de circuitos de produtos e esferas de consumo que
definem a mercadoria como uma entidade física que consegue abrir
caminho até o prato, observando-a também como um elemento simbólico
das interações sociais, as quais são variáveis no tempo e no espaço de
acordo com articulações dependentes.
Do que foi dito até aqui, vale a pena reter duas ideias principais.
Em primeiro lugar, devemos entender por sistema alimentano complexo
das relações interdependentes associadas à produção, distribuição e
consumo dos alimentos que foram se estabelecendo ao longo do tempo
e do espaço com o objetivo de resolver as necessidades alimentares das
populações humanas. Desse modo, reconhece-se a relação entre as
diferentes forças que atuam nos fluxos de mercadorias que vão desde
os produtores até os consumidores e se aceita que os sistemas alimentares
são realidades dinâmicas e que existem elementos de continuidade e

36
de mudança na evolução dos processos sociais que delimitam as formas
pelas quais os alimentos são produzidos, distribuídos e consumidos.
Consequentemente, propõe-se que o novo sistema alimentar (moderno,
não tradicional, industrial) não implica uma ruptura radical em relação
ao anterior (pré-industrial, tradicional), mas apresenta alguns elementos
invariáveis enquanto outros sofreram uma extraordinária transformação.
Sobre a ideia de mudanças e permanências no sistema alimentar, muito
já se insistiu (Gracia, 1996a, 1996b, 1996c, 1998) a favor de uma concepção
dinâmica e multilinear de tal processo, não dissociável, em nenhum
momento, de seu ambiente, a qual converge com a definição de Calvo
(1980: 385) para alimentação: "é uma ação cotidiana submetida ao
passado individual e coletivo e vinculada aos sistemas de produção,
consumo e comunicação nos quais se insere". O sistema alimentar vem se
transformando no acelerado ritmo marcado pelas exigências dos ciclos
econômicos em grande escala, das redefinições hierárquicas que se
sucedem na esfera doméstica no que diz respeito à divisão do trabalho
por sexo e das incidências das diferentes informações relacionadas com a
alimentação. Apesar de Malassis (1975a, 1975b), Flandrin (1996), Burnett
(1979), Schneider (1988) ou Lambert (1987) terem considerado que os
modelos de consumo mudam lentamente, principalmente no que se refere
às representações sociais, as últimas décadas nos oferecem numerosos
exemplos sobre o alcance das profundas transformações ocorridas nos
hábitos, no consumo e inclusive nos valores alimentares, como teremos
oportunidade de demonstrar no capítulo 6 deste livro.
Em segundo lugar, a concepção de um sistema alimentar como um
todo complexo de processos e vínculos interdependentes e variáveis no
tempo e no espaço serviu para permitir propor uma série de interessantes
questões sobre o modo como cada uma das partes se organiza e a maneira
como o sistema se regula e controla. Entretanto, também é preciso dizer
que ainda que qualquer parte do sistema possa ser analisada a partir do,
e com base no, 'social ', nos últimos anos tem sido notória a tendência a
concentrar a atenção no consumo final (Beardworth & Keil, 1997). Se
repassarmos a literatura antropológica, veremos que boa parte dos
trabalhos tem conferido prioridade ou mostrado maior interesse por
questões como as escolhas, preferências e aversões alimentares, ainda
que seja evidente que as atitudes e crenças alimentares da população
têm se localizado dentro de um ambiente cultural, ideológico e material
mais amplo, especialmente nos estudos sobre alimentação realizados nas
sociedades industrializadas. É curioso que tenha sido assim quando,
historicamente, a antropologia tem tendido a se centrar nas análises de

37
processos de produção, distribuição e consumo dos alimentos nas
sociedades tradicionais. De qualquer forma, essa tendência pode se dever
ao maior interesse manifestado nos últimos anos, por parte das ciências
sociais, pela dinâmica do consumo de bens, interesse também demonstrado
pela antropologia social.

A Construção da
Antropologia da Alimentação
O campo de estudo da antropologia da alimentação, como veremos
nos parágrafos seguintes, é muito amplo e diversificado ainda que os
estudos nele realizados possam ser estruturados em torno de quatro eixos
principais: as pesquisas centradas na análise do equilíbrio tecnoecológico
e demográfico que tem como balizas a subsistência, as estratégias
alimentares e a seleção dos grupos humanos; o estudo dos fatores culturais
que intervêm na construção dos modelos de produção, distribuição e
consumo; a análise das transformações do comportamento alimentar
e das pressões sociais e econômicas que nele intervêm; a reconstrução
das tradições culinárias e a criação de modelos de gostos em áreas culturais
específicas (Carrasco, 1992a, 1992b).
Os antropólogos têm , há mais de um século, manifestado seu
interesse pelo estudo sociocultural da alimentação ao registrar com maior
ou menor ênfase seu caráter central para a sobrevivência das sociedades
assim como a extraordinária carga comunicativa que todos os grupos
sociais geram em torno da comida. Sua dedicação ao tema tem sido,
entretanto, oscilante e dispersa, segundo o momento, o lugar e as
correntes teóricas que foram se sucedendo na antropologia, tal como
indicam aqueles que se dedicaram a recolher, organizar e discutir de
forma exaustiva o conjunto de trabalhos realizados ao longo do século
XX sobre as relações entre alimentação e cultura. 2 Tal conjunto de estudos
permite estabelecer um itinerário que vai desde os primeiros enfoques
evolucionistas, que centraram sua atenção nos aspectos ritualísticos e
sobrenaturais do consumo de alimentos e, especialmente, em todos os

Para conhecer a natureza de tais esforços no â mbito da antropologia e sociologia,


podem-se consultar os trabalhos de Murcott (1988); Messer (1995); Peito (1988);
Fischler & Garine (1988); Fürts et al. (1991); Mennell , Murcott & Van Otterlo
(1992); Carrasco (1992a, 1992b ); Maurer & Soba! (1995); Lupton (1996) ; Mclntosh
(1996); Warde (1997); Bea rdsworth & Keil (1997); Caplan (1997); Germov &
Williams (1999); Atkins & Bowler (2001); Poulain (2002a); Mintz & Du Bois (2002)
e Macbeth & MacClancy (2004).

38
costumes "estranhos" capazes de explicar a evolução das instituições
sociais, até os recentes enfoques pós-estruturalistas. Destacam-se também
nesses estudos os aspectos mais problemáticos da alimentação e da
nutrição, tais como a fome, as aplicações biotecnológicas, os transtornos
do comportamento, a segurança ou insegurança alimentar, a globalização
ou a desestruturação alimentar.
No concernente à teoria, a antropologia social oscilou frequentemente
entre duas tendências contrastantes: a que consiste em estudar o ser
humano como uma espécie biológica entre outras e aquela dedicada a
abordar a diversidade cultural independentemente de toda consideração
relativa ao ambiente. Essa bipolaridade, que lembra a dicotomia natureza-
cultura, levou frequentemente a uma oposição contrastante entre
aproximações "idealistas" ou "materialistas". No polo da vida orgânica,
desde o dazwinismo social até a sociobiologia e desde o funcionalismo
até o materialismo cultural , perpetuou-se a intenção de afirmar a
preponderância persistente das causas naturais sobre a cultura. No polo
da vida cultural , encontra-se toda a tradição durkheimiana, o
estruturalismo inclusive, segundo a qual o social é uma realidade
autônoma resultante da linguagem e do pensamento simbólico. Nessa
perspectiva, a antropologia social, então, não pôde deixar de se fundir a
uma ciência do signo em que Lévi-Strauss, influenciado por Saussure,
centrou seu projeto: a semiologia. Resta, entretanto, a dimensão técnica
que insiste em outra ideia socialmente reconhecida: os homens distinguem-
se dos animais a partir do momento em que começam a produzir seus
meios de existência (Guille-Escuret, 2001). Ainda que nas duas últimas
décadas do século XX tenham sido produzidas teorias de termo médio,
ou, dito de outra maneira, teorias nas quais os fatores culturais são levados
em consideração sem que por isso a incidência do ambiente seja
menosprezada ou dela se prescinda, o certo é que durante todo esse
século as três vias de pesquisa, orientadas por três diferentes razões - a
biológica, a cultural, a econômica - não foram confrontadas umas com
as outras em nível de igualdade. Os defensores da razão biológica, por
um lado, e os defensores da razão da linguagem e da faculdade simbólica,
por outro, reconheceram-se mutuamente como os adversários mais
evidentes, apresentando a relação natureza-cultura como simples
prolongamento do dilema inato-adquirido - instinto biológico contra
aprendizagem cultural-, em que o tecnológico ocupava lugar meramente
secundário nos estudos de arqueologia e pré-história (Garine, 2001).
A partir da segunda metade do século, entretanto, a análise das
ferramentas de produção e dos modos de vida econômicos adquire

39
notoriedade suficiente para converter a observação material do social
em um âmbito de estudo frutífero. Ainda que as primeiras orientações
neofuncionalistas possam parecer igualmente deterministas, buscando a
razão material de qualquer prática cultural, abre-se uma via interessante
de trabalho que inclui a história no campo antropológico, e com isso as
dimensões temporal e espacial, assim como a consideração ecológica do
ambiente, que reivindica por sua vez o confronto constante entre crenças
e atitudes e entre produção e símbolos. Nesse sentido, são relevantes as
propostas neomarxistas de Barrau e Godelier segundo as quais as relações
dos seres humanos com a natureza são indissociáveis das relações que
mantêm as pessoas entre si, fazendo seu o preceito de Mauss de não
esquecer jamais a moral ao estudar os fenômenos materiais, e vice-versa
(Guille-Escuret, 2001 ). Essa conceituação dinâmica das relações entre
natureza e cultura levou à superação do clássico confronto entre os
aspectos materiais e ideais dos complexos socioculturais, enfatizando o
caráter dialético que se produz nos processos sociais. Entende-se que as
ações dos indivíduos se corporificam condicionadas por aspectos materiais
- seria o caso da disponibilidade e acesso aos recursos de um meio
determinado - , mas, também, que estão enquadradas em sistemas de
representações que as tornam significativas e canalizam sua realização
(Narotzky, 1995).
Toda essa derivação teórica e metodológica produzida na
antropologia social afetou o estudo dos hábitos e representações
alimentares, algumas vezes ressaltando-se os aspectos sociais e ideacionais
em detrimento dos condicionantes materiais ou vice-versa, e outras vezes
tentando encontrar o equilíbrio entre os diferentes polos. Em seguida,
traçaremos a trajetória percorrida pela análise 'do social' em relação ao
estudo da cultura alimentar dentro das grandes correntes da disciplina e
revelaremos algumas das tentativas mais relevantes de construir o que
poderia ser 'uma antropologia da alimentação', cujo objeto de estudo
vai se conformando, de acordo com Poulain (2002a), em torno do modo
como as culturas invertem e organizam a margem de liberdade deixada
pelo funcionamento fisiológico do sistema digestivo humano e pelas
modalidades de exploração dos recursos postos à sua disposição pelo
meio natural ou que possam ser produzidos no marco das pressões
biofísicas.
De forma progressiva, a antropologia da alimentação interessou-se
pelas interações entre o social, o ecológico e o biológico, uma vez que os
grupos humanos são constituídos por seus modos de vida e suas técnicas,
ao mesmo tempo que por seu próprio funcionamento físico e seu ambiente

40
natural. É, portanto, a originalidade da conexão 'bioantropológica' de
um grupo humano com seu meio que acaba se constituindo em objeto de
estudo da antropologia da alimentação. Assim definido, o espaço
alimentar já não é apenas um fenômeno "social total", nos termos de
Mauss (1950), mas sim um fenômeno " humano total", nos termos
de Morin (1973), que é tanto consequência de fenômenos biológicos ou
ecológicos como fator estruturador da organização social, situando-se
no mesmo nível de importância, ou talvez maior, que a sexualidade ou o
parentesco.
, Remetendo-nos aos primeiros esquemas teóricos, Goody (1984)
identifica três enfoques principais: o funcionalista, o estruturalista e o
cultural. Uma vez discutidos os três, o autor introduz uma nova perspectiva
que englobaria os trabalhos que têm dado relevância aos dados históricos
e comparativos, ainda que não lhes outorgue nenhuma etiqueta específica
à margem da ideia de "mundos em transform ação". Uma década mais
tarde, Mennell, Murcott e Van Otterloo (1992) seguem propondo um
esquema similar, sugerindo que os modelos básicos nos quais se pode
classificar os estudos socioculturais da alimentação são o funcionalismo,
o estrutu ra li smo e o qu e e les chamam de developmentalism ,3 que
fund amenta a ideia de "mundos em transform ação" no qual se inserem.
Combinando esses dois esquemas básicos, Beardsworth e Keil (1997)
propõem um a terceira tipologia com quatro tipos de aproximações -
funci onalista, estruturalista, cultural e desenvolvimen tista -, das quais a
cultura poderia ser omitida, visto que, como o próprio Goody argumenta
em sua obra, não é necessário realmente estabelecer essa categoria, ao
passo qu e o conce ito de cultu ra é fund ame nta l nas o ut ras três
aproximações. De qualquer forma, acreditamos que vale a pena manter
não o epíteto 'cultural', mas a perspectiva cul turalista/simból ica, que

3
A expressão equivalente a desarrollismo (desenvolvimentismo) - ou em francês de
développementalisme - cobre, juntamente com o criacionismo, um subconjun to da
co rre nte evo lucio nista qu e se interessa pe las orige ns da espécie humana e,
sobretudo, pelas diferentes etapas pelas quais o desenvolvim ento da humanidade
teve necessariamente que passa r. A atitude teórica que designa a expressão inglesa
deve lopmentalism não co rres po nd e e m a bsol uto a desarro llism o ou
développementalism e, mas es tá be m mais próxim a das id e ias propos tas pe la
antro pologia dinâ mica de Balandier (1971 , 1988), as quais levam em consideração
o movimento das sociedades, as fo rças que as constituem e as que as modificam,
assim como os hábitos sociais coincidentes que se realizam sob a cobertura das
instituições sociais e organizacionais. Essa perspectiva aborda, consequentemente,
novas problemáticas sociais estru turàdas sobre a ideia de transfo rmação social,
recuperando a aproxi mação histórica nos estudos antropológicos.

41
não apenas faz referência a um enfoque específico dentro da tradição
antropológica, mas também se confronta com o modelo explicativo do
materialismo cultural. As últimas revisões feitas (Lupton, 1996; Caplan,
1997; Germov & Williams, 1999; Poulain, 2002a) adicionam a esse esquema
um quinto enfoque, o pós-estruturalista, no qual é possível situar ao
mesmo tempo as aproximações interacionistas, neomarxistas ou
construcionistas.
O esquema classificatório que se propõe em seguida deve ser visto
como um recurso interpretativo encontrado nas diferentes propostas
elaboradas nos últimos anos. Optamos por oferecer uma visão sintética
que enfatiza a ideia de que os principais modelos explicativos presentes
na antropologia da alimentação indicam, principalmente, mudanças de
ênfase entre as alternativas já normalmente presentes na análise
antropológica mais ampla. Tais alternativas podem ser concebidas em
termos de oposições binárias, como, por exemplo: foco no ambiente
subjetivo do ator social ou em um contexto mais amplo; ênfase nos
métodos qualitativos ou nos quantitativos; preferência pelas análises
sincrônicas com ênfase nos métodos qualitativos em oposição às
diacrônicas, ou vice-versa; atenção à estrutura aparente ou à estrutura
profunda etc. Tudo isso implica, por sua vez, que as mudanças na teoria
antropológica são, de certa forma, repetitivas e cíclicas. Por outro lado,
se trabalhamos em uma área específica da análise antropológica, com
eixos determinados, e nos centramos nas questões da alimentação e da
comida, é lógico esperar que seu tratamento seja em boa medida reflexo
dos problemas propostos por essa orientação. De toda forma, cabe
destacar que a cultura alimentar tem sido um âmbito de análises muito
útil para a construção teórico-metodológica e para o início de debates
frutíferos na disciplina, como teremos oportunidade de demonstrar aqui.
Com relação a essas análises, não é exceção encontrarmos numerosos
estudos sobre alimentação difíceis de serem classificados dentro desse
amplo marco teórico que agora abordamos, pois alguns apresentam alto
grau de hibridação entre duas ou mais aproximações. Incluímos esse tipo
de estudos nos parágrafos deste capítulo dependendo dos temas que
tenham sido abordados e de sua relevância para a antropologia social.
A maioria deles fala da transformação dos hábitos alimentares, da comida
como um marcador de identidade e diferença , das relações entre
alimentação e saúde, do consumo de alimentos e dos estilos de vida e da
representação do risco alimentar.

42
De Necessidades, Rituais e Funções Alimentares:
evolucionismo, funcionalismo, culturalismo
Quando aborda o estudo da alimentação, no fim do século XIX, a
antropologia social se interroga sobre temas diferentes, mas insistindo
na dimensão imaginária, simbólica e social dos alimentos. Muitas das
perguntas que hoje nos fazemos para explicar a diversidade e a lógica
que organizam o consumo de alimentos já foram feitas por antropólogos
como Prazer (1906), Crawley (1902) e Roberston Smith (1889). O primeiro
deles, Prazer, depois de escrever sua célebre obra O Ramo de Ouro,
publicou um pequeno livro com o título Perguntas sobre Costumes, Crenças
e Línguas dos Selvagens, no qual a seção reservada aos alimentos dedica-
se a uma indagação específica: é verdade que esses povos comem tudo o
que é comestível, ou existem alguns elementos proibidos? Há prática de
canibalismo? Eles comem seus inimigos ou seus amigos? Os temas do
canibalismo e do que é ou não comestível continuaram atraindo os
antropólogos contemporâneos que trabalharam nas terras altas de Nova
Guiné ou outros estudiosos da psicanálise e da medicina, pois essas
questões tornaram-se novamente atuais a partir do advento das doenças
priônicas detectadas cm algumas sociedades europeias e cuja origem
relaciona-se com a ingestão de carne contaminada. De fato, esses
precursores tentaram encontrar respostas para os temas que já foram e
continuam sendo chaves dentro d a antropol ogia da alimentação
contemporânea: por que, e m várias cultu ras, existem diferenças de
consumo de acordo com a idade, o gênero ou o status das pessoas? Ou:
por que existem tantas divergências e similaridades culturais relativas
aos hábitos e crenças alimentares?
Interessados por tudo o que diz respeito à religião, na transição
para o século XX o interesse dos antropólogos centrou-se basicamente
nos aspectos ritualísticos e sobrenaturais do consumo de alimentos, tais
como o tabu, o totemismo, o sacrifício ou a comunhão (Goody, 1984).
A análise 'do social' em relação à alimentação articula-se em torno da
oferta de alimentos tanto aos vivos como aos mortos e de alguns aspectos
da comensalidade simbólica. Nesses momentos, amparados pelo marco
teórico do evolucionismo e, consequentemente, preocupados por situar
as culturas nos estágios de uma sequência universal, os antropólogos
dão atenção às proibições e prescrições e a todos os costumes "estranhos"
e inexplicáveis que tiveram a ver com a alimentação, buscando na evolução
dessas instituições sociais os argumentos racionais que permitiram explicar
as sobrevivências encontradas na cultura de sua época. Assim, Crawley

43
(1902) destaca os aspectos religiosos - principalmente os perigos
espirituais - das relações sexuais e das normas de comensalidade,
perguntando-se por que em determinadas sociedades é costume geral
que maridos e esposas, irmãos e irmãs evitem comer juntos. Seu interesse,
entretanto, não está em dar conta dos vínculos entre as formas de
comensalidade e a organização doméstica ou entre essa e a divisão sexual
do trabalho, mas basicamente em interpretar os aspectos míticos e
simbólicos de tais relações.
A exclusiva ênfase religiosa desses antecedentes, se desconsiderarmos
Roberston Smith (1889), que analisa os modos como a comensalidade
atua como catalisadora da solidariedade e condiciona uma parte da
organização social ao mesmo tempo que promove a solidariedade coletiva,
vem marcada em boa medida pelos conflitos que esses antropólogos
manifestaram em relação a suas próprias crenças enquanto o cristianismo
rejeitava as práticas de totemismo, o sacrifício e outros tabus. O auge da
observação de campo e da imersão do antropólogo em uma sociedade
determinada supôs uma mudança na orientação desses interesses,
despertando a busca de relações entre os diferentes aspectos da cultural
total. Com o funcionalismo, o isolado se recontextualiza e os rituais e as
crenças se fixam dentro de processos sociais mais amplos. Essa corrente
propõe uma analogia entre a sociedade e o sistema orgânico,
considerando a primeira como uma espécie de corpo vivo: um conjunto
de órgãos especializados (elementos e instituições), cada um dos quais
desempenha seu próprio e indispensável papel na manutenção, na coesão
e na continuidade do sistema orgânico. Desse modo, a sociedade é vista,
em termos holistas, com propriedades que emergem das inter-relaçõd
complexas e da interdependência das partes que a compõem.
Essencialmente, a análise funcionalista consiste em examinar as
instituições particulares com a intenção de descrever seu significado
funcional, estabelecendo uma distinção entre a função manifesta de um
traço - explicitamente reconhecida pelos membros da sociedade em
questão - e a função latente - que existe, mas não é reconhecida ou
admitida pelos membros dessa sociedade. Essa teoria reconhece, também,
que um sistema social pode exibir traços de disfunções - patologias sociais
- que descompõem o sistema e o conduzem a estados análogos à
enfermidade no corpo orgânico.
Esses primeiros interesses foram ampliados ou desenvolvidos pela
escola britânica funcionalista, que deixa em segundo plano os aspectos
religiosos para se centrar nas funções sociais da alimentação e em seu
papel na socialização dos indivíduos dentro de um grupo. Os artifícios

44
do método etnográfico e o trabalho de campo analisam o estreito vínculo
existente entre a busca, a preparação e o consumo de alimentos e outros
fenômenos de ordem cultural, insistindo assim em sua função
eminentemente social. Os primeiros estudos da antropologia social
britânica sobre a organização social e econômica de sociedades não
industrializadas que subsistem basicamente de recursos locais destacaram
que o trabalho de busca, preparação e consumo constituem a parte central
das atividades cotidianas e o modo como, nesses contextos, os valores
simbólicos e emocionais dos alimentos são utilizados frequentemente
para marcar o status social, os intervalos de tempo e os recursos ambientais
importantes (Messer, 1995; Montgomery & Bennett, 1979). Para os
antropólogos funcionalistas, a alimentação é um instrumento básico na
socialização dos indivíduos e, consequentemente, imprescindível para a
perpetuação do sistema social. Frequentemente, as análises funcionalistas
da alimentação estão circunscritas dentro da problemática mais geral das
necessidades e da 'dádiva' sobre as quais Mauss teoriza. Por exemplo, na
análise das lógicas da dádiva e da contradádiva que sustentam a instituição
do potlatch dos índios Nootka ou Kwatkiult, entre outros, estudados por
Boas, as trocas de alimento têm lugar determinante, constituem um tema
importante em que o potlatch quer dizer não somente trocar e redistribuir,
mas também nutrir, consumir.
Halbawachs (1970), em uma análise durkheimiana do fenômeno
alimentar, situa a comida corno uma "instituição" que desempenha papel
fundamental no processo de socialização e transmissão das normas.
O essencial na vida familiar, segundo esse autor, é a refeição compartilhada,
com a esposa e com os filhos. Por outro lado, os trabalhadores sabem que
a ordem das refeições, o hábito de consumir certos alimentos e o preço
que se atribui a cada um deles são verdadeiras instituições sociais. De
forma próxima, Chornbart de Lauwe (1956), estudando a vida cotidiana
das famílias operárias, constata que uma boa alimentação deve ser antes
de tudo nutritiva, ou seja, abundante e saciante.
Nesses primeiros estudos, o consumo de alimentos ou os hábitos
alimentares são levados em consideração apenas como indicadores de
questões de valor social mais amplo: as proibições totêmicas, as
classificações do sagrado e do profano em relação ao sistema de linhagem
(Durkheim, 1960; Mauss, 1950) e a desigualdade e a diferenciação social
(Marx, 1983; Engels, 1969). Entretanto, esse interesse evolui pouco a
pouco dos últimos anos do século XIX e durante as primeiras décadas
do século XX, começando a ocupar urna parte significativa nas obras de
alguns autores clássicos, tais como The Theory of the Leisure Class

45
de Veblen (1899), The Sociology of the Meal de George Simmel (1910), The
Civilising Process de Norbert Elias ([1939] 1989) ou The Lonely Crowd de
Riesman (1950). Essas duas últimas antecederam o trabalho de Bourdieu
de que trataremos adiante no que diz respeito ao significado que adquirem
certos alimentos e certas formas de comer como meio de alcançar a diferença
e afirmar a distinção entre as classes sociais em vias de ascensão.
Em geral, o significado funcional da comida e das formas de comer
é dest acado por num erosos antropólogos soc ia is qu e escrevem
monografias sobre povos primitivos. Por exemplo, na sua obra The
Andaman Islanders, R adcliffe-Brown (1948) foi um dos primeiros a
ressaltar que a atividade mais importante em uma sociedade consiste na
procura por alimento e que é com relação à comida, e em função dela,
que os sentimentos sociais são invocados e praticados com maior
frequ ênci a. Em seu trabalho, esse antropólogo dedicou-se a demonstrar
o modo como os rituais relacionados à comida e aos tabus eram acionados
não so mente para transmitir às crianças o valor social da comida, mas
tamb ém como recurso para dramatizar os se ntimentos coletivos da
comunidade e a partir daí facilitar a socialização individual. E mais,
segund o Radcliffe-Brown, a produção cooperativa dos alimentos e o
fato de comparti-los dentro da comunidade constituem atividades que
servem para enfatizar o sentido de obrigação mútua e de interdependência
(unidade/consistência) e, desse modo, reforçar a integração da sociedade
andamanesa. Assim, por meio da comida, enfatiza-se a função social do
a lim en to na manifes tação de sentimentos qu e contribuem para a
sociali zação dos indivíduos como membros de sua comunid ade . Sua
função principal é contribuir para a manutenção da estrutura social e,
como conseq uência, do sistema social, de forma que seu valor é mais
social que religioso.
O arg umento de Radcliffe -Brown (1948) revela- se muito
interessante particularmente quando passamos do nível macrofuncional
- societal - das afirmações às análises microfuncionais que esse autor e
outros que o seguem estabe lecem no nível institucional. Trata-se de
encontrar sentido para as formas menos explicáveis da conduta humana,
ver o lógico no ilógico, a razão por trás do irracional. Assim, algumas
características de sua análise sobre as proibições de alimentos nas
cerimônias de iniciação têm uma significação amp la. O próprio Goody
(1984) faz referência ao fato de que, tanto na celebração das primícias
como nos ritos de iniciação que se dão entre os LoDagaa de Gana, os
rituais parecem poupar certos alimentos, às vezes de forma consciente,
de maneira similar à descrita por Radcliffe-Brown.

46
Dentre os estudos mais minuciosos sobre as inter-relações entre
aprovisionamento de alimentos, organização social e nutrição estão os
de antropólogos que trabalharam na África colonial antes da II Guerra
Mundial. Os trabalhos mais direcionados ao estudo da alimentação são
os da discípula de Malinowski, A udrey Richards (1932, 1939), sobre os
Banto e os Bemba, Hunger and Work in a Savage Tribu e Land, Labour
and Diet in Northern Rhodesia. De fato , a contribuição anterior de
Malinowski foi importante, pois proporcionou um estudo etnográfico
muito detalhado da produção alimentar e dos sistemas de distribuição
nas Ilhas Trobiand, assim como dos modelos de crenças e reciprocidade
social articulados por tais sistemas, nos quais se destacavam as funções
que respondiam às necessidades físico-psicológicas dos indivíduos.
Influenciada por seu mestre, Richards realizou uma extensa avaliação de
todas as relações sociais vinculadas ao intercâmbio de alimentos,
interessando-se pelo modo como os hábitos alimentares expressavam e
simbolizavam tais relações entre esses africanos. Com relação a uma das
características das transferências matrimoniais, Richards (1939: 27) escreve:
"dar e receber alimentos cozidos transformou -se em símbolo da relação
legal ou econômica que o torna possível (... ); a preparação de sopas ( ... )
é o modo mais comum por meio do qual a mulher expressa o correto
sentimento de parentesco em relação aos seus diferentes parentes
homens". Progressivamente, Richards (1932) dirigiu seus trabalhos ao
processo de consumo em si mesmo e ao sistema alimentar em paralelo ao
sistema reprodutivo. Para ela, esse sistema tem uma extensão primária
desde o lar até o grupo de parentesco, com ênfase na divisão e na
distribuição, e uma extensão secundária até o sistema mais amplo de
produção de alimentos, o clã ou a tribo.
Além de se preocupar com a significação expressiva do alimento,
Richards também dirigiu sua atenção para os processos de produção e
distribuição e para as consequências de tais processos sobre o estado de
saúde da população. O fato de ter realizado estudos em ciências naturais
e de trabalhar junto com o nutricionista Widdowson foram motivadores
para sua participação em um projeto que integrava um programa maior,
apoiado por um comitê especial do Instituto Internacional da África
nomeado em 1934, no qual eram apresentadas possibilidades de
colaboração conjunta entre antropólogos e especialistas em nutrição para
o estudo das dietas indígenas. Analisar o contexto social e psicológico
no· qual se dão a produção, a preparação e o consumo de alimentos é,
segundo Richards, imprescindível para responder a problemas de base
nutricional. A conclusão de seu traba lho é que as razões pelas quais os

47
nativos não trabalhavam mais - uma preocupação principal para os
interesses mineiros e econômicos britânicos - não estavam relacionadas
à negligência, tal como foi proposto oficialmente, mas sim com uma
nutrição deficiente. Com a ida dos homens para o trabalho nas minas, as
mulheres encontravam dificuldades para realizar os trabalhos de limpeza
que normalmente eles realizavam, além das suas próprias tarefas de cultivo
e colheita. Era no período do ano em que as mulheres mais precisavam
de energia aJjmentar para realizar esses trabalhos que as reservas de
comida estavam mais escassas. Desse modo, encontravam-se presas em
um ciclo contínuo de subprodução e subnutrição.
Até então, as ciências sociais jamais haviam proporcionado uma
visão da alimentação tão orientada para a integração da análise de todas
as dimensões do fato alimentar. Tendo em vista os resultados de seu
trabalho, Richards propôs para a comunidade científica que, corno um
processo biológico, a nutrição é mais fundamental que a sexualidade
porque o indivíduo pode existir sem recompensa sexual, mas
inevitavelmente morre sem alimento. O fato alimentar determina,
possivelmente mais que nenhuma outra função fisiológica, a natureza
dos grupos sociais e suas atividades; enq uant o as discussões sobre
sexualidade nos são incessantemente propostas, o grau de atenção
verdadeiramente consagrado à nutrição é fantasticamente reduzido. Para
ela, a função alimentar constitui um todo na medida em que tem que
servir para cobrir necessidades biológicas e ao mesmo tempo sociais, o
que chamou a atenção daqueles que, até então, haviam separado do
consumo alimentar os componentes biológico e social. Segundo Richards,
a "função alimentar" deve ser considerada como um todo, situando-se a
inutilidad e do reducionismo biológico e do reducionismo social.
O primeiro, segundo ela, busca compreender a nutrição dissociando-a
do meio cultural que constitui seu eixo e o segundo, do mesmo modo,
considera que a sociedade humana evolui segundo leis próprias, sem
relações entre a estrutura física e as necessidades do ser humano. Isso
não tem sentido, e o qu e é preciso fazer é integrar ambas as dimensões,
em lugar de separá-las.
No âmbito da escola estrutural-funcionalista da antropologia
britânica, outros autores como Meyer e Sonia Fortes (1936) ou, mais
tarde, Evans-Prittchard (1977), interessaram-se pelos aspectos nutricionais
na África. Em seus estudos sobre os Tallensi do norte de Gana, Fortes
analisa, por exemplo, os temas abordados pelos primeiros antropólogos.
Ainda que enfatize os processos de produção e consumo especialmente
em relação à organização doméstica, a autora observa aspectos do

48
consumo de alimentos vinculados à religião e à distribuição dos alimentos
fora do lar, em especial ao sacrifício, o que vê como um mecanismo
importante de solidariedade grupal. Também sob a influência
funcionalista, encontra-se o trabalho posterior de Evans-Prittchard sobre
os Nuer, em que ele tenta documentar as dimensões políticas e ecológicas
dessa sociedade. Ele descreveu detalhadamente a relação entre o sistema
de parentesco e a organização espacial e demonstrou o alcance do sistema
alimentar desse povo de pastores, o qual estava baseado, segundo a célebre
frase, em uma "simbiose com o rebanho". Em certo sentido, no estudo
de Evans-Prittchard os vínculos funcionais do sistema alimentar são mais
visíveis que nos sistemas modernos, em que tais vínculos não têm a mesma
proximidade imediata na vida diária. Entretanto, para os Nuer, as
realidades e exigências da produção de alimentos e as migrações sazonais
são características integrais das experiências cotidianas.
De todas as formas, esse primeiro passo dado pela escola
funcionalista para reconhecer as influências mútuas entre o biológico e
o social não será reconsiderado até o fim de algumas décadas pelas
ciências humanas que, naquele momento, influenciadas pelo preceito
durkheimiano de que "um fato social só pode ser explicado mediante
outro fato social" preferem dar autonomia ao cultural (Fischler, 1995b:
19). As primeiras aproximações funcionalistas são criticadas por suporem
uma visão estática de sistemas, por suas pretensões de objetividade e
pelos problemas de finalismo e a-historicismo que apresentam, na medida
em que menosprezam tanto a dimensão diacrônica como o componente
não funcional (ou disfuncional). De fato, essa perspectiva tem sido
acusada de observar a organização social humana como algo imóvel por
supervalorizar a estabilidade e a integração em detrimento das dimensões
de conflito e transf9rmação no sistema social. Também tem sido criticada
por não explicar as origens de instituições ou traços particulares de uma
sociedade, assumindo que o fato de descrever um papel atual de
uma instituição particular ou seus efeitos constitui em si mesmo uma
explicação adequada de sua presença. De tudo isso, o mais difícil de
assumir talvez seja a crença de que podemos definir as necessidades
funcionais de um sistema social da mesma maneira como podemos
especificar as necessidades fisiológicas de um organismo vivo. Dado que
o sistema social tem habilidade para experimentar transformações
estruturais transcendentais, a noção de um conjunto de necessidades
imutáveis e inevitáveis aparece como algo inverossímil.
Como resultado dessas críticas e de outras rel ac ionad.as à
naturalidade com que se postulam as relações e os sentimentos (se os

49
símbolos expressam a estrutura social, comer expressa uma relação) ou
com o fato de que enfatize a natureza utilitária da alimentação dando
preferência às características físicas , o funcionalismo cai em desuso dentro
da disciplina antropológica, ainda que certos aspectos da crítica possam
ter sido, inclusive, superdimensionados. Por exemplo, as perspectivas
funcionalistas não são totalmente incapazes de abordar o conflito e a
transformação em um sistema social. É possível afirmar, além disso, que
as interpretações funcionalistas permanecem no centro de numerosas
análises antropológicas atuais, ainda que seja de forma implícita, e que
continua sendo lícito abordar uma série de questões nessa perspectiva,
especialmente sobre os papéis nutricionais da comida na vida cotidiana.
Assim, parece útil querer conhecer a forma como estão organizados os
subsistemas de produção, distribuição e consumo alimentar e como
contribuem para a continuidade do funcionamento do sistema social,
quais são as funções sociais (por exemplo, não nutricionais) dos modos
de distribuição e consumo alimentar ou como atuam as normas de divisão
e consumo para expressar e reforçar as relações sociais das quais depende
a estabilidade de todo o sistema. Essas questões podem não estar hoje
estruturadas em termos do que se poderia chamar de uma grande teoria
funcionalista, mas validam a significação da continuidade dessa analogia
funcional-orgânica , ainda que de forma parcialmente oculta.
Por outro lado, a etnografia da alimentação proposta pelo enfoque
funcionalista continua sendo um modelo para os antropólogos nutricionais
e outros cientistas que estudam o impacto social e nutricional do
desenvolvimento econômico. No panorama atual, predomina uma
orientação difusa de corte funcionalista que, frequentemente, tem servido
de base para a colaboração entre antropólogos e nutricionistas. Esse
modo de investigar começa a ser mais comum no âmbito anglo-saxónico,
de forma que os conhecimentos da ciência nutricional são utilizados
para avaliar os resultados de questionários e entrevistas sobre o consumo
alimentar. Quando os nutricionistas e antropólogos nutricionais vão além
dessas questões para considerar por que as pessoas comem determinadas
coisas, as explicações resultantes têm um marcado sentido ad hoc. Por
exemplo, Yudkin e McKenzie (1964) postulam que, em geral, existe uma
relação direta entre aceitação/comestibilidade e valores nutricionais
ótimos. Assim, os alimentos de origem animal ricos em proteínas são em
regra mais saborosos que os alimentos de origem vegetal ricos em amidos.
Entretanto, Yudkin admite que as atividades das indústrias alimentícias
modernas permitem um grau significativo de dissociação entre aceitação
e valores nutricionais e reconhece, além disso , que existem ideias

50
diferentes de aceitação e comestibilidade, a depender das culturas cujos
pilares estão mais condicionados culturalmente, sendo alguns deles
inalteráveis e outros não (Mennell, Murcott & Van Otterloo, 1992).
Paralelamente, a antropologia norte-americana, em geral menos
interessada nesse tema e, em um primeiro momento, formando parte de
trabalhos mais amplos sobre cultura e personalidade, adotou em seus
estudos sobre comportamentos alimentares uma orientação psicológica.
O enfoque culturalista centrou seu interesse em saber como a cultura
estava presente entre os indivíduos e orientava seus comportamentos.
Influenciados pela ideia de que a cultura é um sistema de comportamentos
aprendidos e transmitidos pela educação, pela imitação e pelas condições
(enculturação) em um dado meio social, os trabalhos realizados antes da
II Guerra Mundial na perspectiva culturalista centraram-se no estudo do
comportamento alimentar e, em especial, no desenvolvimento psicológico-
motivacional dos atores sociais, produzindo pesquisas sobre ansiedade,
abstinência, atrações ritualísticas ou frustrações alimentares (Messer,
1995). Os estudos clássicos de Dubois (1941, 1948) sobre os aloreses
propunham que as precoces experiências infantis de frustração e
abandono, quando as necessidades alimentares não e ram satisfeitas,
proporcionavam uma insegurança básica e uma desconfiança que
caracterizavam a personalidade adulta, as tendências culturais e também
as relações sociais. A fome era vista como uma razão principal para
procurar alimentos, roubá-los ou aprender técnicas como a horticultura
e constituía um tema central na mitologia alorese. Essa antropóloga
defendeu também a ideia de que a ansiedade social diante da escassez
de alimentos era, na verdade, uma ficção social construída porque a
população considerava que seus esforços para manter as reservas de
alimentos eram frustrados ou por causa natural (ratazanas) ou por causa
cultural (os roubos).
A observação do modo como as ansiedades relacionadas à comida,
baseadas em carências reais ou fictícias, podem dominar o funcionamento
cultural social e psicológico de determinada sociedade contribuiu, por
sua vez, para outros estudos. É o caso, por exemplo, das pesquisas de
Shack (1969) sobre abstinência, atrações ritualísticas e personalidade entre
os Guarage da Etiópia; das an álises motivacionais de Holmberg (1950)
sobre o comportamento dos Sioronó, na Bolívia; dos estudos sobre crenças
relacionadas à horticultura e os esforços mágicos para controlar o apetite
e, portanto, conservar e ampliar as reservas de alimentos, um indicador
de poder social real e simbólico entre certos grupos das ilhas do Pacífico
(Malinowski, 1935; Young, 1971). E também dos trabalhos influenciados

51
pelos estudos sobre costumes alimentares realizados nos Estados Unidos
durante os anos 1930 e 1940 diante da iminência de eventuais períodos
de escassez em tempo de guerra.
Em alguns desses trabalhos, argumentava-se que as ansiedades em
torno da comida e a fome originadas nas primeiras experiências alimentares
determinavam se as normas alimentares dos adultos seriam suscetíveis à
mudança (Mead, 1962) e se a comida era a explicação fundamental para
certas doenças (Whiting & Child, 1953). Os trabalhos de base dietética
realizados entre grupos étnicos proporcionavam parâmetros conceituais
sobre normas e estilos alimentares para estudos posteriores de aculturação
dietética étnica (Lewin, 1943; Passin & Benett, 1943).
Hoje, as análises sociopsicológicas de orientação antropológica
centram-se basicamente nas relações entre a reserva de alimentos, as
experiências alimentares prematuras, as emoções que acompanham a
comida e a personalidade. Contribuem, assim, para o estudo sobre
comportamentos alimentares de abstinência ou indulgência, sobre doenças
relacionadas à alimentação, imagens e pesos corporais socialmente
desejáveis, sobre a adequação entre conceitos biomédicos e socioculturais
e também sobre as avaliações de saúde e doença relacionadas à dieta. Por
exemplo, Massara (1980) atribui, em boa parte, o consumo desmedido e a
obesidade entre os porto-riquenhos que vivem nos Estados Unidos da
América (EUA) em um contexto de maior abundância a um medo residual
da fome e a profundos vínculos emocionais tradicionalmente associados à
alimentação. Nessas culturas, a gordura é vista como um sinal de boa saúde,
riqueza e bem-estar, e sua representação sobre aquilo que é ideal em termos
sociais e estéticos não está em oposição ao excesso de peso, justo o contrário
(Prior, 1971; Chiva & Nahoum, 1981; Garine & Backer, 1983; Stone, 1983).
Essas ideias variaram profundamente no desenrolar do século XX nas
sociedades modernas, em que os ideais social, médico e estético baseiam-
se na magreza. Por sua vez, outras culturas também valorizam a magreza,
especialmente aquelas em que a abstinência é considerada uma virtude,
de forma que certas categorias biassociais, as crianças e as mulheres, são
subalimentadas expressamente (Poorwo, 1962).
Partindo desse conjunto de trabalhos, alguns antropólogos
sugeriram que tanto a magreza extrema como a obesidade deveriam ser
analisadas como síndromes culturalmente condicionadas (culture-bound
syndrome). Mesmo que sejam ainda numerosas as opções que consideram
a anorexia nervosa, a bulimia ou a obesidade como enfermidades
"nutricionais", com uma etiologia patológica que leva a efeitos nocivos
em relação ao peso e à saúde, os mesmos sintomas em outras culturas, ou

52
na nossa em outras épocas históricas, poderiam não ser reconhecidos
como síndromes patológicas, nem os comportamentos relacionados com
a comida nem suas consequências - excesso e falta de peso. Alguns
antropólogos e etnopsiquiatras (McKenzie, 1965; Dinicola, 1990) fizeram
uma revisão das diferentes hipóteses (médicas, psicodinâmicas, culturais)
que trataram de explicar os transtornos do comportamento alimentar,
especialmente a anorexia nervosa, em uma perspectiva transcultural baseada
na ideia de que se trata de patologias socialmente construídas e
culturalmente mediadas que se comportam de forma muito sensível ao
contexto. Assim, a "anorexia multiforme", tal como é definida por Di
Nicola, seria uma espécie de "ca maleão cultural" com evidentes
manifestações fís icas - derivadas majoritariamente da má nutrição - que
muda através do tempo. Por outro lado, essas enfermidades, que afetam
em maior proporção as mulheres, constituíram-se em objeto de estudo
dentro das pesquisas antropológicas sobre o gênero e o corpo. A elas
voltaremos mais adiante, quando abordarmos o debate estrutura versus
agência.
Também, em uma perspectiva psicobiológica e antropológica, estão
sendo desenvolvidos estudos sobre por que e em que tipo de ambiente a
comida continua sendo um meio fundamental de gratificação social e
psicológica, ao mesmo tempo que se estabelecem as -possíveis bases
biológicas dos comportamentos alimentares e as consequências negativas
para a saúde do excesso de indulgência (Rozin, 1998b, 1988). Aqueles
que dirigiram sua atenção às práticas alimentares de crianças e bebês
continuam também investigando as dimensões sociais e psicológicas que
intervêm, ainda que já não as estejam analisando tanto por sua incidência
na personalidade quanto por sua influência sobre o bem-estar nutricional,
que inclui, em um sentido geral, o desenvolvimento físico , mental e,
inclusive, social (Chávez & Martínez, 1979). Como destaca Messer (1995),
as influências dos costumes alimentares e da nutrição na cultura e
personalidade são interpretadas atualmente com base em uma literatura
especializada em transtornos alimentares, na qual a antropologia tem
presença reduzida, mas significativa, ou em um marco geral sobre as
relações sistêmicas entre consumo de alimentos e o funcionamento
psicossocial das populações.
Com relação à insistência em estabelecer vínculos entre
antropologia, alimentação e nutrição no âmbito da antropologia norte-
americana, foi outra mulher, Margaret Mead (1943, 1970, 1971, 1976),
que, dos Estados Unidos, realizou o esforço mais notável na primeira
metade do século XX. A partir de 1941 e durante vários anos, Mead foi

53
a secretária-geral do Comitê sobre Hábitos Alimentares da Academia de
Ciências dos Estados Unidos, inscrevendo sua tarefa em uma política de
preparação para a guerra. Em uma linha similar à de Richards na Grã-
Bretanha, foi a primeira antropóloga americana a insistir na necessidade
de criar uma linguagem comum para cientistas biomédicos e sociais e
impulsionou, junto com Wilson e Warner, diferentes projetos e estudos
interdisciplinares. Preocupados com os problemas sociais do momento,
esses antropólogos começaram as pesquisas de base aplicada sobre os hábitos
alimentares nos EUA e colaboraram em programas de iniciativa
governamental que pretendiam otimizar os recursos diante da previsão de
miséria e racionamentos. O Comitê sobre Hábitos Alimentares, que existiu
de 1941a1943 sob a direção de Margaret Mead, tinha a tarefa de explicar
a dinâmica dos usos alimentares em certas comunidades norte-americanas.
Seu objetivo era colaborar com os conhecimentos bás icos a fim de
possibilitar a modificação na dieta e estabelecer uma regra a ser seguida
no racionamento dos alimentos. A essas primeiras décadas correspondem,
também, as pesquisas do governo americano sobre os comportamentos
alimentares dos grupos de imigrantes e suas consequências nutricionais
com a intenção de corrigir e homogeneizar algumas das normas étnicas,
ai nda que nem sempre com êxito (Levenstein, 1988a).
Em colaboração com Guthe, Mead publicou o Manual for the Study
of Food Habits (Mead & Guthe, 1945) no qual são definidos os "modos de
comer" como indicadores de solidariedade, de mudança nos sistemas
socioeconômicos ou de status. A definição de "hábitos alimentares" (food
habits) proposta nessa obra atende à concepção culturalista da alimentação.
Os hábi tos alimentares são as formas segundo as quais os indivíduos ou
grupos de indivíduos, em resposta às pressões sociais e culturais, escolhem,
consomem e distribuem os alimentos de que dispõem. É, pois, a cultura
ou o sistema cultural o qu e determina a originalidade das práticas
alimentares. Essa perspectiva se expande pela Escola Neofreudiana da
Personalidade sob a direção de Kardiner (1945) e Benedict (1946) que, de
sua parte, se esforçam em mostrar a importância do domínio alimentar na
construção da "personalidade" e daquilo que Garine (1996a: 25) propôs
chamar "estilo étnico" alimentar. Nos Estados Unidos, a expansão da
pesquisa centrada na alimentação e o surgimento da antropo logia
nutricional só se dão , entretanto, na década de 1960, junto com o
desenvolvimento das perspectivas teóricas fundamentais da ecologia
humana por um lado, e da antropologia simbólica, por outro (Peito, 1988).
Na Europa, Moulin (1975) estende esse enfoque culturalista
preferindo uma aproximação sociolinguística ao estudo da alimentação,

54
tanto que a aproximação às características linguísticas privilegia, segundo
ele, o conhecimento do simbolismo que guia as preferências alimentares
das sociedades. De acordo com Moulin, não comemos com os dentes e
não digerimos com o estômago, mas comemos com o nosso espírito
e provamos os alimentos segundo as regras culturais vinculadas ao sistema
de trocas recíprocas que está na base de toda vida social. Esse primeiro
conjunto de estudos antropológicos expõe, entretanto, a razão de ser do
foco da antropologia social em torno do fenômeno alimentar e as
diferentes possibilidades de abordá-lo segundo seus condicionadores
biológicos, psicológicos e sociais.

A Comida como Linguagem, a Cozinha como


Sistema: estruturalismo e culturalismo simbólico
O enfoque estruturalista no estudo sociocultural da alimentação
supõe uma modificação importante em relação às orientações teóricas
antecedentes. Em um primeiro momento tem como referencial Lévi-
Strauss, na antropologia social, e Barthes, na semiótica. Posteriormente,
amplia-se com as contribuições de Douglas, Nicod e Murcott e do
culturalismo simbólico de Sahlins. No paradigma estruturalista, vale situar
também figuras intersticiais como Fischler e Bourdieu e, em geral, as
propostas de antropólogos marxistas que se aproximaram do estudo da
produção, distribuição e consumo de alimentos centrando sua atenção
nas macroestruturas e não nas microestruturas, e na desigualdade social
e não no consenso social, como Singer, Heldke, Orbach ou Adams, entre
outros. Apesar disso, pela natureza de suas propostas em relação às
condições materiais, preferimos abordar o estruturalismo crítico nos
parágrafos seguintes.
A contribuição mais importante da teoria anterior está no claro
reconhecimento de que o gosto e a aceitação do comestível são
culturalmente conformados e socialmente controlados. Evitam-se, assim,
o reducionismo biológico, a análise ad hoc e o etnocentrismo implícito
encontrado em alguns dos trabalhos antes aludidos. Em contraste com a
perspectiva mais utilitarista dos antropólogos funcionalistas e dos
nutricionistas sociais, os primeiros estruturalistas se centram mais nos
aspectos significantes e estéticos dos alimentos e da comida. Enquanto
que os funcionalistas olham 'a comida', os estruturalistas examinam 'a
cozinha', a última entendida como um conjunto de signos e símbolos
codificados culturalmente ou, o que é o mesmo, como uma linguagem
suscetível de ser interpretada socialmente. A máxima difundida por Lévi-

55
Strauss, "se bom para pensar, então bom para comer", nos introduz, por
um lado, no postulado principal do culturalismo com o materialismo
cultural. Lévi-Strauss defende que a comida é "boa para pensar" e,
consequentemente, "boa para comer" na medida em que os alimentos
devem ser primeiro considerados comestíveis por nossa mente, aceitos pelos
significados sociais e depois digeridos por nosso organismo. Primeiro os
pensamos e, se aptos para nosso espírito, os comemos.
Com o estruturalismo de Lévi-Strauss ((1958] 1992), a ênfase é
colocada no descobrimento da estrutura profunda do pensamento humano
e na busca dos princípios subjacentes às instituições que podem explicá-
la. Desse modo, Lévi-Strauss dedica-se a compilar uma ampla gama de
material antropológico e dados etnográficos assumindo que a avaliação
de suas características superficiais pode nos levar ao reconhecimento do
universal e dos padrões subjacentes e tomando como certo que existe
uma afinidade entre as estruturas profundas do pensamento humano e
as estruturas profundas da sociedade humana. Não pretende, entretanto,
alcançar um conhecimento exaustivo das sociedades, mas extrair constantes
que se encontram em várias épocas com base em uma riqueza e diversidade
empíricas que sempre extrapolariam nossos esforços de observação e
descrição. As constantes derivações do estudo de vários "subsistemas"
apresentam homologias, de forma que a análise dos sistemas de
parentesco, ideologias políticas, mitos, artes ou comportamentos, que
podem apresentar propriedades comuns, representam atitudes
inconscientes da sociedade ou, em outras palavras, representam aspectos
da mente humana. Esses padrões constituem as estruturas profundas, as
quais refletem os fundamentos invariáveis da extraordinária diversidade
das formas culturais superficiais que podemos observar.
Da mesma forma como o funcionalismo se baseia em uma analogia
entre sociedade e organismo vivo, o estruturalismo também propõe uma
analogia. Nesse caso, trata-se de uma analogia linguística: as estruturas
superficiais culturais são vistas da mesma forma como a conversa é
considerada como um produto de um sistema de normas subjacentes (a
gramática). Em sua obra geral, a comida ocupa um lugar importante e
influenciado pelos avanços da linguística estrutural. Lévi-Strauss (1964,
1965, 1984) se aproxima em diferentes etapas do estudo da cozinha,
considerada como um subsistema dentro do sistema cultural mais amplo.
As práticas alimentares são como uma linguagem, identificando a
principal oposição binária, como em todas as culturas, entre "natureza"
e "cultura". A cultura, segundo ele, é o complexo de práticas pelas quais
os seres humanos são diferenciados, fazendo-se únicos . As práticas

56
alimentares exemplificam em boa medida essa oposição binária,
particularmente no que se refere às oposições tais como aquela entre o
cru e o cozido e entre o comestível e o não comestível. A cozinha de uma
sociedade constitui uma língua na qual cada cultura traduz
inconscientemente sua própria estrutura. Como a linguagem, afirma Lévi-
Strauss, a cozinha é uma atividade universal, presente em qualquer
sociedade humana, e está configurada por um sistema de traços culinários
que contrastam e se relacionam entre si. Para descobrir os princípios
subjacentes ou leis gerais que determinam a recorrência geográfica e histórica
de certos traços desse sistema, é preciso analisar as categorizações culinárias.
Ao invés de se deter nas diferentes fases da atividade alimentar e
nos processos sociais relativos à produção, distribuição e consumo dos
al imentos, a perspectiva estruturalista se dirige às normas e convenções
que governam os modos como os produtos alimentícios são classificados,
preparados e combinados entre si. Assume-se que as normas superficiais
da cozinha são em si mesmas manifestações mais profundas de estruturas
subjacentes. Essas normas são quase como uma língua: se pudermos decifrá-
las, seremos capazes de explicar muito sobre a organização da mente humana
e da sociedade. Dentro desse esquema, os gustemas são, do mesmo modo
que os fonemas na língua, as unidades funcionais mínimas culinárias e
adquirem significado por oposição ou contraste entre elas. O argumento
de Lévi-Strauss (1965) é que taisgustemas podem ser analisados em termos
de certas oposições binárias: endógeno-exógeno (local versus exótico),
central-periférico (principal versus guarnição ou acompanhamento) e
marcado-não marcado (sabor forte versus sabor suave). Com base na análise
das unidades do gosto ou gustemas, Lévi-Strauss compara, mediante
oposições binárias e signos diferenciais, a cozinha britânica e a francesa,
concluindo que na primeira as distinções endógeno-exógeno e central-
periférico são altamente pertinentes, enquanto que a distinção marcado-
não marcado não o é. Em contraste, na cozinha francesa as oposições
endógeno-exógeno e central-periférico não são tão pertinentes, enquanto
que a oposição marcado-não marcado está mais destacada.
Em uma segunda fase, o antropólogo francês examina a cozinha
como uma transformação da natureza (ingredientes crus) pela cultura
(alimentos comestíveis). Partindo da dupla oposição cultura-natureza e
elaborado-não elaborado, Lévi-Strauss construiu dois triângulos culinários
següindo, mais uma vez, o modelo linguístico triangular das vogais e
consoantes e utilizando agora o termo "tecnemas" (operações culinárias).
A estrutura do primeiro repousa sobre as relações que são dadas entre o
cru, o cozido e o podre. Assim, o cozido resulta de uma transformação

57
cultural do cru, enquanto que o podre é uma transformação natural do
cru ou do cozido. Por sua vez, a estrutura do segundo triângulo, agora
de receitas e algo mais complicado que o anterior, inclui os meios - ar e
água - e os resultados - assado, defumado e fervido - implicados nas
operações culinárias, repousando , como o primeiro , na oposição
preeminente entre natureza e cultura. A forma como todas essas
transformações são realizadas como parte da vida diária deveria servir,
segundo esse antropólogo, para definir as culturas.
A interpretação de Lévi-Strauss sobre as dimensões culturais da
cozinha deixou muitas perguntas por responder, e sua interpretação foi
criticada de diversas perspectivas. O triângulo culinário (Figura 1) foi
muito debatido entre os antropólogos anglo-saxões, uns procurando
superá-lo e outros criticando-o abertamente. Entretanto, o que interessa
reter não é tanto a pertinência universal das categorias empíricas cru,
cozido, assado, fervido , defumado ou podre, às quais as diferentes culturas
remetem conteúdos muito distintos, mas o fato de que os pratos ou os
alimentos pertencentes a essas diferentes classes têm entre eles uma
relação que é constante de uma cultura a outra. Desse modo, a oposição
entre assado e fervido parece funcionar em muitas sociedades. Em
numerosas cozinhas ocidentais, por exemplo, tal como indica Fischler
(1995b), o assado é um prato de recepção ou de cerimônia, enquanto
que o fervido ou cozido em uma caçarola é um prato íntimo ou familiar.
Uma das revisões mais interessantes do trabalho de Lévi-Strauss é a de
Goody (1984), para quem a formalização que dá suporte à aplicação da
linguística e os limites impostos pela constante busca da natureza humana
e de suas estruturas profundas o impedem de dar conta das verdadeiras
causas que modelam e transformam a cultura alimentar.

Figura 1 - O triângulo culinário de Lévi-Strauss


CRU
Assado

(-) (-)

Ar Água

(+) (+)

Defumado Fervido
COZIDO PODRE

58
Entretanto, Lévi-Strauss constrói as bases para as sucessivas
aproximações estruturalistas, as quais serão fixadas mais na variação dos
comportamentos alimentares e menos na universalidade, retrocedendo
assim diante do conceito de natureza humana. É o caso da antropóloga
britânica Mary Douglas, expoente dessa orientação, que em seus trabalhos
mostra tanto a influência da corrente estruturalista francesa quanto a
do estrutural-funcionalismo britânico. Considerando essenciais os
aspectos biológicos do fato alimentar, Douglas (1973, 1979) destaca o
caráter expressivo da alimentação. Coincide com Barthes (1961a, 1975,
1980) ao defender que os alimentos e, em particular, as refeições
constituem um sistema de comunicação, um protocolo de imagens e
costumes que manifestam a estrutura social e simbolizam as relações
sociais. O trabalho desse semiólogo é importante para a compreensão do
enfoque de Douglas.
Barthes, influenciado pelo estruturalismo saussuriano, foi um dos
primeiros a interpretar as preferências alimentares e a alimentação na
mídia e na publicidade. Assim como uma linguagem, a dieta tem normas
de exclusão, oposições significativas (tais como doce-salgado, amargo-
doce ), normas de associação sobre como os pratos podem ser conformados
e normas de uso. Segundo Barthes, as unidades conceituais para descrever
a alimentação podem ser utilizadas para construir uma "sintaxe" (ou
menus) e "estilos" (ou dietas) em uma perspectiva mais semântica do
que empírica. Os fatos alimentares se encontram nas técnicas, nos usos,
nas representações simbólicas, na economia, e também nos valores e
atitudes de determinada sociedade. Dessa forma é possível se perguntar
que significados expressam certos alimentos e como são veiculados para
manifestar determinada identidade. Alimentar-se, para esse semiólogo,
é uma conduta que se desenvolve além de seu próprio fim , de forma que
a alimentação não serve apenas para nos indicar determinados temas ou
usos, mas para destacar situações e, definitivamente, modos de vida. Nesse
sentido, Barthes recorre também à analogia linguística, buscando um
código ou gramática. Vê o alimento tanto como signo quanto como
necessidade, e ambos altamente estruturados: substâncias, técnicas de
preparação, hábitos. Tudo se converte em parte de um sistema cujos
elementos apresentam diferenças significativas. Da forma como isso
acontece, podemos afirmar que se produz comunicação por meio da
comida. Seu argumento básico nesse contexto, como em outros em que
o autor trabalha (moda , publicidade , literatura) , é que onde há
significado, há sistema. Suas últimas contribuições se dão em torno da
identificação e interpretação de certas mitologias que extrai da vida

59
cotidiana francesa. Assim, Barthes (1990) analisa, em uma perspectiva
semiótica, tanto a sopa instantânea como a torre Eiffel ou a luta livre.
Em qualquer caso, a comida e a bebida continuam sendo tema central
em sua obra, em que elabora comentários sobre os aspectos ornamentais
da cozinha, a bisteca com batatas e a margarina. Identifica o vinho como
uma bebida totêmica na França, do mesmo modo como o é o leite para
os alemães e o chá para os ingleses, constituindo-se, consequentemente,
em uma espécie de símbolo nacional.
Os trabalhos de Douglas refletem as influências tanto de Barthes
como de Lévi-Strauss, ainda que a autora desenvolva suas próprias teorias
em uma direção sensivelmente diferente. Como eles, ela tenta decifrar
'a gramática' das comidas como se tratasse de textos codificados,
suscetíveis de serem decifrados em seus componentes significativos.
Entretanto, no momento de interpretar os dados etnográficos, prefere
optar pela observação direta e pela análise, seguindo o estilo proposto
por Geertz (1995) em torno da descrição densa. As 'refeições', definidas
quando são consumidos alimentos no marco de uma situação estruturada,
ou seja, quando se produz um acontecimento social organizado segundo
regras que prescrevem o tempo, o lugar e a sucessão dos atos que o
compõem, estão codificadas 4 culturalmente e estruturadas,
consequentemente, mediante um conjunto de signos inter-relacionados
que podem ser analisados em termos sintáticos e gramaticais. Essa
definição lhe é útil para diferenciar a refeição (meal), ou situação
estruturada, da boquinha/aperitivo (snack), ou situação alimentar
não estruturada na qual um ou mais artigos podem ser servidos e
consumidos sem obedecer a uma ordem normativa. O trabalho de Nicod
(1980), dirigido por ela mesma, insiste no caráter sintático das comidas
dentro do sistema alimentar britânico estabelecendo três tipos de comidas
distintas no âmbito familiar segundo sua importância relativa dentro do
conjunto de ingestas e diferenciando seus elementos centrais e nucleares,
assim mantidos por regras resistentes às inovações (o assado do domingo
é um exemplo), dos periféricos, nos quais são introduzidas as mudanças
mais significativas e que constituem as partes menos estruturadas do
sistema alimentar (cafés da manhã e lanches dos dias de trabalho). Uma
análise desse tipo destaca as dificuldades de introduzir elementos externos
nos menus estabelecidos, cujas normas se interiorizam de forma natural
4
A palavra 'código' como aquilo que expressa a estrutura social ou as relações
sociais é utilizada com certa frequência entre os antropólogos funcionalistas,
estrutural-funcionalistas e estruturalistas (Richards, 1939; Nicod & Douglas, 1974;
Lévi-Strauss ([1958)1992).

60
desde a infância e cuja variação para introduzir novas comidas pode
implicar um risco de instabilidade mais amplo.

Quadro 2 - Definições de 'refeições' segundo Mary Douglas

Situação alimentar
É toda circunstância na qual são ingeridos alimentos, constituindo uma refeição
ou não.

Situação estruturada
É um acontecimento social organizado segundo regras que prescrevem o tempo,
o lugar e a sucessão dos atos que o compõem. A refeição do meio-dia é um deles.

Snack
Quando são consumidos alimentos no marco de uma situação alimentar não
estruturada, no curso da qual são servidos um ou mais alimentos independentes
uns dos outros, trata-se de um snack (boquinha, aperitivo). Pode-se dizer que é
uma situação não estruturada na medida em que não há uma regra q·ue prescreva
os alimentos que devem ser servidos juntos e não se impõe uma sucessão estrita.
Os produtos alimentícios são servidos sem que se prescrevam o lugar, a ho ra ou as
pessoas. Podem ser ou não acompanhados de bebidas.

Refeição
Quando são consumidos alimentos no marco de uma situação estruturada,
podemos dizer que se trata de uma refeição. A refeição, diferentemente do snack,
não comporta elementos independentes e está fortemente submetida a regras de
combinação e sucessão.

Fonte: Douglas, 1979: 180.

Diferentemente de Lévi-Strauss, entretanto, a antropóloga


britânica sugere que não observemos a refeição apenas como um
acumulado de oposições binárias, mas situando-a no contexto diário,
semanal ou anual no qual se encontra o restante das refeições.
Identificando-se formalmente as fórmulas que se repetem durante os
acontecimentos estruturados, tais como ingredientes, qualidades de gosto,
temperatura ou horários, e analisando-se semanticamente suas
combinações e contrastes, pode-se conhecer o significado de cada um
deles. Assim, na cozinha inglesa, e em particular entre as famílias
trabalhadoras, um exemplo de correspondência estrutural é a que se
estabelece entre a refeição do meio-dia do domingo e a refeição da noite

61
durante a semana. Nessas duas refeições, o primeiro prato é o principal.
É sempre quente, de sabor destacado e apresenta um a estrutura de três
elementos: uma porção de batatas, uma porção central (carne, peixe ou
ovos, acompanh ados de uma guarnição vegetal), e tudo isso com um
molho particular. A esse, segue-se outro prato doce com calda líquida
cremosa. Durante a comida bebe-se água fria e depois da comida, chá ou
café quente. Os alimentos quentes e frios são mantidos separados. Não
se admite acrescentar alimentos frios a um prato quente, e vice-versa.
Um modelo de análise similar é o seguido por Murcott (1982) em seu
estudo sobre a estrutura culinária no su l de Gales e, em particular, da
refeição considerada como tal (meal). Nessa situação, a carne deve ser
branca ou vermelha, mas procedente de animais de sangue quente. Não
são servidos, por exemplo, os peixes. As batatas constituem uma constante,
representando um tubérculo que vem de baixo da terra, em contraste
com outros vegetais básicos (feijão, ervilhas, couves de Bruxelas, brócolis)
que vêm da superfície do solo e são, por sua vez, verdes. Se houver uma
verdura adicional dentro dessa estrutura, ela normalmente não é verde:
cenoura, nabo, abóbora, milho ou tomate. Por sua vez, o molho é central,
já que finalmente é o e lemento da estrutura que vincula o resto de
componentes para formar o prato.
Entretanto, Douglas (1973) começa seu trabalho no âm bito da
alimentação dando conta das proibições dietéticas dos judeus expressas
no Levítico e no Deuteronômio e oferecendo um modelo explicativo das
preferências e aversões culturais baseando-se na frase adotada por Lévi-
Strauss - "bom para pensar, então bom para comer" - e que também é
afirmada pelo culturalismo simbólico norte-americano, especialmente por
meio dos trabalhos de Sahlins (1980). No capítulo terceiro, veremos sua
interpretação sobre por que os judeus preparam a comida seguindo
rigorosas regras quanto a o que comer, quando e como preparar o
alimento. Segundo Douglas, o tabu da carne de porco responde a regras
que são principalmente arbitrárias e a motivos cultu ra is: seu consumo é
proibido por se tratar de um animal não comestível segundo a exata
classificação das espécies que aparece nos livros sagrados dos judeus.
A ideia da "razão cultural" para explicar as preferências e aversões
alimen tares também aparece no trabalho de Sahlins (1980) sobre os hábitos
alimentares dos norte-americanos e sua relação com an imais dom ésticos.
Sua orientação culturalista o leva a ana li sar a lgum as das co nexões
significativas nas distinções categóricas sobre a comestibilidade de cavalos,
cachorros, porcos e rebanho de boi. Pretende dar conta de que a relação
produtiva na sociedade americana está organizada por valorações

62
específicas sobre comestibilidade e não comestibilidade, as quais são
qualitativas e não têm qualquer justificativa relacionada a razões de
vantagem biológica, ecológica ou econômica. Assim, para Sahlins, a
exploração do ambiente e do estilo de relações com a paisagem depende
de um modelo de refeição que inclui um componente central de carne,
associado a um periférico de carboidratos e vegetais, regime em que a
posição central da carne leva a uma ideia de energia que evoca o polo
masculino de um código sexual dos alimentos que deve remontar à
identificação indo-europeia do rebanho bovino com a virilidade. O caráter
inquestionável da carne como energia e da bisteca como síntese da comida
viril continuam a constituir uma condição básica na dieta norte-americana.
Essa centralidade se reflete na estrutura da produção agrícola de grãos e
na articulação dos mercados mundiais que se transformariam
radicalmente, como diz esse antropólogo, caso se optasse por consumir
carne de cachorro. Nesse sentido, os "custos de oportunidade" da
racionalização econômica do sistema norte-americano são um elemento
secundário, uma expressão das relações já dadas por outra classe de
pensamento e calculadas posteriormente dentro das obrigações de uma
lógica de ordem significativa, ou seja, cultural: o tabu dos cavalos e
cachorros torna impensável, por exemplo, o consumo de um a série de
animais cuja produção é factível e cujo valor nutritivo não é desestimável.
Com relação ao consumo de carnes de cachorros, Sahlins (1980)
explica seu caráter não comestível pela relação que os americanos mantêm
com eles. Eles passeiam pelas ruas, arrastam seus donos, depositam
excrementos conforme seus caprichos no interior das casas e se acomodam
nas cadeiras, sofás ou camas destinados às pessoas e inclusive se aproximam
da mesa para compartilhar da comida familiar. Não serão sacrificados, a
não ser por uma desventura de doença ou acidente. Com os cavalos
acontece algo parecido. Quando, na crise de 1973, o governo norte-
americano sugeriu a seus habitantes substituir o consumo de carne bovina
pela equina e consumir partes mais econômicas de outros alimentos - as
vísceras -, a adesão foi fraca . A razão disso, segundo Sahlins, é que
enquanto os cavalos são cuidados (escovados, mimados, recebem nomes),
as vacas não recebem o mesmo cuidado: o rebanho bovino é criado para
a produção de carne. Seguindo essa lógica, poderiam ser explicadas as
relações que os norte-americanos têm com o consumo de bois, porcos,
cavalos e cachorros em função dos seus distintos graus de comestibilidade.
Essa série é divisível primeiro em duas classes: comestível (vacas e porcos)
e não comestível (cavalos e cachorros), levando-se em consideração que,
por sua vez, dentro de cada classe, existe uma categoria superior a outra

63
menos preferida segundo a ordem exposta e que, paralelamente à lógica
estrutural , estabelece distinções entre as partes de cada animal,
diferenciando o grau de comestibilidade em função de se tratar da carne
ou dos órgãos internos ou vísceras. A relação que se mantém com eles é
diferente, dependendo de sua intervenção como sujeito ou objeto na
companhia do homem. Assim, cachorros e cavalos têm a qualidade de
sujeitos na sociedade norte-americana (são cuidados e mimados e mantêm
uma relação servil) e, consequentemente, não são comestíveis. O contrário
acontece com as vacas e os porcos, cujo status é de objetos (são criados,
são sacrificados). A ideia de Sahlins é resumida com esta afirmação: o
caráter comestível animal é inversamente proporcional à sua humanidade,
e é essa lógica simbólica que organiza a demanda.
Assim, como vemos, para Douglas e Sahlins é válida a ideia de
Lévi-Strauss segundo a qual pessoas primeiro pensam os alimentos e, se
estes forem classificados por sua mente e por seu código cultural, os
ingerem. As explicações que ambos oferecem para as aversões registradas
em sociedades tão díspares como a israelita, negando-se a comer porco,
ou a anglo-saxônica, recusando a carne de cavalo, são de ordem cultural.
As causas das preferências ou as abominações alimentares respondem à
própria lógica cultural, algumas vezes são prescrições religiosas, outras
são símbolos ou arbitrariedades. circunstanciais, e há que explicá-las
levando-se essas razões em consideração. Se nós, como escreve Douglas,
classificamos em uma ordem hierárquica inferior os cachorros e os
vagabundos que buscam alimentos nas lixeiras, é porque ambos estão
fazendo o mesmo, ingerindo 'restos' de comida; igualmente, se os norte-
americanos, diferentemente dos chineses, consideram uma aberração
comer carne de cachorro, é porque para eles esse animal converteu-se
em uma mascote, tem nome próprio e é mais um membro da família.
As principais críticas feitas aos trabalhos estruturalistas e
culturalistas são resumidas em duas ideias básicas, segundo as quais tais
vertentes priorizariam a análise dos elementos descritivos e estruturais
da refeição e outorgariam excessiva autonomia à razão cultural em relação
a fenômenos materiais de ordem biológica, ecológica ou histórica, fazendo
com certa frequência o discurso óbvio sobre o contexto socioeconômico
e político no qual alimentos são produzidos, preparados e consumidos,
assim como sobre sua evolução espacial e temporal. Entretanto, trata-se
de um paradigma interessante e de enorme influência nas ciências sociais
dos anos 1960 e 1970. É preciso reconhecer tanto sua contribuição na
definição de símbolo e signo aplicada aos diferentes elementos da vida
social quanto o fato de que tal paradigma ressalta que a cultura

64
desempenha papel significativo na determinação do que nós classificamos
como alimentos, ou seja, como comestível.
Grande parte do matiz linguístico do primeiro estruturalismo é
posteriormente abandonado pela promessa da economia política dos
estruturalistas marxistas que, influenciados pelos trabalhos de pensadores
como Althusser, alcançam relevância no âmbito filosófico durante as
décadas de 1970 e 1980. Esses autores tentarão descobrir as estruturas
complexas que condicionam as relações sociais de poder nas quais estão
sobrepostas as transições alimentares e os modos como os processos de
acumulação do capital influenciam as transformações que ocorrem no
sistema alimentar. As explicações, nessa linha, de Goody, Mennell ou
Mintz, baseadas na reconstrução histórica da produção, distribuição e
consumo diferencial dos alimentos, não impedem , entretanto, que,
novamente na década de 1990, e sob a influência da corrente pós-
moderna, a atenção à linguagem e, particularmente, ao seu papel na
construção do discurso e da identidade volte a adquirir importância no
panorama da antropologia social e na explicação de certos problemas de
ordem alimentar.

Bom para Comer, Bom para Pensar; Bom para


Pensar, Bom para Vender. Os enfoques
contextualistas: materialismo cultural,
developmentalism, feminismo
Os estudos antropológicos sobre alimentação pubbcados durante
os anos 60 e 70 do último século são relevantes e mostram claramente
que a cultura desempenha papel significativo ao determinar o que
classificamos ou não como comida. Entretanto, em nossa opinião, deixam
de considerar outros aspectos relevantes em relação à alimentação. Por
exemplo, não explicam nada das importantes relações entre as práticas
alimentares, o desenvolvimento histórico e as configurações específicas
do meio ou, dito de outra forma, das imbricações entre os fatores
econômicos, ecológicos, tecnológicos e sociais que explicam as
transformações ou os conflitos alimentares ao longo do tempo e no
espaço. Nas páginas seguintes faremos um apanhado de outros enfoques
teóricos adotados no estudo do tema da alimentação e suas relações
com o ambiente, o poder ou a dominação em um dos lugares mais
destacados de suas preocupações que constituíram, com uma visão mais
materialista do 'social', a resposta mais contundente às teses estruturalista
e culturalista que acabamos de apresentar

65
A preocupação com a função e o significado da comida e dos
alimentos adotada pelas três correntes anteriores, a funcionalista, a
estruturalista e a culturalista, acontece em detrimento da consideração da
incidência do tempo e também, ainda que em menor escala, do espaço,
sendo privadas majoritariamente as análises de longa duração, ou seja, as
que fazem referência à evolução e aos mecanismos que explicam
as mudanças sociais. As aproximações que vamos apresentar sob a etiqueta
genérica "enfoques contextualistas" constituem um conjunto de ideias
que, com diferentes ênfases conceituais e propostas metodológicas, trataram
de superar essas carências, não sem que algumas delas caíssem em certos
determinismos. De fato , as explicações que superaram com mais ou menos
êxito a oposição entre materialismo e idealismo não são muito abundantes.
Dentre esses enfoques, incluímos desde as primeiras teses do
neofuncionalismo norte-americano, passando pelos estudos bioculturais
dedicados a investigar as relações entre pautas culturais e insuficiências
dietéticas, até as teorias críticas mais recentes que abordam a natureza
social da produção, distribuição e consumo de alimentos, com frequência
partindo de ideias influenciadas pelo marxismo e, consequentemente,
mantendo posições também de corte estruturalista enquanto continuam
colocando sua atenção no estudo das estruturas (infraestrutura, estrutura
e superestrutura) seja nos níveis "macro" e "micro" ou em ambos ao
mesmo tempo. Algumas dessas pesquisas foram agrupadas sob o nome
de developmentalism, uma perspectiva na qual se destacam os estudos de
economia política e cujo interesse principal está em contextualizar a
análise dos sistemas alimentares e sua evolução com base nas variáveis de
tempo e espaço e em explicar o papel desempenhado pelas relações sociais
de poder sobrepostas nas transações alimentares e nas mudanças ocorridas
nos hábitos alimentares. Outras pesquisas são as de orientação feminista
elaboradas com base nos estudos de gênero, as quais também colocaram
sua ênfase nas relaçõ_es de poder e na distribuição de papéis e nos estilos
alimentares entre gêneros. Por razões de extensão das diferentes propostas
e evidentemente por economia de espaço, iremos abordar apenas os
trabalhos mais significativos dentro dessas linhas de análise.
Vamos agrupar as principais respostas à orientação estruturalista-
culturalista, principalmente, em torno dos trabalhos de Harris (1985a),
Ross (1980), Harris e Ross (1987), por um lado, e de Goody (1984),
Mennell (1985), Mintz (1985 e 1996) e Beardsworth e Keil (1992, 1997),
por outro. O que une todos eles é sua posição, mais ou menos radical,
diante do estruturalismo de Lévi-Strauss. À premissa lévi-straussiana "bom
para pensar, então bom para comer", Harris responde afirmando que a

66
comida tem que satisfazer em primeiro lugar ao estômago e, depois, à
mente humana e, portanto o que é "bom pra comer, é bom para pensar".
Nesse sentido, todos os tabus e proibições alimentares, ainda que possam
ser explicados pelos atores sociais por motivos religiosos ou políticos,
são justificados em termos de vantagens ecológicas. UI)l traço cultural
específico não será mais que a face oculta de uma vantagem adaptativa,
ainda que os indivíduos que dela se beneficiam não o compreendam
verdadeiramente assim.
Os trabalhos de Harris e Ross são incluídos na corrente neofun-
cionalista de meados dos anos 1960 e 1970 e, mais concretamente, no
materialismo cultural. Seus trabalhos incorporam uma orientação
ecológica a partir da redefinição da orientação materialista que Steward
(1955) e White (1964) haviam apresentado nas décadas anteriores sobre
o caráter sistêmico das relações entre o ambiente e a cultura, orientação
que aceitava a noção de 'ecossistema' referida ao conjunto de organismos
vivos e substâncias não vivas ligadas entre si por intercâmbios materiais,
fundamentalmente de caráter energético, no interior de uma porção
delimitada da biosfera. Tal ênfase abriu uma nova via de análise das
práticas culturais como partes de um sistema no qual se deve incluir
também o ambiente. Cultura e meio físico deixam de ser considerados
como duas realidades relacionadas entre si de modo linear, e passam a
ser pensados em dependência recíproca.
Os primeiros estudos ecológicos compartilhavam interesse pelo uso
da energia, pela produção alimentar e pelos aspectos demográficos e,
em geral, pelas condições materiais da existência. Segundo o enfoque da
"ecologia cultural", assim denominada por Steward, os homens e as
sociedades deveriam se adaptar às condições ecológicas e essas adaptações
modelavam a orientação dos esforços culturais e da organização social.
Esses antropólogos realizavam sua pesquisa em sociedades caçadoras-
coletoras, pastoras nômades ou agrárias, oferecendo uma descrição
etnográfica detalhada sobre os comportamentos observados com relação
à subsistência: o que e quanto comem, quanto e quando trabalham, de
quantos membros são compostos os grupos sociais, se se movem ou são
transportados, como e por quem etc. Os temas considerados mais
relevantes e aos quais mais atenção se dedicou são aqueles relacionados
ao modo como a energia circula através da cadeia alimentar e como essa
é distribuída e gasta nas diferentes tarefas, e à eficácia medida pela relação
input-output dos distintos sistemas de cultivo. As pesquisas sobre a
adaptação e evolução humana insistiram, sobretudo, em determinar as
restrições ou incentivos materiais - especialmente os tecnoecológicos e

67
os tecnoeconômicos - e as preferências ou aversões culturais intrínsecas
a mudanças relacionadas com a dieta, a biologia e a organização social.
Essa abordagem foi criticada pela excessiva focalização nos estudos
de populações locais como unidades de estudo, pela falta de
profundidade temporal resultante da ênfase nos modelos sistêmicos
segundo os quais as populações mantêm um equilíbrio homeostático ou,
inclusive, pela excessiva importância outorgada à nutrição em detrimento
da economia, aos fluxos de energia e às cadeias alimentares ou à
maximização dos outputs calóricos como medida de grau de adaptação
dos grupos humanos. Se a isso acrescentarmos a falta de habilidade
demonstrada para dar conta das motivações humanas e os valores culturais
na dinâmica ambiental, não será de estranhar que, finalmente, esse
enfoque seja recusado por seu reducionismo tecnológico e ecológico.
Por sua vez, Harris e Ross propuseram uma reformulação da relação
homem-meio mais elaborada, mais formal e complexa. Explicam os
diferentes aspectos dos conjuntos socioculturais em termos das funções
que cumprem em relação à adaptação das populações locais a seus
ambientes particulares. São os primeiros antropólogos norte-americanos
a reivindicar a influência direta de alguns dos postulados marxistas,
aderindo completamente à ideia de um primado de infraestruturas
econômicas sobre a superestrutura ideológica. Nessa perspectiva, ambos
os autores explicam a variação dos consumos alimentares resultante de
determinismos naturais e de funções materiais identificáveis, de forma
que as regras culinárias são entendidas não como forma de arbitrariedade
ou convenção cultural, mas como formas particularmente eficazes de
adaptação cultural. De fato, consideram que os seres humanos tendem a
escolher aquilo que é bom, nutricionalmente falando, por causa da
evolução, da seleção e da adaptação. Harris (1985a) utiliza esse tipo de
argumentos para explicar uma grande quantidade de interdições
alimentares, pretendendo inclusive dar conta da variação humana em
seu conjunto. A proteção da vaca sagrada na Índia, não consumir insetos
na Europa ocidental, o valor do boi nos Estados Unidos, a hipofagia e
até o canibalismo são tomados com explicações baseadas na ideia de
adaptação e de ajuste ótimo a restrições ecológicas e econômicas. Segundo
Harris, as preferências ou aversões alimentares devem ser explicadas em
termos materialistas (ecológicos, econômicos ou nutricionais), de forma
que os comportamentos valorizados são aqueles que se prestam a uma
relação entre custos e benefícios práticos mais favorável do que os
comportamentos evitados. Assim, os exemplos analisados por esse
antropólogo respondem sempre a essa relação.

68
Na Índia, a proibição do sacrifício das vacas garante, ent:e outros
benefícios, a reprodução dos bois, essenciais para a agricultura com animais
de tiro, o consumo de leite ou o combustível para cozinhar. Para Harris,
é evidente que tanto a política como a religião desempenham papel
importante no reforço e perpetuação de tabus contra o sacrifício de bois
e o consumo de sua carne, mas nem uma nem outra explicam por que
alcançaram seu valor simbólico: por que a vaca, e não outro animal?
A vaca sempre foi um animal protegido pelo hinduísmo? As explicações
para essas questões encontram-se, de acordo com Harris, no paralelismo
entre a história do hinduísmo e a história econômica da Índia .
O apanhado histórico demonstra que, de fato, a proteção da vaca nem
sempre foi um fato ce~tral do hinduísmo. Ao contrário: quando os
brâmanes sacerdotais, antes do início de nossa era e até o meio do século
VII, tiveram que competir com o budismo que com tanto êxito e energia
condenava todo sacrifício, entenderam que a doutrina do respeito à vida
animal era muito forte e popular para ser vencida, por isso adotaram-na
de forma gradual e de maneira que parecesse parte de seus ensinamentos.
A incorporação de uma doutrina religiosa mais popular coincidiu
no tempo com a generalização de um sistema de agricultura mais
produtivo que permitiu o adensamento da população, de tal maneira
que, contrariamente ao que se depreende dos inumeráveis julgamentos
feitos sobre esse tabu, a presença de grande quantidade desses animais
no campo hindu em contradição com as proibições do sacrifício de vacas
e do consumo de sua carne não é indicativa nem de desperdício, nem de
loucura. Por um lado, tais animais raramente competem pelos recursos
com os seres humanos, já que não pastam com muita frequ ência em
terras cultivadas ou em terrenos que podem servir para cultivar alimentos
destinados às pessoas. Em lugar disso, esses animais são mantidos em
estado de semi-inanição até que sejam necessários para o trabalho. Entre
as tarefas de arado, alimentam-se de talos, palha, folhas e sobras caseiras.
No momento de arar a terra, recebem rações extras que consistem em
bolo de azeite prensadas em resíduos de sementes de algodão, soja ou
coco não aptos para o consumo humano. A variedade zebu é, além disso,
resistente a doenças, tem grande vigor e trabalha até a morte, o que não
parece acontecer antes que tenha rendido uma dúzia de anos ou mais de
serviços extenuantes. Para o camponês, o valor dos bois está não somente
em sua força de tração, mas também no adubo e combustível que
fornecem. O esterco de boi continua sendo o fertilizante mais utilizado
na Índia. Além disso, a falta de madeira, carvão e combustível obriga
milhares de donas de casa indianas a depender do esterco seco para sua

69
cozinha. Empregado para tal fim, o esterco produz uma chama limpa,
constante e inodora que requer pouca atenção e se presta bem ao cozimento
em fogo lento de pratos vegetarianos. As vacas, além disso, dão leite, uma
das fontes de proteína animal mais importantes para a alimentação humana.
Não obstante, Harris se pergunta, como também se perguntaram
engenheiros agrônomos ou economistas, se não é tremendamente ineficaz
utilizar hoje em dia bois em lugar de tratores para puxar arados. Se um
trator de 35 cavalos pode arar um campo quase dez vezes mais rapidamente
que uma parelha de bois, o investimento inicial no primeiro é vinte vezes
maior que o necessário para o par de animais, pelo menos quando o
trator é utilizado mais de novecentas horas por ano. Ou seja, os tratores
são mais eficientes que os bois nas explorações de grandes dimensões e,
na Índia, a maior parte das explorações agrícolas é muito pequena e os
camponeses, muito pobres. Para ter bois, é preciso ter vacas, e no regime
tradicional da Índia a função primordial dessas é parir bois baratos e
resistentes. O leite e o esterco constituem valiosos subprod utos que
ajudam a financiar a manutenção da vaca. Portanto, o tabu analisado
por Harris e segundo a perspectiva do materialismo cultural, longe de
diminuir, melhora a eficácia a longo prazo do sistema agrícola hindu, ao
mesmo tempo que reduz as desigualdades relacionadas ao consumo dos
nutrientes essenciais advindas do sistema de castas.
Na mesma perspectiva, Ross (1980) opõe-se a explicações de cunho
culturalista dadas por Sahlins sobre as preferências alimentares dos norte-
americanos pela carne de porco e de boi, afirmando que essas são falsas
em termos lógicos e empíricos. Por um lado, a atribuição da preferência
americana pela carne de vaca ao velho código sexual indo-e uropeu é
inconsistente, visto que essa mesma herança ideológica deu lugar a um
tabu na Índia, e não a uma preferência. Isso demonstra que a ideologia
por si só não pode explicar o consumo americano de carne de vaca e que
é preciso levar em consideração os fatores materiais e históricos que o
favoreceram. Em sua avaliação Ross defende, por outro lado, que na
verdade foi a carne de porco a predominante na dieta americana há até
pouco e que a importância da carne de vaca pode ser atribuída à mudança
nas condições materiais da produção de alimentos na medida em que a
agricultura americana se integra em um sistema capitalista avançado.
Centrando-nos no tipo de respostas enfrentadas por Sahlins,
podemos observar melhor como se constrói no enfoque neofuncionalista
a supremacia do material e a ideia de sistema. Ross também não está de
acordo com a afirmação de Sahlins de que os sistemas dietéticos são
essencialmente sistemas de significados e constituem, em sua totalidade,

70
var iações do tema do canibalismo, ou seja, o caráter comestível está
inversamente relacionado com a humanidade. Assim, os cachorros e os
cavalos não são comidos na sociedade americana porque participam, como
já vimos, da condição de suj eitos, enquanto a vaca e o porco são
comestíveis porque são objetos. De acordo com Ross, essa argumentação
é tautológica, pois os animais caseiros não são geralmente um recurso
alimentício, e vice-versa: os animais que não são criados para serem
comidos dificilmente são comidos. Enquanto que para Sahlins o grau de
comestibilidade depende da arbitrariedade ou da convenção ou , dito de
outro modo, das razões simbólicas, para Ross a comestibilidade está
relacionada com o grau de otimização destas e daquelas.
Acreditar, como sustenta Sahlins, que a sociedade norte-americana
não come cachorros apenas por razões culturais comporta, para Ross,
duas falácias: 1) A circunstância de que são as vacas e não os cachorros
que constituem a provisão de milhões de pessoas mediante um
fornecimento regular de carne não encerra nenhuma questão de cultura,
pois está ligada ao fato de que a criação de ruminantes, e não de
carnívoros, é a melhor maneira de explorar as terras inadequadas para o
cultivo. Um quarto do território dos Estados Unidos estaria à margem
da economia se não fosse usado para a criação de vacas ou ovelhas; e
2) há um a confusão entre os níveis do sistema. Muitas condutas que
parecem arbitrárias ou irracionais local e individualmente nada são além
de partes de processos sistêmicos que evidenciam sua racionalidade em
um a ordem de análise mais ampla. Assim, a questão central está em que
a utilidade dos cachorros não deve ser necessariamente medida em função
exclusiva de seu valor nutritivo, como propõe Sahlins, mas de seu papel
de consumidores. Quando propõe que o fato de manter os cachorros
como animais caseiros é um triunfo da "lógica cultural " mais que da
"efetividade material", ele se esquece de uma questão importante. Um
dos setores mais lucrativos da indústria alimentícia moderna da carne é o
da e laboração intensiva de derivados animais em produtos
comercializáveis, entre os quais aq ueles destinados à alimentação dos
animais domésticos são dos mais rentáveis. Hoje, pode-se afirmar mais
que nunca que 'o bom para comer é o bom para vender'. Ross admite,
aliás, outros benefícios imediatos de se manter a aversão ao cachorro.
Assim, por exemplo, na medida em que os Estados Un idos fora m se
urbaniz a ndo e a vid a socia l se desintegrando em prol de maior
individualismo e de maior insegurança cidadã, aumentou a importância
das funções de proteção e companhia, satisfazendo também a necessidades
de ordem psicológica e de segurança.

71
A análise baseada na relação custo-benefício apresenta, entretanto,
certos problemas. Da mesma forma que as abordagens do estruturalismo
apresentam um caráter excessivamente conclusivo, as hipóteses lançadas
pelo materialismo cultural também nem sempre são fáceis de comprovar.
Do materialismo cultural foi criticado seu utilitarismo radical e seu
materialismo extremo, no qual também recaem os estudos sociobiológicos
que adotam essa abordagem. Quando as pressões ecológicas diretas não
parecem bastar na explicação materialista, nada a impede de recorrer a
determinismos indiretos de ordem demográfica, nutricional ou, como
acabamos de destacar, psicológica. Entretanto, em geral é preciso
agradecer ao neofuncionalismo ecológico por ter constatado que o ser
humano não vive de modo continuado nos limites de seu ecossistema, à
margem da fome ou da catástrofe. Os bosquímanos, os pigmeus e os
Hadza não exploram os recursos alimentares de seu ambiente físico e
não aproveitam ao máximo sua capacidade de trabalho. Também se
demonstrou a existência de múltiplas formas de racionalidade econômica
e se atribuiu maior rigor às credenciais científicas da antropologia cultural
no seio das ciências naturais, o que promoveu a pesquisa em conjunto
com disciplinas como a medicina, a biologia, a nutrição, a demografia ou
a agronomia e, nesse sentido, a interdisciplinaridade (Contreras, 1995).
As questões mais importantes que surgem na antropologia em torno
do estudo da alimentação estão relacionadas, entretanto, com os temas
que acabamos de expor aqui , pois são as que apresentam maiores
limitações teóricas e conceituais. Em geral, o materialismo cultural acaba
resolvendo os "enigmas culturais" - nesse caso os enigmas relativos às
preferências e aversões alimentares - descobrindo a lógica de sua forma
específica de adaptação ao meio. Esses trabalhos deram um primeiro
passo de toda uma linha frutífera de estudos ecológicos durante as três
últimas décadas cuja ênfase continua recaindo sobre a análise das relações
entre natureza e cultura. Tais estudos superam, em boa medida, a
marginalidade relativa da questão ecológica na antropologia europeia,
banida das monografias descritivas clássicas, as quais apresentavam o modo
de vida ou a inserção de uma sociedade em seu meio natural.
É o caso dos trabalhos já citados de Richards ou Evans-Prittchard,
ainda que os estudos da tecnologia cultural iniciados na França por Leroi-
Gourhan (1964, 1965) e Haudricourt e Granai (1955) também tenham
contribuído para trabalhos interdisciplinares nos quais se destacavam os
vínculos entre as dimensões sociais, econômicas e políticas dos sistemas
agropastoris que naqueles momentos eram objeto de pesquisa.

72
Nessa linha, os estudos de etnoecologia que surgiram entre os
anos 70 e 80 do último século enfatizaram o ponto de vista dos atores
sociais esquecidos pela corrente neofuncionalista anterior, suas formas
de perceber e classificar o ambiente e os efeitos dessas representações na
dinâmica ambiental. A etnoecologia se dedica a examinar as classificações
nativas de espécies animais e vegetais, entre elas as espécies alimentares,
na perspectiva da antropologia linguística, insistindo em que as
populações humanas introduzem elementos de viés ideológico em sua
participação nos ecossistemas. Não são meros atores passivos. Assim, pois,
propõe-se que a adaptação humana não depende apenas da estrutura e
da composição dos ecossistemas, mas também deriva da bagagem cultural
herdada, das elaborações surgidas do contato com outras populações,
por invenção independente ou, também, pelas pressões impostas do
exterior e das necessidad~ que surgem na população local. A consideração
do comportamento dos indivíduos como atores sociais contribui para
modificar os enfoques sistêmicos estáticos e as teorias neofuncionalistas
que antes abordamos. Implica trabalhar com modelos interacionais e
processuais que transpõem seus interesses da estrutura para os processos
sociais, dos aspectos normativos para os aspectos comportamentais das
relações sociais, ou do trato das populações como homogêneas para o
exame da diversidade e da variedade (Peito & Peito, 1983). Esses estudos
destacam , além disso, o caráter aberto dos sistemas, a falta de autonomia
do econômico e do político em nível local, sua dependência em relação
a fatores externos (de origem regional, nacional ou internacional) e, ao
mesmo tempo, sua influência recíproca sobre as pessoas, os grupos
domésticos ou determinados setores da sociedade (Godelier, 1991).
Desde as orientações ecológicas, a análise da alimentação continua
constituindo, hoje, um tema central. Os alimentos continuam sendo
entendidos como elementos do ambiente com os quais o ser humano se
relaciona e cujo consumo é derivado das relações mais estreitas com a
natureza. Na perspectiva da ecologia política tem sido abordado um número
extraordinário de temas referentes às mudanças registradas no meio
ambiente como resultado da industrialização das atividades econômicas e,
consequentemente, também decorrentes das atividades produtivas
alimentícias tais como a agricultura intensiva ou o processamento
industrial dos alimentos: erosão do solo, desmatamento, desertificação,
poluição, modificação dos agroecossistemas, escassez de alimentos, riscos
das aplicações biotecnológicas, esgotamento dos recursos ... Na
antropologia ecológica, procura-se analisar esses problemas e, também,
os discursos surgidos no debate científico - que é ao mesmo tempo um

73
debate político. Não obstante, reconhece-se que a generalização da
conceituação ecológica contemporânea é produto de uma ideologia
particular, histórica ou culturalmente situada em um contexto particular,
e que isso também merece uma análise científica. Atualmente, existe um
campo aberto para o estudo antropológico no que diz respeito à relação
das sociedades com seu ambiente que não se limita às sociedades
tradicionais, como havia sido habitual até o início dos anos 1980. O discurso
sobre a influência da mundialização sobre a natureza, veiculado pelas teses
da ecologia política, está hoje amplamente integrado nas cosmologias e
dinâmicas locais das sociedades estudadas pelos antropólogos. Nessa
perspectiva, trata-se de delimitar os diferentes problemas, dar conta de
seu alcance e neles intervir, especialmente no domínio da conversão da
biodiversidade, da gestão das áreas protegidas ou da utilização de noções
que fazem das paisagens patrimônio cultural (Garine, 2001). Em todos
esses temas, a análise da evolução dos processos de 'glocalização' dos
sistemas alimentares e suas consequências a curto, médio ou longo prazo,
tanto para as populações como para o ambiente, continuam constituindo
um eixo de análise prioritário para essa orientação.
Em uma perspectiva diferente do neofuncionalismo ecológico ou
da antropologia ecológica processual, ainda compartindo certas ideias
básicas, tomam forma as propostas de Goody, Mennell, Mintz e
Beardworth e Keil, agrupadas sob o termo developmentalism , as quais
têm em comum uma mesma consideração: a análise do 'contexto' alimentar.
Do mesmo modo, todos esses autores estão pouco interessados em dar
explicações sobre aquilo que nos anos 1980 havia se convertido em uma
tradição da antropologia social, as preferências e aversões alimentares,
para centrar-se no estudo do desenvolvimento dos sistemas alimentares.
Seus trabalhos têm uma orientação crítica e continuam dando importância
às análises estruturais - principalmente macroestrutural - e, em boa
medida, ainda que não somente, considerando a incidência do sistema
econômico como o principal determinante das práticas alimentares e o
papel das classes sociais. O developmentalism não é, entretanto, uma
perspectiva explícita ou um corpo teórico homogêneo nem em relação às
definições teóricas nem no concernente ao tratamento metodológico.
Trata-se de uma categoria de propostas nas quais podemos situar uma
série de aproximações que têm em comum preocupações e características
básicas. A mais importante é o fato de assumirem que qualquer tentativa
válida de compreender as formas culturais contemporâneas e os modelos
de relações sociais deve levar em consideração a maneira como estão
relacionadas com formas passadas. Assim , a transformação social se

74
converte em um tema principal, em termos de direção, processos e origens.
Entendendo-se a transformação nesse sentido, a presença de conflitos e
contradições no sistema social é convertida em fio condutor da análise
antropológica, representando as rel ações de poder como desiguais em
relação com a produção, distribuição e consumo de alimentos.
Assim, no enfoque developmentalista , a co ntextualização se propõe
espacial e temporalmente e nos remete à co nsideração da delimitação e
reco nstrução histórica.5 Essa abordage m contrasta com a estrutural-
funcionali sta ou com a culturalista porque não outorga autono mia às
diferentes esferas do sistema alimentar, tais como os ingredientes, as
comidas ou os processos culinários. Em sua obra Cooking, Cuisine and
Class, Goody (1984) critica a aproximação lévi-straussiana por enfatizar
a cultura e não considerar as relações sociais e as diferenças individuais.
Também se posiciona contra Douglas, o qual, segundo ele, deixa de lado
em suas considerações a diferenciação interna, assim como as influências
socioculturais externas, os fa tores históricos e os elementos materiais.
Goody reconhece a importância da cultura , mas argumenta que a
a lim entação e suas variações só podem ser compreend id as e m sua
interdependência com o sistema sociocultu ra l. Considera, do mesmo
modo, que o estudo dos a lim en tos e da comida está estreitamente
vinculado à economia política tanto em um nível micro - por exemplo, o
grupo dom éstico - , como num nível macro, como seria o caso do Estado
e sua formação e estrutura. O estudo das formas de abastecimen to e
transformação dos alimentos inclui as fases de produção, distribuição,
preparação e consumo, as quais por sua vez devem se relacionar com a
ordem socioeconômica para evitar que sejam deixados de lado fatores
do tipo hierárquico ou que se subestimem as pressões externas que são
impostas nas atividades sociais. Para ele, é inconcebível fazer um a análise
da cozinha sem vinculá-la, necessariame nte, com a divisão de poder e
autorid ade dentro da esfera eco nômica e, consequentemente, com o
sistema de estratificação social e com a divisão sexual do trabalho, porque
ambos os aspectos condicionam, de fato , as práticas alimentares cotidianas.

5 Algu ns trabalhos relevantes que enfatizaram a análise da transformação em longo


prazo provêm da história. É o caso, por exemplo, do estudo de Salaman sobre a
batata (1949). Outros se concentraram na evol ução das dietas nacionais, como
Drummond & Wilbraham (1991), Levenstein (1988a, 1988b, 1993), Fenton & Kisban
(1986), Tannahill (1973), Burnett (1979), o u nas relações entre hábitos al imentares,
estados nu tricio nais ou e mergência de e nfermidades ao longo do te mpo, como
Yudkin & McKenzie (1964), Barker, McKenzie & Yudkin (1966), Oddy & Miller
(1976) e Brumberg (1988).

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Seu estudo mais importante sobre a alimentação e a comida enfatiza
a cozinha e os estilos alimentares dos grupos do norte de Gana (Goody,
1984). Entretanto , esse livro não foi concebido como uma simples
monografia antropológica, na medida em que constitui uma tentativa
de analisar as transformações produzidas nos grupos estudados em termos
da evolução daquilo que é, de fato, um sistema alimentar cada vez mais
globalizado. Desse modo, argumenta que com a colonização europeia os
povos africanos não renunciaram à sua cozinha tradicional. Entretanto,
ao mesmo tempo que no princípio da colonização teve início a utilização
da língua inglesa em domínios como a política, a religião ou a educação,
também se iniciaram as técnicas culinárias inglesas, assim como em
convenções específicas em certos momentos. Goody (1984) mostra como
determinadas questões relativas aos estilos de vida são o resultado de
processos de transformação que estão ocorrendo em escala global. Assim,
uma parte relevante de seu trabalho consiste na análise do
desenvolvimento do que ele denomina "alimentação industrial'', fazendo
referência à complexidade dos processos de produção, preservação (com
as técnicas de embalagem e refrigeração), mecanização da distribuição e
a generalização do comércio varejista. No seu interesse por destacar a
importância do sistema sociocultural na definição das diferentes cozinhas,
Goody contextualiza as transformações das práticas alimentares no
norte de Gana, realizando o trabalho de campo entre os Gonja, uma
população de origem tribal, e os Los Dagaa, um antigo reino africano.
Para realizar tal estudo, não somente recorre às expressões e conceitos
verbais relacionados com as cozinhas ou com as práticas culinárias, mas
também analisa a organização social e econômica desses povos, sua
evolução através do tempo, demonstrando como essa esteve estreitamente
vinculada à ordem mundial, em suas fases colonial e pós-colonial. Entre
outros aspectos, Goody descobre o início de uma hierarquização nos
usos vinculados à alimentação, sobretudo nas relações de parentesco e
no consumo de certos alimentos, a partir da influência do modelo
alimentar das sociedades industrializadas e, em particular, da introdução
no mercado de produtos padronizados que, tal como indica o autor, não
requerem apenas a aplicação das tarefas domésticas culinárias, na medida
em que essas já têm sido resolvidas nas fases de produção e transformação
cultural dos alimentos.
Em termos teóricos e metodológicos, a perspectiva global com que
Goody aborda seu trabalho sobre Lo Dagaa e os Gonja de Gana
influenciou enormemente o estudo comparativo realizado por Mennell
sobre as cozinhas francesas e inglesas ou aquele do próprio Mintz sobre

76
o papel que o açúcar desempenha nas práticas e preferências alimentares
das classes industriais trabalhadores das sociedades ocidentais. Para
analisar qualquer sistema alimentar é preciso considerar, pois, a dimensão
temporal e espacial, assim como a dinâmica dos grupos sociais e das
pessoas em contextos socioeconômicos e culturais específicos.
A principal contribuição de Mennell à antropologia da alimentação
é o estudo comparativo sobre a comida e o gosto entre Inglaterra e França.
Ele situa-o claramente no âmbito dessa aproximação developmentalista.
O aspecto teórico que Mennell destaca em sua obra Ali Manners of Food
(1985) é uma aplicação explícita da proposta de Norbert Elias em seus
trabalhos The Civilising Process (1989) e The Court Society (1983), baseada,
por sua vez, em uma ampla perspectiva de desenvolvimento que alcança
desde os processos da formação do Estado até formação da personalidade
e as condutas individuais. Um dos argumentos centrais do trabalho de
Elias reside na sua ideia do "processo civilizatório" extensivo e prolongado
que foi sendo introduzido nas sociedades ocidentais ao longo de vários
séculos. A transformação nas diferentes sociedades, defende Elias (1989),
pode ter um sentido ascendente e parece ser produzida pela apropriação
de consumos, hábitos e valores das classes sociais por meio da imitação.
Esse autor parte das transformações que experimentam as estruturas
individuais e sociais a longo prazo para explicar o processo de constituição
do Estado na Europa. Para ele, os problemas associados às transformações
requerem uma análise da evolução social. O estudo do comportamento
humano à mesa, desde fins da Idade Média até a etapa contemporânea,
é tido por Elias como um exemplo que cumpre a missão catalisadora e
permite observar ao longo dos séculos como foi sendo modificada a pauta
de comportamento sempre em uma determinada direção. A transformação
dos comportamentos à mesa é produzida no sentido de uma 'civilização
paulatina'. Segundo Elias, só a experiência histórica esclarece o significado
dessa palavra, desse processo civilizatório: mudam as normas das exigências
e as proibições sociais e, consequentemente, são alterados os limites do
desagrado e do temor socialmente produzidos.
Para sustentar sua hipótese, o autor faz uma seleção de textos
sobre modelos de comportamento à mesa destinados em sua maior parte
às classes altas e de épocas distintas, e demonstra que mesmo que o
movimento de transformação não seja linear, porque existem oscilações
e curvas, ele indica uma direção determinada de desenvolvimento. Esses
escritos ilustram que até a segunda metade do século XVII os usos,
consumos e modas próprias da corte aristocrática começam a penetrar
entre as classes da alta burguesia. A partir do século XIX, a burguesia

77
imita já de forma aberta e frequente os comportamentos alimentares das
elites. E essa imitação por parte da burguesia supõe, por sua vez, uma
reestruturação dos comportamentos dos estratos superiores. Ao imitar
certos modelos, os estratos médios os modificam e, dessa forma, perdem
o caráter de diferenciação para as classes altas e os desvalorizam, o que
provoca um novo refinamento para as elites que buscam constantemente
a distinção. Elias observa que a transformação que se produz a longo
prazo nas maneiras culinárias e, em geral, no comportamento alimentar
é acompanhada de uma "essencialidade" que permanece, que é imutável.
Assim, a evolução das técnicas culinárias originada pela aplicação de
novas fontes energéticas deixou intactas, segundo o autor, a técnica
de comer e as outras regras de boas maneiras. É o caso dos utensílios
da mesa e dos pratos, os quais são apenas uma variação sobre temas do
século XVIII.
No âmbito da antropologia francesa, destacar o passado como
aquilo que configura o presente é uma abordagem formulada também
por Bourdieu (1976, 1988), figura intersticial que se situa entre o
estruturalismo, o materialismo e os estudos culturais, ainda que ele mesmo
não se inscreva em nenhuma dessas classificações. Entretanto, alguns de
seus argumentos lembram parte desses postulados. Na introdução de La
Distinción , Bourdieu explica que o estudo surge de uma tentativa de
repensar os conceitos de Max Weber de 'classe' - os membros que
participam de uma posição comum em relação aos meios de produção -
e 'posição' - os membros que participam de um estilo de vida comum em
relação ao consumo. Para ele, cada indivíduo está designado desde o
princípio a uma posição de classe, definida pela soma do capital econômico
e simbólico (principalmente educacional) de que dispõe. Apenas uma
pequena parte de seu patrimônio pode ser modificada por estratégias de
mobilidade social. Assim, do mesmo modo que Barthes ou Lévi-Strauss
buscam um código ou gramática subjacente às preferências alimentares
das distintas sociedades, Bourdieu busca uma fórmula subjacente às
preferências culturais de cada classe ou subclasse.
Como outros autores, Bourdieu reconhece a necessidade de ir além
da estrita dependência da sociedade ao âmbito da produção e construir
um esquema que leve em conta considerações sobre consumo e estilos de
vida. Entretanto, continua considerando a classe social como elemento
importante e interpreta o gosto e a natureza das condutas de consumo
tanto como expressão de identidade de classes quanto como meio de
reproduzir as distinções de classes na sociedade, questionando a ideia
de que existam um "gosto" e uma "escolha" individuais nesse terreno.

78
As pessoas fazem escolhas individuais aparentemente de acordo com
suas próprias preferências; entretanto, ao mesmo tempo, essas preferências
são altamente previsíveis quando se conhece sua origem social (seu capital
econômico e seu capital simbólico). Nesse sentido, o vínculo com a
estratificação social é próximo.
''A 'distinção" é, em parte, construída sobre as ideias de Veblen
(1899) e de Elias ([1932] 1989) em torno do significado que adquirem
certos alimentos e certas formas de comer como meio para se distinguir
socialmente, de forma que os hábitos alimentares representam uma
naturalização da ideologia. No estudo da comida, Bourdieu concentra-
se principalmente na análise dos consumos alimentares e dos gostos.
Esses gostos ou preferências alimentares são abordados, sobretudo, sob
a ótica da transmissão e da reprodução social, de maneira que sua
transformação se explica pela transformação do conteúdo dos habitus,
ou seja, do conjunto de práticas e representações de um grupo social
determinado, pela mobilidade social dos indivíduos ou pela variação da
composição social. Com efeito, são os indivíduos que modificam ou
buscam modificar o status social, e não os conteúdos dos habitus. Bourdieu
opõe os gostos das classes populares - camponeses, operários -, que
define como gostos "de necessidade", aos gostos "de luxo" ou "liberdade"
das classes altas. O gosto de necessidade encerra a ideia "da necessidade
como virtude", ou seja, os gostos populares favorecem as comidas mais
nutritivas e econômicas como forma de garantir a menor custo a
reprodução da força de trabalho que se impõe ao proletariado. Por sua
vez, os gostos de luxo são próprios das pessoas cujas condições materiais
de existência estão definidas não pela necessidade, mas pela liberdade
ou facilidade que permite o capital. Dessa forma, no caso do gosto de
necessidade, o conteúdo das preferências está determinado pelas relações
de produção: as classes populares sempre preferem os alimentos
considerados mais econômicos e nutritivos, ou seja, os que produzem
uma sensação de saciedade maior a um custo mínimo, enquanto que no
gosto de liberdade o conteúdo das preferências se estabelece em função
da arbitrariedade: o gosto pelos alimentos mais refinados ou leves pode
variar em razão das pretensões dos setores_ascendentes e da distinção
das classes dominantes. Para Bourdieu, a imitação dos gostos alimentares
é uma espécie de carreira social analisável em termos dialéticos cuja
finalidade consiste em alcançar a diferença e afirmar a distinção das
classes em vias de ascensão. Isso explicaria, por exemplo, o distanciamento
das classes médias em relação às operárias mediante a recusa do gosto
pelo pesado, pelo gorduroso e seu afã pela cozinha leve e pelo corpo

79
esbelto. A essa diferença no estilo alimentar, acrescenta-se a dimensão
da ostentação: a través do espetáculo das condutas alimentares,
expressam-se tam bé m prestígio social, reivindicação estatutária ou
pretensão de distinção.
Assumindo boa parte das ideias de Bourdieu, Mennell (1985)
dedica-se a analisar os efeitos mais notáveis desse processo civilizatório
na transfo rmação progressiva do exercício de pressões externas sobre os
indivíduos até o desenvolvimento de pressões interiorizadas, as quais
são exercidas pelos indivíduos sobre si mesmos. Esse desvio das pressões
externas para as internas afeta numerosas áreas da vida social, incluindo
a comida. Tal abordagem leva Mennell (1985: 20-39) a introduzir o termo
"civilização do apet ite", um conceito de considerável capacidade
explicativa para fenômenos relacionados com a alimentação tão diversos
como a anorexia nervosa ou o vegetarianismo. Sua proposta de trabalho
gira e m torno do modo como as representações o u conjuntos de
disposições sociais, culturais, econômicas ou políticas mudam através do
tempo no contexto do fluxo e refluxo de ideias e interesses em competição.
Trata-se de ver como as mudanças econômicas, políticas e sociais amplas
delimitam a expressão das emoções, comportamentos, gostos e estilos de
vida, utilizando essa noção para dar conta das preferências alimentares e
das cozinhas emergentes europeias. O trabalho de Mennell representa
uma tentativa ambiciosa de aplicar a aproximação sociogênica de Elias
com a finalidade de compreender os contrastes e as semelhanças que
foram produzidas entre as cozinhas inglesa e francesa por um lado e
entre as classes sociais, por outro. Mennell constata qu e, na Europa
ocidental, ao longo dos séculos, produziu-se uma redução dos contrastes
sociais no tocante à distribuição de alimentos, às formas de cozinhar entre
a elite profissional e ao âmbito doméstico, ao passo que, por outro lado,
as variedades e as diferenciações têm sido incrementadas em outro nível.
É o caso dos tipos de restaurantes ou das diversas cozinhas.
Por meio de sua análise histórica, Menne!J confirma que, entretanto,
os contrastes sociais continuam existindo, ainda que apareçam de forma
mais sutil e complexa. Para ele, assim como para Bourdieu (1988) ou
Elias (1989), os gostos e as aversões nunca são socialmente neutros, mas
sempre aparecem entrelaçados com as afiliações de classe e de outro
tipo. As elites sociais usaram constantemente a comida como um meio
entre muitos outros para diferenciar-se das classes em ascensão, ainda
que dificilmente tenham podido manter a exclusividade culinária durante
muito tempo, na medida em que cada período histórico comporta uma
promoção de grupos sociais mais amp los e a redefinição das elites.

80
A mescla cultural e culinária deu lugar a numerosas variedades que fazem
pensar em uma diminuição dos contrastes sociais, mas não em seu
desaparecimento. Assim, os modelos hierárquicos podem estar se
transformando constantemente e sobreviver sob novas formas em um
mundo aparentemente mais igualitário.
Por sua vez, o estudo de Mintz, Sweetness and Power (1985), sobre
a produção, comercialização e consumo de açúcar parte de um enfoque
teórico similar ao de Goody e Mennell no que se refere à reconstrução
histórica e ao sistema alimentar. Mintz aborda a necessidade de elaborar
uma história social do uso de novos alimentos nos países ocidentais que
possa servir para consolidar uma antropologia da vida moderna, aberta
ao estudo e à compreensão de culturas não somente "primitivas" ou
"marginais". Critica o estruturalismo culturalista argumentando que o
significado não deve ser simplesmente lido ou decifrado, mas provém de
aplicações culturais. Significar é a consequência da atividade e, segundo
esse autor, não se perguntar sobre como o significado é introduzido na
conduta supõe ignorar mais uma vez a história: os seres humanos criam
estruturas sociais e configuram acontecimentos com significados; mas
essas estruturas e significados têm origens históricas que informam, limitam
e ajudam a explicar tal relação (Mintz, 1985). A contextualização permite
explicar, por exemplo, por que muitas das relações do sistema alimentar
ultrapassam as fronteiras espaciais. Na alimentação contemporânea,
o espaço geográfico de produção coincide menos do que nunca com o
espaço da transformação, preparação e consumo.
Mintz (1985) nos mostra que o estudo histórico e antropológico
do consumo do açúcar revela um mundo mais amplo do que aquele
limitado ao contexto de produção. Remontando ao início do século
XVII, traça um percurso através do desenvolvimento das plantações
europeias de cana-de-açúcar especialmente na Grã-Bretanha, na Holanda
e nos Estados Unidos. Tal trajetória mostra como a cana-de-açúcar vai
deixando sua posição de artigo de luxo e escasso para se converter em
um produto de primeira necessidade entre as classes proletárias.
O consumo per capita de açúcar na Grã-Bretanha, por exemplo, aumentou
25 vezes entre 1700 e 1809, e cinco vezes mais ao longo do século XIX.
Interessando-se pelos trabalhos de Goody e Mennell no tocante ao
valor que esses autores atribuem à competição social e à emulação, Mintz
argumenta que a adoção do açúcar e dos alimentos doces manufaturados
por parte da classe trabalhadora no século XIX não pode se explicar apenas
pela imitação, mas que seu consumo se incrementa em um contexto
diferente de procura por calorias, e não de ostentação. A generalização

81
do consumo de açúcar experimentada durante as últimas décadas nas
sociedades industrializadas também não deve ser explicada
exclusivamente, segundo Mintz, pelo gosto inato que o ser humano
demonstra pelas substâncias doces, mas sim pela interação que é gerada
através do tempo entre interesses econômicos, poderes políticos,
necessidades nutricionais e significados culturais. Durante longo tempo,
o açúcar havia sido um símbolo de status para os ricos (por sua "exótica"
procedência, sua escassez e seu custo) para depois, ao suplementar a
cerveja e o pão feitos em casa, destruir as características mais saudáveis
das dietas das classes populares britânicas. De acordo com Mintz, a
suposta preferência humana pelo doce teria se encaixado perfeitamente
com a expansão do sistema capitalista industrial que, ao longo desse
período, foi se desenvolvendo.
Nesse sentido, Fischler (1995b) indicou que a variação dos gostos
e estilos alimentares, entretanto, não depende unicamente de um
movimento hierárquico ascendente, pois esse nem sempre é unidirecional,
ou constante. Nem todos os consumos das elites se convertem, de forma
automática, em desejos para as outras classes sociais. Também segundo
Fischler, as variações alimentares protagonizadas pelos indivíduos podem
se produzir em um sentido horizontal, entre 'iguais' e, portanto, não
responder unicamente a uma ordem hierárquica, mas remeter-se à
estrutura em seu conjunto. Assim, a transformação dos gostos não pode
ser entendida apenas como uma competição entre classes, pois isso não
explicaria o fato de que o modelo de prestígio simbólico seja tomado de
uma cultura estrangeira, por exemplo da norte-americana, ou de que os
imitadores possam ser categorias biassociais, como os jovens, e não
unicamente as classes ou frações de classe. Sobre essa ideia, Mintz
acrescenta que o consumo das elites não significa automaticamente o
desejo das outras classes sociais, mas deve-se analisar o contexto em que
se dá esse desejo: "as circunstâncias sob as quais um novo hábito é
adquirido são tão importantes como os comportamentos daqueles de
quem o hábito é aprendido" (1985: 118). Desse modo, o denominado
"desejo de emulação " dos hábitos da burguesia por parte da classe
operária não deve ser convertido na única explicação da transformação
alimentar.
Em uma perspectiva teórica similar, Beardsworth e Keil (1997)
trataram de demonstrar a importância de descrever e explicar as formas e
características do sistema alimentar contemporâneo em função de sua
contextualização e devir histórico. Segundo esses autores, é necessário
considerar os vínculos e as inter-relações entre os diferentes componentes

82
do sistema alimentar e os modos como esses estão articulados pelas
relações econômicas e sociais atuais e, ainda mais, estabelecer as relações
que se dão entre tal sistema e os demais subsistemas - econômico,
doméstico, político, médico - que caracterizam qualquer sociedade.
Fogem, entretanto, de um conceito de sistema estático: todas essas
características e conexões são produto de processos longos, e devem ser
abordadas como tal.
O trabalho de Beardsworth e Keil se inspira em parte nas ideias de
Fischler e Garine (1988) sobre as dimensões do sistema alimentar moderno,
o qual, ainda que considerado de forma restrita, deixa certa margem às
intenções individuais e coletivas para restaurar a ordem perdida com
relação às práticas e significados alimentares. Ainda que a obra de Fischler
mostre também uma clara influência estruturalista em seu modelo
explicativo das regras - de exclusão/inclusão, extrínsecas e intrínsecas -
que regem a comestibilidade e a enculturação alimentar ou de sua
definição de 'sistema culinário', ele mesmo é partícipe de suas principais
críticas, e isso levou alguns autores a considerarem que seu enfoque
também poderia ser enquadrado dentro de uma concepção materialista.
Também para FischJer comer é pensar. Segundo o autor, o onívoro humano
tem necessidade constante de pensar sua alimentação, de justificá-Ia ou
de racionalizá-Ia, e essa necessidade se traduz nas noções de ordem,
organização, coerência e regulação que estabelece em sua relação com
os alimentos. Se para Fischler a alimentação human a precisa estar
estruturada ela é, ao mesmo tempo, estruturante: do ponto de vista
individual, porque socializa e encultura a criança; e do ponto de
vista coletivo, porque simboliza e traduz em suas regras o êxito da cultura
sobre a natureza. Além disso, a alimentação, como também propõem
Bourdieu e Elias, significa e determina hierarquias que permitem
eventualmente que os indivíduos nela se movimentem, ao menos de forma
imaginária. Entretanto, em sua obra principal, El (h)Onívoro (Fischler,
1995a), faz uma interessante interpretação da transformação do
comportamento alimentar a longo prazo , abordando os fatores
psicobiológicos e sociais que desembocaram nos para doxos que
acompanham o "refeitório" contemporâneo e que, de um ponto de vista
teórico, o aproximam do enfoque contextualista.
A tese central de Fischler gira em torno da ideia de que o sistema
de normas que governam as cozinhas das sociedades tradicionais, "gastro-
nômicas", estruturadas por horários fixos, comensalidade, ritualização e
combinação preestabelecida de pratos, sofreu um processo progressivo
de desagregação de tal ordem que, nas sociedades modernas e urbanas,

83
tal sistema se rompeu, dando lugar a situações alimentares caracterizadas
pela perda dos referentes relativos a horários, lugares, companhia ou
estrutura, entre outros. Essa situação é denominada pelo autor, seguindo
de perto Durkheim, de "gastro-anômica", ou, dito de outra forma, uma
desestruturação do sistema de normas da cozinha. O comedor moderno,
diferente de seus antepassados, teria perdido toda referência cultural
no momento de tomar decisões sobre sua alimentação. Isso facilitaria a
proliferação das contradições e de decisões inconsistentes, fruto ,
sobretudo, das pressões que atuam sobre o consumidor contemporâneo.
Por sua vez, a análise de Beardworth e Keil parte do termo alimento,
isto é, um item reconhecido como comestível no âmbito de determinada
cultura alimentar. Para eles, a "totalidade alimentar" (alimentary totality)
de uma sociedade inclui a série de alimentos disponíveis durante um
período específico. Nesse ponto, introduzem o conceito central de menu,
o qual deve ser utilizado em um sentido mais abstrato que o normalmente
atribuído. O menu refere-se àquele conjunto de princípios que guiam a
seleção de alimentos a partir da totalidade disponível. Os menus principais
podem tomar uma multiplicidade de formas, e às exemplos disso são
abundantes. Assim, os ' menus tradicionais ' estabelecem suas
recomendações e normas de escolha e combinação alimentar com base
em práticas habituais. Tais costumes, e as crenças que lhes dão suporte,
foram construídos ao longo de gerações e derivam sua autoridade e
legitimid ade do status adquirido através do tempo . As prescrições
e proibições dos menus tradicionais são inquestionáveis para aqueles
que foram socializados em sua aceitação e, portanto, as normas que os
acompanham parecem naturais e imutáveis. As transgressões de tais
normas provavelmente induzem consternação, desprezo ou desgosto,
como as normas de outras culturas, as quais, se aparecem, podem ser
vistas como estranhas ou perversas.
Pelo contrário, os 'menus racionais' implicam critérios de seleção
que são designados explicitamente para se alcançar alguma meta
específica. Esses objetivos podem incluir perda ou ganho de peso, melhora
da atividade física ou mental, evitação de certas enfermidades ou a
promoção de uma boa saúde. Tais menus parecem ser acompanhados de
princípios científicos ou paracientíficos, com elementos de cálculo e
medidas deliberados. Vinculados a esses últimos, encontram-se os que
Beardworth e Keil identificam como 'menus cômodos', cujo principal
objetivo é minimizar o tempo e o esforço requeridos para se adquirir,
preparar e apresentar a comida. Outro subtipo dentro dos menus racionais
é o dos 'menus econômicos', em que a primeira consideração é a obtenção

84
de alimentos dentro de um orçamento restrito. Depois, estão os 'menus
hedonistas', cuja finalidade é obter o máximo prazer degustativo. Em
contrate com esses tipos de menus, os autores incluem, também, os ' menus
morais', cujos critérios de seleção derivam de considerações éticas (por
exemplo, motivos ecológicos ou políticos vinculados com o bem-estar
dos animais e do meio ambiente ou com prescrições de caráter religioso).
Em qualquer sociedade, cabe esperar que se observarmos uma
gradação de menus diferentes, por um lado, e distintas categorias de
indivíduos dentro de uma população, segundo sua idade, classe, gênero,
origem étnica ou composição familiar, por outro, são feitas escolhas mais
ou menos livres ou impostas de alimentos disponíveis segundo cada menu .
A aproximação developmentalista nesse esquema torna-se clara quando
se verifica que, nas sociedades tradicionais, caracterizadas por índices
relativamente baixos de transformação social, parece haver um menu
tradicional , que coincide com os limites impostos pela totalidade
alimentar. Contrariamente, nas sociedades modernas e industrializadas,
com índices mais rápidos de transformação, o exercício da escolha em
uma ampla série de menus principais e competitivos se converte em algo
plausível. Assim, as pessoas poderiam encontrar de maneira mais factível
os alimentos para construir suas próprias dietas individuais fazendo
opções mais ou menos deliberadas entre menus alternativos, seguramente
com base no conjunto de circunstâncias econômicas e sociais que as cercam
ou no lugar onde o ato al imentar se produz. Essa situação é descrita por
Beardsworth e Keil como "pluralismo de menus" (menus pluralism), isto
é, a oferta de vários esquemas alternativos para estruturar as eleições
alimentares e os modelos de comida. Esse pluralismo - este é o ponto
que essa aproximação teórica mais enfatiza - é em boa parte produto de
muitos processos que se combinaram para dar lugar ao sistema alimentar
moderno, com a globalização do provimento de alimentos e a
industrialização da produção e da distribuição.
Enquanto Fischler entende todos esses processos como fatores de
desagregação das referências normativas da sociedade "gastro-nômica"
e de aumento da dispersão que conduz à "gastro-anomia", com todas as
consequências negativas que isso acarreta, Beardworth e Keil são mais
otimistas. Certamente, as incertezas associadas à "gastro-anomia"
poderiam não ser mais do que sintomas das tensões individuais na
emergência de uma nova ordem alimentar mais aberta, flexível e plural.
Como se pode observar, as novas orientações de alguns trabalhos
sobre as relações entre alimentação e cultura a partir dos anos 1980 estão
muito vinculadas às contribuições dos cientistas sociais com enfoque na

85
economia política (Atkins & Bowler, 2001). A análise sistêmica, por um
lado, e a incorporação da perspectiva histórica, por outro, estão na base
de numerosos estudos que insistiram em observar a alimentação como
uma atividade dinâmica e expressiva da ordem social. Uma das primeiras
evidências indicadas é que, hoje, aquilo que é consumido por determinada
população não tem por que ter sido produzido perto do lugar de consumo
(deslocalização). O comércio se internacionalizou, em um fenômeno
reconhecido como " a mundialização " da alimentação, vinculado
estreitamente a um processo mais amplo de globalização geral, cujas
dimensões são econômicas e culturais. As mudanças registradas no mundo
são de tal natureza e extensão que se projetam em todas as sociedades.
A hegemonia do capitalismo corno sistema econômico, junto com o
avanço das novas tecnologias e dos meios de transporte e comunicação,
fizeram do planeta, como indica Comas d'Argemir (1998), um só mundo,
por mais que as consequências para cada uma dessas sociedades possam
ser particulares.
Do ponto de vista alimentar, essas tendências gerais parecem
ocultar, entretanto, uma heterogeneidade extraordinária, produto
precisamente do complexo devir econômico e político da última metade
do século XX. As economias capitalistas avançadas, as socialistas ou as
economias não industrializadas diferem em suas experiências históricas
com a alimentação. Por exemplo, aparentemente o modelo industrial do
capitalismo agrícola foi mais eficiente (medida essa eficiência somente
em termos do volume de produção alcançável) em proporcionar comida
aos consumidores do que os sistemas agrícolas socialistas ou os sistemas
de subsistência. Por outro lado, no caso desses últimos podemos encontrar
em uma mesma regi ão agrícola diferentes sistemas de produção de
alimentos e modelos de consumo. Assim, por exemplo, na França se
estendem cultivas em grande escala no norte; cultivas especializados na
produção de cereal e granjas de criação de rebanho de pequena escala
no maciço central e produção intensiva de vinho, frutas e vegetais no sul
mediterrâneo.
A economia política oferece uma aproximação para se compreender
o desenvolvimento dos sistemas alimentares orientados local, estatal ou
globalmente e que foram substituindo, primeiro, a agricultura de
subsistência e, depois, a agricultura comercial aparelhada para os mercados
regionais. Trata-se de uma perspectiva teórica estruturalista voltada para
a aná lise das tendências globais que entende por 'economia' uma
econom ia social, ou seja, interessada nas formações sociais específicas
derivadas do i terna produtivo capitalista e que dá conta do processo de
desenvolvimento em termos dos benefícios e dos custos que acarreta para
as diferentes instituições e, sobretudo, para as distintas classes sociais
(Redclift, 1994).
De forma particular, a economia política destaca os papéis do
capital e do Estado na reestruturação da economia e da sociedade, junto
com as consequências para os diferentes grupos sociais. Quando se trata
de realizar um estudo de um sistema agroalimentar, essa aproximação
vai além de analisar o que acontece nas unidades produtivas, como as
granjas ou as plantações, e considera as instituições financeiras, os
empresários da indústria e da distribuição de alimentos e o papel que
desempenham na comercialização de alimentos ou no transporte, assim
como a intervenção do Estado em todos os processos. Esse enfoque
compreende, assim, distintas ênfases, ainda que nós aqui tenhamos nos
detido apenas sobre os trabalhos específicos que abordaram os aspectos
de transformação, regulação e globalização da alimentação e colocaram
à prova os conceitos de sistema e regimes alimentares aos quais nos
referíamos no início deste capítulo. É importante registrar que boa parte
desses estudos começa sua análise da alimentação a partir do século XIX,
dentro do contexto dos Estados-nação ou, inclusive, antes. Alguns seguem
uma linha de análise vertical, enfatizando o percurso de determinados
produtos alimentícios através da cadeia alimentar (Mintz, 1985) ,
especialmente entre os grupos de poder e as instituições. Outros recorrem
à análise dos elementos verticais e horizontais do sistema, tentando
estabelecer as relações que se dão entre instituições e mercadorias, entre
populações e alimentos (Goody, 1984; Mennell, 1985; Fischler, 1995b).
Algumas das propostas mais radicais formuladas nessa perspectiva
também enfatizaram as relações de exploração que se produzem em tomo
da comida entre os países industrializados e os que não o são, assim
como o dano que os primeiros estão impondo aos ecossistemas e às
economias dos segundos . Essas propostas destacam , também , o
preconceito que o sistema de produção intensiva tem com relação à saúde
das populações das sociedades capitalistas e a atitude passiva destas diante
da oferta de alimentos cada vez mais processados. Um exemplo dessa
perspectiva é o trabalho de Jenkins (1991), Food for Wealth or Health?
Towards equality in health , em que o autor argumenta que as políticas
agrícolas dos países ocidentais servem para destruir a vida selvagem e
gerar poluição e problemas para a saúde com o único objetivo de obter
benefícios. Para Jenkins, os alimentos que são comidos em países como
Grã-Bretanha estão altamente processados e supervalorizados em função
da ambição dos produtores e das indústrias e da falta de intervenção

87
estatal e regulação sobre suas atividades. Em seu trabalho, compara as
necessidades nutricionais de nossos antepassados do Paleolítico com os
comedores contemporâneos, argumentando que os requisitos corporais
são semelhantes, com algumas variações no tocante às ca lorias .
O problema, para ele, é que não sabemos encontrar o equilíbrio. Jenkins
(1991) recupera uma ideia de dieta e saúde vinculada à figura do "nobre
selvagem": os humanos alimentavam-se melhor quando as estruturas e
instituições de poder eram menos incisivas. Defende que as pessoas comem
produtos alimentícios pouco saudáveis porque não têm outra escolha e
que, se lhes fosse facilitado o acesso mais amplo a alimentos menos
processados e mais saudáveis, elas mudariam suas preferências: as pessoas
não comeriam sempre tamanha quantidade de produtos processados se
soubessem de que são feitos e como são feitos.
Sua argumentação aceita como bons certos conhecimentos
científicos e certas noções sobre a "natureza", especialmente aquelas
que sustentam a ideia de dieta prudente e o desenvolvimento da
agricultura e da comida biológica. Segundo sua análise, tais conhecimentos
científicos e nutricionais são politicamente neutros e não têm implicações
nos interesses criados em torno da produção, fabricação e distribuição
de alimentos. Os consumidores teriam que fazer questão dos
conhecimentos científicos e não se deixar levar pelos apelos do marketing.
Jenkins os critica por preferirem comprar maior quantidade de carne e
peixe ao invés de cereais ou vegetais, pois dessa forma prejudicam sua
saúde. Na verdade, o trabalho de Jenkins trata o consumidor de alimentos
como um ignorante sem poder de decisão e à mercê de governos
negligentes e indústrias gananciosas. O questionamento do discurso
científico, por um lado, e a anulação do papel ativo dos consumidores,
por outro, contribuíram para que hoje boa parte dessa literatura radical
esteja sendo questionada teoricamente também por seu determinismo
tão pronunciado.
Outros cientistas sociais, no caso da perspectiva dos estudos de
gênero, analisaram criticamente distintos aspectos sociais que afetam
também os modelos de consumo alimentar, ainda que dentro dessa linha
existam, novamente, posicionamentos mais ou menos radicais. Em geral,
são estudos muito interessantes teórica e metodologicamente que
destacaram as relações de poder e os estilos alimentares, dando o primeiro
passo para duas linhas de trabalho principais. A primeira voltou-se para
a análise do poder que a sociedade oferece ou denega a homens e
mulheres por meio do controle do acesso a um dos recursos humanos
mais essenciais, a comida. Nessa linha, destacam-se os modos como a

88
habilidade de homens e mulheres para produzir, armazenar, distribuir
ou consumir se converte em um meio-chave para se alcançar ou não o
poder e como essas capacidades são variáveis de acordo com o tipo de
cultura, classe e organização social. Habilidade e capacidade que
dependem, sobretudo, da estrutura econômica global da sociedade na
qual são produzidos. A segunda linha de trabalhos centrou seu interesse
na análise do denominado 'poder subjetivo'. Nessa perspectiva, foram
analisadas as relações diferentes que homens e mulheres mantêm com a
comida e seus significados sociais e o modo como esses servem para
construir suas respectivas identidades (masculinidade ou feminilidade).
As atitudes dos homens e mulheres em relação a seus próprios corpos, a
legitimação de seus apetites ou a responsabilidade de seu trabalho
alimentar revelam se a conceituação de si mesmos é valorizada ou
denegatória. Os trabalhos comparativos feitos no âmbito da antropologia
demonstraram que as relações que homens e mulheres mantêm com a
comida podem tanto facilitar a complementaridade e o respeito mútuo
entre gêneros como produzir hierarquias entre eles (Caplan, 1997;
Couhinan e Kaplan, 1998; Counihan, 1999).
No âmbito dessa linha crítica, as aproximações feministas deram
atenção, sobretudo , aos modos como as mulheres das sociedades
ocidentais estavam historicamente em desvantagem no tocante ao
consumo de alimentos em comparação com os homens, tendo sido
destacada sua maior responsabilidade no abastecimento e preparação,
assim como em todo o conjunto de tarefas domésticas relacionadas com
a alimentação em detrimento de sua participação na esfera não doméstica
ou no status inferior dentro do grupo familiar doméstico (Bose, 1979;
Kaplan, 1980; Murcott, 1983a, 1983b, 1983c; Charles & Kerr, 1987 ;
DeVault, 1991; Moore, 1991; Gracia, 1996a, 1996b, 1996c).
Alguns desses trabalhos estabeleceram vínculos entre a construção
da feminilidade e as práticas dietéticas das mulheres, incluindo a
quantidade e o tipo de alimentos consumidos. Também se insistiu na
relação que as mulheres apresentam hoje com seus corpos, inclusive sua
saúde, como produto de sua posição estrutural na sociedade, de seu
menor status e de sua instrumentalização como objetos em uma sociedade
patriarcal e dominada pelos homens (Chernin, 1985; Orbach, 1986; Bordo,
1993). Para autoras como Orbach (1986), as mulheres estão sujeitas a
contínuas pressões sociais para limitar sua ingestão alimentar a fim de
estar em consonância com as medidas exigidas para o corpo feminino, o
que está estreitamente relacionado com o aumento dos transtornos do
comportamento alimentar, tais como anorexia, bulimia e inclusive a

89
obesidade. A ênfase sobre o corpo das mulheres, o tamanho e a forma
serve para "distraí-las" e absorver suas energias, de maneira que não
possam alcançar posições de poder em sua sociedade. Sobre elas recai a
obrigação social de serem artificialmente magras. Começam a se difundir
os usos, consumos e modas próprios da corte aristocrática. Para essas
autoras, os meios de comunicação contribuem para a fetichização e
coisificação de um corpo feminino anormalmente esbelto, e as indústrias
da alimentação, da cosmética ou da moda comercializam a magreza; a
pressão para que as mulheres se esforcem para serem boas esposas, mães,
trabalhadoras e atraentes amantes (supetwomen) constitui uma das origens
desses problemas. A "tirania da magreza'', aludida por Chernin, limita o
desenvolvimento da mulher de todos os pontos de vista: social, pessoal e
físico . O vínculo conflitivo entre mulheres e alimentação manifesta
novamente os problemas que essas têm para assumir as pressões
econômicas e os valores sociais em um momento de Juta por redefinir
sua própria identidade social.
Em uma perspectiva mais radical, o trabalho de Adams, The Sexual
Politics of Meat (1990) , vincula a produção e consumo de carne com o
baixo status das mulheres dentro da sociedade patriarcal. A autora
argumenta que assumir que a carne "é boa para você" integra um discurso
intrinsecamente patriarcal, que associa a carne com um papel masculino.
Para Adams, a ideia de que os animais devem ser transformados em
objetos, e a violência perpetuada contra eles em nome da produção de
carne é machista, e não há diferença entre o tratamento que os homens
dão aos animais e o que dispensam às mulheres. Mulheres e animais são
objetivados e subjetivados diante da violência masculina, especialmente
no que se refere às mulheres vítimas de violações e maus-tratos. Nesse
sentido, a experiência da morte dos animais ilustra bem o tipo de
experiência vivida pelas mulheres. Seria lógico, segundo essa socióloga,
que todas as feministas fossem eticamente vegetarianas porque comer
carne é apoiar o que a sociedade patriarcal assume e ser tacitamente
cúmplice de suas próprias opressões. Para Adams, lutar pelos direitos
dos animais é, consequentemente, trabalhar pela liberação das mulheres.
Em geral, as contribuições feministas produzidas na década de 90
do último século procuraram ressaltar, junto com fatores estruturais,
aqueles relacionados aos próprios atores sociais (gênero, idade, classe
social, origem étnica). Nesse caso, considera-se que as mulheres nem
sempre atuam da mesma maneira e não são meras receptoras dos desejos
ou das mensagens predominantes de uma sociedade patriarcal, como
sugerem Orbach ou Adams. Não são entes manipulados unicamente por

90
interesses econômicos e políticos alhe ios à sua vontade, pois percebem e
respondem a estímulos aparentemente iguais de diferentes modos em
função de suas próprias condições de sujeitos. Essas novas formas de
interpretar as relações qu e os gêneros mantêm com a alimentação e sua
vinculação nos introduzem no debate teórico estrutura versus agência no
qual se procura recuperar, não sem problemas, algu mas das relações
dicotômicas clássicas que impregnaram a teoria social.

A Alimentação como Prática,


a Alimentação como Discurso:
debates em torno da construção da
realidade, da subjetividade e da experiência
Do conjunto de enfoqu es anteri ores, as ideias mais questionadas
foram as procedentes da crítica mais radical, tidas como excessivamente
deterministas por atribuírem aos háb itos alimentares um a única causa,
ma te rial ou cultural, sem reconhecerem plenamente o dinamismo, o
contexto e, sobretudo, os significados contraditórios gerados em torno
dos alimentos e do papel da agência humana e da experiência corporal
nas práticas alime ntares. As principais críticas às interpretações mais
extremas surgiram da própria aproximação developmentalista (Mennell,
1985), e nqu anto qu e alguns dos trabalhos procedentes do estruturalismo
crítico tendem a discutir as relações de poder e a transformação social,
centrando sua atenção nos macroníveis em uma abordagem excessivamen te
linear segundo a qu al os governos esta tais e a indústria alimentícia atuam
deliberadamente para oprimir e explorar os trabalhadores e para manipular
os consumidores, especialmente as mulheres, com o único objetivo de
obter be nefícios e manter as p osições de poder. Nesses termos, a
transformação social só se daria medi ante situações conflitivas geradas
por um a organização eco nô mica repressiva e uma es trutu ra social
patriarcal. Para aqueles que levaram em conta um a perspectiva histórica
e contextualizada de tais transformações (Mintz, Mennell ou Goody,
por exemplo) , tal e nfoqu e radical res ulta insuficiente e não depende
necessariamente da resistê nci a consciente, nem das pressões políticas.
Mud a nça cultural, desconstrução, pós-modernis m o o u pós-
estruturalismo são alguns dos termos mais comumente utilizados para
resumir as contribuições metodológicas e teóricas mais recentes dentro
das ciências sociais e que, em certa medida, tiveram como pressuposto o
questionamento dos argum e ntos materialistas mais unilineares (Lupton,
1996). Por um lado, com base na releitu ra de autores clássicos, tenta-se

91
superar as clássicas contradições (ideal-real, material-simbólico, objetivo-
subjetivo, macro-micro), questionando-se toda a série de oposições e
categorias que tendem a abordar o mundo social de forma dicotômica.
Aborda-se, além disso, um novo espaço de perguntas e problemas para
se entender a realidade social como algo construído, ou seja, não como
algo natural ou dado para sempre, mas como produto de construções
sociais, em que cabe questionar a existência de verdades essenciais. Afirma-
se que o "verdadeiro" deve ser considerado produto das relações de
poder e, como tal, nunca é neutro, mas sempre atua em função do interesse
de algo ou de alguém. Nos termos da perspectiva pós-estruturalista, todos
os conhecimentos são inevitavelmente produto de relações sociais e estão
sujeitos a transformações e o que se deve fazer é assinalar a especificidade
histórica e cultural do conhecimento. O conhecimento é entendido não
como universal ou realidade independente, mas como participante na
construção da realidade. Os seres humanos, por sua vez, são observados
como seres constituídos em e através de discursos e práticas sociais, sendo
sujeitos com histórias complexas. Assim, a análise sobre como o
conhecimento do sentido comum sustenta e constitui uma sociedade ou
cultura - como é gerada e reproduzida - se converte no interesse central
dessa aproximação, para a qual o conhecimento e a ação social aparecem
inseparáveis (Corcuff, 1997; Burr, 1996). Certamente, não se está
trabalhando com novos conceitos, novos sujeitos ou novos problemas; a
maioria das ideias que aparecem enquadradas por esse enfoque -
antiessencialismo, relativismo, interação social, processualismo - parte
do que já se havia feito nos anos 30 e 60 do século XX: criticar as grandes
teorias gerais explicativas, por entender que essas operam como um
obstáculo à explicação das particularidades (Geertz, 1995), e dar
prosseguimento a enfoq ues sintéticos não dogmáticos. É o caso do
construcionismo, reconhecido na antropologia interpretativa, que devolve
centralidade ao papel da linguagem e dos discursos na produção de
significados e, em geral, de toda aquela antropologia que desconstrói e
constrói, que é autorreflexiva e autocrítica: aquela que dirige um olhar
introspectivo para a relação geral do analista com seu objeto de estudo e
para o lugar particular que ele ocupa no espaço da produção científica.
O conceito de discurso permite superar os dualismos, persistentes na
teoria social, que separam o ideal do real, o simbólico do material ou da
produção do significado; segundo esse enfoque, o discurso inclui todos
esses aspectos (Escobar, 1997).
O pós-estruturalismo inclui propostas do interacionismo, da
antropologia fenomenológica ou da etnometodologia, com a busca do

92
conhecimento ordinário, do mundo intersubjetivo e da vida cotidiana
como base da ação social e da sociologia do conhecimento, que se ocupa
principalmente da análise da construção da realidade. Nessa perspectiva,
já não se trata de tentar explicar os fenômenos sociais em termos de uma
verdade ou realidade profunda, nem o mundo social com base em um
princípio global (uma estrutura inferior ou estruturas psíquicas ocultas).
Os fenômenos devem ser explicados considerando-se a multiplicidade
de circunstâncias que os produzem e são produto da coexistência de
muitas maneiras diferentes de viver e dar conta da existência.
Como as demais aproximações teóricas, essas ideias repercutiram
também na antropologia da alimentação e no modo de abordar 'o social'
no estudo do fato alimentar. Tematicamente, continuam as aproximações
críticas sobre as práticas alimentares, as que reconhecem uma natureza
complexa, delimitada social, econômica e politicamente, com interesses
que competem entre si e, de alguma maneira, conduzem ao conflito e à
transformação (Atkins & Bowler, 2001). Confere-se maior relevância aos
níveis discursivos dos atores sociais, estudando-se os modelos de linguagem
e as práticas na produção do significado sobre a comida. Outorga-se um
interesse notável aos diferentes lugares de atividade onde se experimenta
e se expressa o fato alimentar (cultura popular, textos, relatos individuais).
Acentua-se o estudo do corpo como lugar de significado crucial para a
compreensão dos processos de identidade e saúde. Favorece-se a análise
da identidade e da subjetividade por meio dos estudos alimentares.
E, finalmente, ressalta-se a fragmentação dos modelos de consumo, e
não sua coerência em termos econômicos e culturais, e as contradições
entre a globalização e a diversidade de mercados alimentares às quais
estão submetidos os comedores contemporâneos.
Os aspectos mais relevantes das orientações anteriores estão
relacionados, por um lado, com o questionamento do objetivismo como
a única forma de conheeimento científico que permite dar conta da
realidade e, por outro, com o reconhecimento de que, além das eventuais
pressões materiais, as populações são formadas por atores sociais que
participam da vida social e cuja ação incide no ambiente, havendo
margens de escolha para a tomada de decisões, ainda que em situações-
limite. Em uma perspectiva pós-estruturalista, o estudo da alimentação
trata, definitivamente, de tentar vincular a análise sistêmica com o
individual e de estabelecer uma conexão entre o nível macrossocial da
estrutura, as pautas e as instituições socioculturais e o nível dos
comportamentos e experiências pessoais. Consequentemente, as formas
sociais devem ser vistas como o resultado acumulativo das opções

93
apresentadas e decisões tomadas pelos indivíduos no contexto de sua
interação. Trata-se, ao mesmo tempo, de entender que no que diz respeito
às condutas individuais não se pode falar em absoluta indeterminação
ou em estímulos es trit amente psicológicos; pois tais condutas estão
condicionadas por fatores culturais e institucionais. A seguir, vamos nos
deter sobre as propostas interacionista, construcionista ou feminista,
principalmente nos trabalhos de Corbeau, Lupton, Hepworth, Germov e
Williams, bons exemplos do conteúdo de debate estrutura versus agência.
O trabalho de Beadsworth e Keil (1992) anteriormente citado e
sua ideia de "menu pluralism" podem ser relacionados, em certo sentido,
com o conceito de pós-modernidade que nos últimos tempos foi ganhando
terreno no campo da antropologia. Tal como foi definido nas ciências
sociais, tal conceito faz referência a uma fase de desenvolvimento do
capitalismo em que a situação dos indivíduos na ordem social e a formação
da identidade pessoal são vistas cada vez menos como uma questão de
posição de classe ou dos papéis desempenhados. Em lugar disso, coloca
ênfase crescente nos padrões de consumo como meios para se demonstrar
a posição individual e expressar personalidade e individualidade (Bocock,
1993). Assim, em um cenário de pluralismo de menus, as escolhas podem
ser feitas por cada pessoa no contexto de um a variedade crescente de
menus principais, em que a oferta se converte ainda mais em um
mecanismo crucial para estabelecer um sentido da identidade pessoal e
expressar a distinção pessoal. Entretanto, numerosos trabalhos no âmbito
da antropologia do consumo indicam que o consumo de um produto e,
em geral, as escolhas alimentares devem ser considerados não como
decisões individuais, mas como resultado de interações sociais (Warde &
Martens, 1998). Lewin, já nos anos 50 (1959), mostrava que o consumo
de leite pelo cidadão americano não dependia tanto de sua escolha
individual qu anto das decisões qu e sua esposa tomava em relação às
compras fa miliares. Propunha, para a antropologia do consumo, a noção
de "portão econômico" (gate keeper), cuja função é abrir ou fechar a
série de canais pelos quais passam os alimentos até chegar à mesa familiar,
canais qu e atravessam toda a organização social alimentar e atuam, por
sua vez, dentro de lógicas tecnoeconômicas e sociológicas determinadas
e estão submetidas às representações sociais.
A aproximação interacionista de Corbeau (1997a) distingue entre
as noções de "socialidade" e "sociabilidade". A primeira dá conta do
conjunto de determinantes sociais e culturais que pesam sobre um ator
social, no caso do comedor. A socialidade é o impacto cristalizado sobre
os indivíduos dos modelos culturais majoritários e de uma dada visão de

94
mundo. Essa visão define, no seio de uma cultura, o que deve ser adquirido
por seus membros em função do lugar que eles ocupam em um dado
conjunto, da situação concreta de hierarquias socioeconômicas, das
relações sociais por sexos, do acesso específico ao conhecimento e dos
modos de saber-fazer. Em termos metafóricos, a socialidade é uma espécie
de tatuagem ou marcador que os indivíduos não podem desfazer (a
"realidade objetiva exteriorizada", nos termos de Berger e Luckman
(1986). Por sua vez, a sociabilidade redirige o modo como os indivíduos
em interação interpretam em um dado contexto as regras impostas pela
socialidade. Em outras palavras, corresponde à originalidade da
atualização concreta de seus determinismos sociais. A sociabilidade se
afirma como um processo interativo no qual os indivíduos escolhem as
formas de comunicação e de intercâmbio que os unem entre si. Assim,
podem mostrar uma vontade de reprodução social aceitando ser um
simples objeto ou produto da socialidade, ou desenvolver dinâmicas
criativas através de inter-relações provocadas. Segundo Corbeau, a partir
das "discrepâncias" que se produzem entre socialidade e sociabilidade,
as práticas sociais evoluem e se transformam. Consequentemente, para
ele, os comedores estão parcialmente determinados por suas origens
sociais, mas dispõem simultaneamente de um espaço de liberdade mais
ou menos amplo que lhes permite adaptar, modificar e fazer evoluir as
formas de suas práticas alimentares.
Nos termos dessa concepção, as escolhas alimentares são lidas como:
o encontro de um comedor socialmente identificado - que pode ser
descrito pelas 'categorias' sociológicas clássicas de idade, gênero, classe
social, nível de estudos, estrutura familiar ou origem; uma 'situação' ou
contexto social identificado - tipo de preparação culinária, festiva ou
ordinária, doméstica ou extradoméstica, pública ou privada; um 'alimento'
particular aos quais se agregam representações no interior de um universo
sociocultural. Esses três elementos constituem os vértices do "triângulo
do comensal", o qual varia, por sua vez, no espaço social e no tempo
(Corbeau , 1997b: 155). As atitudes e os comportamentos mudam
socialmente segundo os indivíduos, mas também segundo as situações
nas quais esses se encontram envolvidos, segundo a natureza do alimento,
seu aspecto ou o imaginário a que ele se associe. Paralelamente, o
triângulo varia no tempo, pois cada um desses elementos possui, para
o comedor, uma história individual ou coletiva, criadora de simbolismo
para o produto (momento de surgimento em nossas sociedades, raridade,
canal que segue até chegar ao comedor), que delimita a mutação das
formas e rituais alimentares pela situação de consumo. Corbeau considera

95
o comedor moderno como um "indivíduo plural'', capaz de atualizar
comportamentos diferentes em sua lógica e sua significação, dependendo
dos contextos sociais e do tipo de alimento em questão. Essa perspectiva
coincide em boa medida com a antropologia developmentalista, enquanto
se definem como condições prévias à conceituação das práticas uma
análise histórica das representações sociais que são agregadas aos
produtos, um estudo das transformações das formas de sociabilidade e
sua codificação em rituais profanos e, finalmente, uma localização da
influência dos determinantes sociológicos clássicos. A partir desse trabalho
prévio, já se pode tentar dar conta das lógicas dos atores e das interações.
Nos últimos anos, os estudos socioculturais sobre alimentação
centrados na análise das interações interpessoais, o embodiment 6 e a
subjetividade foram notavelmente incrementados, coincidindo com
a maior influência dos enfoques interpretativistas, com a segunda onda
de estudos feministas e com o trabalho dos discípulos de Foucault. Nesse
contexto, surge o que foi denominado "construcionismo social", um
enfoque teórico e metodológico que recorre a boa parte das ideias antes
descritas e insiste nos conceitos de realidade e experiências vividas e no
papel que desempenham as relações de poder nos níveis macro e
microssociológico. A perspectiva construcionista é adotada principalmente
por Lupton (1996, 1998) em seus trabalhos sobre medicina, alimentação
e cultura. Em Food, the Body and the Self (1996), Lupton acolhe a análise
dos discursos, entendidos como sistemas normativos de linguagem e
práticas em tomo dos alimentos, da comida e da personificação, úteis
para se compreender a produção e a reprodução de significado. O autor
destaca como os discursos alimentares têm sido vinculados historicamente
a lugares e situações diversas, abrangendo desde a cultura popular, os
textos de saúde pública e medicina ou os relatos individuais sobre as
preferências e práticas alimentares. Segundo essa antropóloga, por meio
desses discursos, e em conjunção com as próprias experiências pessoais,
os indivíduos podem chegar a compreender a si mesmos, seus corpos e
sua relação com os alimentos e a comida.
Tato , paladar , olfato, audição e visão são os sentidos que
constituem as entradas para o âmbito da cultura. Os alimentos, de forma
·evidente, têm uma presença principalmente física e os seres humanos
interagem com eles por intermédio de seus sentidos. A priori , não
6
O conceito de embodiment (Csordas, 1994) está vincu lado ao paradigma da
fenomenologia e foi trad uzido como 'incorporação'. Nesse contexto, devemos
entender determinadas manifestações alimentares como uma forma de experiência
e existência.

96
necessitamos nem da linguagem nem do discurso para experimentar a
comida. Entretanto, a linguagem e o discurso estão integrados nos
significados que construímos em torno da comida - como interpretamos
e levamos aos outros nossas experiências sensitivas, preparando,
manipulando e comendo os alimentos - e também delimitam nossas
respostas sensitivas. Nessa perspectiva, potencializa-se a noção de
fragmentação e contingência em torno da pessoa, mais que da unidade,
adotando-se o termo "subjetividade" para descrever o conjunto de modos
como os seres humanos tentam compreender-se a si mesmos com relação
aos demais e viver suas vidas. Para Lupton, o termo 'subjetividade' é
menos rígido que 'identidade', o qual está associado essencialmente às
noções de gênero, raça, etnia e nacionalidade. Inclui a ideia de 'si mesmo'
como alvo variável e contextual, ainda que dentro de certos limites
impostos pela cultura por intermédio das instituições sociais, das relações
de poder e dos discursos hegemônicos. Por sua vez, a subjetividade implica
um interesse pelos pensamentos conscientes e inconscientes, pelas
emoções pessoais e pela interação desses com a constituição do sujeito
por meio da linguagem e dos discursos, sublinhando que nós, os humanos,
somos seres reflexivos.
L-upton (1996) sustenta que a perspectiva pós-estruturalista se
interessa pelos processos através dos quais são gerados os conhecimentos
e as "verdades", analisando os fins a que servem sem por isso cair na
teoria da conspiração do Estado, segundo a qual a maioria da população
estaria submetida à opressão das instituições estatais que atuariam para
favorecer o status privilegiado das elites. Ainda que, nessa perspectiva,
considere importante ter consciência das relações de poder inerentes à
produção e ao consumo de alimentos, o autor não vê o poder como uma
força exclusivamente repressiva, mas como uma propriedade recorrente
em todas as dimensões da vida social e que não pode ser removida.
O poder, segundo Foucault (1984), está quase sempre presente, induzindo
o conhecimento e a compreensão do mundo. Entretanto, as pessoas não
estão pressionadas simplesmente pelas relações de poder, nem esse está
à margem da subjetividade. Aceitar isso não significa negar que existam
grupos mais privilegiados que outros, social e economicamente, mas tentar
compreender que os indivíduos e os grupos sociais não são nem totalmente
poderosos nem totalmente despossuídos: sua relação com o poder
depende do contexto histórico e sociocultural no qual estão posicionados
como sujeitos.
Para Lupton, é muito importante, quando se discutem as dimensões
socioculturais dos alimentos e da comida, evitar posicionamentos

97
essencialistas sobre as relações de poder. A atenção deve estar
concentrada na produção discursiva de significados, enfatizando a
pluralidade de tais significados, e não na obtenção de uma verdade
"única" da experiência. Ao longo de toda sua obra, e valendo-se da
dimensão histórica para situar a evolução e as flutuações dos significados
e as práticas geradas em torno da comida e das experiências pessoais,
procura mostrar como as mulheres que tentam limitar cotidianamente
sua ingestão alimentar não devem ser vistas como vítimas passivas forçadas
ao jejum por uma sociedade patriarcal. Pelo contrário, tais mulheres
devem ser vistas como pessoas que usam o controle sobre a comida como
um meio para construir sua subjetividade e controlar seus corpos,
podendo encontrar prazer e segurança em si mesmas através dessa
experiência, como também privação ou ansiedade. Desse modo, a noção
de corpo humano como um projeto social e individual, como uma
entidade em processo de construção (Shilling, 1993) , interessa à
antropologia da alimentação na medida em que pode lançar luzes sobre
o modo como as ideias em torno do que se entende por "corpo correto",
com relação a tamanho, forma, disposição física e psíquica, podem afetar
as escolhas alimentares. Nesse sentido, os corpos são entendidos como
entidades não estáticas, sujeitas a moldagens conscientes. Para a autora,
representam o lugar onde os discursos e os fenômenos físicos podem ser
adotados como parte do projeto dos indivíduos de construir e expressar
sua subjetividade: tais práticas são inscritas no corpo, ou o escrevem, e
esse corpo é lido e interpretado pelos outros.
Essas mesmas ideias são compartilhadas por Hepworth (1999) em
seu trabalho sobre a construção social da anorexia nervosa, em que a
considera como um fenômeno de interesse para a análise sociocultural
na medida em que o corpo anoréxico ilustra claramente os efeitos
extremos dos discursos sobre as mulheres, a feminilidade e a magreza nas
sociedades ocidentais. A autora entende o conhecimento médico, junto
a outras formas de conhecimento científico, como uma série de construções
relativas dependentes de determinantes sócio-históricos e constantemente
renegociadas. Tais construções condicionam as diferentes maneiras de
perceber e representar o corpo, a comida e a enfermidade. A análise
de Hepworth, centrada no sécu lo XIX, sobre o auge da medicina
científica e o estabelecimento das relações particulares entre mulheres e
psiquiatria, assim como sobre o contexto histórico no qual é produzido o
incremento dessas condutas alimentares e sua psicopatologização,
permite-lhe se aprofundar na observação do modo como determinadas
ideias sociopolíticas, incluindo aquelas que emanam das teorias sobre

98
mulheres, sociedade e moralidade, junto a uma demanda de uma
"verdade" científica, vão se incorporando em sistemas organizados de
pensamento e sendo empregadas pelo modelo médico para caracterizar
e intervir sobre esse fenômeno. Hepworth desconstrói o conceito de
anorexia nervosa, baseando-se na crítica dos discursos médicos, feministas
e socioculturais que propuseram explicar a natureza desse comportamento
alimentar. Entende que a maior parte dos discursos atuais, que definem
a anorexia nervosa como doença, servem para constituir, explicar e justificar
as práticas atuais de cuidados da saúde e sucessivamente reproduzir as
aproximações existentes sobre o fenômeno na prática clínica.
O trabalho de Hepworth é influenciado pelas teorias que emergem
na década de 80 do último século sobre o corpo e as práticas sociais. Um
corpo que, como dissemos, deixa de ser visto como algo simplesmente
influenciado e performado por acontecimentos sociais externos para ser
observado como objeto de uma inscrição cultural. O modo como os corpos
são desdobrados na vida social, seus contornos moldados e dispostos uns
junto com os outros, denota discursos culturais sobre certas maneiras de
viver e expressar significados específicos. Hepworth aborda as teorias sobre
o corpo em que o significado da dieta, a escolha de alimentos e a imagem
corporal adquirem interesse relevante, especialmente relendo os primeiros
trabalhos feministas e interessando-se pelas diversas teorias que
posteriormente incorporaram a análise histórica e cultural na compreensão
das escolhas alimentares e tentando também observar o papel que a ciência
nutricional desempenhou nessa esfera.
Hepworth parte das análises feministas de Chernin e Bordo, que
formulam teorias em torno das relações entre mulheres, comida e
subjetividade, nelas situando a emergência e o incremento dos transtornos
do comportamento alimentar. Nessas teorias, são articuladas as ideias
de Foucault (1984) sobre a produção cultural da feminilidade e sobre o
fato de que a definição e as práticas feministas são construídas por meio
do olhar e da linguagem dos homens sob o que ele denomina "o olhar
dos grupos dominantes". Para esses autores, o corpo magro e a dieta são
concebidos como uma forma de alcançar o poder na sociedade patriarcal
e a repulsa pelo quadril, barriga e peito que sentem as mulheres com
diagnóstico de anorexia nervosa expressa uma forma de rebelião contra
a feminilidade maternal e doméstica e, em última instância, a falta de
poder das mães em sociedades patriarcais. Hepworth procura superar as
primeiras aproximações do feminismo, por achar que essas revelam uma
tensão evidente entre o posicionamento feminista das autoras diante da
prática psiquiátrica, que consideram opressiva por sua forma de abordar

99
um transtorno cujas sofredoras são consideradas desviantes e anormais
e, por outro lado, a continuidade no uso da terminologia e abordagem
psiquiátrica e na individualização dos aspectos sociais. Segundo essa
autora, trabalhos como os de Bordo produzem interpretações relevantes
sobre por que e como a condição da anorexia nervosa se desenvolve
entre as mulheres jovens das sociedades ocidentais baseadas em certas
práticas sociais e culturais desses contextos. Ela, entretanto, prefere optar
pelas teorias feministas que dão maior relevância à negociação subjetiva
das mulheres em sua relação com a própria imagem corporal e a própria
identidade.
Junto às teorias sobre o corpo, os significados criados em torno da
comida são, segundo Hepworth, centrais na compreensão da anorexia
nervosa. O mesmo ocorre com os escritos produzidos em outras disciplinas
como a nutrição, a sociologia ou a história, que estão contribuindo para
a diversificação das teorias sobre os significados sociais das práticas
ajjmentares. A autora se detém no trabalho do sociólogo Turner (1982a,
1982b), que afirma que a dieta moderna está vinculada a um movimento
mais amplo de regulação da conduta que emerge durante os séculos
XVII e XVIII e que, ao fim do século XIX, se concretiza em um
movimento de saúde pública que ergue um "monumento" à racionalização
das práticas alimentares. Nesse sentido, a dieta/regime representa uma
forma de prática disciplinar de governo do corpo, particularmente diante
dos modelos nutricionistas, vinculável à racionalização da vida cotidiana.
Todas as condutas são categorizadas e teorizadas em relação às ideias
dominantes sobre saúde e enfermidade. Também recupera as abordagens
de Coveney (1996, 1998) sobre o governo e a ética da nutrição. Hepworth
destaca o papel que a saúde pública desempenha na regulação
das populações de diferentes maneiras, especialmente instruindo as
populações nas práticas alimentares saudáveis. A ampla tradição de prover
informação e conselhos sobre a composição da comida "saudável", a
regulação do peso e a prevenção de doenças reproduz a padronização
das condutas individuais. As condutas são reproduzidas, em parte,
mediante o discurso da dieta e a popularização da noção de vigilância
individual do peso corporal. A proposta de Coveney é ampliar a
conceituação da nutrição, de forma que inclua os aspectos gastronômicos
e socioculturais da alimentação, mais do que se concentrar na composição
metabólica e calórica dos alimentos.
Hepworth analisa o processo implicado na construção social dos
significados sobre a comida, e especialmente nos construtos dieta e
alimentação, e como esses informam discursos sobre a anorexia nervosa.

100
Para ela, nenhuma das análises que examinam criticamente os efeitos do
discurso científico dominante se questiona sobre a natureza do que está
ausente nas práticas alimentares contemporâneas. Por exemplo, os sabores
dos alimentos e os prazeres de comer não se mencionam apenas na ciência
nutricional ou ciência médica e nos discursos psiquiátricos sobre a
anorexia nervosa. Os discursos dos profissionais da saúde sobre
a alimentação reproduzem e mantêm um estreito interesse em torno da
comida, expresso em relação aos índices científicos do conteúdo
nutricional dos alimentos e da regulação de peso. Esse interesse é central
para o discurso médico no momento de definir a comida normal e a não
normal e de incluir o significado das comidas dentro de uma estrutura
dominante de patologia. De acordo com a autora, à medida que o uso
dos sabores e os prazeres da comida decaem, a construção da dieta emerge
e se converte em um espaço para a negociação do significado nos discursos
contemporâneos sobre alimentação. A dieta se converte em um discurso
dominante, particularmente em sua relação com a obtenção de saúde e
como método para se alcançar um corpo delgado e socialmente desejável.
Ainda que tenham teorizado sobre a natureza discursiva da imagem
da magreza no contexto das sociedades ocidentais e situado a comida
em lugar central na definição da feminilidade, os primeiros enfoques
feministas não fixaram, entretanto, a articulação da multiplicidade de
significados da imagem corporal e o modo como esses tornam possíveis
várias posições subjetivas para as mulheres ." A multiplicidade de
significados reconhece o papel da agência humana e abandona o
posicionamento das mulheres corno simples reprodutoras de imagens do
corpo socialmente construídas. Foucault conceituou agência como
estrutura situada, que emerge através da racionalidade histórica,
entendendo, consequentemente, que os indivíduos têm capacidade de
criar uma distância reflexiva com relação às imagens socioculturais. Essa
capacidade permite a reinterpretação, reelaboração ou transformação
das práticas do ser que, sendo contínuas, ao mesmo tempo reproduzem,
mantêm ou transformam os discursos dominantes sobre o corpo.
Ultimamente, são cada vez mais numerosos os trabalhos que
procuram definir o porquê dos comportamentos alimentares com base
na combinação dos enfoques estruturalista e pós-estruturalista,
entendendo que nenhum deles isoladamente pode explicar de forma
global as razões de certas ideias e práticas cada vez mais generalizadas
em nosso contexto social. É o caso paradigmático das dietas ou do jejum
autoimposto feitos por tantas mulheres nas sociedades industrializadas.
Germov e Williams (1999) atribuem a origem e incremento dessas

101
práticas à prevalência de um ideal corporal baseado na magreza
feminina, tal e como destacaram anteriormente pesquisadores
procedentes de ambas as perspectivas teóricas, ainda que tanto uns
quanto outros tenham deixado de lado aspectos relevantes para a
explicação. Isso os leva a abordar a utilidade do debate estrutura versus
agência entendido não como uma confrontação de interesses teóricos
e metodológicos díspares , mas como um passo prévio para sua
complementaridade. Trata-se de ver o que disse cada um deles sobre o
ideal de magreza feminina, que tipo de respostas elaboraram e se tais
respostas evoluíram a partir de sua contrastação e fusão.
Certamente, a pressão para conformar o ideal de beleza feminino,
tal como defendem Wolf (1991) ou Bordo (1993) em uma perspectiva
feminista, tem uma base claramente estrutural perpetuada por diferentes
instituições sociais e interesses materiais de diversos tipos, tais como as
indústrias da moda, os meios de comunicação, a cosmética ou a
alimentação. O setor da saúde, por sua vez, também desempenhou um
papel em tudo isso com a difusão de mensagens 'antigordura', suas
constantes propostas dietéticas e, sobretudo, sua equiparação da magreza
com a saúde. Tais fatores estruturais têm antecedentes no desenvolvimento
histórico da sociedade patriarcal, particularmente representados por
formas diversas de regulação social do corpo feminino, e presumiram um
impacto importante nas crenças culturais, contribuindo para construir e
promover um ideal muito particular de beleza feminina que afeta
diretamente a socialização dos gêneros. Na medida em que a magreza
foi convertida em sinônimo de saúde e conformidade social, o corpo
feminino constitui-se progressivamente em um alvo explorável por todos
esses interesses materiais e sanitários: exercer o autocontrole sobre o
próprio corpo em benefício da saúde ou em benefício dos valores
amparados pelo individualismo e pela autorresponsabilidade.
Em contraste com essa análise, que assinala as forças 'externas'
que pressionam as mulheres a corresponderem a esse ideal de magreza,
as teorias pós-estruturalistas se interessam pelo papel que as mulheres
desempenham na reprodução desse ideal ou, também, em sua resistência
e recusa. Nessa perspectiva, já vimos os trabalhos de Lupton ou de
Hepworth, por exemplo, que não negam a importância dos fatores
históricos e culturais já citados e, mais que assumi-los como determinantes
absolutos, insistem na necessidade de abordar a subjetividade feminina e
observar o papel que esta desempenha nas complexas e sutis facetas da
construção social dos corpos femininos. Manifestou-se em diversos
trabalhos que há mulheres que usam o controle corporal como evidência

102
de um controle mais estreito sobre outros aspectos de suas vidas (Bartky,
1990; Nichter & Vudckovic, 1994; Pitts, 2000; Nichter, 2000). Assim, Bartky
(1990) sugere que o controle mais rigoroso sobre o corpo, expresso em
um corpo magro, converteu-se em um símbolo essencial da feminilidade
moderna e em uma nova forma de controle sobre os corpos femininos. A
regulação social é, entretanto, autoagressiva, administrada pelas mulheres
a si mesmas com a dieta, o jejum, o exercício físico excessivo e, em seu
extremo, a cirurgia plástica. Existe, em tudo isso, um componente
autoimposto para a própria aceitação: o controle social dos corpos
femininos não foi interiorizado da mesma forma pelas diferentes mulheres,
o que impede considerar as mulheres simplesmente como absorvedoras
passivas das estruturas patriarcais coercitivas e dos estereótipos culturais.
O ideal de magreza feminina não é assumido por todas as mulheres
como parte de sua identidade. Nem todas o perpetuam, exigindo magreza
do resto das mulheres. Algumas o recusam frontalmente. Por isso Germov
e Williams (1999) defendem a conveniência de se falar em termos de
continuum no concernente à aceitação desse ideal e a seus efeitos sobre
os comportamentos alimentares. Em um extremo, encontram-se mulheres
que assumem completamente o ideal de magreza (thin ideal conformers),
fazendo dieta de forma permanente ou do tipo ioiô, o qual favorece as
oscilações no peso. Esse grupo restringe as comidas conscientemente;
para seus membros pode sobrar-lhes peso, ainda que seja mais provável
que tendam a ser mais magras que as mulheres que se encontram do
outro lado do espectro. De fato , essas são as denominadas aceitadoras
da numeração (size acceptors). Não fazem dieta provavelmente porque
fracassaram previamente em alcançar o peso ideal e optaram por comer
sem cuidados ou porque recusaram conscientemente o ideal de magreza
e aceitaram a diversidade corporal. Como grupo, tendem a ter um peso
superior ao das mulheres que sempre fazem dieta . No meio desse
continuum , estão as que mantêm o peso (maintainers weight) , nunca
fizeram dieta para se manterem magras e comem sem restrições. São
mulheres que, normalmente, não se debatem entre a aceitação do ideal
de magreza ou sua recusa. É possível que seu peso tenda a aumentar, mas
parecem mover-se nas margens de uma posição neutra. As respostas
femininas ao ideal de magreza são variadas e englobam o papel ativo que
as mulheres podem desempenhar na relação com a construção do corpo.
Essas circunstâncias nos levam novamente à reflexão. É certo que
a crítica estruturalista feminista não estabeleceu como prioridade dar
respostas sobre o porquê de as mulheres serem afetadas de maneiras
diferentes por um mesmo ideal e idênticas pressões. Também não se propôs

103
a compreender por que um número cada vez maior de homens também
adota comportamentos e ideais semelhantes. Entretanto, o enfoque pós-
estruturalista, levando em consideração essa subjetividade e as condições
particulares que afetam a interpretação de tal ideal e seus efeitos na
dieta, também não pode esquecer os motivos históricos e culturais que
favorecem a generalização desses valores e práticas alimentares de forma
mais incisiva entre as mulheres e o fato de que isso tem a ver com a
posição estruturalmente desigual que cada gênero ocupa em tais
contextos. Diante da disparidade de enfoques, trata-se, segundo Germov
e Williams (1999), de encontrar o ponto de equilíbrio que permita levar
em conta ambos os tipos de fatores e assim poder explicar o 'ciclo de
reprodução social e cultural ' do ideal de magreza. Tal como
argumentaram, nas sociedades ocidentais, diante das pressões para aceitar
o ideal de magreza, as mulheres respondem pelo menos de duas formas
básicas: ignorando ou recusando ativamente esse ideal, o que as coloca
fora do ciclo; respondendo a esse ideal fazendo dieta, e dando
prosseguimento à restrição das práticas alimentares e a uma alimentação
alterada em razão do gênero. A lista dos fatores estruturais, vinculados às
instituições patriarcais e a interesses materiais - moda, beleza, cosméticos,
ginástica, indústria dietética, papel e socialização de gênero - , e pós-
estruturais, vinculados à subjetividade e à agência feminina - interiorização
do ideal de magreza, vigilância corporal, expressão do controle do corpo -,
resume os modos como são geradas as pressões para aceitar o ideal da
magreza e a maneira como este é produzido e reproduzido. A conduta
de "fazer dieta" reforça tanto os interesses estruturais - por exemplo, os
da indústria dietética - como os pós-estruturais - tais como a
autovigilância -, e por sua vez as pressões para aceitar o ideal de beleza
e a realização de dietas, dando assim continuidade ao ciclo.
Para Germov e Williams, a incorporação do conceito de agência
na compreensão da produção desse ideal também supõe a possibilidade
de sua recusa por parte das mulheres em favor de um ideal alternativo
que consiste na aceitação da numeração. Existem mulheres que,
simplesmente, podem ignorar o ideal entendendo-o como irrelevante,
enquanto que outras podem ter tentado alcançar a magreza em épocas
anteriores e optado, então, por recusá-lo energicamente. Essas mulheres
abandonaram o ciclo do quadro anterior e, conseq uentemente,
questionaram a hegemonia do ideal de magreza. De forma paulatina,
um número considerável de pessoas estaria escolhendo essa opção,
constituindo um movimento social emergente denominado "antirregime",
"aceitação da numeração " ou "direitos dos gordos" que questiona o

104
discurso dominante baseado na magreza e proporcionando uma forma
alternativa de aceitação social que advoga pela diversidade corporal.
Segundo Germov e Williams, a promoção da aceitação das formas
corporais oferece um mecanismo para o desmantelamento do ideal
feminino da magreza. Ainda que certos trabalhos prévios tenham sugerido
a esses autores que, em inúmeras ocasiões, tal aceitação resultou de uma
história de fracassos na realização de dietas para perder peso, em outras
circunstâncias ela adveio da conscientização quanto ao preconceito que
leva ao processo de estar permanentemente em dieta e à obsessão com o
próprio corpo. Alguns profissionais da saúde estão recomendando essa
alternativa como parte de um novo paradigma de promoção da saúde,
reconhecendo o êxito limitado das dietas para perder peso. Tal paradigma
está baseado no empenho de tornar possível um estilo de vida saudável
promovendo a satisfação e a diversidade corporais, a comida saudável, o
exercício moderado sem que seja preciso recorrer ao jejum, à restrição
ou às "dietas ioiô" a fim de obter um corpo idealizado na forma e no
tamanho. Em qualquer caso, os autores indicam que o desenvolvimento
de uma identidade baseada na aceitação da numeração inspira a análise
do modo como algumas mulheres administram a rebelião contra tal ideal
e sugerem abrir uma linha de pesquisa nessa direção.
Outra forma de enfocar os estudos sobre alimentação em uma
perspectiva construcionista consiste em insistir nos elementos
problemáticos que hoje estão vinculados à comida , analisando a
alimentação - ou melhor, alguns de seus aspectos - como 'problemas
sociais'. Esses problemas seriam aquelas questões que, dentro de um
determinado campo mais amplo de conflitos, são privilegiadas,
independentemente da negatividade que possa caracterizá-las. Um efeito
complementar dessa abordagem é o fato de que o problema social ocupa
um lugar, canaliza as energias e as reações das pessoas diante de temas
diversos da vida cotidiana, desviando a atenção de problemas mais
estruturais que poderiam pôr em xeque o atual status quo (Romaní et ai.,
1988). Em relação à alimentação, as situações conceituadas como
problemas sociais estão relacionadas a diferentes aspectos. Assim, por
exemplo, a quantidade de alimentos é problemática em casos de fome e
escassez. O excesso no consumo de alimentos ou o jejum autoimposto é
um problema nos casos de obesidade e de desordens alimentares.
A qualidade da comida é também problemática, por causa das qualidades
biológicas relacionadas à segurança alimentar e ao impacto ecológico".
Os problemas são gerados, também, em função das qualidades sociais
vinculadas aos significados dos alimentos (Maurer & Saubal, 1995).

105
Em uma ótica construcionista, trata-se de avaliar as circunstâncias
em que determinada situação é conceituada como problemática,
entendendo-se que nem todas as questões conflitivas relacionadas com
o consumo de alimentos são reconhecidas ou definidas como problemas.
Nesse sentido, os problemas não são nem universais nem limitados. Trata-
se de observar o processo de identificação pelo qual as pessoas percebem
certos fenômenos como problemas, mais que os fatos em si mesmos,
analisando-os como definições coletivas e dependentes de avaliações
subjetivas. Nesse sentido, o construcionismo social é uma resposta à
aproximação objetivista que tende a ver todas as condições sociais como
objetivas e observáveis e que, como os objetos estudados pelas ciências
físicas, tais condições podem ser modificadas pela ciência aplicada.
Estudar os problemas sociais como processos permite desenvolver
uma teoria antropológica sobre como as condições são reconhecidas como
problemáticas e como são associadas a outras condições estruturais e
culturais. No âmbito da aproximação construcionista, entretanto, há
diferentes enfoques. Os mais radicais sustentam que apenas o processo
em si mesmo deve ser objeto de descrição (Ibarra & Kitsuse, 1993) e que
a realidade não é mais que um conjunto de representações inventadas -
ou "construídas" - nos âmbitos científico, social e individual, pelas pessoas
e pelos cientistas sociais e políticos. Nos termos desse enfoque, os aspectos
objetivos da realidade são apenas imaginados e consequência dos modos
de ver a realidade. Diante dessas ideias, algumas das críticas feitas ao
construcionismo social sustentam que tal aproximação, assim como outras
influenciadas pelo movimento pós-estruturalista, podem levar ao
relativismo mais absoluto e ao niilismo, especialmente se se aferrarem à
sua conclusão lógica segundo a qual todos os conhecimentos são produtos
sociais e, portanto, as análises construcionistas também devem ser
questionadas: como é possível justificar tais ideias se esse enfoque está
contribuindo para questionar os discursos que moldam certas formas de
ver o mundo? Por que os discursos do construcionismo devem ser mais
válidos que outros?
Esse tipo de objeção perseguiu a corrente construcionista desde
seu nascimento. Se o trabalho do antropólogo é, em muitos casos,
empírico, isso não significa que tenha que ser empiricista. Em resposta a
isso, pode-se argumentar que ao menos, tal como destaca Lupton (1998),
a proposta intelectual dos que defendem o construcionismo social
iluminou essas grandes dificuldades, especialmente a combinação dos
discursos em nível macro e microcontextual. Consequentemente, suas
próprias análises não devem ser vistas como tentativas de definir a verdade,

106
mas como versões alternativas de situações e acontecimentos que podem
e devem ser situados em relação a outras versões e perspectivas, para
comparação. Trata-se de valorizar as diferentes explicações dadas
para um mesmo problema, não por sua verossimilhança, mas por sua
representação. Todos os fatos ' capturados' pelo etnógrafo são
necessariamente selecionados e interpretados a partir do momento em
que, de acordo com Scheper-Hughes (1992: 34), decidimos contar uma
coisa e ignorar outra ou participar de um ritual e não de outro, de forma
que " a compreensão antropológica é necessariamente parcial e
hermenêutica, sempre". Nessa etapa do pensamento antropológico, a
reflexão se faz, pois, obrigatória. A apelação ao relativismo não deve ser
automática. Há que se aceitar que a dor, a morte, a fome ou a doença
existem como realidades biológicas e objetivas, ainda que tais fenômenos
e seus significados sejam vividos e expressos de forma distinta, conforme
as pessoas e os contextos sociais neles implicados.

Este percurso pelas principais correntes teóricas expressa de forma


resumida o modo como o estudo da alimentação contribuiu para o debate
e a reflexão no âmbito da antropologia social. Não nos enganamos ao
concluir que, no terreno dos comportamentos alimentares, de sua evolução
e suas recorrências, dos gostos e das aversões, o fator sociocultural
desempenha um papel decisivo. Entre os seres humanos, inclusive o
fenômeno natural da fome, um fenômeno biológico por excelência, inclui
uma parte, ainda que mínima, de projeção social. A aproximação
antropológica convém, pois, ao estudo do comer e do beber. Por outro
lado, tendo visto nessas páginas o alcance de tal afirmação, não é de se
estranhar que a abordagem do comportamento alimentar tenha
acrescentado à antropologia social a necessidade tanto de uma focalização
disciplinar como de uma abertura para outras subdisciplinas, do mesmo
modo como exigiu o diálogo com outras ciências afins a tal objeto de
estudo.

107
2
A Alimentação Humana:
um fenômeno biocultural

Condicionamentos Biológicos
da Alimentação Humana
Independentemente da importância que se dá à cultura como
determinante da conduta alimentar, o certo é que as consequências
derivadas de ingerir determinados alimentos são fundamentalmente
biológicas. Os alimentos ingeridos proporcionam a energia e os nutrientes
de que o organismo humano, como qualquer outro ser vivo, necessita.
Os seres humanos, no entanto, se diferenciam fisiológica e
anatomicamente de outros animais. O primata ancestral do homem, ao
converter-se em 'onívoro', pode enfrentar uma gama quase ilimitada de
situações ecológicas. Graças a isso, os humanos podem inserir no seu
regime uma grande variedade de alimentos. Sua estrutura dentária, por
exemplo, inclui os dentes incisivos cortantes dos roedores, os molares e
pré-molares trituradores dos herbívoros e os caninos pontiagudos dos
carnívoros. Além disso, o seu sistema digestivo é composto por um
intestino extremamente comprido, capaz de digerir legumes verdes; por
sucos gástricos suficientemente poderosos capazes de transformar os
amidos complexos em açúcar e produzir a pepsina, o que permite
metabolizar as proteínas, ao mesmo tempo que o seu suco pancreático
pode diluir as gorduras. Nenhum outro mamífero, talvez com exceção
dos ratos e ratazanas, dispõe de tal capacidade de se adaptar a uma
grande variedade de condições. Da mesma forma, nenhum outro mamífero
é capaz de desenvolver um leque de possibilidades tão amplo e variado
na sua alimentação (Farb & Armelagos, 1985).

109
O fato de ser onívoro permitiu ao ser humano adaptar-se a uma
extraordinária diversidade de ecossistemas com um esforço mínimo. Tal
esforço é a consequência de várias estratégias de sobrevivência, voltadas
para a obtenção de nutrientes absolutamente fundamentais como as
vitaminas, os aminoácidos, as proteínas etc. Portanto, o ser humano
necessita de ampla variedade de alimentos. O modo mais simples de
seguir um regime bem equilibrado em proteínas, hidratos de carbono,
gorduras, vitaminas e minerais consiste em comer diversos alimentos tanto
de origem animal como vegetal. Em algumas sociedades, no entanto, a
dieta pode estar dominada por um regime mais carnívoro ou mais
vegetariano. Um exemplo interessante e bastante conhecido de regime
carnívoro é o caso dos Inuit ou esquimós do Alaska ou Grande Norte
Canadense, que tiveram sua dieta profundamente transformada como
consequência de uma progressiva sedentarização (Fumey, 2007) . Em
algumas ocasiões, os Inuit chegavam a consumir até cinco quilos de carne
em um dia. Apesar disso, como veremos mais adiante (capítulo 3), devido
às particularidades desse regime carnívoro o resultado não significou
uma dieta equilibrada. Em um extremo oposto, encontramos aqueles
que se alimentam quase que exclusivamente de vegetais. Algumas pessoas
são vegetarianas por necessidade, porque carecem de meios para obter
carne. Outras podem sê-lo por razões morais ou religiosas. A maioria
dos vegetarianos por opção consome determinados alimentos de origem
animal (leite, manteiga, ovos, queijo ... ) que contém uma importante
composição nutricional. Na realidade, ainda que algumas sociedades
consumam pequenas quantidades de carne, não se encontrou nenhuma
cultura que fosse inteiramente vegetariana. Se algum indivíduo segue
um regime totalmente vegetariano, ou seja, sem ovos nem produtos
lácteos, ocorrerá a falta de vitamina B12, que é essencial para prevenir
certas formas de anemia.
A influência geográfica, determinada precisamente pela latitude,
que ocasiona diferenças climáticas, e a amplitude territorial são fatores
que determinam a capacidade de adaptação às flutuações dos recursos
alimentares. Na verdade, a gama de elementos nutricionais é bastante
estreita. Um organismo humano tem milhares de proteínas, gorduras e
hidratos de carbono diferentes, assim como de outras moléculas. Sem
dúvida necessitamos de um aporte de energia e também de aminoácidos
essenciais, gorduras essenciais, minerais e vitaminas, além de água. Devem-
se incluir algumas substâncias que não são fundamentais para a
alimentação mas desempenham alguma função no processo digestivo -
por exemplo, determinada quantidade de fibras para um adequado

110
funcionamento do intestino. É preciso ainda evitar alguns tipos de
substâncias, não apenas as tóxicas: também aquelas que em pequenas
quantidades são importantes para o organismo e que, no entanto, em
quantidades excessivas podem resultar perigosas (Harris , 1991;
Puigdomenech, 2004). Isso quer dizer que as necessidades nutricionais da
espécie humana são, ao mesmo tempo, quantitativas e qualitativas. Ou,
em outras palavras, que a fome ' humana' não é somente de alimento - é,
também, de tipos de alimento. Com base em uma ampla variedade de
alimentos, o ser humano, onívoro, deve encontrar todos os nutrientes que
são absolutamente necessários para a sua sobrevivência (Fischler, 1979).
O próprio organismo sintetiza a maior parte dessas substâncias a partir de
uma quantidade relativamente pequena de elementos e moléculas
denominados 'nutrientes essenciais'. Não fosse por tais sínteses químicas,
teríamos que comer uns aos outros para dispor de uma quantidade
equilibrada de moléculas necessárias para manter a vida humana. Mas o
corpo humano é um laboratório extraordinário: não é fundamental que as
características químicas dos organismos que consumimos se pareçam muito
com as do nosso próprio organismo. Além do ar e da água, temos que
ingerir uma série relativamente limitada de substâncias: um hidrato de
carbono que se converta em glicose; uma gordura que contenha ácido
linoleico; dez aminoácidos que constituem os componentes fundamentais
de proteínas; 15 minerais; trinta vitaminas e fibras não digestíveis que ajudem
a limpar a parte inferior dos intestinos (Harris, 1991).
Uma grande variedade de modelos dietéticos, que se utiliza de
milhares de alimentos diferentes, é capaz de proporcionar o mesmo
resultado: a sobrevivência. O sistema digestivo humano trata todos os
alimentos da mesma maneira, independentemente da forma como sejam
cozidos. Para o sistema digestivo, os alimentos se reduzem a uma série de
produtos químicos que devem ser metabolizados; produtos que, uma vez
combinados com o oxigênio, são capazes de oferecer o calor que gera
energia (Farb & Armelagos, 1985; Fieldhouse, 1986; Fischler, 1979).
O primeiro contato significativo que o organismo tem com o alimento
acontece na superfície absortiva do intestino , durante a digestão e
assimilação. Devido à importância desse sistema digestivo, é razoável antecipar
determinadas evidências de processos de seleção nesse nível da fisiologia,
relativas a pressões nos campos dos neurôruos, das enzimas e dos hormôruos.
Nesse sentido, existem alguns exemplos bastante significativos: os
dissacarídeos lactose e sucrose, localizados na borda do epitélio intestinal.
A lactase é a enzima hidrolisante para o açúcar, lactose, do leite; e a
sacárase é o carboidrato ativo da cana-de-açúcar (Kretchmer, 1976).

111
A lactose se encontra somente no leite, e a enzima lactase, que a
metaboliza ao longo do ciclo de vida dos mamíferos, atua unicamente
durante a Jactância. Tal enzima diminui de forma progressiva com o passar
dos anos. Em alguns grupos étnicos, no entanto, a atividade da lactase no
intestino persiste na fase adulta. Portanto, podemos concluir que a
tolerância e a intolerância à lactose não estariam relacionadas apenas com
a frequência do leite na dieta - como se acreditava até poucos anos atrás
-, mas também com fatores genéticos de caráter hereditário. Por exemplo,
entre os aborígines americanos, 95 % são intolerantes à lactose. Os
'americanos brancos e os dinamarqueses representam o polo oposto: quase
98% a toleram. Entre esses dois extremos, encontraram-se os americanos
negros, com uma frequência intermediária do gene para a intolerância à
lactose. Os finlandeses , húngaros, os Tútsi, os Fulani nômades e os
americanos brancos, todos descendentes de povos que viveram em zonas
leiteiras, são tolerantes à lactose. Outros também tolerantes são os povos
Watusi. Entre esses últimos grupos citados, os intolerantes oscilam entre
2% e 20 % . Apesar de também se encontrarem em uma zona
tradicionalmente leiteira, os árabes modernos e os semitas são intolerantes
em 85%. Esses povos consomem produtos lácteos como o iogurte ou queijos
prensados, que contêm baixa concentração de lactose. Fora da tradicional
zona leiteira se encontram os nigerianos costeiros, os Banto, os Thai, os
Inuit da Groenlândia e os índios Pima, com percentagens de intolerantes
que oscilam entre 88% e 98%. Entre os grupos intermediários se encontram
os Hauçá-Fulani e os mexicanos-americanos. Nessas populações, a
percentagem de intolerantes oscila entre 55% e 75 %.
Segundo a hipótese de Simoons (em Kretchmer, 1976), a tolerância
à lactose durante a fase adulta foi determinada por pressões seletivas
que atuaram ao longo de um período de dez mil anos, a partir da chamada
revolução neolítica, que converteu uma parte da população humana em
pastores e agricultores. Entre esses povos, o leite foi um recurso comestível
abundante e regular, e por isso uma mutação favorecendo a tolerância à
lactose constituiu uma vantagem adaptativa. Assim, a intolerância à
lactose demonstra até que ponto um traço genético pode ser nocivo
quando se produz uma mudança radical no aspecto nutritivo, como a
que ocorreu em função da revolução neolítica. 7
7
Outro dramático exemplo poderia ser a atual ameaça da obesidade, a qual manifesta
uma inadequação entre determinados traços genéticos e metabólicos que haviam
sido positivos para a adaptação e a evolução da espécie humana em um contexto
de predomínio da escassez de alguns recursos alimentares (gorduras e açúcares,
por exemplo) e em um contexto de abundância deixaram de sê-lo.

112
A história da intolerância à lactose nos serve para refletir sobre a
importância das características nutricionais de cada indivíduo. Na nossa
sociedade atual, bombardeada com frequentes e constantes mensagens
de que o leite é "saúde engarrafada", incapaz de produzir efeitos nocivos,
os intolerantes à lactose acabam sendo vistos como seres "desviantes".
No entanto, os "desviantes" ou "mutantes" foram os tolerantes ou
aqueles adultos que perderam a enzima depois da lactância, e que, por
outro lado, constituem a maioria da população mundial. Examinando
esse fato, percebemos o quanto determinadas campanhas de ajuda a
povos famintos - mas intolerantes à lactose - podem resultar inadequadas
na medida em que consistem basicamente em leite em pó, causando
vômitos e diarreias às crianças. Hoje, a pesquisa e a tecnologia aplicada
à alimentação permitem oferecer ao mercado "leite sem lactose" com o
qual, aparentemente, a dicotomia poderia ser resolvida.
Em contraste com a longa história da tolerância/intolerância à lactose
(de cerca de dez ou quinze mil anos), a sacarose da cana-de-açúcar é uma
substância relativamente nova na nutrição humana, em particular no caso
dos Inuit, que viviam com uma dieta basicamente sem carboidratos. Nessas
circunstâncias, os requerimentos metabólicos de glucose eram derivados
de aminoácidos glicogênicos, mais por meio de biossíntese do que por
recursos integrantes de sua dieta. O diabetes era praticamente desconhecido
por esse povo, assim como por outros povos americanos aborígines.
A recente incorporação, em meados do século XX, de alimentos que contêm
sacarose na dieta dos lnuit foi considerada como a possível causa das
diarreias persistentes e das gastrenterites que afetam com muita frequência
as suas crianças, sobretudo no período posterior ao desmame. Estudos
realizados sobre os Inuit adultos indicam que esse grupo étnico apresenta
alta frequência de intolerância à sacarose, concretamente entre 7% e 16%,
porcentagem muito alta se a comparamos com a da população norte-
americana, de 0,2%. Devido à ausência de sacarose na dieta tradicional
Inuit durante séculos, sua metabolização foi um fator ignorado pela seleção
natural. Consequentemente, a recente introdução desse açúcar na dieta
desse povo foi causadora de um estresse ambiental, na forma de comida,
que, por sua vez, gerou um problema grave de saúde (Draper, 1983).
Outros comportamentos relacionados às preferências alimentares
(Farb & Armelagos, 1985) que nos possam parecer contrários à razão na
realidade têm um fundamento biológico. Como último exemplo, citamos
a dificuldade de algumas pessoas, principalmente na Grã-Bretanha e na
Índia, em digerir o trigo candial como consequência de certa sensibilidade
ao glúten. Tal doença, a celíaca, também é transmitida geneticamente.

113
Essas zonas constituem, precisamente, os limites exteriores, ao leste e ao
oeste , do cultivo do trigo na Eurásia. Portanto , é possível que a
incapacidade de digerir os cereais se explique por uma seleção natural,
atuando de modo parecido à ocorrida em relação ao leite.
Por outro lado, de acordo com os avanços mais recentes da genética
molecular (Puigdomenech, 2004), dispomos hoje de muitos exemplos da
influência de nossos genes na alimentação. Em muitos países, por
exemplo, é comum fazer uma prova com um recém-nascido sobre a
presença de um gene chamado fenilcetonúria. Estudos sobre
comportamento alimentar realizados entre gêmeos e crianças adotadas
demonstram a existência de genes que contribuem de forma significativa
para a obesidade. Outro condicionamento que acontece de forma pessoal,
numa proporção crescente de indivíduos, é o desenvolvimento de alergias
a alimentos construtores (por exemplo, à lactoglobulina e à caseína do
leite, aos frutos secos, ao pescado, ao marisco etc.). Hoje se sabe que a
espécie humana possui em seu genoma um pouco menos de quarenta
mil genes e que a complexidade da espécie não depende tanto do número
de seus genes, e mais da forma como esses interagem e se regulam. Todos
os indivíduos possuem os mesmos genes, contudo há pequenas variações
responsáveis ~or fazer com que os indivíduos sejam todos diferentes entre
si e únicos. A parte as mudanças nos genes que provocam doenças,
também se sabe que existem indivíduos geneticamente predispostos a
contrair algumas delas, como as cardiovasculares ou o diabetes. Assim,
pouco a pouco, seria possível dispor de procedimentos para conhecer as
bases genéticas do metabolismo e de sua resposta aos alimentos. Isso
significaria saber que tipo de alimentação seria mais adequado em
quantidade e qualidade para cada indivíduo, o que poderia contribuir
para evitar doenças e se atingir um melhor nível de vida.
Outras características biológicas também desempenharam importante
papel ao longo da evolução da espécie, contribuindo para sua sobrevivência.
Um exemplo é a capacidade da língua para detectar o sabor amargo, visto
q_ue a maioria das toxinas naturais tem gosto amargo. O apetite específico
pelo sabor açucarado, por sua vez, parece ser uma característica de forte
componente inato entre todos os mamíferos, inclusive seres humanos, e
em muitas outras espécies além do Homo sapiens. Trata-se de uma
característica adaptativa positiva, já que o açúcar é uma fonte de energia.
Em um meio em que os açúcares de absorção rápida eram relativamente
escassos, acredita-se que tal característica foi selecionada na medida em
que os alimentos de sabor açucarado constituíam uma fonte vantajosa de
calorias rapidamente mobilizáveis. O sabor açucarado é um "sinal inato

114
de calorias" e a sua capacidade de saciar é mais alta, se comparada à de
outros alimentos, provavelmente porque participa de um subsistema
especializado de regulação puramente calórico (quantitativo). Essa
circunstância estaria ilustrada pelo fato de que, em numerosas culturas,
os alimentos açucarados se consomem ao final das refeições: mesmo
satisfeitos, ainda se encontra um "buraco" para o doce. Em qualquer
caso, mais ou menos inato, o gosto pelos alimentos açucarados se reforça
a cada geração graças à doçura do leite materno e, ainda, pela preferência
demonstrada por crianças pequenas por uma mamadeira de água
açucarada diante de outras mamadeiras com soluções de água com sabor
amargo ou salgado ou, simplesmente, com água comum (Chiva, 1979;
Farb & Armelagos, 1985; Fischler, 1979).
Por isso, o ser humano sempre procurou o sabor doce, e
progressivamente encontrou a forma de domesticar, ou seja, de reproduzir
quantas vez((s quisesse essa sensação gustativa tão apreciada. É provável
que não exista nenhum povo que não possua os meios léxicos para
descrever a categoria de gostos que chamamos de "doces", e a sua
existência consta nas numerosas culturas das quais dispomos de
depoimentos etnográficos ou historiográficos (Le Breton, 2006). Ainda
que o sabor doce não seja apreciado de maneira uniforme, seja em culturas
inteiras ou entre todos os membros de uma mesma cultura, nenhuma
sociedade recusa o doce como desagradável, apesar de algumas coisas
doces poderem ser evitadas por diversas razões.
Os sabores doces ocupam um lugar privilegiado, em contraste com
atitudes mais variadas em relação ao azedo, ao salgado ou ao amargo, o
que, sem dúvida, não exclui as preferências comuns por certas substâncias
azedas, salgadas ou amargas. Os antropólogos observaram abundantemente
que os caçadores-coletores recolhem os enxames e consomem grandes
quantidades de mel. Nas sociedades contemporâneas, podemos confrontar
a frequência dos usos do açúcar na dieta francesa com, por exemplo, a dos
ingleses ou a dos norte-americanos para ver com que amplitude variam as
atitudes diante do doce. Ademais, na vida norte-americana o doce é
importante naquilo que os antropólogos chamam de comida dos intervalos,
ou aperitivos. Outros povos parecem menos propensos a tratar o doce
como um sabor que ocupe um lugar específico em uma série ou sequência
alimentar, adequado apenas a um ou vários lugares dessa série. Para eles,
um alimento doce pode se apresentar em qualquer momento da refeição,
como um prato ou como parte dos diversos pratos que servem de forma
simultânea. Também varia muito entre as diferentes culturas a prática de
misturar o doce com outros sabores (Fischler, 1979; Mintz, 1996).

115
Resulta paradoxal a evolução cultural relacionada à demanda de
açúcar por parte do organismo humano. Até o século XVIII, o açúcar
foi um produto escasso, exótico, de luxo . Ninguém o consumia
habitualmente. Até fins da Idade Média, seus usos foram bastante
restritos. Em 1370, a reserva de uma rainha da França para a manutenção
da casa real era de quatro pães de cinco libras cada. No tempo de
Henrique IV, o açúcar ainda se comercializava nas farmácias. Era vendido
por onças, e era preciso se dispor a comprar saúde a qualquer preço para
arcar com os custos desse remédio imaginário. Nesse sentido, seu uso
como medicamento o desfavorecia como alimento e o colocava na
categoria das drogas suspeitas. Durante o reinado de Luís XIV, o açúcar
ainda era um gênero de luxo que se evitava desperdiçar. Circulava,
sobretudo, como um presente, sempre muito bem aceito.
A partir do século XVIII, passou-se progressivamente da escassez
de substâncias açucaradas e, consequentemente, com uma alta valoração
social e controles culturais restritos sobre o seu consumo, a uma situação
de superabundância. Desde o século XIX, os usos do açúcar aumentaram
e se diversificaram de modo paralelo ao próprio aumento de sua
produção. O açúcar entrou em um grande número de preparações para a
saúde, muito apropriadas para as necessidades dos doentes, das crianças
e dos idosos. De repente, numerosos pratos passaram a ser mais nutritivos
e mais apetitosos. Seu papel na cozinha foi o de um condimento universal.
Como corretivo da acidez e do amargor, contribuiu para vulgarizar o uso
do café, do chá, do chocolate e todas as bebidas quentes ou refrescantes.
Adoçava as frutas muito amargas, melhorava os vinhos fracos, ajudava
na preparação de licores. Suas propriedades antissépticas foram
aproveitadas na elaboração de conservas e geleias. Definitivamente, o
açúcar se converteu em um ingrediente que se prestava a todo o tipo de
combinações, e principalmente naquelas em que o gosto, sinônimo de
doçura, se combinava com o prazer (Bourdeau, 1894).
Depois de 1900, o consumo de açúcar multiplicou-se por dez. A união
entre o apreço pelo açúcar e interesses socioeconômicos conduziu a um
desajuste, a uma ruptura entre essa atração e as capacidades met,abólicas
cada vez mais solicitadas. Esse fenômeno contribuiu, sem dúvida, para
o conjunto ou para uma parte das patologias chamadas de "civilização"
ligadas à nutrição: o excesso de açúcar - que representa um aporte
calórico importante e de absorção rápida - combinado ao escasso gasto
energético do cidadão sedentário atual conduz ao sobrepeso e à
obesidade, um fator de risco ou de agravamento das doenças
cardiovasculares, diabetes, hipertensão, e ao aumento da cárie dental.

116
Estamos diante de uma espécie de paradoxo crítico da evolução
biocultural: uma 'demanda' biológica selecionada em um antigo estado
da filogênese que teve papel fundamental, segundo todas as aparências,
em determinados desenvolvimentos econômicos socio-históricos que
tendiam a satisfazê-la. Contudo, esses desenvolvimentos assumiram
proporções tamanhas que o dispositivo biológico do açúcar passou a
ameaçar aquilo que antes protegia. O apetite biológico pelo açúcar e a
sua disponibilidade ilimitada alcançam um ponto crítico. Dessa forma,
todos os controles socioculturais que poderiam contribuir para regular o
seu consumo, já consideravelmente debilitados pela civilização moderna,
se desintegram e aceleram a reação em cadeia (Fischler, 1979).
Outro exemplo dos condicionantes biológicos refere-se à
necessidade de proteínas animais, isto é, à necessidade do consumo de
carne. Existe um acordo generalizado em afirmar que a atração sentida
pela maior parte das populações por proteínas cárneas é causada por
determinantes biológicos. Sem conhecimento nutricional preciso, o
cérebro interpreta os estados sucessivos de fome e saciedade. Constrói a
sua escala de preferências dos alimentos em função do caráter mais ou
menos positivo dos seus efeitos sobre o corpo. Os mecanismos 'pré-
instalados' não são importantes apenas para a regulação biológica
fundamental: permitem , também, classificar os fenômenos ou os
acontecimentos como "bons" e "maus" em função do seu possível impacto
para a sobrevivência. Portanto, ass im como outros mamíferos, as
características sensoriais dos alimentos são associadas às consequências
metabólicas da ingestão. Entre as espécies evoluídas como os mamíferos,
é inata a capacidade de associar o gosto, o cheiro e também o aspecto
visual de uma substância aos sinais metabólicos que decorrem da sua
ingestão e, consequentemente, às propriedades nutricionais dos
alimentos. A fisiologia e os processos digestivos próprios de nossa espécie
nos predispõem a preferir os alimentos de origem animal porque estes
reúnem algumas características especiais que os fazem excepcionalmente
nutritivos, pois constituem uma fonte de proteínas melhor, por porção
cozida , que a maior parte dos alimentos de origem vegetal.
Nutricionalmente falando , a importância das proteínas se encontra no
fato de que o organismo as utiliza para favorecer e regular o crescimento
dos tecidos. Músculos, órgãos, células, hormônios e enzimas são compostos
por diferentes classes de proteínas com combinações específicas de
aminoácidos que formam cadeias longas e complexas (Harris, 1985a,
1985b). De qualquer forma, o permanente apetite mundial pela carne
representa uma preferência racional que surge da interação entre a

117
biologia humana e a composição nutritiva de uma série de possibilidades
alimentares (Harris, 1985a, 1985b; Lambert, 1997a).
Como as carnes proporcionam sensação de saciedade porque suas
moléculas complexas de aminoácidos são mais difíceis de assimilar, todas
as populações que procuram a saciedade têm maior preferência pelas carnes
do que pelos produtos vegetais (Lambert, 1997a). Em muitas culturas dá-
se grande valor à 'carne' e se assegura que sem ela o indivíduo fica "com
fome", ainda que tenha ingerido grande quantidade de verduras. Um
refrão castelhano é suficientemente explícito a esse respeito: "Verduras e
legumes só dão tristeza; a carne, carne cria e dá alegria". Os dados
disponíveis, no entanto, não deixam claro se o apetite pela carne se deve
às 'proteínas' ou à gordura, ao sal ou, em muitas ocasiões, às festividades
que acompanham o seu consumo (Farb & Armelagos, 1985). Em parte, tal
apetite tão extensivo no mundo é, em realidade, um anseio por carne rica
em gordura. Isso se deve ao fato de que a carne magra deve ser
complementada com substâncias ricas em calorias, com o fim de impedir
que os aminoácidos se transformem em energia em lugar de proteínas
necessárias para o desenvolvimento muscular. Em outras palavras, a carne
rica em gorduras evita a necessidade de alternar quantidades de carne
com outras de mandioca ou de fruta (Harris, 1985a, 1985b).
Antes do surgimento dos métodos industriais de engorda de gado
bovino, de porcos e de frangos com cereais, as carnes desses animais
eram demasiadamente magras para proporcionar o efeito de economia
de proteínas. Atualmente, com o uso de farinha de pescado, hormônios
de crescimento e antibióticos, houve um aumento médio de 30% ou
mais de gordura. Em contraste, um estudo de 15 espécies diferentes de
herbívoros africanos em estado selvagem revelou que os cadáveres
continham, em média, apenas 3,9% de gordura. Isso explica uma prática
observada entre numerosos povos (os Pitjandara de Austrália ou os índios
das planícies da América do Norte, por exemplo), cujo fornecimento de
proteínas depende da caça e pode parecer absolutamente irracional. No
ponto culminante da 'temporada da fome ', quando se escasseiam todos
os recursos alimentares, é frequente que os caçadores-coletores se neguem
a comer determinados pedaços de carne ou inclusive animais inteiros
que foram caçados e mortos. A explicação dessas práticas aparentemente
irracionais consiste em que os caçadores correriam o perigo de morrer de
fome se o seu sustento passasse a depender excessivamente de carne
magra. Vihjalmur Stefansson, a quem os anos de convivência com os
esquimós ensinaram o segredo de manter um estado de saúde excelente
à base de nada mais que carne crua, advertiu que semelhante dieta só

11 8
poderia funcionar se fosse gordurosa. Stefansson deixou uma detalhada
descrição de um fenômeno em que os esquimós, os índios e muitos dos
primeiros exploradores do Longínquo Oeste reconheciam como sintoma
do consumo excessivo de carne magra de coelho, a que denominaram
"inanição cunicular":

Se passarmos repentinamente de uma dieta normal em relação à quantidade


de gordura a outra composta exclusivamente de carne de coelho, durante
os primeiros dias se come cada vez mais e mais, até que depois de uma
semana, aproximadamente, o consumo inicial tenha se multiplicado por
três ou quatro. Nesse momento notam -se ao mesmo tempo sinais de
inanição e de envenenamento por proteínas. São realizadas muitas refeições,
mas no fim de cada uma a fome ainda persiste; o inchaço do estômago,
repleto de comida, causa muitas moléstias, e se começa a sentir um leve
desassossego. Transcorridos entre sete e dez dias, começa a diarreia, que
não aliviará até que se coma gordura. A morte virá em algumas semanas.
(Harris, 1985a, 1985b: 41 -44)

Independentemente desse tipo de depoimentos, sabe-se que o


consumo de lipídios é indispensável para o organismo - nosso cérebro é
composto de 50% (a substância cinza) a 70% (a substância branca) de
lipídios. Os ácidos graxos mantêm a fluidez das membranas e, assim,
asseguram a transmissão das informações. As gorduras , por
desempenharem papel essencial na construção e no bom funcion amento
do cérebro, são indispensáveis durante todo o período de crescimento,
por diversas razões: os lipídios representam importante fonte de energia
(1 g de lipídio contribui com 9 kcal) e são essenciais para um correto
funcionamento de nossas células; os ácidos graxos essenciais são ricos em
vitaminas (A, D, E e K), que não podemos fabricar e estão unidas aos
corpos de gordura, as chamadas vitaminas lipossolúveis; as gorduras
contribuem para as qualidades gustativas dos alimentos e transportam os
aromas, conferindo untuosidade às nossas comidas.

Da Biologia à Cultura
Consideremos outra particularidade que diferencia os seres
humanos do resto dos mamíferos onívoros: os humanos consomem
produtos cujo sabor é desagradável, pelo menos nas três ou quatro
primeiras vezes em que são provados. Efetivamente, entre os produtos
mais solicitados do mundo encontramos, por exemplo, a pimenta negra

119
e cinza, a pimenta picante ou chili, o gengibre, o café e as bebidas
alcoólicas, todos eles extremamente amargos e irritantes para as mucosas
sensíveis da boca.
O uso quase universal das pimentas picantes chama particularmente
a atenção e servirá de único exemplo para ilustrar a afirmação anterior.
Trata-se de um condimento comumente empregado em todas as sociedades
não industrializadas, ainda que também o utilizem naquelas
industrializadas. Seu forte sabor deve-se à presença de uma substância
irritante - a capsaicina. São várias as razões que explicam a sua utilização
tão generalizada. As pimentas picantes superam todas as demais plantas
como fonte de vitamina A e, além disso, contêm boa quantidade de
vitaminas C e B. Sua ingestão em pequena quantidade é suficiente para
contribuir consideravelmente para o equilíbrio do regime alimentar de
algumas sociedades tropicais e subtropicais, nas quais os aportes
vitamínicos procedentes de outras fontes são bastante marginais. Ademais,
as pimentas picantes têm a vantagem de diminuir a temperatura corporal
- a capsaicina, em pequena quantidade, provoca a transpiração. As
pimentas picantes também facilitam a digestão dos amidos, aumentam
as secreções gástricas e estimulam o apetite. Todas essas vantagens são
de extrema importância nas regiões tropicais e subtropicais onde os
alimentos de base são, geralmente, pouco saborosos. Por último, parece
estar provado que tais pimentas, bem como outras especiarias, têm o
poder de limitar a multiplicação de bactérias no organismo, como
salmonelas, estafilococos e outros microrganismos, conhecidas por
provocar desordens intestinais.
Definitivamen te, as pimentas picantes cumprem uma função de
adaptação em determinados ambientes. Considerações semelhantes
poderiam ser feitas sobre outros alimentos citados como amargos; a
cerveja, por exemplo. Assim, a capacidade dos seres humanos de consumir
determinados alimentos que a princípio parecem desagradáveis revela
ser, também, essencialmente adaptativa.
Uma última consideração, relacionada a uma particularidade
fisiológica que , ao mesmo tempo, é uma particularidade do onívoro.
Os animais sabem, em geral, quando comeram o suficiente. Mas como a
espécie humana pode aprender que é o momento de parar de comer?
Os sinais físicos que indicam "já basta" têm pouca força e são facilmente
submergidos pelas pressões culturais (Douglas, 1979). Cabanac (1971)
demonstrou que na espécie humana a satisfação subjetiva de cada
alimento em particular se transforma depois de cada alimento consumido.

120
A essa sensação Cabanac deu o nome de "aliestesia".

Como, então, se relaciona esse encontro com a alimentação normal e a


seleção de uma variedade de aJjmentos? Determinamos o efeito da ingestão
de um alimento até a saciedade sobre o prazer subjetivo de tal alimento e de
outros que não haviam sido consumidos ( ... ).A diminuição era relativamente
específica ao alimento ingerido, mesmo quando os alimentos eram do mesmo
tipo (como proteína, carboidrato, gordura). Essas conclusões são compatíveis
com o fato de que, atuando em conjunto com os sinais de saciedade, fatores
externos como a aparência, o gosto e a textura do alimento proporcionam
algum grau específico de saciedade. Uma função normal de tais saciedades
específicas pode assegurar que se consuma um conjunto equilibrado de
substâncias nutritivas; assim, durante uma refeição servida em distintos
pratos, por exemplo, podemos nos saciar com o prato principal, mas ainda
guardar apetite para a sobremesa. (Rolls, Rowe & Rolls, 1980: 12-13)

Cada espécie tem os seus próprios condicionamentos. Se o sistema


alimentar de um animal herbívoro ou carnívoro é desencadeado pela fome
e encerrado com a saciedade, no caso do onívoro cabe acrescentar o aspecto
hedonista nessa relação entre fome e saciedade. Atribuímos aos alimentos
notas hedonistas positivas ou negativas, cujas intensidades se modificam
pelas variações da fome. A saciedade diminui a palatabilidade do alimento.
Diante de um leque de opções variado e ilimitado, o ser humano segue a
sua fisiologia, isto é, come as coisas que têm bom sabor, mas com certos
'protetores fisiológicos'. Por exemplo, diante de uma grande opção de
alimentos, a ração de proteínas se estabilizará entre 12 e 15%. Mas é preciso
considerar, no entanto, que o mecanismo da saciedade pode entrar em
conflito com o prazer de comer, em uma situação de abundância.
A variedade de comidas provoca uma excitação que, para cada prato,
desperta um apetite específico. Comer com prazer pode dar lugar a comer
muito além do necessário para simplesmente satisfazer a fome, muito além
do apetite, muito além da saciedade (Apfelbaum, 1989): "Come-se muito
depois de farto", diz o refrão.
Todas as considerações anteriores sobre o papel das determinantes
dietéticas no processo da evolução, bem como os exemplos que as
acompanharam, mostram que a nutrição é um fator importante da
variabilidade humana. Como assinalou Kretchmer (1976), a
individualidade nutricional se reflete em uma combinação única de
atributos bioquímicos, tais como a atividade enzimática, os níveis
hormonais, os tamanhos dos pools metabólicos, a armazenagem de reservas

121
e as capacidades das membranas. Essas atividades metabólicas são as que
determinam as respostas dos indivíduos a determinados nutrientes, assim
como a demanda por estes. A maneira como um indivíduo responde às
pressões de um determinado meio baseia-se nas mutações e nos processos
seletivos que ocorreram há milênios.
Em todo o caso, é importante considerar o fato de que não existem
organismos humanos que tenham as mesmas necessidades nutricionais.
Dois indivíduos da mesma idade , sexo e estatura não apresentam
exatamente o mesmo metabolismo. A tolerância à capsaicina, por exemplo,
ou a muitas outras substâncias (álcool, cafeína etc.), pode ser bastante
diferente entre um indivíduo e outro. Por essa razão, resulta difícil
determinar as quantidades adequadas de diferentes elementos nutritivos
que devem ser ingeridos de forma regular. É preciso levar em conta que
nem todas as pessoas, povos ou grupos sociais consomem os mesmos
elementos de um determinado produto. Por exemplo, os que descascam
as batatas antes de fervê-las ou para fritá-las desperdiçam 20% dos seus
elementos nutritivos, sobretudo vitamina e e proteínas.
Por outro lado , existem também as variações culturais e de
desenvolvimento. Por exemplo, alguns alimentos que provocaram doenças
em algumas populações podem ter provocado, em outras, mudanças
evolutivas. A evolução dos requerimentos nutricionais deve-se, originalmente,
a mudanças genéticas, cujo reflexo no fenótipo conduz proteínas ou enzimas
com uma alteração potencial do metabolismo que se transforma, finalmente,
em mudanças relacionadas aos requerimentos nutricionais.

Alimentar-se e/ou Nutrir-se?


Das relações entre natureza e cultura
Apesar de sua transcendência, os condicionamentos biológicos não
são suficientes para explicar os comportamentos alimentares da espécie
humana. O ato de alimentar-se é extremamente complexo, entre outras
razões, como consequência da onivoridade dos humanos. Isso significa,
como já vimos anteriormente, que esses têm liberdade de escolha,
condicionada, porém, pela variedade (Rozin, 1995; Fischler, 1995a, 1995b).
Um exemplo fictício pode nos ajudar a compreender a transcendência
desse fato. Imaginemos que um restaurante expresse os seus pratos do
dia nos seguintes termos (Farb & Armelagos, 1985): 838,4 gramas de
água; 97,0 gramas de proteínas; 165,9 gramas de hidratos de carbono;
96,6 gramas de gorduras; 307,8 miligramas de cálcio; 998,0 miligramas de
ferro; 2,6 gramas de sódio; 2,6 gramas de potássio; 2,5 gramas de fibras

122
brutas; 0,8 miligramas de tiamina; 1,1 miligramas de riboflavina; 22,7
miligramas de niacina; 53,5 miligramas de vitamina C; 4.042 unidades
internacionais de vitamina A, além de vitamina B6 e B12, ácido fólico,
vitaminas D e E, magnésio, zinco e outros minerais ... - no total, um
pouco menos de duas mil calorias por pessoa. Tudo isso pelo módico
preço de 18 euros, serviço incluído. Acreditamos que tal restaurante não
teria muito sucesso. Na realidade, o que acabamos de expressar é a
decomposição que o aparato digestivo humano realizaria de alguns pratos
que, para muitos norte-americanos, constituem uma " delícia"
gastronômica: um coquetel de camarão, seguido de um entrecôte com
batatas fervidas ao "creme amargo"; tudo isso acompanhado de pãezinhos
quentes, manteiga e vinho e uma salada condimentada com um vinagrete
à francesa e, de sobremesa, uma torta de maçã e café no final. Preço: 50
euros. Exatamente os mesmos elementos nutritivos desse jantar, de
acordo com a decomposição indicada acima, poderiam ser obtidos de
uma série de produtos disponíveis em qualquer supermercado e/ou
farmácia, a saber: 182 gramas de proteínas líquidas, 28 gramas de sal,
aproximadamente 160 gramas de açúcar, um pouco menos de 80 gramas
de gorduras, 1 litro de água mineral e alguns outros ingredientes.
O custo total de todos esses elementos estaria em torno de apenas 2 euros.
Em termos ' nutricionais', as três opções anteriores resultam
idênticas e, em termos de custo econômico, está claro que a terceira
opção é, de longe, a mais barata. No entanto, em condições 'normais', 8
dificilmente a primeira e a terceira opções resultariam aceitáveis apesar
da 'economia' significativa que poderiam supor. Em outras palavras,
como assinalam Farb e Armelagos (1985: 28),

O apetite cultural que manifestamos por um jantar saboroso e variado,


preparado de maneira refinada, não tem nenhuma relação com os processos
digestivos - na medida em que os nossos alimentos favoritos continuam a
nos dar as calorias e os elementos nutritivos essenciais para a nossa
subsistência.

Por conseguinte , comer não é, e nunca foi , uma atividade


meramente biológica. A comida é algo mais que uma coleção de
nutrientes eleitos de acordo com uma racionalidade unicamente dietética
ou biológica. Tampouco as razões das escolhas alimentares são apenas
8
Cabe recordar as chamadas "rações de emergência" para garantir uma ingestão
nutricional adequada a situações em que não é possível adquirir os alimentos
convencionais e nem cozinhá-los.

123
econômicas. "Comer" é um fenômeno social e cultural, enquanto a
"nutrição" é um assunto fisiológico e de saúde. No entanto, é óbvio que
às vezes podem acontecer importantes associações, mas está claro, também,
que em outras vezes trata-se de fenômenos completamente desassociados.
O comportamento alimentar dos humanos tem, desde a origem da
espécie, múltiplos determinantes. O apetite e os apetites específicos,
como aquele por proteínas e por sal, são biologicamente programados.
Mas o determinismo biológico, suficiente entre os monívoros,9 não o é
entre os onívoros. Ao longo da história, obter os nutrientes necessários,
tentar esconjurar a ameaça da fome e da escassez, mobilizou recursos de
todo tipo, materiais e imateriais. Os seres humanos precisam 'aprender'
as corretas eséolhas alimentares.
Mas como saber que essas escolhas são realmente corretas? Em
primeiro lugar, é preciso aprender a diferenciar um alimento daquilo
que não o é. Cóntudo, alimento não é uma categoria única, precisa,
objetiva. Nem todos os produtos ao nosso alcance podem ser iRgeridos,
mastigados e digeridos por qualquer tipo de pessoa (exemplos dos cereais
com glúteo, do leite, do picante, do álcool etc.). E tampouco todas as
sociedades compartilham os mesmos critérios para determinar o que
consideram ingerível, digerível, adequado, bom, tóxico, saudável, venenoso,
nutritivo, passado, picante, cru, cozido, fresco , ácido, pesado, salgado,
doce, amargo, repugnante, gostoso, saboroso, insípido etc. O fato é que,
ainda assim, determinados produtos podem não ser um alimento em
determinadas circunstâncias mas sê-lo em outras, após diferentes tipos
de tratamento ou processamento. Por exemplo, é necessário eliminar de
alguns vegetais (mediante o processo físico-químico que representa o
cozimento , por exemplo) a lignina, a celulose ou qualquer outro
componente indigerível para transformá-lo em digerível e, portanto, em
um alimento.
Ainda que de maneira muito simples e esquemática, poderíamos
propor que as corretas escolhas alimentares, aprendidas ao longo da história
da espécie humana, tiveram a ver com toda uma série de processos, cada
um deles consideravelmente complexo e diverso, e que são os seguintes:
1) Aprender a obter alimentos: quais, onde, como, quando ... , o que
equivale a um conhecimento do meio e das relações causa-efeito que
o caracterizam; aprender a aumentar o inventário de alimentos
disponíveis, seja superando a neofobia característica do paradoxo do
onívoro, seja aprendendo a tratar e eliminar sua toxicidade ,
9
Utilizamos este termo para nos referirmos àqueles animais que, como o koala, se
nutrem de um só tipo de alimento.

124
indigeribilidade etc., o que equivale a sua transformação; aumentar
ou manter a disponibilidade do inventário , facilitando a sua
reprodução ou o seu não esgotamento, o que equivale a desenvolver
modos ou técnicas de conservação, armazenamento, racionamento,
domesticação, intensificação, mecanização, inseminação, modificação,
pasteurização, embalagem a vácuo, congelamento, irradiação, pré-
cozimento, submissão a altas pressões, modificação genética e,
também, estabelecimento de proibições de captura relacionadas a
um período e/ou a um espaço, tabus, proibições ... ; aumentar o
"atrativo" - o gosto - do inventário disponível: assar, fritar, ferver,
salgar, defumar, condimentar, temperar, combinar.. ..
2) Aprender a conhecer as especificidades dos alimentos em relação
aos seus estados alternados (por exemplo: verde, temperado, maduro,
passado, podre, fresco, fermentado, novo, velho etc.) e os seus
diferentes efeitos sobre o organismo de acordo com cada um desses
estados. Aprendendo, assim, a conhecer as especificidades dos
organismos humanos, de acordo com suas naturezas e com seus estados
cambiantes: idade, sexo, estrutura genética, saúde ou doenças,
disponibilidades, atividades etc. Ou, o que é o mesmo, conhecer e
prever os efeitos precisos e diferenciais da cada tipo de alimento e de
suas diferentes formas de consumo, possibilitando o melhor
aproveitamento possível de cada alimento para cada tipo de indivíduo
de acordo com as suas circunstâncias particulares.
Os seres humanos resolveram a sua necessidade de ' aprender' as
escolhas alimentares corretas não por um método individual de tentativas
e erros, mas com base em um saber coletivo que se foi constituindo, ao
longo das gerações, mediante um corpo de crenças, algumas confirmadas
pela experiência, outras completamente simbólicas ou mágicas, tais como
o jejum, a busca do sagrado ou as proibições religiosas. Essas proibições
podem se referir, às vezes, a alimentos completamente "saudáveis" e
afetar uma população inteira ou, sob a forma de um tabu, um subgrupo
dentro de determinada sociedade (Apfeldorfer, 1994).
Longe de serem valores objetivos, bom e mau são noções relativas a
cada comensal e a cada cultura. Se arriscarmos uma ideia geral nesse terreno,
podemos dizer que o conhecido, o habitual, tem, geralmente, preferência
sobre o desconhecido: para um japonês, um pescado fresco deve ser servido
preferencialmente cru; para um Inuit de princípios do século passado era
preferível uma foca crua, bem passada, cortada em tiras finas; os cozinheiros
franceses poderiam apresentá-la fervida, assada ou com molho. As referências
de gosto devem ser tomadas com muita precaução.

125
Tudo isso exige refletir um pouco mais sobre o que é a cozinha.
Existem plantas que são tóxicas em seu estado bruto, porém consumíveis
após uma preparação. Essa preparação pode ser um escaldado no vapor,
uma desidratação, uma maceração ou a lavagem prolongada que elimina
o suco amargo e tóxico próprio de algumas variedades de mandioca. Seria
possível citar numerosos procedimentos de conservação que impedem que
os alimentos se tornem tóxicos. Ao lado da secagem e da defumação das
carnes (praticadas desde o Paleolítico Superior), existem outros processos
aparentemente mais tardios: a salga e todo tipo de fermentações
controladas que permitem obter produtos de longa conservação, como a
cerveja, o vinho, a sidra, o vinagre, os queijos, o chucrute, os picles de
pepino, o antigo garum, T o molho de soja etc. Todas essas preparações,
cuja primeira intenção era não tanto melhorar o gosto dos alimentos como
transformá-los em comestíveis ou conservar a sua comestibilidade, formam
parte daquilo que, em um amplo sentido, pode chamar-se cozinha.
Cozinhar, temperar, marinar, moer, picar, filtrar etc. tiveram por
função fazer os alimentos digestivos e não prejudiciais, tanto ou mais do
que melhorar seu gosto; gosto que, por outro lado, depende estritamente
dos costumes alimentares, baseados nas crenças da cada cultura. Segundo
os povos , essas operações culinárias revelaram-se mais ou menos
complexas, porém a mais simples delas já constitui a cozinha. A cozinha,
definitivamente, permite resolver o paradoxo do onívoro.
A necessidade de recorrer aos aspectos culturais para se
compreender a alimentação humana baseia-se na constatação de que os
próprios condicionamentos biológicos puderam se concretizar de
diferentes modos em diferentes sociedades. Três observações de conteúdo
diverso nos servirão de ponto de partida para nossa argumentação de
que a alimentação é um fato que transcende a biologia e está
intrinsecamente relacionado à cultura:
1) As preferências e aversões em relação às mesmas fontes de proteínas
(por exemplo: insetos, sapos, caracóis, cachorro, cavalo, porco, vaca
etc.) diferem muito entre culturas, vão além dos condicionamentos
biológicos e remetem a diferentes estratégias particulares de adaptação
ao meio.
2) Em todas as culturas conhecidas, as proibições alimentares parecem
ter maior importância quando se trata de produtos animais do que

NT Condimento utilizado na Antiguidade, especialmente na Roma Antiga. Era feito


de sangue, vísceras de animais, peixes e mariscos macerados, deixados ao sol em
salmoura por dois meses antes de serem consumidos.

126
quando dizem respeito a produtos vegetais. Os animais têm atributos
morfológicos que os aproximam consideravelmente dos seres
humanos. E quanto maior essa proximidade, mais são objeto de
proibições e aversões, já que, ao contrário da seiva dos vegetais, o
sangue dos animais remete à imagem da vida humana (Fischler, 1995a,
1995b; Lambert, 1997a).
3) Os antropólogos observaram que, com bastante frequência, a carne
é o alimento mais demandado. A valorização da carne em numerosas
culturas e inumeráveis épocas é uma constante, a ponto de os
historiadores medirem a prosperidade de um período e/ou de uma
categoria social pelo aumento do consumo per capita de carne. Esse
indicador revelou-se apropriado em muitas ocasiões. De maneira geral,
quando a renda aumenta, a parte das proteínas animais no consumo
alimentar aumenta também (Fischler, 1995a, 1995b). Na maioria das
sociedades, desenvolvidas ou subdesenvolvidas, a presença de produtos
de origem animal na dieta é tanto mais elevada quanto mais alto é o
nível de renda. Um estudo clássico dessa relação (Harris, 1985a, 1985b)
mostrou que em mais de cinquenta países os grupos de renda mais
alta obtêm, a partir de fontes animais, uma proporção muito mais
elevada de gorduras, proteínas e calorias daquilo que consomem, se
comparados com os grupos de renda mais baixa. Em proporção à
renda, as calorias procedentes de gorduras animais substituem as
procedentes de gorduras vegetais e hidratos de carbono, e as
procedentes de proteínas animais substituem as de origem vegetal.
Por outro lado, a lista relativa aos usos que diferentes sociedades
dão à comida é extensa, e muito poucos respondem exclusivamente a
razões nutricionais (Quadro 3). Sendo, por um lado, imprescindíveis para
a sobrevivência física e para o bem-estar psíquico das pessoas, as práticas
alimentares são, por sua vez, cruciais para a reprodução das relações
sociais. Com frequência, os alimentos constituem um elemento básico
no início da reciprocidade e do intercâmbio interpessoal e, em geral, no
estabelecimento e manutenção de relações sociais. Ainda que se trate
apenas de uma simples garrafa de vinho, de uns doces ou de um café, a
comida e a bebida podem ser oferecidas como um ato de amizade, de
estima e agradecimento ou, por que não, também de interesse. Objeto
de pactos e conflitos, os comportamentos alimentares marcam tanto as
semelhanças como as diferenças étnicas e sociais, classificam e
hierarquizam as pessoas e os grupos, expressam formas de conceber o
mundo e incorporam um grande poder de evocação simbólica até
evidenciar que, de fato, "somos o que comemos".

127
Quadro 3 - Funções socioculturais da alimentação

1. Satisfazer a fome e nutrir o corpo.


2. Iniciar e manter relações pessoais e de negócios.
3. Demonstrar a natureza e a extensão das relações sociais.
4. Proporcionar um foco para as atividades comunitárias.
5. Expressar amor e carinho.
6. Expressar individualidade.
7. Proclamar a distinção de um grupo.
8. Demonstrar o pertencimento a um grupo.
9. Superar estresses psicológicos ou emocionais.
10. Significar status social.
11. Recompensas ou castigos.
12. Reforçar a autoestima e ganhar reconhecimento.
13. Exercer poder político e econômico.
14. Prevenir, diagnosticar e tratar doenças físicas .
15. Prevenir, diagnosticar e tratar doenças mentais.
16. Simbolizar experiências emocionais.
17. Manifestar piedade ou devoção.
18. Representar segurança.
19. Expressar sentimentos morais.
20. Significar riqueza.

Fonte: Baas, Wakefield & Kolasa, 1979.

E não apenas 'somos o que comemos' porque os alimentos que


ingerimos proporcionam ao nosso corpo - o qual adquire suas
propriedades físicas - as substâncias bioquímicas e a energia necessária
para subsistir, mas também porque a incorporação dos alimentos supõe a
incorpo ração de sua s propriedades morai s e comportamentais,
contribuindo assim para conformar nossa identidade individual e cultural.
Para os franceses, os italianos são "macarrões", os ingleses são "rosbifes",
enquanto que para estes últimos os franceses são "rãs" e "escargots".
O alimento consumido tende a transferir, por analogia, ao comensal
alguns de seus caracteres: a carne vermelha, o sangue, confere vigor,
enquanto a horchata ,NT contrariamente, dá "sangue de horchata", isto é,
falta de vitalidade (Fischler, 1995a, 1995b).
O psicobiólogo Paul Rozin (1994) tentou demonstrar essa relação
fazendo um estudo na década de 1980 entre estudantes norte-americanos
que pensavam estar participando de uma pesquisa sobre preconceitos

NT Bebida tradicional feita com amêndoas, sementes de gergelim, arroz e cevada.

128
interétnicos. Esses foram divididos em dois grupos, cada um dos quais devia
valorar duas culturas com base em dois textos que se diferenciam em um
único ponto: a primeira cultura era caçadora e nela se consumiam tartarugas
marítimas e se caçavam também javalis, mas em defesa própria.Já na segunda
cultura caçavam-se e se consumiam javalis, mas só se caçavam tartarugas
pelo seu casco. Pediu-se aos sujeitos que dessem notas valorizando os traços
de personalidade que atribuíam aos membros de ambas as culturas.
Os resultados foram estatisticamente significativos: aos primeiros atribuíram
características próprias das tartarugas (bons nadadores, pacíficos, prudentes)
e aos segundos, dos javalis (rápidos na corrida, selvagens, agressivos).

Alimento, Comida e Cozinha


De todas as atividades humanas, o comportamento alimentar é,
sem dúvida, o que caminha de modo mais desconcertante sobre a linha
divisória entre natureza e cultura (Douglas, 1979). A eleição dos alimentos
está vinculada à satisfação das necessidades do corpo ou dos desejos e
gostos pessoais, mas também, em grande parte, ao tipo de sociedade.

A Cultura Alimentar
Sistemas alimentares diferentes correspondem a sistemas culturais
distintos. A cultura atua estabelecendo regularidade e especificidade.
A conduta alimentar diária da maioria das pessoas resulta previsível, a
depender de seus patrões culturais (recursos tecnológicos, organização social,
atividades, horários, profissões, relações familiares, responsabilidades ... ). Tal
regularidade é consequência de uma ordem normativa no processo de
socialização: um conjunto de guias institucionalizados a respeito das
condutas mais ou menos apropriadas dentro de contextos sociais
particulares (Warde & Martens, 2000). As pessoas mostram atitudes diante
da comida que foram sendo aprendidas de outras pessoas dentro de suas
redes sociais, seja na família, entre iguais, no grupo étnico, na classe social,
na comunidade local ou na nação. De fato, a alimentação é a primeira
aprendizagem social do ser humano.
Tais comportamentos formam a base da cultura alimentar, isto é,
"o conjunto de representações, crenças, conhecimentos e práticas
herdadas e/ou aprendidas que estão associados à alimentação e são
compartilhados pelos indivíduos de uma determinada cultura ou grupo
social" ( Contreras, 2002a, 2002b ). Ao compartilhar uma cultura, tendemos
a agir de forma similar, a nos governarmos por orientações, preferências
e sanções por esta estabelecidas.

129
Existe alguma relação entre a ordem social e o fato de que a raposa,
assim como o cachorro, nunca apareça na maioria dos menus europeus?
Quando se pergunta a um inglês o porquê dessa exclusão, ele responde
que se trata de um animal não comestível, que o fato de ser carnívoro
confere a sua carne um gosto demasiado forte. Também é possível que
responda que a sua carne pode ser tóxica, já que os cachorros podem
comer algo que esteja apodrecido (Douglas, 1979). No entanto,
antigamente, em determinadas regiões da Rússia, a raposa era vista como
um manjar delicado, assim como é considerado o cachorro em certas
partes de China. Não se pode confundir uma repulsão local com uma
repugnância universal. Admitimos, como nos sugere Fischler (1995a,
1995b) , que com frequência nossa completa negação a consumir
determinadas carnes não se baseia na fisiologia, mas sim em um sentimento
de ordem moral ou estética. É certo que a maioria dos europeus estremece
diante da menor ideia de comer insetos, mas sabemos que em muitas
outras partes do mundo há pessoas que o fazem. Devemos, como
consequência , evitar traduzir essa repugnância alimentar em um
menosprezo cultural, como ocorre quando se tem uma visão etnocêntrica
ao valorar os "outros" não como grupos de práticas e ideias diferentes,
mas como grupos sociais inferiores (por exemplo, "os tailandeses são
selvagens ou primitivos porque comem formigas").
Todo isso indica que os gostos também se adquirem. Se as escolhas
alimentares estivessem baseadas excrusivamente em preferências
individuais ou naturais por certos gostos, poucas pessoas fariam questão
de consumir alimentos como o álcool, o café ou a cerveja, amarga ou
irritante em suas primeiras degustações. O gosto por esses produtos é
"adquirido", e nós o adquirimos através da repetição que se estabelece
socialmente, mais do que biologicamente.

Comestível / Não Comestível


Uma segunda observação, e bastante vinculada à anterior, é que
nem tudo o que é nutritivo ou não tóxico é considerado como alimento
por parte das pessoas, ao passo que, por outro lado, a variedade das
substâncias que são consumidas como alimentos pelos diferentes povos
do mundo é extraordinária. Se pensarmos no número de culturas
consumidoras de uns ou outros alimentos de origem animal e/ou vegetal,
veremos que número considerável de substâncias não comestíveis para
algumas é muito apreciado em outras. Por exemplo, entre diversos povos
asiáticos come-se carne de cachorro, enquanto que os europeus a recusam
por considerá-lo um animal de estimação. Se, ademais, fizéssemos essa

130
classificação em uma perspectiva diacrônica, descobriríamos que produtos
não comestíveis para nossos antepassados europeus, por considerá-los
alimentos para os seus animais (como as batatas para os porcos até
princípios do século XIX), agora são imprescindíveis em um significativo
número de pratos de nossas refeições cotidianas. Inversamente, podemos
citar exemplos de produtos que, apreciados em outras épocas, hoje
passaram à categoria de "não comestíveis", como o cisne ou o painço,
por exemplo.
Em lugar de nos perguntarmos por que comemos certos alimentos
mais que outros, devemos propor a pergunta de por que não comemos
certas substâncias que estão a nosso alcance, por que não consumimos
tudo o que é biologicamente consumível (Quadro 4). Comem-se formigas
entre diversas populações na Colômbia, Tailândia, África do Sul, os
aborígines australianos e numerosas tribos ameríndias; do mesmo modo,
as abelhas e as vespas são comestíveis na China, na Birmânia, na Malásia,
no Sri Lanka e em algumas áreas do Japão. Diante dessas preferências,
ergue-se o tabu generalizado nas culturas industrializadas em que comer
insetos é algo impensável: são animais abomináveis, cuja presença precisa
ser evitada e, se possível, exterminada. Como servi-los, então, em um
prato para ser consumido como alimento? Observados de uma perspectiva
sensorial, nutricional e toxicológica, nada indica evitar o seu consumo,
tal como propunha Harris (1985a). Mas como colocar em prática a ideia,
sugerida por alguns estudiosos, de tornar os insetos 'comestíveis', com a
finalidade de acabar com os problemas de falta de proteínas em
determinadas partes do mundo, se acabam causando reações tão extremas
devido ao seu aspecto, textura e odor?

Quadro 4 - Classificação, segundo as culturas, de determinadas espécies


animais: comestível / não comestível
Comestível Não comestível

lnsetos América Latina, Ásia, África etc. Oeste da Eu ropa, América do Norte etc.

Cachorro Coreia, China, Ocea nia etc. Eu ropa, América do Norte etc.

Cavalo França, Bélgica, Japão etc. Grã-Bretanh a, América do Norte etc.

Coelho França, Itália etc. Grã-Bretan ha, América do Norte etc.

Caracol França, Itália etc. Grã-Bretanh a, América do Norte etc.

Rã 1 França, Ásia etc. Europa, América do Norte etc.

Fonte: Fischler, 1990: 28.

131
A Gramática Culinária
Os seres humanos são as únicas criaturas do mundo que pensam e
falam a respeito de seus alimentos, as únicas que observam regras precisas
sobre o que comem e o modo de fazê-lo, sobre a maneira de preparar os
alimentos ou sobre as pessoas e lugares com quem ou onde comê-los.
São a única espécie que organiza suas ingestas em refeições ou eventos
alimentares mais ou menos socializados e estruturados (desde refeições
principais aos snack ou aperitivos). Por outro lado, há muitos indícios de
que os seres humanos elegem boa parte de seus alimentos em função de
suas cozinhas, cuja função adaptativa mais importante é a comestibilidade,
mais cultural do que biológica. Através da transmissão cultural, os sujeitos
se proveem, geração após geração, do conjunto de saberes e habilidades
práticas que lhes permite identificar, à base da experiência dos
antepassados, os alimentos comestíveis. Isso se dá mediante a aquisição
de preferências e aversões fundadas na experiência, contribuindo para
reduzir os riscos ligados à escolha de alimentos (Fischler, 1995a, 1995b).
Cada cultura gera uma cozinha peculiar (ingredientes, aromas,
técnicas de preparação e maneiras de servir e comer), com classificações
particulares e regras precisas, em relação tanto à preparação e combinação
de alimentos quanto à sua coleta, produção, conservação e consumo
(Rozin & Rozin, 1981a, 1981b). Por exemplo: na cozinha francesa, o
salgado e o doce em geral se excluem mutuamente; na chinesa, ao
contrário, as misturas agridoces são muito comuns. Um determinado
alimento pode agradar mais aos homens que às mulheres, às crianças
mais que aos idosos, ou ser mais oportuno em um contexto do que em
outro. Assim, ainda que as sardinhas sejam muito populares na Espanha,
é difícil que figurem no primeiro prato de um banquete nupcial ou,
simplesmente, que sejam oferecidas em um jantar com convidados.
Da mesma maneira que as pessoas aprendem as normas básicas
para atuar no meio social de modo mais ou menos inconsciente, a
aprendizagem social relativa às regras, habilidades e conhecimentos
culinários também é transmitida, adquirida e interiorizada ~de forma
similar, isto é, sem que quase se deem conta: condimentos adequados,
combinação tradicional dos alimentos, técnicas habituais de preparação,
utensílios familiares para servir e consumir os alimentos, estrutura da
sucessão de pratos. A razão disso está em que a cada cozinha dispõe de
uma gramática específica. Percebemos que existem quando alguém não
as respeita. Imaginemos que um restaurante de Barcelona nos apresenta
o cardápio dos pratos do dia com o conteúdo que aparece na Figura 2.
Ainda que o cardápio ofereça uma série de três refeições a um preço

132
mediano-alto, o café da manhã é servido às seis da manhã, e para
"almoçar" é necessário esperar o "jantar". Ademais, o conteúdo do
cardápio tampouco parece compreensível. Não se ajusta em nenhum caso
às nossas regras culinárias: nem nos ingredientes, nem na combinação
dos alimentos, tampouco na ordem dos pratos ou nos horários.NE Como
esse restaurante se atreveu a começar o café da manhã com uma taça de
cavaNT e o almoço com uma mistura de cafés? Por outro lado, poderíamos
comer saborosamente um churrasco de insetos ou um carpaccio de cobra?
Ainda que alg un s dos alimentos aqui oferecidos sejam apreciados
culinariamente em outras culturas, para a maioria dos habitantes desta
cidade seriam repulsivos. Para um indivíduo da nossa cultura, esses
convites não têm nenhum sentido. Não se ajustam, em nenhum caso, à
nossa 'gramática culinária', à composição das refeições, ao horário, à
denominação, à ordem interna ou ao tipo de pratos propostos. Quando
as 'regras gramaticais' não se aplicam no âmbito culinário, assim como
acontece com as línguas, os pratos resultam não inteligíveis para nossos
sentidos e, dessa forma, podem ser recusados imediatamente.

Figura 2 - Gramática culinária


RESTAURANTE SEM PÉ NEM CABEÇA
COZINHA PARA NEÓFILOS
CAFÉ DA MANHÃ (6 HORAS): 12 €
Taça de cava
Sorvete de carne de macaco africano

ALMOÇO (11 HORAS): 30 €


Coq uetel de frutas tropicais
Sanduíche de ensopado de lentilhas
Insetos variados na brasa

JANTAR (16 HORAS): 20 €


' Macedônia' (m istura) de cafés tropicais
Carpaccio de cobra com molho de finas ervas

A Caracterização de uma 'Cozinha'


Já vimos que os seres humanos são, praticamente, as únicas criaturas
do mundo que têm regras precisas sobre o que comem, sobre a maneira
de preparar os alimentos e sobre as pessoas com as quais consomem os
alimentos. As estruturas desses comportamentos, que dão origem às
NE Neste parágrafo, os verbos e pronomes na primeira pessoa referem-se aos cidadãos
de Barcelona e à cultura catalã.
NT Vinho espumante produzido na região da Catalunha.

133
tradições específicas, são definidas por quatro elementos (Farb &
Armelagos, 1985; Rozin & Rozin, 1981a, 1981b):
1) Um número muito limitado de alimentos selecionados entre os
que o meio oferece. Os critérios de seleção foram, de forma geral, a
facilidade de acesso e as quantidades que se podem recolher em
função da energia necessária para obtê-las.
2) Os modos característicos de preparar esses alimentos (por exemplo:
cortados, assados, cozidos, fritos, fervidos etc.).
3) O princípio ou os princípios de condimentação tradicional do
alimento base de cada sociedade.
4) A adoção de um conjunto de regras relativas ao número de refeições
diárias; ao fato de que os alimentos se consumam individualmente
ou em grupo; à separação de determinados alimentos para finalidades
rituais e religiosas; à observação de tabus.
Esses quatro elementos dão lugar ao que entendemos por uma
"cozinha". Para Rozin e Rozin (1981a, 1981b),_entre esses elementos
vale considerar a importância dos 'princípios de condimentação' ou
combinações de aromas, que são característicos de uma determinada
cozinha ao mesmo tempo que podem distingui-la, identificá-la e lhe dar
continuidade através do tempo porque são os elementos mais resistentes
ao desaparecimento.
Tais princípios de condimentação, por seu sabor diferenciado e uso
frequente - ainda que suponham uma porcentagem muito pequena da
ingestão total de alimentos - , têm a importante função de identificar
qualquer 'prato' como próprio de uma cozinha particular. Assim, por
exemplo, a presença de molho de soja e de gengibre outorga a um prato
um claro caráter chinês; as combinações de especiarias chamadas,
genericamente, cuny identificam um prato como hindu; a combinação de
cebola, pimentão e manteiga de porco remete à cozinha húngara e a
combinação de cebola, tomate, pimentão e azeite de oliva remete, hoje
em dia, a uma "cozinha espanhola". Os diferentes tipos de aji (pimenta)
por sua vez, e os diferentes modos de prepará-los e usá-los nos permitem
identificar as cozinhas mesoamericanas, caribenhas e andinas.
Os princípios de condimentação permaneceram, em alguns casos durante
séculos, bem mais estáveis e resistentes a mudanças que outros componentes
da cozinha. Sua importância psicológica manifesta-se no fato de que
continuam sendo usados por muitos imigrantes, apesar das dificuldades
de abastecimento e dos altos preços que podem atingir fora de seus países
de origem. Esses condimentos ou princípios de condimentação costumam

134
ser os últimos a desaparecer das "antigas culturas", se é que chegam a
desaparecer por completo. Vejamos a seguir, de forma esquemática, os
princípios aromáticos básicos de diferentes cozinhas étnicas:

Quadro 5 - Principais princípios aromáticos de diferentes cozinhas étnicas


Cozinha Princípios aromá ticos
China Molho de soja, vinh o de arroz, raiz de gengibre
China Pequim Molho de soja, glutamato monossódico e/ou alh o e/o u gerge lim
China Sichuan Molho de soja, agridoce-p icante
China Cantão Molh o de soja, fe ijão, habichue/a ,ITT alh o
Japão Molho de soja, saquê e açúca r

Coreia Molho de soja, açúcar mascavo, ge rgelim, chili

Índia Curry
Índia Setentrional Cominho, gengibre, alho + variações
Índia Meridional Raiz de mostarda, amendoim, tamarindo, chili + variações
Ásia Central Canela, fruta , nozes

Oriente Médio Limão, salsinha

África Oeste Tomate, amendoim, ch ili

África No rte Alho, cominh o, menta


Marrocos Cominho, canela, coentro, gengibre, cebola e/o u tomate e/ou fruta
Grécia Azeite de oliva, limão, oréga no

Sul da Itália e sul da França Azeite de oliva, alho, salsinh a e/o u anch ova
Itália e França Azeite de oliva, alho, manjericão
Provença Azeite de oliva, tomilho, alecrim, oréga no, sálvia
Espanha Aze ite de oliva, cebola, pimentão, tomate
Norte e leste da Europa Creme amargo, aneto ou pimentão o u pimenta
Normandia Maçã, sidra, calvados (licor de maçã)
Norte da Itália Vinagre, alho
México Tomate, chili

Fonte: Adaptado de Rozin, 1986: 122.

NT Denominação de feijões, favas e ervilhas.

135
Entretanto, para Fischler (1985: 186-187), esses "princípios de
condimentação"

São às vezes tão variáveis, em escala nacional, regional, local e inclusive


familiar e individual, que resulta rapidamente difícil, senão impossível,
traçar a fronteira entre unidade e descontinuidade, entre 'dialetos' e
'idioletos' culinários, e distingui -los ( ... ). É no conjunto do sistema
culinário, dessa linguagem, gramática e sintaxe, que devem adquirir sentido
e, ao mesmo tempo, contribuir para a construção da familiaridade, isto é,
a aceitação dos pratos.

Assim, ainda de acordo com Fischler (1985: 175-176), a cozinha de


um grupo humano pode ser concebida como "um corpo de práticas,
representações, regras e normas baseadas em classificações, uma de cujas
funções essenciais é, precisamente, a resolução do paradoxo do onívoro".
A incorporação de novos alimentos por parte de uma cultura é um
ato pleno de significado. E, na medida em que existe um "princípio de
incorporação'', a identificação dos alimentos fundamenta a identidade
dos indivíduos. O homem "inventou" a cozinha porque identidade e
identificação constituem um convite ao mesmo tempo vital e simbólico
(Fischler, 1985: 173). E,

Uma vez 'cozinhado', ou seja, submetido às regras convencionais, o


alimento é marcado com um selo, etiquetado, reconhecido, em uma
palavra, 'identificado' (... ). A cozinha permite conciliar a inovação neófila
e o conservadorismo ou a desconfiança neofóbicos. Acomodar é acomodar
a novidade ou o desconhecido, literalmente 'ao molho' ou 'ao modo' da
tradição; é introduzir ao mesmo tempo o familiar no inédito e a variação
na monotonia. (FiscWer, 1985: 185)

Em definitivo, podemos considerar que o termo "cozinha", em


um sentido amplo, cultural, denota, além de alguns ingredientes básicos,
alguns princípios de condimentação característicos, assim como alguns
procedimentos culinários, um conjunto de regras, de usos, de práticas,
de representações simbólicas e de valores sociais, morais religiosos e
higiênicos ou sanitários. As "cozinhas", dessa forma, costumam ter uma
dimensão étnica, nacional e/ou regional.
De acordo com essa definição de cozinha, podemos falar de cozinhas
nacionais? Diferentes autores (Fieldhouse, 1986; Back, 1977) consideram
que uma cozinha nacional é aquela que se refere, fundamentalmente, a

136
alimentos e modos de prepará-los que são considerados como normais,
próprios ou específicos de um determinado país e que, nessa mesma
medida, constitui um aspecto de sua identidade como grupo. Precisamente
porque a "normal" não é considerada como uma expressão de
individualidade ou de afirmação individual, mas sim como um aspecto
da identidade do grupo. Assim como outros traços sociais e culturais, a
cozinha nacional é considerada, pelos membros de tal comunidade, como
algo dado, que está aí e requer poucas explicações, pois só os desvios da
"norma" são percebidos como tais. Efetivamente, muitas pessoas só se
dão conta de que têm uma cozinha, uma forma específica de comer e
alguns gostos próprios quando saem de seu próprio país. É quando
sentem falta daquilo que lhes era "normal" ou cotidiano, quando se dão
conta de que "os outros" comem umas coisas "esquisitas", diferentes.
Pelo menos teoricamente, quando alguém se refere à "cozinha
francesa", à "cozinha espanhola", à "alta cozinha", à "nova cozinha", à
"cozinha cantonesa" ou "pequinesa", tem-se uma ideia imediata dos
tipos de alimentos e pratos que estão sendo descritos. Às vezes, no
entanto, nossas ideias a respeito das "cozinhas" estrangeiras podem
resultar equivocadas, já que são formadas, como ocorre com frequência,
com base em livros de culinária, relatos de viagem ou interpretações dos
pratos clássicos por parte de restaurantes locais. Esses tópicos podem se
perpetuar com certa facilidade e, assim, as "cozinhas nacionais" são
adjetivadas com estereótipos semelhantes aós empregados para se referir
ao caráter de um povo em geral, por meio do quais se pretende destacar
suas características dominantes. Assim, por exemplo, diz-se que os
alimentos italianos são grosseiros; os ingleses, robustos; e os japoneses,
esteticamente apresentados. Contudo, o essencial para que se possa falar
de uma cozinha nacional (Back, 1977) é que esta chegue a ser, na prática,
a comida 'normal' de um grupo. Não necessariamente deve ser reconhecida
por seus praticantes como um modo de afirmar a sua individualidade.
Por outro lado, reconhecer, identificar, caracterizar uma cozinha
como "nacional" é um interesse que corresponde apenas a um ponto de
vista mais cosmopolita. Isso ocorre, basicamente, quando diferentes grupos
sociais e/ou étnicos entram em contato uns com os outros, como acontece
nas áreas metropolitanas. A maioria das pessoas de qualquer país teria
enormes dificuldades para responder à pergunta " quais são as
características básicas ou próprias de sua cozinha?". Como também teria
se lhes fosse pedido para assinalar os traços principais do seu próprio
idioma. É somente na interação com outros grupos que os seus membros
podem ter consciência das suas particularidades, e também de que essas

137
particularidades são compartilhadas com alguns e não com outros. Só
então pode haver um sentido de pertencimento e de identidade. Por
conseguinte, compartilhar alguns hábitos alimentares, alguns modos de
se comportar à mesa, algumas preferências e algumas aversões alimentares
proporciona o mesmo sentido de pertencimento e de identidade e,
portanto, de diferenciação em relação aos "outros" - assim como
compartilhar um direito, uma língua, um calendário ritual e festivo,
determinados princípios morais etc.
Na realidade, o que se entende por "cozinhas nacionais" ou
"grandes cozinhas" é algo relativamente recente. A "grande cozinha"
foi uma criação da burguesia, uma criação dos comerciantes. Na França,
os componentes regionais têm, evidentemente, um importante papel.
É o caso, por exemplo, do uso do azeite de oliva na cozi~ha do sul do
país, no lugar da manteiga, mais apreciada no norte. Porém, as cozinhas
regionais francesas só se afirmaram no século XIX. Não são, portanto,
muito antigas. Na Idade Média, extensas regiões - não só da França
como também de quase toda Europa - compartilhavam uma alimentação
básica bastante semelhante. A cozinha provençal do século XIV, por
exemplo, mostrava muito poucas diferenças entre a cozinha popular e a
aristocrática. De qualquer forma , nessa época as diferenças entre as
cozinhas " inglesa " e "francesa " não eram muito importantes.
O desenvolvimento das culturas alimentares tem estado muito relacionado
ao dos restaurantes. Na Europa, os restaurantes se desenvolveram
relativamente tarde, sobretudo no fim da Idade Média. Não tiveram o
seu empurrão definitivo até a Revolução Francesa, quando os cozinheiros
dos nobres ficaram sem trabalho e abriram seus próprios restaurantes.
No entanto, na Ásia, particularmente na China, existe uma tradição antiga
nesse aspecto que proporcionou bases sólidas a numerosas e distintas
culturas culinárias (Goody, 1989).

Alimentação e Identidade Cultural


As práticas alimentares são primordiais no estabelecimento e
manutenção da sociabilidade humana, no intercâmbio pessoal e na
reciprocidade (vimos superficialmente tal tema na seção '~limento,
comida e cozinha"). Serviram, historicamente, para marcar as diferenças
étnicas e sociais, na medida em que constituíram uma via para classificar
e hierarquizar as pessoas e os grupos, assim como para manifestar as
formas de entender o mundo. Como já foi dito, somos o que comemos.
Segundo Fribourg (1996), o ato de comer serve de signo entre os que

138
part1c1pam na ocasião comensal, pois con stitui um marcador de
pertencimento, ao mesmo tempo de inclusão e de exclusão social:
consomem-se aqueles pratos que se consideram próprios àquilo que é da
terra ou do mar, diante das comidas dos outros, diferentes. Nas modernas
sociedades urbanizadas e industrializadas , em que através da
industrialização e da tecnologização generalizaram-se modelos culturais
que tendem a apagar qualquer originalidade regional ou nacional, a cozinha
se converte em um meio de proteger certos traços identitários, ainda que
a estandardização modifique amplamente os modelos alimentares
contemporâneos.
Pode-se afirmar que a cozinha, ou melhor, as cozinhas refletem as
sociedades. Cada grupo social possui um quadro de referências que guia
a escolha de seus alimentos. Algumas dessas referências são
compartilhadas com outros grupos, outras são exclusivas; ao seu conjunto
corresponde um corpus mais ou menos estruturado de critérios que, por
essa razão, lhe confere uma particularidade diferencial, ou seja, distintiva
(Calvo, 1982). Do ponto de vista culinário, os grupos sociais são portadores
de algumas características específicas, ainda que nem sempre evidentes.
Geralmente, essa caracterização se constrói, como em outros campos da
identidade cultural, em relação aos 'outros'.
De acordo com Garine (1996a), o ato de se alimentar se inicia com
a obtenção de comida, por predação ou produção, e se conclui no
consumo. Como vimos anteriormente, o que se entende por cozinha,
contudo, vai bem além da arte de apresentar criativamente a comida:
envolve tudo o que tem a ver com a alimentação, seu passado e seu
presente. Não é fácil diferenciar a cozinha stricto sensu das operações
técnicas que a precedem (a conservação, o armazenamento ou a
preparação dos artigos fazem parte da elaboração dos pratos), nem das
operações posteriores, como a reciclagem dos restos, por exemplo. Em
um sentido restrito, a cozinha foi definida como o processo referente às
atividades posteriores à conservação dos alimentos, indo da cozinha à
mesa com o objetivo de consumo, mais ou menos rapidamente, dos pratos
elaborados. Nossa ideia de cozinha é, porém, aglutinadora.
A cozinha determina aquilo que é comestível e aquilo que não o
é, e constrói o conjunto de nossas preferências e aversões alimentares
por·meio dos saberes e habilidades técnicas transmitidos de geração a
geração, com base na experiência de nossos antepassados e aprendidos
por membros de uma determinada sociedade. Por essa razão as escolhas
alimentares aparecem unidas, em boa medida, à cultura, de forma que,
ao ingerir um alimento, as pessoas que comem se incorporam a um sistema

139
culinário - práticas materiais e simbólicas - e, portanto, ao grupo que o
pratica, a menos que esteja expressamente excluído. Esse sistema culinário
corresponde, por outro lado, a uma visão de mundo e contribui para dar
sentido ao ser humano e ao universo, situando um em relação ao outro
em uma continuidade global (Douglas, 1979; Fischler, 1995a, 1995b).
Um grande número de aspectos específicos acaba, ao longo dos
séculos, por produzir uma cozinha original. Diz-se que a cozinha é mais
conservadora do que a religião, a língua ou qualquer outro aspecto da
cultura, no sentido de que há elementos fundamentais que continuam
resistindo às conquistas, aos processos de colonização ou à mudança
social e tecnológica e, inclusive, aos efeitos da industrialização e da
urbanização. Esses elementos fundamentais são os chamados princípios
de condimentação', os quais desempenham um papel mais decisivo que
o resto, conferindo especificidade, continuidade e estabilidade ao sistema
alimentar. Podemos citar, por exemplo, produtos básicos como o vinho,
o trigo ou o azeite de oliva para a área mediterrânea. Mas é preciso
considerar que o uso desses produtos varia substancialmente na escala
local , regional ou nacional , e inclusive familiar e individual; e
frequentemente é difícil, como assinala Fischler (1995a, 1995b),
estabelecer uma fronteira entre unidade e descontinuidade, entre dialetos
e idioletos culinários. Efetivamente, as cozinhas são tão diversas como
as variedades linguísticas: há tantas falas diferentes quanto cozinhas
diferentes: pode-se, inclusive, aplicar o dito popular segundo o qual
"cada maestrillo tiene su librillo" : cada um, partindo de um sistema de
práticas materiais e simbólicas comuns, acaba interpretando e resolvendo
a cozinha de uma forma particular.
Apesar de haver, sobretudo nas grandes cidades, certa heterogeneidade
culinária per se, fruto da diversidade social e individual, considera-se que
as cozinhas costumam ter uma dimensão étnica, regional e/ou nacional,
constituindo um aspecto da identidade do grupo. No entanto, como já
vimos, muitas pessoas só se dão conta de que têm gostos socialmente
definidos e uma maneira específica de comer quando saem de seu país ou
veem, por meio dos veículos de comunicação, formas distintas de cozinhar.
Existem, pois, dificuldades para se referir a uma cozinha étnica ou nacional.
Reconhecer e identificar uma cozinha como própria pode acontecer quando
diferentes grupos entram em contato entre si. De fato, a maioria de pessoas
acaba por citar os pratos típicos que, por outro lado, não correspondem
necessariamente à cozinha autóctone.
Geralmente é na interação com outras populações que os membros
de determinado grupo tomam consciência de suas particularidades. Só

140
assim se realiza o sentido de pertencimento e de identidade. Há exemplos
que mostram que os seres humanos marcam tal pertencimento mediante
a afirmação de sua peculiaridade alimentar diante e em contraste com
aquela 'dos outros'. A comida é um importante elemento utilizado pelos
grupos sociais para tomarem consciência de sua diferença e de sua
etnicidade - vista como o sentimento de fazer parte de uma entidade
cultural diferente - , de maneira que compartilhar pode significar o
reconhecimento e a aceitação/incorporação de tais diferenças. As refeições
em comum, como dizia Durkheim (1960), criam em numerosas sociedades
uma espécie de laço de parentesco artificial entre os que delas participam.
Da mesma forma que os parentes estão acostumados a comer juntos por
motivos diversos.
A ideia que cada grupo tem sobre a comestibilidade dos produtos
ocupa lugar importante nos contatos culturais, já que significa o
estabelecimento de uma relação ou confronto de princípios comuns ou
diferentes sobre aquilo que é ou não comestível - implicando, assim, a
manutenção, a mudança ou o abandono das práticas alimentares próprias.
Com os movimentos de população, sejam motivados pela migração, pela
conquista ou pelo turismo, os contatos adquirem relevo importante no
âmbito da alimentação, na medida em que as pessoas entram em um
processo de acomodação ou de conflito, com soluções diversas segundo
as percepções interiorizadas da comestibilidade e do pertencimento. Cada
grupo traz consigo uma categorização determinada e, possivelmente, a
guardará por bastante tempo quando a inserção já tenha se produzido.
Por exemplo, nas principais cidades espanholas, a existência de redes
próprias para o abastecimento e distribuição de produtos originários dos
países ou regiões de onde procedem as populações imigradas é resultado,
em grande parte, do desejo de preservar os elementos fundamentais do
próprio sistema alimentar (Kaplan & Carrasco, 2002). Tais redes lhes
permitem cozinhar apesar da substituição de ingredientes e formas de
preparação básicas com azeites, frutas, cereais e verduras do lugar de
procedência, assim como sacrificar as carnes segundo as normas prescritas
(o halafNT entre os muçulmanos, por exemplo).
Estamos diante de processos muito complexos nos quais intervêm
aspectos materiais, políticos e psicoculturais, e é possível que a
alimentação tenha um papel de diferenciação social entre os elementos
do processo de inserção, seja pelo sentido dado aos produtos ou pela
codificação social e cultural que se opera nas diferentes classes sociais.

NT Palavra árabe que significa o que é permitido.

141
Essa classificação pode reger o uso dos produtos para cada um dos
diferentes grupos étnicos (Calvo, 1982).
A etnografia demonstrou que a aplicação rigorosa das regras
alimentares foi, ao longo do tempo, uma proteção contra a aculturação
e a perda de identidade diante do contato cultural com outros grupos.
Além disso, é lógico que os coletivos de imigrantes queiram não abandonar
certas práticas, mas, ao contrário, criar em suas sociedades de destino
espaços adequados para satisfazer às demandas de produtos fundamentais
na sua alimentação de origem e suas peculiaridades alimentares. De fato,
foi possível comprovar que, em certas situações de minorias culturais,
alguns traços culinários persistem , ainda que outros tenham sido
esquecidos. Assim, apesar de costumar registrar mudanças de diferentes
tipos, o estilo alimentar parece mais forte e mais durável do que outras
características culturais que são, no entanto, também básicas - como as
práticas religiosas, o uso da língua materna ou o vestuário. Para Calvo
(1982), as práticas alimentares seriam as últimas a desaparecer em caso
de assimilação total. E adquirem um lugar muito importante para marcar
as diferenças com a sociedade de destino, já que seus portadores lhe
conferem um significado considerável.
A área metropolitana de Barcelona, por exemplo, como qualquer
outra grande área metropolitana receptora de pessoas de diversas
procedências, protagonizou nas últimas décadas diferentes tipos de
movimentos migratórios. Se os imigrantes de fins dos anos 50 e da década
de 60 do século passado, de origem castelhana, residentes nessa cidade
ainda hoje celebram um encontro familiar com um gazpacho manchegoNT
ou umas migas,NT os imigrantes dominicanos o fazem servindo um arroz
ao vapor com feijão vermelho e recheado com carne, ou os imigrantes
gambianos de primeira geração continuam resolvendo suas refeições do
meio dia com o chew ou o durango/domoda ,NT é porque essas práticas
respondem a seus gostos e saberes, além de identificá-los como grupo.
É como certos pratos que se convertem em pratos totem, incorporando
um valor simbólico muito peculiar que faz deles uma chave da identidade
cultural, indicadores da especificidade e da diferença. Esses pratos recriam
uma identidade, e as reuniões para degustá-los em grupo recriam uma
comunidade de origem que existe, precisamente, como consequência da
imigração. De forma paralela, essas práticas se convertem em parte do

NT Caldo de carne de coelho e perdiz.


NT Caldo à base de pão e carne de porco.
NT Molho à base de amendoim e pimenta.

142
patrimônio de pertencimento e depois servem para a rememorização
emotiva e identitária por parte da geração seguinte, apesar de as pressões
homogeneizadoras das sociedades industrializadas tenderem, cada vez
mais, a anular certas especificidades.
Se admitimos que a etnicidade é fruto dos processos de
diferenciação social que se dão no contato de uns grupos com outros e
que esses contatos interculturais são habituais nas grandes áreas
metropolitanas, é preciso se perguntar: o que ocorre nas cidades ou
metrópoles? Até que ponto o fato de uma cidade ser um destino mais
ou menos permanente para populações de diferentes procedências implica
a delimitação de uma identidade culinária autóctone ante outras possíveis
identidades? Por outro lado, até que ponto os assentamentos das
populações tratadas unicamente como força de trabalho, ainda que
portadoras de cultura, modos de vida e pensamentos próprios, podem
supor um deslocamento das cozinhas autóctones e/ou uma aculturação
dos sistemas culinários de origem?
Em geral, há uma tendência a superestimar a originalidade e a
perenidade das próprias práticas alimentares. Hoje, por exemplo, à
população autóctone de uma cidade como Barcelona parece que certos
alimentos sempre estiveram na sua cozinha. É o caso das batatas, dos
tomates, do porco, do azeite de oliva, dos pimentões ou do bacalhau, do
café, entre outros. Mas uma parte considerável dos produtos que hoje se
consomem de maneira habitual era praticamente desconhecida nessa
cozinha até relativamente pouco tempo atrás. A batata, tão comum nos
pratos dos barceloneses, foi trazida da América e levou mais de três séculos
para se arraigar nas cozinhas mediterrâneas (Salarnan, 1949). Barcelona,
assim como outros lugares dessa área e de qualquer outra parte do mundo,
constitui um espaço de encontro culinário , onde se produziram
fenômenos tanto de apropriação de elementos característicos de outras
cozinhas com as quais se mantiveram contatos culturais quanto de
transferência e influência para outros sistemas alimentares por seu
cosmopolitismo. Basta ver a procedência dos alimentos básicos dessa
cozinha para admitir seu caráter dinâmico e multicultural. Vegetais como
o tomate, o milho, a batata ou os pimentões são americanos; o arroz, o
pêssego ou a laranja, asiáticos; os espinafres, as alcachofras ou a berinjela
foram trazidos pelos árabes. Talvez, dessa longa lista, se salvariam
basicamente os já citados trigo, vinha e oliveira, apesar de que não são
utilizados nem na mesma quantidade e nem com a mesma finalidade por
todos os povos do Mediterrâneo (Medina, 1996) e tampouco,
evidentemente, por todos os barceloneses.

143
Diz-se que Barcelona - supondo-se uma nova e diferente disposição
do espaço e do tempo de trabalho, que dissolve seus vínculos com o
campo e os antepassados - modificou profundamente o apetite dos
catalães e transformou, ainda que relativamente, o papel doméstico da
cozinheira em benefício do restaurante e da indústria, e também sacrificou
o encontro da família em favor daquele com os colegas de trabalho,
estudo ou, simplesmente, das refeições solitárias (Capatti, 1989a, 1989b ).
Nos últimos quarenta anos, a cultura alimentar dos habitantes da cidade
está se transformando em ritmo frenético que marca as exigências dos
ciclos econômicos em grande escala, as redefinições hierárquicas que
sucedem na esfera doméstica e a incidência das diferentes mensagens
relacionadas à alimentação, à saúde e ao corpo. De qualquer forma, o
processo de rápida industrialização e urbanização, a mudança da estrutura
econômica, as transformações no mercado de trabalho, o aumento do
nível de vida da população, a maior incorporação feminina no trabalho
fora de casa remunerado , as variações da composição familiar , a
coisificação do corpo e a hegemonia da magreza ou o novo valor
outorgado ao tempo de trabalho e de lazer geraram expressões alimentares
particulares. Assim, a alimentação, ao mesmo tempo que tem se
diversificado em períodos mais ou menos recentes, também se tem
homogeneizado, internacionalizando-se em diferentes aspectos. O espaço
culinário doméstico tecnificou-se, o que coincide com sua menor
utilização; ao mesmo tempo, as comidas caseiras se simplificaram e as
despensas se encheram tanto de 'alimentos serviço' que economizam
esforços e tempo como também, dependendo do tipo de lar, de produtos
de reconhecida qualidade e com denominação de origem.
Todas essas novas tendências vieram a conformar, efetivamente, o
que poderíamos qualificar de uma nova ordem alimentar (ver cap. 9) e
afetaram a estrutura e composição das comidas, as formas de
abastecimento, o tipo de produtos consumidos, as maneiras de conservá-
los e cozinhá-los, os horários e a frequência das refeições, os orçamentos
investidos, as normas à mesa ou os trabalhos e valores associados às práticas
alimentares. Trata-se de uma ordem complexa e heterogênea per se. Ainda
que, à diferença de outras épocas, a maior parte da população das
sociedades urbanas tenha hoje a possibilidade de eleger entre um amplo
leque de possibilidades. Assim, suas respostas, da mesma maneira que
sucede em outros âmbitos sociais, são essencialmente plurais. Existem
numerosas pressões econômicas e políticas para que os comportamentos
alimentares das populações industrializadas convirjam e se assemelhem
cada vez mais entre si, apesar de que, por outro lado, esse mesmo tipo de

144
argumento seja utilizado por outros setores para reivindicar a manutenção
ou a restituição das cozinhas regionais e autóctones. Assim, as perguntas
que devem ser propostas estão relacionadas à forma como essas mudanças
afetaram a identidade alimentar de seus habitantes e, ainda, à
possibilidade de que a cozinha dos que vivem na cidade seja consequência
de um processo de adaptação ao novo espaço e às formas de vida que se
articulam em torno da efervescência das cidades. Em qualquer caso, esses
processos são antigos. As transformações alimentares, os processos de
aculturação- de mestiçagem?- se produziram ao longo de toda a história
da humanidade. Com certeza, alguns foram mais transcendentes e
complexos do que outros.

Com base nas considerações anteriores podemos concluir que, já


há algumas décadas, proliferaram os estudos dedicados às múltiplas e
diversas relações entre alimentação e cultura que, mesmo que frequentes
e cotidianas, não deixam de ser complexas. Observar que o alimento não
é simplesmente algo para 'nutrir-se' não significa que ignoremos que
também é uma substância nutritiva, no sentido de que, efetivamente, é o
'combustível' de que o 'depósito' do nosso organismo biológico necessita
para funcionar (Murcott, 1998).
Nada define melhor a nossa natureza como seres vivos - ou ainda
mais dramaticamente, talvez - que a nossa ingestão (Mintz, 1996). Um
dos principais focos de sofrimento no mundo contemporâneo ainda é a
fome (ver cap. 8). Existem, no entanto, muitos tipos de fome. Jejuar, por
exemplo, é um meio dramático pelo qual descobrimos o poder da comida.
Só quem já tenha jejuado, ainda que só por um dia, sabe o que significa
experimentar tal sensação de poder. Aqueles que o fazem durante
períodos mais longos, motivados por desejos morais, devem lutar contra
a sua própria fome. Ter que jejuar porque não há nada que comer, como
acontece a muita gente hoje, é o modo mais desmoralizador de conhecer
o terrível poder da fome. As estimativas feitas pela Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, 2003) indicam
que ainda existem 815 milhões de pessoas que carecem de suficiente
comida.
Portanto, a comida apresenta uma ambivalência profunda: é fonte
de intenso prazer, mas é também fonte de sofrimento. Essa dualidade
também apresenta traços culturais: nem todas as sociedades sentem o
mesmo pela comida, e a comida pode ser diferentes coisas. As atitudes

145
diante dos alimentos são tanto numerosas quanto variadas e se manifestam
ao expressar o que significa comer, de que nos serve ou para que comemos.
Como exemplo extremo dessa ambivalência, podemos citar determinadas
condutas de jejum e/ou ataques de compulsão pela comida que
acompanham a anorexia nervosa e a bulimia nas sociedades
industrializadas e em torno das quais se misturam concepções de gênero,
de corpo e de dieta. Em qualquer caso, comer ou recusar comida se
converte em uma via de prazer e sofrimento, em que se alimentar -
necessidade biológica básica - se constitui como algo mais que os seres
humanos transformam simbolicamente em um sistema de significados e
de relação entre as pessoas e entre os povos.

146
3
Os Condicionamentos Contextuais
e a Variabilidade Cultural dos
Comportamentos Alimentares

A alimentação vincula o natural ao social em um sentido amplo, e


o ato de comer ilustra bem a maneira como os seres humanos são
simultaneamente organismos biológicos e entes sociais (Fieldhouse, 1995;
Murcott, 1998). Essa dupla natureza biassociai, que funciona com estreita
vinculação, deve ser sempre levada em consideração, especialmente por
aqueles que, por meio de suas orientações e prescrições, pretendem
intervir, para modificar, nas pautas alimentares praticadas por
determinado grupo humano. Porque, de fato, uma das questões principais
que salta aos olhos quando observamos ao nosso redor é a 'variação
cultural' dos sistemas alimentares. De fato, é extraordinariamente ampla
a gama de substâncias que são consumidas como alimentos, as formas de
obtê-las, conservá-las ou servi-las e as situações nas quais estas ou aquelas
são consideradas oportunas segundo as distintas culturas do mundo.
Ainda que um número considerável dos padrões alimentares
consista em comer tanto produtos de origem animal corno produtos de
origem vegetal, nem sempre o contexto permite que isso aconteça e há
várias sociedades que seguem uma dieta na qual um dos dois tipos
prevalece, sem que por isso apresentem problemas de saúde. Um exemplo
bem conhecido é o dos Inuit ou esquimós, "comedores de carne crua",
antes de sua "ocidentalização" (Farb & Armelagos, 1985): quando a caça
tinha êxito, um adulto poderia ingerir até cinco quilos de carne, como
dito no capítulo anterior. Todos os estudos realizados revelaram que
entre eles não havia nenhuma doença importante etiologicamente
vinculável a carências nutricionais. Vários elementos entraram em jogo
para explicar como essas populações obtinham o equilíbrio alimentar;

147
entre eles, o fato de que também colhiam plantas selvagens (raízes, frutos
carnosos e grãos) na época do degelo, adicionando-os ao conteúdo
fermentado do estômago dos herbívoros obtidos por meio da caça e
comendo-os durante todo o ano em pequenas quantidades, o fato de
consumirem grande parte dos animais que matavam, em particular seus
órgãos internos e gorduras, e, além disso, os consumirem crus ou
levemente cozidos, conservando assim um nível ótimo de vitaminas e
minerais. Isso significa que a cultura alimentar dos lnuit estava adaptada
de forma relativamente ótima às condições definidas pelo ambiente.
Apesar da precariedade do meio e da menor diversidade de seu
ecossistema, esse povo também selecionava certas substâncias para serem
comidas, enquanto rejeitavam outras por considerá-las impróprias para
o consumo.
A existência de preferências e aversões muito díspares entre as
culturas nos obriga à reflexão. As respostas gerais em termos de dietas
ou regimes dependem de um infindável conjunto de fatores. Uns fazem
referência a condições de caráter biológico e psicológico. É o caso das
experiências sensoriais proporcionadas pelos alimentos (sabor, aspecto,
aroma, cor, textura), que respondem a demandas tanto por determinados
nutrientes quanto por determinadas sensações, entre muitas outras
possibilidades. Outros fazem referência a determinantes de caráter
contextual (ecológico, econômico, político ou ideológico), como a
disponibilidade dos recursos necessários, tecnológicos ou monetários,
suficientes para adquirir determinados produtos ou para cozinhá-los de
determinada maneira. Colocar um alimento na boca, por mais simples
que pareça a ação, depende da articulação de cada um desses fatores que
interagem de modo complexo. Todos eles, estreitamente vinculados,
constituem as principais condições das diferenças, assim como das
semelhanças, registradas entre os comportamentos alimentares. Assim,
as perguntas que cabe formular agora são: Por que comemos o que
comemos? E como explicar a variação intercultural dos comportamentos
alimentares?

Fatores Ecológicos, Tecnológicos


e Econômico-políticos
As formas de armazenamento e tratamento dos alimentos
dependem, em boa medida, das 'disponibilidades ecológicas' e dos
'equipamentos tecnológicos' de cada sociedade, em função do seu tipo
de habitat e de suas condições particulares de existência. Por outro lado,

148
as condições de existência variam em função do tempo e do espaço. Em
princípios do século passado, por exemplo, nas cozinhas dos lares
espanhóis eram poucos os eletrodomésticos de qualquer tipo, e as tarefas
de triturar, bater, cozinhar ou assar os alimentos pediam outras técnicas
culinárias que demandavam mais tempo e esforço. Por sua vez, a escassez
ou o preço do combustível pode explicar alguns hábitos relacionados
com as formas de preparar e cozinhar os alimentos. Entre os grupos de
marginalizados que vivem nas favelas brasileiras, por exemplo, os altos
custos dessa matéria-prima têm um efeito definitivo sobre a escolha dos
alimentos consumidos pelas famílias, que optam com frequência pelos
produtos que não dependem de cacção.
Vimos no capítulo 2 como determinadas preferências e aversões
alimentares são o resultado de características biológicas particulares dos
seres humanos, algumas delas, inclusive, herdadas geneticamente. Vimos,
também, que a gama de requisitos nutricionais é estreita, mas são vários
os modos de satisfazê-los. Esses diversos modos podem constituir
vários mecanismos adaptativos; uns são biológicos, e já falamos sobre
eles, outros são respostas culturais, e delas falaremos em seguida.
A variedade de substâncias que são consumidas como alimentos
pelos diferentes povos do mundo é extraordinária. Classificados segundo
seu tamanho, os animais gastronomicamente apreciados, por alguns povos
ou por outros, vão desde a formiga até a baleia. Entretanto, para cada
grupo cultural específico a lista dos recursos considerados comestíveis
varia consideravelmente. Por exemplo, a dieta tradicional entre os lnuit
era composta, fundamentalmente, por carne e peixe; outros povos, pelo
contrário, ingerem principalmente diferentes tipos de cereais. Em outras
sociedades, entretanto, como as tribos indígenas da América do Norte,
comia-se mais de uma centena de variedades de sementes, raízes e nozes,
além de diferentes tipos de carne procedentes dos diferentes animais
que caçavam. Por outro lado, e em outro sentido, o milho, alimento
básico entre vários povos africanos, é rejeitado hoje como "uma semente
para pássaros" nos países mais ricos. Os que comem carne comem apenas
alguns tipos, mas não outros. Os povos "ocidentais" mostram repugnância
diante da ideia de comer insetos. O leite provoca preferências e aversões
em uns e outros povos e, desde a Antiguidade , seu consumo foi
considerado, indistintamente, como sinal de civilização e barbárie. No
século XIX, Bourdeau (1894: 18) relatou:

Desconhecido para os povos selvagens, o leite se converteu em um dos


mais preciosos recursos dos povos pastores, que transmitiram o gosto para

149
a maioria das nações agrícolas ( .. .). Em vastas regiões, como a China e
outros países da Ásia Oriental, o leite é completamente inusitado. Longe
de apreciá-lo, esses povos manifestam sua aversão pelo que chamam de
'sangue branco'. Os gregos dos tempos heroicos também não consumiam
o leite habitualmente. Homero fala dele como de um alimento próprio
para os povos bárbaros, chamados, como consequência, de 'galactófagos'
ou 'hipo-mulgos'. Heródoto caracteriza-o como um traço dos costumes
dos citas (para os gregos o povo 'bárbaro' por antonomásia), já que o leite
constituía sua subsistência habitual.

A variação pode ser ilustrada, também, em outra perspectiva: os


chineses da província de Hunan comem camarões quando eles ainda
estão movendo as patas; da mesma forma que norte-americanos e
europeus não hesitam em degustar ostras vivas . Em contrapartida,
também, encontramos algumas populações asiáticas que preferem
consumir determinados alimentos em um estado tão avançado de
putrefação que o cheiro se espalha a dezenas de metros ao seu redor.
Segundo os lugares e as épocas, foram considerados pratos deliciosos: os
fetos dos roedores, as línguas de cotovias, os olhos de cordeiro, os ovos
de enguia, o conteúdo do estômago das baleias. Urna das esquisitices
escocesas - o haggis - é uma mistura bizarra que provocaria náuseas em
muitas pessoas. Consiste em cozinhar em conjunto o estômago de um
cordeiro, pulmões de vaca com seus intestinos, seu pâncreas, seu fígado
e seu coração, tudo isso condimentado com cebolas, gordura de rim de
boi e papa de aveia.
Definitivamente, nenhum grupo humano ou social classifica como
alimento todo o potencial de recursos comestíveis que lhe são acessíveis.
Ao mesmo tempo, isso não exclui, salvo em situações de excepcional
escassez, que sejam feitas escolhas alimentares entre os recursos a seu
alcance. Isso pode parecer óbvio quando se pensa nas modernas sociedades
industrializadas e na superabundância, mas pode ser mais surpreendente
se pensamos nas sociedades caçadoras-coletoras. Entre os bosquímanos
do deserto de Kalahari, por exemplo, a abundância de recursos é destacada
pelo fato de não explorarem todos os recursos de seu meio. A noz de
mongongo, que está na base de sua alimentação, é encontrada em
quantidade praticamente inesgotável (em relação à densidade da
população, claro). Além disso, é obtida durante todo o ano, é fácil de
colher, agradável ao paladar e altamente nutritiva. Comparada com o
amendoim, planta também muito nutritiva, a noz de mongongo contém
muito mais proteínas, três vezes mais cálcio, duas vezes mais potássio e

150
quase a mesma quantidade de ferro, sem contar as grandes quantidades
de vitaminas e minerais. Assim, então, pode-se afirmar que os
bosquímanos praticam uma verdadeira "estratégia" de exploração de seus
recursos que lhes permite 'escolher', entre todos os recursos disponíveis,
aqueles que lhes parecem os mais desejáveis em função de suas
preferências de paladar, da distância em que são encontrados, de sua
abundância, de sua segurança etc. Essa seleção alimentar, que é traduzida
em certa subutilização do meio, se dá em maior ou em menor medida em
todas as sociedades caçadoras-coletoras. Os pigmeus Mbuti, por exemplo,
assim como os tasmânios, não aproveitam um recurso tão importante
como o peixe e não caçam nem os pássaros, nem os chimpanzés (Farb &
Armelagos, 1985; Testart, 1973), enquanto em determinadas regiões do
Brasil existem mercados nos quais esses animais são adquiridos como
produto alimentício.
Essas observações relativas à subexploração do meio ambiente por
parte de muitas sociedades tribais permitem pensar que, contrariamente
ao que se acreditava, tais populações não tenham vivido continuamente
nos limites das possibilidades de um sistema, à beira da fome ou da
catástrofe. Não se trata, portanto, de sociedades famintas, nem foi a
escassez de alimentos o que determinou seu nomadismo. Além disso, o
modo de vida caçador-coletor exige pouco trabalho - menos de três horas
diárias no caso dos bosquímanos-, e com isso é assegurada uma relativa
abundância. A quantidade de calorias absorvidas por dia é boa no caso
dos aborígines australianos ou dos bosquímanos, para os quais a produção
de calorias excede levemente o consumo, gerando a possibilidade de um
excedente. Por outro lado, na medida em que a esperança de vida seja
um indicador da dificuldade do modo de vida, deve-se destacar que 10%
dos bosquímanos Kung têm mais de 60 anos e que a prática do suicídio
foi totalmente excepcional. Na verdade, pode-se dizer, inclusive, que os
caçadores-coletores (levando-se em conta que as plantas silvestres
constituem, como regra geral, entre 70 e 80% da dieta) estão mais
protegidos que os agricultores contra a fome. De fato, diferentemente
dos agricultores, que dependem de plantas cultivadas para sua
subsistência, os coletores estão duplamente protegidos das ameaças da
fome, pela diversidade de seus recursos e pela menor vulnerabilidade
das plantas silvestres às calamidades naturais. Para citar apenas cifras
relativas a regiões desérticas, cabe destacar que os Kung exploram 85
espécies vegetais, os Walbiri, 52, e os Pitjandara, 36 delas (Testart, 1973).
Vejamos outras manifestações da variação das adaptações
alimentares. De uma população tribal estimada em cerca de trinta milhões

151
de pessoas, na Índia, encontramos 250 espécies animais que são rejeitadas
por um ou outro grupo tribal, mas não por todos. A maioria deles, por
exemplo, se abstém de comer o tigre ou qualquer espécie de serpente, a
cobra em particular. É evidente que o tigre e a cobra são animais
extremamente perigosos e que seria insensato caçá-los com frequência.
Também se observa uma repugnância generalizada a comer as fêmeas das
espécies comestíveis. Isso se atribui a sua veneração em função de seu
papel de procriadoras. Em qualquer caso, essa aversão contribui para
uma "política econômica" orientada para facilitar a reprodução das
espécies consideradas comestíveis. Muitas tribos rejeitam, igualmente,
comer um animal morto por causa desconhecida, o que é uma atitude
inteligente, pois o animal pode ter sido vítima de uma infecção que
pode ser transmitida aos seres humanos. Também são evitados os animais
que se nutrem de detritos e excrementos, o que é um primeiro passo
para evitar contato com todo tipo de parasitas, e talvez explique também
que os membros de uma determinada tribo comam 21 espécies de ratos
diferentes mas não toquem no rato doméstico.
Por sua vez, as concepções particulares dos europeus sobre o que
eram alimentos e sobre como esses deveriam ser cultivados pode explicar
o fato de que, em suas empresas coloniais, as nações europeias
privilegiaram os cereais, únicas plantas alimentícias verdadeiramente
nobres a seus olhos. É preciso dizer que essas sociedades, e a civilização
das quais participavam, deviam tanto à domesticação neolítica do trigo e
da cevada na Ásia que chegaram a pensar que não existia agricultura,
alimentação, nem civilização dignas de tais nomes senão aquelas baseadas
nos cereais (Barrau, 1983). Daí o interesse que manifestaram pelo arroz
asiático e, mais tarde, pelo milho americano. Mas daí, também, o desprezo
que durante muito tempo mostraram pelos tubérculos exóticos,
interessando-se apenas por aqueles que, com mais ou menos fundamento,
evocavam o pão, como a fruta-pão, por exemplo;'º ou por aqueles que,
de acordo com suas utilizações tradicionais, permitiam, por meio da
extração de seu amido, a preparação de papas ou de biscoitos, como a
mandioca americana. Vale refletir, por exemplo, sobre a resistência que
houve na Europa a se adotar a batata procedente do Novo Mundo. Em
10
Uma lenda do Taiti narra como a fruta-pão tem sua origem na história de um pai
que, para evitar a fome de seus filhos , se transforma em uma bela árvore cujo
suculento fruto permitiria alimentar a comunidade e evitar a fome no futuro; no
fim do século XVIII , diferentes expedições europeias foram à Indonésia e à
Polinésia em busca dessa árvore para adaptá-la a terras americanas e obter, assim,
um aumento notório na produção dos alimentos para uma população em
crescimento.

152
um primeiro momento, ela foi considerada um produto adequado para
alimentar os porcos, os prisioneiros e os camponeses pobres. Logo acabaria
se impondo, a partir do início do século XVIII, primeiro entre os
camponeses e depois em geral, dadas suas múltiplas vantagens agrícolas:
um campo de 0,40 hectares de batatas poderia alimentar uma família de
cinco ou seis pessoas durante todo um ano, acrescentando-se uma vaca e
um porco. A batata se adapta a uma grande variedade de solos, seu
cultivo não exige mais que uma enxada e um ancinho, e amadurece em
três ou quatro meses, enquanto os cereais tradicionais necessitavam de
mais de seis. E, além disso, tem alto valor nutritivo. 11
A esses preconceitos alimentares foram acrescentadas outras
oposições decorrentes das características fisiológicas das plantas
alimentares domésticas e de sua cultura. Os cereais, tão queridos pelas
sociedades e civilizações ocidentais, são plantas anuais, que só vivem e
dão frutos no ano seguinte ao seu plantio. São reproduzidos por meio
de semente e se multiplicam por grãos. A maior parte dos tubérculos
tropicais, em contrapartida, são vegetais perenes que podem viver durante
vários anos e, além disso, se multiplicam pelo que se chama "via
vegetativa'', isto é, por brotos ou por meio da plantação de mudas. Por
outro lado, semeado com antecedência e colhido em massa, o 'campo'
de cereais das sociedades e civilizações originadas da "revolução neolítica"
do Oriente Próximo teve por modelo inicial a pradaria na qual os coletores
pré-históricos recolhiam os grãos selvagens para se alimentar. Por sua
vez, a 'horta' tradicional das zonas tropicais úmidas, com vegetais diversos
plantados individualmente, teve como primeiro modelo a selva, que
continua sendo a forma vegetal dominante, e na qual os coletores iam
11
Em meados do século XVIII, os livros de cozinha europeus ai nda não
mencionavam a batata. Mencionavam apenas a batata tupinambá, a vagem verde e
o milho, mas sua integração foi feita sem nenhum temor. As resistências dos
europeus a consumir a batata foram muito comentadas. Na realidade, seu consumo
não se impôs até princípios do século XVIII, e somente entre os camponeses, por
suas vantagens agrícolas e seu valor nutritivo. Na Enciclopédia de Diderot repudiava-
se terminantemente a batata, fosse qual fosse o modo de prepará-la: "Essa raiz é
insípida e farinácea. Não pode ser classificada entre os produtos alimentícios
agradáveis, mas proporciona nutrição abundante e bastante sã para os homens
que se contentam com ser alimentados. A batata é justamente considerada como
flatulenta , mas são ventos para os órgãos vigorosos dos camponeses e
trabalhadoras" (citado por Crosby, 1972: 182). Apesar disso, a batata foi adotada
precocemente pelos irlandeses, considerados "selvagens e primitivos" por seus
vizinhos, os ingleses. Mas seu cultivo e consumo humano foram generalizados e
propiciaram transformações profundas na dieta, na agricultura e na sazonalidade
da abundância.

153
de planta em planta para colher frutos, folhas ou tubérculos. Em cada
um desses casos, finalmente, os contatos entre os homens e as plantas
são muito diferentes, e é muito diferente também a repercussão que
esses têm nas relações entre os homens (Barrau, 1983). Nesse sentido, é
pertinente perguntar-se, por exemplo, se as diferentes formas de tributo e
de dízimo pelo uso dos cereais, tão desenvolvidas na Europa medieval, e
que os europeus tentaram levar para o Novo Continente, teriam sido
possíveis se tivesse predominado um cultivo do tipo 'hortas' tropicais.
Assim se compreende também o interesse que os senhores e os monastérios
medievais tiveram na ampliação do cultivo do trigo, em detrimento dos
camponeses. No caso da região andina, por exemplo, a enorme
diversidade das formas de consumo de produtos andinos assim como as
numerosas variedades de tubérculos e de milho eram um problema para
os arrecadadores dos tributos. Os diferentes cultivas e as diversas
modalidades de consumo obrigavam os dizirnistas a buscar para cada povo,
e também para cada produto, formas de cobranças diferentes, "tão diversas
como as populações" (Hünefeldt, 1982). De fato, os índios poderiam
aproveitar o milho até dois ou três meses antes da colheita, para fazer
chochoca, chicha etc. T Já com relação às batatas, "la misma chacra les
sirve diariamente de despensa " ("a mesma chácara é usada diariamente
como despensa"), segundo se queixava um arrecadador.
O que foi dito até agora pode dar uma noção, por um lado, da
enorme variedade-de recursos que podem ser considerados comestíveis
pela espécie humana e, por outro, da diversidade entre os povos no
momento de catalogar estes ou aqueles recursos como comestíveis ou
rejeitados, levando-se em conta os diversos graus de aceitação ou de
rejeição que cada uma dessas sociedades pode apresentar, tal como
ilustrado na Figura 2 (cap. 2).
Os estudos antropológicos proporcionaram abundantes exemplos
de uma hipotética racionalidade das culturas nos processos evolutivos de
caráter seletivo: certas práticas alimentares ou culinárias corresponderiam
a uma funcionalidade mais ou menos inconsciente de ordem fisiológica
e/ou ecológica. A antropologia ecológica e o materialismo cultural
(Harris, 1985a; Harris & Ross, 1987; Piddocke, 1981; Rapapport, 1968;
Ross, 1980) pretendiam explicar determinados aspectos das práticas
alimentares considerando-as como ajustes às restrições do ecossistema,

NT Chochoca: termo a ndino que significa milho moído; chicha: bebida feita pela
mastigação de sementes de milho por mulheres, que depois as cuspiam em um
caldeirão com água ferve nte onde era fermentada e consumida.

154
por meio de estratégias (conscientes) ou processos (inconscientes) de
adaptação (cf. capítulo 1). A cultura é considerada como uma espécie de
superestrutura, estando a infraestrutura constituída pela "maximização"
da relação custo-benefício, econômica ou ecológica, que implicam as
práticas e as representações culturais. A esse respeito, Harris afirma que
os antropólogos interessados no problema das preferências alimentares
não podem deixar de considerar as limitações infraestruturais que
determinam os custos e os benefícios de cada dieta em particular. Assim,
por exemplo, a presença de tabus contra o sacrifício ou o consumo de
diversas espécies de animais selvagens comestíveis ocultou durante muito
tempo a importância das proteínas como fator limitador para agricultores
que produzem para sua subsistência. Muitos desses tabus são, em si
mesmos, uma prova da necessidade de práticas de conservação, já que
afetam a espécies que estiveram ou estão em perigo de extinção.
Consequentemente, os tabus que pesam sobre espécies como o bicho-
preguiça, a anta ou o veado refletem, talvez, situações de custo-benefício
ambíguas, advertindo sabiamente os caçadores contra a perda de tempo
que supõe perseguir animais escondidos ou espécies solitárias que fogem
para zonas pantanosas ou lugares isolados (Ross, 1980). Para os adeptos
do materialismo cultural, há muitas razões para se pensar que as principais
variações nas estratégias alimentares, tanto animais como humanas, são
governadas por princípios adaptativos análogos. Curiosamente, um mito
dos Baranda da Austrália Central, descrito por Leroy (1925), pode nos
oferecer um exemplo de até que ponto as explicações dadas por esses
antropólogos podem ser de todo pertinentes em relação à origem de
alguns tabus alimentares sobre determinadas espécies de animais. O mito
diz, textualmente, tal como transcreve Leroy:

Nos tempos do rei Kinton , os Baganda viviam unicamente da caça e se


alimentavam indistintamente de todo tipo de caça. Como a caça diminuía,
o rei Kinton decretou que certas espécies de animais já não podiam ser
consumidas por quaisquer familias. Esses foram os animais que, em seguida,
se converteram em seus totens.

Trata-se, pois, de um mito que se refere à origem dos totens e ao


estabelecimento dos tabus alimentares e que "explica" que a "razão" de
uns e de outros foi o que hoje chamaríamos de uma medida "ecológica"
de conservação da natureza para evitar que "o pão de hoje se converta
em fome amanhã". Ideias, as de totem e tabu, a serviço da "reprodução"
social, econômica e ecológica. O totem propriamente dito não pode ser
comido não porque deva ser respeitado, amado e temido, mas porque é

155
preciso reservá-lo para os outros clãs da tribo. A ideia fundamental, comum
a muitas outras tribos, é que os homens de cada grupo totêmico são
responsáveis pela manutenção da oferta de animais e plantas que dão
nome ao grupo e que a única razão para aumentar o número das plantas
ou dos animais totêmicos é, simplesmente, a incrementação da oferta de
alimentos (Spencer & Gillen, 1968). Independentemente de o rei Kinton
ter ou não existido, independentemente de o mito ser pura invenção ou
responder realmente a sua própria memória histórica, pode-se pensar,
pelo menos pensar, que na origem das restrições derivadas da instituição
totêmica há uma clara razão "adaptativa".
É óbvio que uma primeira condição para o consumo de carne é ter
acesso a ela, assim como poder assegurar tal acesso no futuro. Por essa
razão, para compreender que animais são comidos e se deseja comer em
uma dada cultura é necessário saber que animais formam parte de seu
meio . É importante, também, conhecer qual é a percepção que cada
cultura tem da cadeia fágica em tal meio e da relação custo-benefício de
suas escolhas alimentares em termos de inclusão ou exclusão.
E tudo isso não somente a curto prazo, mas, também, a médio e
longo prazos. De acordo com essas considerações, Harris (1985a) afirma
que as preferências e as aversões alimentares das diferentes culturas teriam,
historicamente, respondido a uma relação custo-benefício energeticamente
favorável. Assim se expljcaria, para cada cultura, a aceitação ou a rejeição
dos insetos, do porco, da vaca, do cavalo, do cachorro etc. Ou, inclusive,
dentro de uma mesma cultura, a norte-americana por exemplo, em que se
prefere a carne de porco à carne de vaca.
Por outro lado, de acordo com Fiddes (1991), a carne foi um símbolo
por meio do qual a sociedade ocidental, assim como outras sociedades,
expressou sua relação com o mundo no qual habita. No decorrer da
maior parte de sua história, a humanidade parece ter sentido necessidade
de controlar seu entorno ambiental para diminuir as ameaças provenientes
dos elementos e dos animais selvagens, assim como para assegurar certa
estabilidade na administração da comida e de outras necessidades vitais.
A importância do poder sobre a natureza fundamentou o prestígio da
carne. A mesma noção de "controle ambiental" proporciona o contexto
para as razões que justificam tanto o gosto quanto o desgosto pela carne
- por exemplo, crenças, reforçadas pelos especialistas médicos, relativas
a ser bom ou ruim para nosso corpo e nossa mente comer muita .carne;
ou princípios éticos relativos ao trato apropriado para os animais,
incluindo considerações sobre a ação de consumi-los como alimento.
Ainda assim, mais recentemente, aflorou o debate em torno das ameaças

156
ecológicas que pesam sobre o futuro de nossas espécies e daquelas em
que o consumo de carne está implicado.
De acordo com os princípios anteriores, poderiam ser considerados
vários exemplos de costumes alimentares, aparentemente estranhos ou
irracionais, mas que, na realidade, constituem ou constituíram respostas
adaptativas a restrições tecnológicas e ambientais variadas. Assim, dado
um conjunto de substâncias comestíveis, pode-se afirmar que os modos
de cozinhar refletem, em primeiro lugar, a disponibilidade de recipientes,
fornos, combustíveis e utensílios de cozinha. Dito de outra forma , é preciso
levar em consideração as características de cada alimento ou tipo de
alimento em particular (por exemplo, se alguns alimentos perdem valor
nutritivo ao serem cozidos, muitos alimentos vegetais tornam-se
comestíveis se são transformados por meio da cocção) e, também, os
recipientes e os métodos utilizados para cozinhas. Neste ponto convém
citar Barrau (1983) quando se refere à "revolução tecnológica do fogo e
da cocção" e indica que talvez tenha havido um exagero na importância
atribuída à revolução neolítica ou à domesticação das plantas e animais,
esquecendo-se uma revolução mais antiga, de ordem culinária e que,
por sua engenhosidade tecnológica, permite tornar comestíveis coisas
que não o eram necessariamente. Essa revolução, disse Barrau, começa
pelo fogo e pela invenção da cocção. De fato, de acordo com Faustino
Cordón, foi a familiaridade dos hominídeos com o fogo o que estabeleceu
as condições objetivas para o descobrimento da cozinha. Para Cordón
(1980: 85-86),

a cozinha é um fato capital na evolução, pois marca a fronteira entre o


animal heterótrofo (o comum dos animais) e o singular animal autótrofo,
que prepara seu alimento. Provavelmente foi preciso que transcorressem
muito milênios - talvez centenas de milhares de anos- desde que começou
o fogo a ser aplicado como defesa, e, em seguida, como fonte de calor, até
que foi descoberta sua aplicação realmente fundamental, a transformação
culinária.

Até certo ponto, humanização, por um lado, e efetividade no controle


e nos usos do fogo, por outro, são processos paralelos e que marcaram a
evolução. De fato, quando são discutidos os fatores que intervieram no
processo de evolução dos primeiros Australopithecus até as formas
modernas do gênero Homo, sempre são utilizadas diferentes variáveis:
o bipedismo, a fabricação de utensílios, a evolução da mão ou do cérebro,
as relações sociais através de atos comunitários como a çaca, a influência
do habitat... Mas sempre, em um momento ou outro da discussão, aparece

157
o fogo. Esse critério de horninização goza de unanimidade, posto que,
entre os seres vivos, apenas os grupos humanos chegaram a dominar o
fogo. As primeiras evidências da utilização do fogo aparecem tarde dentro
do largo processo evolutivo dos grupos humanos. De fato, quando
começou a ser utilizado, fazia mais de dois milhões de anos que o primeiro
australopiteco havia fabricado seu primeiro utensílio de pedra e muito
tempo, também, desde que os primeiros grupos de caçadores haviam
começado a praticar a caça. De fato, as primeiras evidências da utilização
do fogo se dão a partir de 450.000 anos atrás. E parece ser possível falar
nesse elemento integrado de maneira estável na bagagem dos primeiros
povos a partir de 200.000 anos atrás. De fato, realmente, o importante
para a humanidade não é o "descobrimento" do fogo, mas sim sua
incorporação à vida cotidiana dos grupos humanos (Molist, 2000).
Voltemos à tese de Faustino Cordón (1980). Para ele, além do fogo,
outra condição foi necessária para o descobrimento e desenvolvimento da
atividade culinária: a fome. De fato, o hominídeo, habituado a seu regime
de animal crudívoro , teve que vencer inicialmente uma grande
repugnância a comer alimentos estranhos à espécie transformados pelo
fogo. Somente a fome pôde motivá-lo a insistir em algo tão contrário à
sua natureza. De fato, recordemos o dito popular "a fome faz aflorar a
habilidade". E a fome "humana" não é apenas de alimento, é, também,
de tipos de alimento. Para Cordón, na atividade culinária o passo seguinte
ao uso do fogo foi a cacção. Esse avanço pode ter sido determinado
pelo descobrimento da cerâmica. A cacção significava quatro vantagens
muito importantes:
• A transformação culinária do alimento, consistente em transformações
químicas produzidas com a participação da água como reagente. No
fogo direto, a transformação deve acontecer com a reduzida quantidade
de água contida no próprio alimento, a qual se evapora totalmente
com facilidade e é consumida em uma proporção não considerada
suficiente de acordo com vários indícios. Em contraposição, na cacção
a água é reposta a todo momento, até que o volume seja considerado
conveniente, conforme a experiência.
• A cacção permite regular outra variável fundamental, o calor, que
pode ser aplicado a uma temperatura branda (100º) por toda a massa
do alimento.
• A massa de água fervente garante que o processo de transformação
aconteça na ausência do ar atmosférico; com isso, a transformação culinária
se limita a desdobramentos hidrolíticos e evita, por outro lado, as oxidações

158
que se traduzem, entre outros inconvenientes menores, em perda de
alimento.
• Permite cozinhar várias matérias-primas vegetais e animais juntas e
permite a adição medida de sal de outros produtos que, em pequena
proporção, modifiquem o sabor (Cordón, 1980: 127-128).
A prática culinária teve, segundo Cordón (1980), consequências
enormes para o futuro do hominídeo:
• A cozinha converteu o animal hominídeo em animal autótrofo, capaz
de obter um alimento com sua própria atividade, um alimento que não
existia anteriormente, nem estava biologicamente determinado, o que
o distingue dos demais animais, heterótrofos por definição. A prática
culinária amplia tanto a provisão de alimento (é tão 'rentável') que
teve que se impor como atividade regular aos hominídeos que a
descobriram. Desde então, suas tribos não podem se limitar a seu
alimento cru natural e, junto a esse (consumido ao encontrá-lo), caçam
ou recolhem alimentos que exigem tratamento culinário.
• Esse tratamento culinário obriga a acampar durante o dia, em um lugar
resguardado e, conforme o caso, bem vigiado e protegido com ajuda
do fogo. O fogo, portanto, de escudo para um repouso noturno mais
seguro que os anteriores, passou a ser, além disso, a fonte energética
de uma primeira atividade praticada em cooperação e para o proveito
comum.
• Outra consequência da atividade culinária, provavelmente a mais
transcendental, foi a palavra, isto é, nada menos que a mudança
qualitativa de hominídeo para homem. Certamente, o fato de acampar
para transformar por meio do fogo o alimento alheio em alimento
próprio o colocou em condições de adquirir a faculdade da fala e,
consequentemente, de vir a ser homem. Assim, o "comunicar" na
atividade culinária precedeu a palavra, ou seja, constituiu de fato a
condição para que esta surgisse. Os hominídeos cozinhadores obtiveram
uma conquista essencial de liberdade, porque a cada momento podiam
à vontade solicitar a colaboração de outro, comunicando algo
constantemente presente (algo inerte submetido a transformação
artificial) e a ação que se imagina conveniente realizar. A atividade
culinária proporcionou aos hominídeos uma consciência de agente
(levou-os a diferenciar entre eles mesmos e suas obras) que lhes permitiu
relacionar, nas primeiras orações, vozes 'substantivas' e vozes 'verbais';
em uma palavra, a atividade culinária levou o hominídeo a falar, ou
seja, a perceber a realidade para comunicar a outros não seres isolados,

159
nem ações isoladas, mas sim o processo, a própria relação, entre seres
(inicialmente, eles mesmos) e ações (inicialmente o alimento no processo
de transformação) .
• O hominídeo, ao realizar a primeira atividade culinária, ou
transformação artificial de um alimento por meio da água e do calor,
aplicou o calor produzido em uma reação química, isto é, a combustão
da lenha, para ativar outras reações químicas, a saber, as que determinam
na prática culinária a transformação de uma forma de alimento em
outra. Assim, a cozinha do hominídeo iniciou e marcou a rota de toda
a atividade artificial do homem, sobreposta à mecânica, durante dezenas
de milhares de anos e até nossos dias. A atividade culinária "implicou
uma transformação brusca de circunstâncias para os hominídeos que a
realizavam" (Cordón, 1980: 100).
• Resguardados por lugares naturalmente protegidos, pela vigilância de
outros membros da tribo com ajuda do fogo etc., os hominídeos
cozinhadores se emancipam da pressão seletiva de outros animais e, no
que se refere à cozinha, constituem uns aos outros em meio exclusivo.
Assim, pois, ao cozinhar, os hominídeos saltaram do meio animal para
o meio social próprio do homem; deve-se ter em mente que, durante
muito tempo, a atividade culinária teve que ser a atividade básica dos
últimos hominídeos e dos primeiros homens, por um lado porque
condicionou e tornou mais frutífera a colheita de fontes naturais de
alimentos, e por outro porque a princípio ( ... ) ofereceu muitas
dificuldades cuja superação progressiva resultava então mais
compensatória que qualquer outra coisa . De qualquer forma, a
progressiva capacidade de 'produzir' mais alimento, iniciada pelo
hominídeo, multiplicou por vinte mil a população de seus descendentes
que a Terra hoje pode sustentar.
Não somente por meio do fogo ou da cacção , determinados
produtos podem ser alçados à categoria de alimentos. Em alguns casos,
trata-se de transformá-los por meio de processos apenas físicos ou
mecânicos. Por exemplo, mais da metade das plantas alimentícias selvagens
utilizadas por povos tribais contêm princípios de sabor desagradável ou
substâncias mais ou menos tóxicas. Entretanto, eles souberam se proteger
muito bem desses princípios e substâncias valendo-se de procedimentos
tais como o corte, a lavagem, a secagem, o assamento e cozimento,
fermentação etc. Tudo isso com um equipamento muito elementar. Disso
se podem extrair conclusões de caráter geral: quanto mais "selvagem" é
a planta, mais complexo deve ser o modo de preparação que permita sua
utilização alimentar. O resultado dessas preparações é, geralmente, uma

160
matéria alimentícia purificada e concentrada, muitas vezes uma fécula, e
frequentemente consumida em papas, purê, bolo ou biscoito. Em
contraposição, os vegetais domesticados são cozidos de forma bem mais
simples. O procedimento de preparação de um alimento depende de sua
natureza. Por isso, não é de surpreender que aqueles que tiveram que se
alimentar de plantas silvestres "protegidas" tenham recorrido a técnicas
mais elaboradas que os cultivadores.

Quadro 6 - Procedimentos fundamentais utilizados pelos coletores e


cultivadores da Australásia pré-colonial para preparar seus
alimentos vegetais

O alimento vegetal é utilizado:


1 - Tal como é colhido (frutos de plantas selvagens cultivadas consumidos
inteiros e crus).
2 - Depois de um tratamento destinado à eliminação ou à transformação de
substâncias :
a. Tóxicas
b. Desagradáveis
c. Indigestas (eliminação da lignina, de celulose etc.; transformação de um
material bruto indigesto por meio de um procedimento físico-químico -
cacção de um tubérculo feculento, por exemplo).

Com a ajuda de procedimentos que fazem uso de:


a. divisão (descorticação, descascamento, corte, raspagem, peneiração ... )
b. água (lavagem, sedimentação, hidrolisação ... )
c. calor (churrasco, tostagem, cozimento no forno, em pedras quentes, na
água fervendo etc.).
3 - Por meio da conservação por: secagem, defumação, confeitaria,
fermentação .

Fonte: Barrau, 1983: 77.

A topografia também pode ser importante, por impor limitações


ao uso de determinados métodos de cozinha e, consequentemente, em
determinados alimentos. Por exemplo, os cereais e os legumes não foram
muito usuais nas regiões montanhosas por causa do maior tempo
necessário para sua preparação, pois ferver água exige mais tempo em

161
grandes altitudes do que no nível do mar. O problema é maior, entretanto,
se há escassez de combustível. E precisamente, essa escassez pode explicar
determinados costumes relativos à forma de preparar e cozinhar os
alimentos. Assim, a tradição asiática de picar e refogar os alimentos foi
desenvolvida em regiões muito povoadas e, ao mesmo tempo, sem florestas;
ou seja, está relacionada com a escassez de materiais combustíveis. Tendo
isso em conta, o que à primeira vista poderia parecer má adaptação - o
modo como os japoneses insistem no aspecto estético dos alimentos, na
medida em que seria melhor acumular no corpo, sob a forma de gorduras
ou proteínas, a energia que é necessária para refinar a apresentação -
constitui uma adaptação positiva às condições que prevaleceram no seu
meio durante muito tempo. De fato, faltando, ao mesmo tempo, alimentos
em abundância e combustível para prepará-los, os japoneses adaptaram
sua alimentação e sua preparação à pobreza de seus recursos. As pequenas
quantidades de alimento que poderiam conseguir - particularmente, no
caso do peixe e da carne - eram cortadas em pedaços finos e pequenos e
servidos em minúsculas porções, depois de terem sido condimentadas com
espécies diversas para variar o gosto. Esse método é econômico em
combustível, pois a finura dos pedaços permite cozinhá-los em muito pouco
tempo, a alta temperatura, o que requer menos tempo e energia do que se
fossem cozidos em fogo lento e em porções inteiras. Isso sem esquecer que
determinados pratos de peixes ou de carne não exigem combustível algum,
pois são servidos crus. Ainda assim, e por outra parte, o emprego de um
único utensílio da cozinha para preparar os diversos alimentos, uma versão
japonesa da wok chinesa (espécie de frigideira de fundo curvado de chapa
de ferro fina , que transmite o calor quase imediatamente), contribui,
também para a economia de combustível. Definitivamente, os japoneses
conseguiram aumentar seu leque de recursos alimentícios utilizando os
mesmos alimentos de modo variado e contrastante, apresentando-os em
pratos que são doces e amargos, quentes e frios, crus ou cozidos, crocantes
ou untados; e tudo isso apresentado com todo tipo de refinamento estético
agradável à vista que não faz mais que aumentar a impressão de diversidade.
Está claro, pois, que a cozinha japonesa constituiu uma boa adaptação às
condições locais. Por outro lado, se poderia dizer que, quando é preciso
cozinhar grandes animais para festas comunitárias, o assado à lenha do
animal inteiro elimina a necessidade de cortar a carne crua em pedaços e
de construir fornos ou caldeiras de grandes dimensões (no caso em que se
disponha de madeirà suficiente).
Também aquilo que as pessoas comem e a forma como o preparam
têm a ver com o tipo e a distribuição das tarefas dentro do grupo

162
doméstico. Determinados modos de vida e ocupações impõem seus
próprios requisitos de pratos que podem ser "instantâneos", "da lenha à
mesa", lentamente cozidos ou facilmente transportáveis. Na Índia, por
exemplo, e também no planalto andino, o esterco de vaca é o combustível
preferido para cozinhar porque proporciona uma chama leve e de longa
duração que permite à mulher camponesa trabalhar na terra enquanto a
comida vai cozinhando.
Outros costumes, igualmente estranhos aos nossos olhos ,
demonstram estar perfeitamente adaptados na medida em que contribuem
para preservar ou aumentar o valor nutritivo dos alimentos. Um dos muitos
exemplos a respeito é dado pelos Inuit. Ainda que fervam boa parte de
seus alimentos em um recipiente colocado sobre suas lamparinas
de gordura, eles comem grandes quantidades de carne completamente
crua, incluindo os órgãos internos e os músculos. Desse modo, como já
vimos em vários parágrafos anteriores, a dieta inuíte, apesar de ser quase
exclusivamente carnívora, contém cada uma das vitaminas e cada um dos
sais minerais necessários para a nutrição humana, além de abundantes
proteínas que faltam na dieta de muitos outros povos. Assim, ao comerem
a carne crua, os Inuit compensam a falta de alimentos vegetais e evitam
escorbuto. Por outro lado, gostam da carne passada e, com frequência,
deixam que se decomponha parcialmente. Como já se sabe, os processos
de putrefação aumentam o valor nutritivo de certos alimentos, pois a
bactéria que a provoca produz vitaminas como a Bl.
É certo, também, que determinadas formas de preparar os alimentos
podem subtrair, ao invés de aumentar, o seu valor nutritivo. Assim, por
exemplo, prolongar a ebulição dos vegetais pode dissolver suas vitaminas
na água, o que significa uma perda importante de seus elementos
nutritivos. Adicionar bicarbonato a legumes reduz, também, seu valor
nutritivo, assim como descascar as batatas antes de fervê-las.
Por isso, preferências alimentares que pareciam de todo normais
até pouco tempo atrás, como a preferência pelo pão branco no lugar do
pão "preto", podem ter sido respostas a uma má adaptação que, por sua
vez, foi o preço a pagar pelas dificuldades de conservação do cereal. Se
a farinha não fosse moída, não podia ser conservada durante muito tempo
sem que as gorduras contidas no trigo o tornassem inteiramente rançoso,
sobretudo nas zonas climáticas mais quentes nas quais o trigo ou o arroz
eram os alimentos base. Ao retirar-lhe os corpos gordurosos contidos
nos grãos, era possível seu armazenamento. Em outros termos, a perda
de certo número de elementos nutritivos foi o preço pago para se evitar
a perda de todos eles. Em todo o caso, antes dos dois últimos séculos, o

163
consumo do pão branco não era considerado tão grave, pois as pessoas
que tinham a possibilidade de dispor desse alimento, até então de luxo,
poderiam dispor, também, de um regime variado e encontrar em outros
alimentos os elementos nutritivos necessários que faltavam no pão branco.
Somente quando os progressos da tecnologia tornaram possível a
fabricação em larga escala do pão branco, ao mesmo tempo barato e
desprovido do melhor de seus elementos nutritivos, ele começou a fazer
parte dos casos de deficiências alimentares.

Quadro 7 - Contraste entre o sistema alimentar tradicional e o moderno


Sistema Alimentar
Atividade Sistema Alimentar Moderno
Tradicional
Produção Pequena escala/limitada. Grande escala / altamente
especializada.
Base local, exceto para
artigos de luxo. Deslocalizada/global.

Proporção alta de
população dedicada à Maior parte da população sem
agricultura. vínculos com a produção alimentar.
Com fronteiras locais. Internacional / global.

Distribuição Intercâmbio determinado Acesso determinado por dinheiro e


pelo parentesco e por pelo mercado.
outras redes sociais.
Consumo Oscilações entre a Alimentos sempre exequíveis
abundância e a carência, segundo preço, independentemente
dependendo das colheitas de estações.
e das estações.

Escolha limitada e Escolha ampla, pode-se pagar.


dependente de nível de
renda e status.

Desigualdades nutricionais Desigualdades nufricionais entre


dentro das sociedades. sociedades e dentro de um a mesma
sociedade.
Crenças Pessoas controlam a
cadeia alimentar. Debate entre quem crê na
dominação humana do ambiente
Exploração imprescindível e aqueles que questionam
do ambiente. esse modelo.
Fonte: Beardsworth & Keil, 1997: 33.

164
Como se pode ver, os alimentos ou, mais amplamente, as pautas
alimentares os projetam em um nível essencial de interações e de
transformações dentro da complexa rede de relações recíprocas entre as
sociedades humanas e seus ambientes naturais. E como essas relações
dos homens com a natureza são indissociáveis das relações dos homens
entre si, deve-se penetrar, para um melhor conhecimento e compreensão
de sua alimentação, de seus costumes e de sua história, no próprio núcleo
da história humana. Por essa mesma razão, a alimentação deve ser colocada
em relação com as atividades de produção e de reprodução, que ocupam
lugar central na vida humana. Nessa linha é preciso situar os fatores de
origem 'econômica e política' que levam a determinar em uma sociedade
que alimentos devem ser produzidos, distribuídos ou consumidos, em que
quantidades e de que forma, que tipo de atores e instituições intervém
em cada processo ou a que grupos ou pessoas chegam finalmente.
Como a alimentação está ligada aos modos de produção dos bens
materiais, a análise da cozinha, por sua vez, deve ser relacionada à
distribuição dos poderes e da autoridade na esfera econômica; ou seja,
aos sistemas de classes ou de estratificação social e a suas ramificações
políticas (Goody, 1984). Mais concretamente, o estudo dos modos de
abastecimento e de transformação da alimentação faz referência a quatro
grandes operações: cultivar, repartir, cozinhar e comer, que representam
as fases de produção, distribuição, preparação e consumo. A elas deveria
se adicionar uma quinta fase, frequentemente esquecida, mas que tem
importância cada vez maior, dado o seu aumento progressivo: a evacuação
dos detritos (operação de livrar-se, colocando-o no lixo). Na primeira
fase predominam os fatores econômicos de modo mais claro, pois está
ligada a aspectos do setor primário, à organização do trabalho e às técnicas
de produção e de armazenamento que desembocam na distribuição do
que foi produzido. A distribuição é a fase mais explicitamente política,
pois é nela que intervêm, por exemplo, as demandas do pagamento dos
arrendamentos, rendas em espécie, tributos ou impostos, assim como as
dimensões no interior do grupo doméstico com relação à conservação dos
grãos, por exemplo, de sua venda no mercado e, sobretudo, do consumo
até a próxima colheita. Na terceira fase, a de preparação dos alimentos, a
dos campos e dos depósitos (armazéns, silos etc.) ou a marcada pela cozinha,
é praticada a arte culinária. É o momento em que, geralmente, trabalham
as mulheres mais que os homens, os criados mais que os senhores, e em
que os sistemas de divisão e estratificação do trabalho doméstico ou
patrimonial são manifestados distintamente. A quarta fase é a de consumo
dos alimentos preparados, crus ou cozidos, na qual a identidade e a
diferenciação do grupo são expressas pelo fato de comerem juntos ou

165
separadamente, assim como por aquilo que as diferentes coletividades
comem. A mesa é o teatro dos banquetes e das privações, das proibições e
das preferências, das comidas comunitárias e familiares, das normas de
etiqueta e dos costumes do serviço (Barrau, 1983).
O caráter complexo das relações interdependentes que estão
associadas a cada uma dessas três fases (produção, distribuição e consumo)
constitui o 'sistema alimentar', uma realidade dinâmica que, fazendo
chegar os alimentos desde sua origem até os consumidores, não parou
de se transformar nos últimos anos (ver Quadro 7, exposto anteriormente) .
Em geral, as diferenças entre os sistemas alimentares mundiais estão
estreitamente vinculadas às diferenças observadas nas formas de
abastecimento, preparação e conservação dos alimentos, nas agriculturas
locais (ausência ou presença de certos cultivas), na organização da
produção (presença de maior ou menor porcentagem de pessoas dedicadas
ao campo, ao pastoreio , à indústria, aos serviços), nas formas de
distribuição (centralizadas ou não), nos tipos de transações (presencial,
por intercâmbio, no mercado), assim como no grau de industrialização,
mecanização e transportes que cada sociedade desenvolve (Goody, 1984).
Atualmente, os sistemas alimentares são cada vez mais rígidos pelas
exigências marcadas pelos ciclos rróprios da economia capitalista de
grande escala, mundial , os quais significam, entre outras coisas, a
intensificação da produção agrícola, a orientação da política e da oferta
e demanda em torno de determinados alimentos, a concentração de
negócio em empresas multinacionais, a ampliação e especialização da
distribuição alimentar através de redes comerciais cada vez mais
onipresentes e, definitivamente, a mundialização ou 'globalização' (ver
capítulo 9) da economia e, com ela, também da alimentação. Nesse
sentido, a globalização econômica afeta a homogeneização internacional
dos consumos alimentares, por mai s que devamos contemplar a
diversidade dos recursos locais. Certamente, McDonald's, por exemplo,
mesmo sendo o primeiro restaurante mundial e a própria imagem da
homogeneização, viu-se obrigado a levar em conta as particularidades
culturais em sua introdução nos diferentes países do mundo ,
estabelecendo estratégias de microdiversificação para buscar a adaptação
aos gostos dos mercados locais (Poulain, 2002a). Na Espanha, por exemplo,
nesses locais é servida a cerveja, enquanto nos Estados Unidos não são
servidas bebidas alcoólicas. Na França , na Holanda e na Bélgica, a
maionese acompanha as fritas, enquanto nos Estados Unidos o ketchup
goza de uma supremacia indiscutível. Além do Big Mac, começam a
aparecer pratos "étnicos": o conteúdo local na oferta global. Assim, na

166
Grã-Bretanha, McDonald's tentou assimilar a comida hindu com sua
McSpicy Burger e McChicken Korma e Vegetable Samosa, ou a africana
com a McAfrica Burger, um sanduíche à base de carne, verduras e pão
sírio que, hipoteticamente, viria de uma receita desse continente.
A mecanização fabril , os transportes e a ampliação das redes de
distribuição contribuíram de forma notória para que o lugar geográfico
de produção de um alimento tenha cada vez menos a ver com o lugar de
consumo. Tomamos café de origem sul-americana ou vietnamita
acompanhado de açúcar de plantações caribenhas, enquanto a Espanha
exporta frutas e vinhos para diferentes pontos do planeta, alguns
dos quais nem sequer chegam aos mercados locais. Essa transformação
dos padrões alimentares mundiais foi melhor compreendida mediante
conceito de 'deslocalização', sobre o qual se detiveram Peito e Peito
(1983), referindo-se ao processo pelo qual as variedades e métodos de
produção e modos de consumo alimentar foram disseminados através do
mundo em uma intensificada e superdimensionada rede de
interdependência socioeconômica e política.

Fatores Ideológicos
Se a produção, a distribuição e o consumo de alimentos estão
inseridos em uma série de processos ecológicos, tecnológicos e econômico-
poiíticos complexos que determinam, em boa medida, a dinâmica e a lógica
dos comportamentos alimentares, também é preciso levar em conta o papel
que desempenham as 'condições ideológicas'. A alimentação também
constitui uma via privilegiada para se refletir sobre as manifestações do
pensamento simbólico e constitui, em determinadas ocasiões, uma forma
de simbolizar a 'realidade'. Criamos categorias de alimentos - saudáveis e
não saudáveis, convenientes e não convenientes, ordinários e festivos, boas
e más, femininos e masculinos, adultos e infantis, quentes e frios, puros e
impuros, sagrados e profanos etc. - e, por meio dessas classificações,
construímos as normas que regem nossa relação com a comida e, inclusive,
nossas relações com as demais pessoas, de acordo, também, com suas
diferentes categorias. O mesmo mecanismo que tornaria inadequado servir
vagens verdes com batatas em um banquete de bodas tornaria adequado
dividir bebidas alcoólicas de alta graduação entre os homens e licores mais
ou menos doces entre as mulheres. Tal mecanismo está pautado pelo sistema
de crenças e valores existente em qualquer cultura e pode determinar, por
sua vez, que alimentos são objeto de aceitação ou repúdio em cada situação
e por e para cada tipo de pessoa.

167
Vejamos um exemplo com o caso da carne. Apesar das razões
biológicos e/ou nutricionais que citamos no capítulo 2 para explicar o
apreço pela carne, a atitude humana em relação a ela foi, e é, ambígua,
ambivalente e, às vezes, contraditória. Seja ela exaltada, proibida, atraída,
repugnada. Na história, e em numerosas culturas, a carne e os produtos
de origem animal estiveram submetidos a regras de todo tipo,
simplesmente restritivas ou, inclusive, proibitivas. De forma comum, mas
não exclusivamente, tais regras tiveram inspirações de caráter religioso.
Na tradição judaico-cristã, por exemplo, a carne leva o peso de um juízo
a priori negativo. No Antigo Testamento, o paraíso terrestre é vegetariano.
Somente depois do Dilúvio, Deus dará ao homem o direito de comer
carne, com a condição de que se abstenha de sangue, que aparece como
o sopro vital dos seres vivos e parte Dele. Durante a Alta Idade Média, a
Igreja católica dirige suas proibições alimentares exclusivamente às
espécies animais, enquanto, salvo alguma exceção, o vegetal é puro. Na
Idade Média, as regras da Quaresma, a divisão dos dias em dias "de
carne" e dias "de vigília'', pesaram com particular rigor, ao menos teórico,
sobre a alimentação dos católicos (em certas épocas foram contados entre
120 e 180 dias 'de vigília', sem carne e sem gordura animal).
Além das proibições instituídas, há, também, aversões individuais.
Quase sempre são substâncias de origem animal as que suscitam a aversão.
Assim, na lista das rejeições mais frequentes, na França ou na Espanha,
por exemplo, encontram-se os miúdos (miolos, fígado ... ), a 'gordura da
carne' e os subprodutos do leite. Na realidade, tudo ocorre (Fischler,
1995a: 115-121) como se "toda comida de origem animal fosse virtualmente
suscetível de suscitar a aversão" . Não somente a maioria das culturas
aplica proibições ou experimenta repulsa diante de certas espécies animais
biologicamente comestíveis, mas também parecem contar 'mais espécies
repudiadas' do que espécies consumidas (ver Tabela 1). Os bosquímanos
do Kalahari, por exemplo, identificam 223 espécies animais em seu
ambiente. Consideram apenas 54 comestíveis e, dessas, somente 17 são
regularmente caçadas. Na Europa, as proibições enunciadas pelos
penitentes da Alta Idade Média com relação aos inmunda, as espécies
'imundas', formam grandes listas de animais e de substâncias impuras.
Os animais cuja carne é 'imunda' vão do cachorro ao gato, passando
pelo rato, mas compreendem igualmente répteis e pequenos mamíferos,
às vezes pássaros, a carne 'sufocada' (não esvaziada de seu sangue), a
carne pouco cozida, a carniça etc. E as proibições alimentares judaicas
acabam, afinal de contas, autorizando apenas uma pequena quantidade
de animais e que, além disso, devem ser consumidos em condições muito
restritas. A lista das proibições ou das espécies abomináveis parece ser

168
tão grande que poderíamos nos perguntar se a proibição não é regra,
mais do que exceção. Em definitivo, pois, se poderia dizer que é a
animalidade em si mesma o fator virtualmente repulsivo.

Tabela 1 - Animais considerados comestíveis (sobre um total de 383


áreas culturais)
Alimentos Núme ro de áreas culturais

Frango (carne e ovos) 363


Boi (carne e leite) 196

Porco 180

Peixe 159

Carneiro 108

Pato 67
Zebu (leite) 49

Zebu (carne e leite) 43


Tartaruga (carne e ovos) 46
Cachorro 42

Rato dos campos 42

Fonte: Abrams, 1987: 215.

A grande e, sobretudo, diversa lista de proibições relativas ao


consumo de carne atesta o fato de que cada sociedade classifica suas
relações com os diferentes animais de um modo específico e que, dentro
dessas classificações, são identificadas as atitudes dos indivíduos diante
dos diferentes produtos cárneos. A carne foi classificada como alimento
viril, masculino, quente, impuro, pecaminoso, carnal ... 12 Ainda assim,
comer carne de um animal pode significar apropriar-se de sua força vital
(Apfeldorfer, 1994). As diferentes atitudes com relação à carne estão
claramente determinadas por um código cultural e social que remete às
representações do animal. Existe um grande espectro de percepções e de
expressões do gosto associados à carne. Segundo Eder (1996: 85-92),

quem deseje entender a importância de animais da ordem cognitiva que se


projeta no reino animal nos tempos modernos não deve confiar na
12
Cabe recordar, por exemplo, que os "inimigos da alma", para a religião cristã, são,
frequentemente, o mundo, o demônio e a carne.

169
classificação científica da natureza. Linnaeus não estabelece a imagem
coletiva da natureza e a ordem dos animais. Mais perto das estruturas da
vida diária estão os léxicos zoológicos populares: livros que não contradizem
as classificações da ciência biológica mas que, entretanto, introduzem
parâmetros relevantes para a experiência vital. A consequência (não a
causa) desses parâmetros são certas estruturas afetivas no que se refere às
diferentes espécies. Uma análise estrutural dessa lógica prática é o estudo
de Leach, que tenta identificar os conceitos de uma organização do reino
animal que estrutura a vida diária.

Assim, de fato, para Leach (1972) , na Inglaterra, os animais


comestíveis e não comestíveis são o resultado de uma "derivação" lógica
que parte do conceito de natureza e identifica os animais comestíveis
mediante uma série de dicotomias conceituais. Os tabus alimentares são
explicados pelas diferentes concepções relativas à proximidade ou
distância de cada animal em relação aos seres humanos. Os animais
próximos das pessoas são proibidos, assim como os mais distantes.
O tabu da carne dos predadores está conectado com o problema do
assassinato. Comer tais animais implica incorporar uma desordem e põe
em perigo a distância sociocultural entre os humanos e a natureza. Os
tabus sobre os não predadores compartilham da convicção de que tais
animais pertencem a um mundo culturalmente definido e ao mesmo
tempo o contradizem. Também há tabu relacionado às similaridades com
os humanos em algum aspecto ou à transgressão da definição cultural de
fronteiras entre a ordem humana e a animal.
A carne tem, pois, na sua relação com outros alimentos um status
consideravelmente particular e seu consumo só foi possível, como disse
Fischler (1995a, 1995b), se pensada como algo estranho ao humano, como
se a distinção animal-humanidade, em certas circunstâncias, se apagasse
diante de nossos olhos, dando lugar a uma espécie de continuum do
vivente. O consumo de carne só foi possível rompendo-se tal continuidade.
Talvez, ao ser comida, a carne seja entendida como uma transformação,
e ' pensada' como um self estranho. Duas estratégias são possíveis.
A primeira é construir e interiorizar uma distinção clara e infranqueável
entre humanidade e animalidade, afirmando sem rodeios uma hierarquia
dos seres em cujo vértice está o homem. A segunda consite em dissimular
todas as características aparentes da humanidade, pensar a carne como
matéria inanimada e não mais como parte de um corpo.

170
Figura 3 - Os tabus alimentares na sociedade moderna inglesa

Não comestíveis Comestíveis


se castrados

Macaco de ·
Comestíve is se Zoológico
Cacho rro Porco caçados na
Gato Boi estação correta
Cava lo Ove lha

Coelho
Le bre
Cervo
Fonte: Leach, l 972.

171
Em função de seus atributos, alguns alimentos dispõem de uma
carga simbólica mais forte que outros. No geral, tais valores se referem
ao que é considerado como bom ou ruim para o corpo, para a saúde ou
para a alma (Fieldhouse, 1995), tal como podemos observar no Quadro 8
sobre as razões que sustentam os tabus alimentares para certos grupos
étnicos de Gâmbia. Como indicam Kaplan e Carrasco (1999), é muito
arriscado oferecer explicações causais que permitam compreender os
motivos alegados pelos interlocutores sobre por que certos alimentos
são tabu em períodos específicos do ciclo vital. Nas sociedades tradicionais
europeias também havia crenças - na verdade algumas ainda existem -
sobre os efeitos negativos ou positivos, para a saúde e para a alma, de
uma grande quantidade de alimentos.

Quadro 8 - Tabus alimentares em Gâmbia

Etnia Alimento tabu Período em que é tabu Razões


Wolof-fula Peixe Gestação Produz escamas
Mandinka Primeira infância na criança
Djoia Circuncisão Parasitas
Aumenta as cicatrizes
de feridas
Wolof-fula Ovo Gestação e Gera mudez, estupidez e
Mandinka primeira infância inclinação para o roubo
Mandinka Mel Gestação Produz aborto
Wolof Gestação Grande crescimento
Manteiga
do feto
Mandinka Amendoim Gestação Descamação da pele
torrado do bebê
Wolof-fula Pão Gestação Crescimento
Mandinka desproporcional do feto e
parto prolongado e difícil
Mandinka Pimenta Gestação e Irritação e choro do bebê
amamentação
Djola Azeite de palma Duas semanas depois do Colore o leite
parto
Wolof-fula Banana Gestação, amamentação Flacidez, vagabundagem e
Mandinka e primeira infância impotência
Mandinka Laranja Gestação Retenção de líquidos

Fonte: Kaplan & Carrasco, 1999: 63.

172
A carne constitui, também, um exemplo recorrente a esse respeito.
De fato, ocupou lugar particular na alimentação humana: sendo objeto
de desejo e veneração entre diversos povos, sobre ela recai a maior
quantidade de proibições culturais que regulam seu consumo (o porco
entre os mulçumanos e judeus, o boi entre os hindus etc.). Entretanto, os
critérios que ditam tais valores e atributos se transformaram no decorrer
do tempo e do espaço. Assim, no Ocidente, a partir do Renascimento, o
açúcar passou de medicamento para certas doenças pulmonares a
condimento de luxo consumido unicamente entre a elite, e hoje é um dos
alimentos mais populares, tendo, entretanto, sido objeto, nos últimos anos,
de grande repulsa social (a sacarofobia ou aversão pelos produtos doces).
Assim, e definitivamente, em todas as sociedades, a escolha dos
alimentos e o comportamento do comensal estão submetidos a normas
médicas, religiosas, éticas e, nessa medida, é sancionada pelos juízos
morais ou de valor (Fischler, 1995a, 1995b). Tais valores são manifestados
nas diversas prescrições e proibições em matéria alimentar no âmbito das
diferentes religiões, mas também na forte carga moralizadora da ciência
e da medicina em relação à alimentação. São ilustrativos, nesse sentido,
os numerosos movimentos reformadores da alimentação que se
produziram nos Estados Unidos e na Europa a partir do século XIX até
a atualidade. É o caso, por exemplo, do naturismo, do vegetarianismo
ou macrobiótica, e vários outros poderiam ser citados.

Crenças e Tabus Alimentares


Pode-se afirmar que todas as religiões ou sistemas de crenças mais
ou menos articulados contêm algum tipo de prescrição alimentar. Todas
as religiões regem a alimentação em algum sentido e, na maioria das
vezes, quase sempre restritivo . Por exemplo, limitar as quantidades
ingeríveis, restringir ou proibir uma ou outra categoria de alimentos,
diminuir o prazer de comer, seja permanentemente ou em determinadas
ocasiões. Nem todas , mas muitas das religiões, principalmente as
monoteístas, consideram que comer é um ato sobretudo carnal e passional,
oposto aos seus objetivos de transcendência, de predomínio do espírito
sobre a matéria. Por outro lado, cabe levar em consideração que a
definição do comportamento alimentar por parte de um sistema religioso
costuma ter, também, outras funções, além de combater os prazeres da
carne, como, por exemplo, definir o grupo social, ou seja, diferenciar-se
do outro (estrangeiro, infiel, pagão ... ). Assim, as diferentes proibições
alimentares permitem delimitar as comunidades de crentes, do mesmo
modo como uma redefinição do modo alimentar permite distinguir os

173
diferentes cismas. Por exemplo, o catarismo, cisma da religião cristã,
proibia absolutamente o consumo de carne por considerar que "comer
carne" e "ser católico" eram sinônimos.
As diferentes religiões existentes no mundo ditam prescrições
alimentares ou dietéticas para milhões de pessoas. Nas culturas
ideologicamente marcad as pelo cristianismo, determinados
comportamentos alimentares são considerados pecaminosos ou, ao
contrário, um meio para se obter a santidade. É o caso da gula - comer
e beber desordenadamente, em excesso-, que, segundo a moral católica,
constitui um dos "pecados capitais" ou, no extremo da virtude, o jejum,
a restrição sobretudo de certas substâncias como a carne, o álcool ou,
inclusive, o sangue.
Em termos de proibições, pode-se observar que a religião cristã, se
comparada com a hindu, a maometana ou a judaica, não é uma das mais
severas. Entretanto, também registra esse tipo de condicionantes sobre a
dieta, principalmente na Quaresma, período em que se aconselha não
comer carne de galinha, cordeiro, boi ou porco. Anteriormente, quando
as práticas católicas eram seguidas pela maioria da população e a Igreja
tinha mais poder, os jejuns eram muito mais frequentes, não se remetendo
exclusivamente ao período da Quaresma. Esses jejuns consistiam não
apenas em substituir a carne pelo peixe e as gorduras animais, como a
manteiga pelo azeite de oliva, como fazem aqueles que hoje praticam
um a abstinência parcial, mas sim em não comer nada - com exceção de
água ou pão - durante o dia ou dias de jejum. Curiosamente, em épocas
de escassez e de fome, devido a más colheitas, guerras ou catástrofes
ambientais, o número de jejuns ditados pela Igreja aumentava. Era uma
forma de aplacar a fome por meio da fé. Atualmente, os jejuns das
sociedades industrializadas são mais estéticos ou facultativos do que
religiosos - evitar a comida para não ficar doente/engordar-, ou inclusive
reivindicativos - as greves de fome como meio de pressão política.
Se entendemos, portanto, que a religião católica marcou em
diferentes momentos os tabus sobre determinados alimentos e bebidas,
como a carne e o álcool, entenderemos também que nas outras culturas
aconteça o mesmo. A maioria dos programas de educação alimentar na
Índia e no Extremo Oriente tem que competir com ideias de fragilidade,
pureza e menosprezo pelas funções biológicas. Alguns desses valores,
por exemplo, não favorecem um estado de saúde satisfatório ao evitar
voluntariamente alimentos, como a carne de vaca ou os lácteos, que
poderiam contribuir para um maior eq uilíbrio dietético. Entretanto, a
desconsideração desses juízos fez fracassarem diferentes programas de

174
educação nutricional em todo o mundo. Como consequência, parece
lógico que antes de desenhar propostas de intervenção a partir de 'fora'
de cada realidade cultural, sejam feitos diagnósticos que considerem o
conteúdo de tais crenças, assim como o lugar que ocupam na cosmovisão
de cada população, tentando respeitá-las ao máximo e modificando-as,
se for considerado oportuno, com base em sua própria lógica e interesse.
Desse modo, além do "respeito" pelas crenças, provavelmente se obterá
maior êxito no objetivo de se alcançar a melhora nutricional da população.
É certo, portanto, que, em todos os povos ou culturas, as escolhas
alimentares estão condicionadas muito frequentemente , ao menos
aparentemente ou em primeira instância, por um conjunto mais ou menos
complexo e mais ou menos articulado de crenças religiosas, proibições
de diversos tipos e alcances, assim como por concepções dietéticas relativas
ao que é bom e ao que é ruim para o corpo (e/ou para a alma), para a
saúde (e/o u para a 'santidade'). De fato, em algumas ocasiões, o termo
'saúde ' é utilizado indistintamente para se referir ao corpo e à alma.
Determinados comportamentos alimentares são estritamente necessários
para se alcançar a santidade e outros denotam perversão ou pecado.
A gula, como acabamos de dizer, é um pecado capital para a moral
católica. Uma das proibições mais frequentes, ainda que não de maneira
universal, pois é um alimento fundamental em populações de pastores
nômades centro-africanos, é o consumo do sangue. O sangue é um
alimento muito rico, suficiente para satisfazer a múltiplas exigências
nutricionais, mas sobre o qual pesa uma série de proscrições que motivaram
o abandono quase total de seu consumo. No Gênesis, IX, 4, por exemplo,
está dito "Que ninguém de vocês coma sangue ... já que a alma de toda
besta está em seu sangue", e São Paulo renova essa proibição aos cristãos
nos Atos dos Apóstolos, XXI , 25. Isso não quer dizer que algumas
populações católicas não possam consumir o sangue de porco e de outros
animais seja isoladamente, frito , ou misturado com outros produtos, em
um tipo de produto muito apreciado e com numerosas variações locais,
como as morcelas em qualquer uma de suas múltiplas variedades.
As diferentes religiões existentes no mundo ditam prescrições
alimentares ou dietéticas para milhões de pessoas. De acordo com Eckstein
(1980), em uma religião os alimentos podem contribuir para três
finalidades: comunicar-se com Deus; demonstrar fé por meio da aceitação
das diretrizes devidas relacionadas à dieta; desenvolver disciplina por
meio do jejum. As restrições religiosas relativas à dieta podem incluir: os
alimentos que podem ser consumidos e os que não podem sê-lo; o que
comer em determinados dias do ano; horas do dia nas quais devem ser

175
ingeridos os alimentos; quando e quão grande deve ser o jejum. Vejamos
em seguida um resumo dos alimentos ingeríveis ou proibidos segundo as
prescrições de algumas das religiões mais difundidas no mundo.

Quadro 9 - Prescrições alimentares de diversas religiões do mundo


Alimentos Budismo Cristianismo Hindu ísmo Islamismo Jud aísmo Siks

Alguns
Ovos Sim Alguns Sim Sim Sim
segmentos
Leite,
Coalhada Coalhada Coa lh ada
iogurte
Que ijo Sim Sim Não Sim Sim Sim

Alguns
segme ntos não os Alguns
Galinh a Não Haia! Kosher -
co mem durante a segme ntos
Quaresma
Alguns
Cordeiro Não Haia! Kosher -
segmentos

Boi Não Não Haia! Koshe r -


Raros
Porco Não segme ntos Não Não Não
utilizam
Alguns Alguns
Pe ixe Sim - Haia! -
segmentos segmentos
Alguns
Marisco Não Sim - HaJ al Não
segmentos
Gordura Alguns
Não Sim Alguns Haia! Kosher
an imal segmentos
A maioria
Álcoo l Não Não Não Sim Sim
co nsome

Chá, café Sim Sim Sim Sim Sim Não

Legumes Sim Sim Sim Sim Sim Sim

Verduras Sim Sim Sim Sim Sim Sim

Frutas Sim Sim Sim Sim Sim Sim


Algun s Alguns Alguns
Jejum Ra madã Yom Kippur
segmentos segmentos segmen tos

Como se vê, algumas das religiões mais restritivas nas obrigações


alimentares são a judaica, a maometana e a hindu. Precisamente, as
proibições e as recomendações contidas nos livros sagrados dos judeus

176
deram lugar a uma rica literatura sobre as influências da religião sobre as
prescrições alimentares e suas possíveis razões. No Deuteronômio, 14,
estão indicados quais são os animais comestíveis e quais os proibidos
para os judeus:

3 - Nenhuma abominação comereis.

4 - Estes são os animais que comereis: o boi, o gado miúdo das ovelhas, o
gado miúdo das cabras ...

5 - ... o veado, a corça, o búfalo, a cabra-montês, o texugo, o boi silvestre e


o gamo.

6 - Todo animal que tem unhas fendidas, que tem a unha dividida em duas,
que remói, entre os animais, isso comereis.

7 - Porém estes não comereis, dos que somente remoem ou que têm a unha
fendida: o camelo, a lebre e o coelho, porque remoem, mas não têm a unha
fendida; imundos vos serão.

8 - Nem o porco, porque tem unhas fendidas, mas não remói; imundo vos
será; não comereis da carne destes e não tocareis no seu cadáver.

9 - Isto comereis de tudo o que há nas águas: tudo o que tem barbatanas e
escamas comereis.

10 - Mas tudo o que não tiver barbatanas nem escamas não o comereis;
imundo vos será.

11 - Toda ave limpa comereis.

12 - Porém estas são as de que não comereis: a águia, o brita-ossos, o


xofrango ...

13 - ... o abutre, a pega e o milhano, segundo a sua espécie;

14 - ... e todo corvo, segundo a sua espécie;

15 - ... o avestruz, o mocho, o cuco e o gavião, segundo a sua espécie;

16 - ... e o bufo, a coruja, a gralha ...

17 - ... o cisne, o pelicano, o corvo-marinho .. .

18 - ... a cegonha, a garça, segundo a sua espécie, a poupa, e o morcego.

177
19 - Também todo réptil que voa vos será imundo; não se comerá.

20 - Toda ave limpa comereis.

21 - Não comereis nenhum animal morto; ao estrangeiro, que está dentro


das tuas portas, o darás a comer ou o venderás ao estranho, porquanto és
povo santo ao Senhor, teu Deus. Não cozinharás o cabrito com o leite da
sua mãe.

As interpretações que foram feitas em relação às abominações


expressas no Deuteronômio, assim como no Levítico , consistem, segundo
Mary Douglas (2008), em afirmar, por exemplo, que as regras não têm
nenhum sentido e são arbitrárias, porque sua intenção é disciplinar e
não doutrinar; ou, também, que tais regras são alegorias das virtudes
e dos vícios. Por exemplo: Moisés proibiu o consumo dos ratos porque
são especialmente danosos por causa de sua destruição; as doninhas são
o símbolo da piada maliciosa porque concebem pelo ouvido e dão à luz
pela boca; os peixes com barbatanas e escamas, admitidos pela lei mosaica,
simbolizam o domínio de si mesmo e a paciência; os répteis, também
proibidos, que ziguezagueiam e arrastam o ventre, significam as pessoas
que se entregam a seus desejos e paixões etc. Para Douglas, entretanto,
essas interpre tações fracassam porque não são coerentes nem
compreensíveis, na medida em que, para cada animal, é preciso desenvolver
uma explicação diferente, e é incontável o número de explicações
possíveis, sobretudo quando se leva em conta a abundância de proibições
alimentares presentes na lei mosaica .
Outra explicação tradicional a respeito do Levítico foi a de que
aquilo que é proibido para os israelitas o é, unicamente, para protegê-
los da influência estrangeira. Maimônides, por exemplo, defendeu que a
última prescrição que extraímos do Deuteronômio, a de não ferver o
cabrito no leite de sua mãe, tinha a ver com o fato de ser esse um ato
cultural próprio da religião dos naturais de Canaã. Para Mary Douglas,
em contraposição, uma vez que cada um dos requerimentos do Levítico é
precedido pelo imperativo de "ser santo", cada preceito deve ser explicado
com base em tal determinação. É preciso que haja, diz, uma contradição
entre a santidade e a abominação que dê sentido final a todas e a cada
uma das restrições particulares. A santidade, para os israelitas, englobaria
ideias comó justiça, bondade, integridade, delicadeza, distinção, ordem ... ,
de tal maneira que requer que os indivíduos se conformem à classe à
qual pertencem e que não sejam confundidos os gêneros diferentes das
coisas. Significa, também, manter distintas as categorias da criação e,

178
portanto, discriminação e ordem. De acordo com tudo isso, segundo
Douglas, as regras dietéticas israelitas, as leis relacionadas aos alimentos
'puros' e 'impuros', desenvolvem a metáfora da santidade. A santidade é
unidade, integridade, perfeição do indivíduo e da espécie.
Assim, o princípio subjacente à pureza dos animais consiste em
conformar-se plenamente à sua espécie. São impuras aquelas espécies
que são membros imperfeitos de seu gênero, ou cuj o gênero perturba o
esquema geral do mundo.

Para aprender esse esquema temos que voltar ao Gênesis e à cri ação. Aqui
é desdob rada um a classificação tripartid a entre a te rra, as águas e o
firmamento. O L evítico adota esse esquema e co ncede a cada elemento seu
gê nero adequado de vida animal. No firmamento, aves de duas patas voam
com suas asas. Na água, peixes escamosos nadam com suas nadadeiras.
Sobre a terra, animais de qu atro patas brinca m, sa ltam ou ca minham.
Qualquer classe de animais que não esteja equipada com o gê nero correto
de loco moção em seu próprio elemento é contrária à santidade. O contato
com ela desqualifica um a pessoa para se aproximar do templo. Assim,
qu alquer ser aqu ático que não te nha nadadeiras nem escamas é impuro
( ... ). Os seres de quatro patas que voam são impu ros. Qu alquer animal que
tenh a duas patas e duas mãos e que ande com quatro patas como um
quadrúpede é impu ro( .. .). O último gênero de anim ais impuros é aquele
que se arrasta, se rpe nteia ou infes ta a terra ( ... ). Os seres que infes tam a
terra não são aves, carne, nem peixe. Os caracó is e os vermes habitam
a água, mas não co mo peixes; os ré pteis andam pelo solo seco, mas não
como quadrúpedes; alguns insetos voa m, ain da que não como pássaros.
Não existe orde m neles. (Douglas, 2008: 271)

Conclui Douglas (1973) que, se sua interpretação estiver correta,


as leis dietéticas israelitas seri am, então, semelhantes a signos que, a
cada instante, inspirava m a meditação sobre a unidade, a pureza e
a perfe ição de Deus. Graças às regras sobre o que é preciso evitar era
dada à santidade uma expressão fís ica em cada encontro co m o reino
animal e com a comida. A observação das leis dietéticas fo i, assim, parte
significativa do grande ato litúrgico de reconhecimento e adoração que
culminava com o sacrifício no templo.

179
Figura 4 - Sistema de tabus alimentares no judaísmo

1 ~~ CriaturdS
aquát icas
que não têm
Pássaros
que vivem
na água ou
Pássaros
que vive m
no ar
Anima is
te rrestres
co m mais
ou menos
Animais
terrestres
com 4 pés
nadadeiras na terra
de4 pés

Predadores
ruminantes

Fonte: Baseado em Douglas, 1973.

Crenças e Conhecimentos Dietéticos


Como já mencionamos, o comportamento do comensal está
submetido a normas de caráter não apenas religioso, mas, também,
dietético. E mais, em numerosas culturas, ambos os tipos de crenças estão
muito relacionados entre si tanto para se complementar como para se
contradizer. De acordo com o Dicionário da Língua Espanhola , a palavra
'dieta' vem da palavra grega diaita , que significa "regime de vida", regime
de vida em geral, e não exclusivamente regime alimentar. A 'dietética' é
definida pelo mesmo dicionário como a "ciência que trata da alimentação
conveniente no estado de saúde e nas doenças". Da transição de dieta
para dietética, observa-se uma redução no alcance do significado. É certo,
também, que atualmente, na linguagem comum, a palavra dieta tem
ainda um significado mais restrito, sendo empregada, sobretudo, para
designar um regime específico de comida e de bebida, prescrito
para corrigir uma situação de anormalidade ou uma doença como o
sobrepeso ou o diabetes, por exemplo . As recomendações dietéticas,

180
entretanto, não se limitam a esse tipo de situação, mas, inspiradas pelos
especialistas, alcançam a totalidade da população e com elas se pretende
alcançar a saúde e mantê-la, prever as doenças mais que curá-las.
Sempre, e em todas as partes, a alimentação foi relacionada com a
saúde e a doença ou, pelo menos, com ideias não necessariamente
racionais construídas pelos seres humanos sobre as razões e condições
dessa saúde e dessa doença (Barrau, 1983). Por essa mesma razão, pode-
se afirmar que as prescrições dietéticas, não importa de que tipo (de
caráter mágico, religioso - acabamos de falar delas - ou de caráter mais
científico ou racional) sempre existiram. Todas as sociedades
desenvolveram, no decorrer de sua história, crenças ou/e conhecimentos,
mais ou menos empíricos, relativos ao valor de determinados alimentos e
à sua conveniência segundo as condições particulares dos indivíduos
relativas, por exemplo, ao sexo, à idade, à complexidade, à atividade, às
circunstâncias concretas de cada indivíduo (físicas, psicológicas,
emocionais ... ) em determinado momento. Nessa medida, certas condutas
alimentares participam com frequência de rituais destinados a predispor
favoravelmente as forças sobrenaturais que - como muitos ainda
continuam pensando - governam sua existência. De tudo isso se depreende
a observação de prescrições dietéticas cuja finalidade é manter-se em
harmonia com os elementos do cosmo e com os poderes imanentes que
nos habitam. Depreendem -se, também, como acabamos de ver,
determinadas prescrições alimentares, noções de puro e impuro, aplicadas
aos alimentos, obrigações concernentes ao modo de prepará-los,
sobretudo no caso daqueles aos quais são atribuídas virtudes mágicas, e
aos modos de consumi-los.
Uma das classificações mais conhecidas concernentes à relação entre
alimentos, saúde e doença é a que categoriza os alimentos em duas grandes
categorias: 'frios' e 'quentes'. A teoria do equilíbrio entre o quente e o
frio, baseada na teoria hipocrática dos humores, se difundiu,
provavelmente, desde a Grécia até outras culturas do Oriente e do
Ocidente graças aos mercadores árabes e aos conquistadores espanhóis,
impregnando desses princípios a medicina popular de muitas culturas.
Hoje, muitas das considerações relativas à necessidade de manter o
equilíbrio entre o quente e o frio estão fortemente arraigadas nas culturas
latino-americanas, assim como na Índia e na China, mas nesse vasto país
os princípios atuantes seriam o ying e o yang. Na Índia, por exemplo, a
classificação dos alimentos em 'frios' e 'quentes' reflete essa concepção
dualista, mas complexa. De fato, o leite, em seu conjunto, é considerado
"quente ". Agora, algumas classes de leite são consideras "frias" ou

181
"menos quentes" e normalmente são ingeridas duas porções de água
com uma de leite; o leite de vaca é "quente" (uma porção de água com
uma de leite); o leite de cabra é "menos quente" (é tomado sem água); o
leite materno é frio e o iogurte espesso, também. Considerar um alimento
como "quente" ou "frio" tem repercussões comportamentais. Às crianças
não são oferecidos os leites quentes, mas sim o materno e o iogurte.
A que tipos de experência pode responder essa classificação? Os diferentes
tipos de leite apresentam distinções muito fortes quanto à quantidade de
lactose que contêm: grande no leite de búfalo e de vaca; escassa no de
cabra; quase inexistente no iogurte e completamente inexistente no leite
materno. Tendo em vista, como vimos no capítulo anterior, a alta
porcentagem de intolerantes à lactose, a classificação em leites "frios" e
"quentes" poderia ser tratada como um fenômeno experimental. Se a
determinadas pessoas fosse dado leite "quente" (com alto conteúdo de
lactose), elas poderiam ter sensações de vômitos, enquanto as que não o
recebem não teriam as mesmas sensações. Dessa forma, essa experiência
poderia ter sido observada como expressão de uma ideologia, em seus
sistemas de percepção e classificação.

Quadro 10 - Classificação dos alimentos em frios e quentes nos Andes:


o caso do leite
Tipo de Le ite Características Quente-Frio
Em pó Frio

Condensado +Quente
De vaca Frio
De va ca negra Branco, consistente Quente
De vaca branca ou café Azulado e ag uado Frio
Puro ferv ido "Indigerível" +Frio
De ovelha Amarelo e co nsistente Quente

Fonte: Baseado e m Vokral, 1991.

Nos Andes os diferentes tipos de leite podem ser classificados em


diferentes categorias de "quente" e "frio". Conforme for categorizado
cada tipo de leite, mudam suas formas de preparação e de consumo. Os
diferentes tipos de leite são preparados com especiarias (anis, cravo,
canela) ou com açúcar ou sal. Ou em infusão com erva (sálvia, menta,
camomila, eucalipto). Por sua vez, cada uma dessas especiarias e ervas

182
está classificada dentro do esquema de quente-frio, de tal forma que os
leites mais quentes ou mais frios tenderão a se equilibrar com as
especiarias e ervas correspondentes. No caso de doença, dependerá dela
ser considerada quente ou fria para que se considere mais ou menos
adequado este ou aquele tipo de leite e este ou aqui lo tipo de preparação.
Na realidade, enquanto as teorias hipocráticas e galênicas foram
dominantes na medicina, a terapêutica não foi muito além da dietética
e das sangrias. Por essa razão, não deve nos surpreender que uma mesma
palavra - 'receita' - tenha sido utilizada, indistintamente, para referir-
se a um preparado farmaco lógico motivado por uma prescrição médica e
para as prescrições culinárias na preparação de um prato ou de uma
comida específica. Isso explica que muitos dos ingredientes próprios da
farmácia tradicional tenham sido, em grande medida, as mesmas plantas
e espécies utilizadas na condimentação dos alimentos, em qualquer caso,
mais ou menos sujeitos às flutuações da moda. O refrão "Cebola, limão
e alho, médicos ao caralho!" ilustra a importância para a saúde atribuída
a determinadas plantas. Por outro lado, até fins do século XVIII, a
farmácia contida nos tratados médicos "científicos" não ia muito além
de um inventário de plantas com várias virtudes medicinais. Uma relação
não exaustiva de plantas com valor curativo contidas no Tratado
Astrológico-Médico 13 permite citar:

abrótano, manjericão, angélica, artemisa, açafrão, vi nagre, betônica,


bugiara ou língua-de-boi, capim-santo, caledônia, comadres, cominho,
confrei maior, coraçãozinho ou e rva -de-São-João, coentro, e ndro,
espargos, tussilagem ou-unh a-de- cavalo, hortelã, aipo, hissopo, urtigas,
samambaias, plantago , madress ilva , malva , camomila, matricária ,
manjerona, mercurial, mostarda, orégano, parietária, peônia, pimpinela,
poejo, alecrim , arruda (outro refrão: 'Casa com roda no balcão não precisa
de médico'), sálvia, tomilho, valeriana e vários outros.

Assim, então, muitos dos ingredientes da farmácia tradicional


foram, em larga medida, as plantas e as especiarias utilizadas na
condimentação dos alimentos; em todo o caso, sujeitas às flutuações da
moda. E, por sua vez, produtos como a canela, o gengibre e outros
vindos de longe ou exóticos, caros e raros, mas subitamente convertidos,
com a expansão colonial europeia, em produtos acessíveis e fartos, como
o álcool, vulgarizado como aguardente, passaram a ser complementos
ou condimentos habituais de uma alimentação que se diversificava
13
Manuscrito nº 296 da Biblioteca da Universidade de Barcelona.

183
progressivamente. O açúcar é, nesse sentido, um dos exemplos mais
chamativos e mais estudados, como vimos no capítulo anterior.

Nas modernas sociedades industriais, chamadas também de


consumo ou da abundância, a preocupação dietética e a preocupação
com a saúde adquiriram formas muito particulares e, em certa medida,
opostas às concepções dominantes em épocas anteriores. Nas cidades
italianas da Idade Média (Nahoum, 1979), por exemplo, engordar era
sinal de riqueza e de saúde.Popolo grasso designava a aristocracia dirigente,
enquanto popolo magro, o povo simples. É de supor que a gordura era
tanto mais sedutora quanto a fraqueza significava fome , doença e,
portanto, pobreza. Essa sublimação da obesidade é característica de todas
as sociedades subalimentadas, nas quais o alimento constitui uma
preocupação essencial para a maioria da população. É certo também
que existiram visões negativas da gordura: o obeso, em algumas sociedades,
ou para alguns grupos sociais, poderia representar aquele que comia
mais do que lhe correspondia. Algumas caricaturas do " patrão
capitalista", desenhado sempre como gordo em excesso, engordado com
o sangue e o suor das classes trabalhadoras e apelidado, justamente por
isso, "chupa-sangue".
Nas "sociedades da abundância", ao contrário, a repulsa que marca
a obesidade é tão ou mais chocante na medida em que a má nutrição e a
pobreza signifiquem, nesse caso, gordura sobrando. Como exemplo, pode-
se dizer que entre as mulheres nova-iorquinas contemporâneas, 91 % das
pobres são obesas e/ou normoponderais, enquanto 95 % das ricas são
magras e/ou normoponderais (Nahoum, 1979). Essas cifras indicam que
o modelo dietético dominante nessas sociedades e sua correlação estética
são expressos por meio da palavra 'silhueta', ao mesmo tempo que sua
expressão em termos de saúde corresponde à palavra 'forma '. Nos Estados
Unidos, entre 1960 e 1980, o número de pessoas que praticava esporte e
realizava outro tipo de "regime" havia passado de cinquenta para cem
milhões: "Teu aspecto exterior me dirás quem és ... ".
É certo que, nessas sociedades da abundância, ocorre uma série
de problemas advindos da superalimentação que as caracteriza. Como
consequência, qoenças ou transtornos perigosos aparecem direta ou
indiretamente ligados a um saldo excedente do balanço energético (é
absorvida maior quantidade de calorias do que a quantidade que se
queima); ou a um desequilfbrio qualitativo do regime (excesso de gorduras

184
saturadas e de açúcares de absorção rápida). Como resultado desses maus
hábitos alimentares, a cada ano, nos Estados Unidos (Farb & Armelagos,
1985), mais de 70% das disfunções foram consequência de doenças como
hipertensão, ataques cardíacos, infecções coronárias e doenças
cardiovasculares, diabetes dos adultos ou colites. Tudo isso provocou, e
continua provocando, uma preocupação com a "saúde" e com a aptidão
física que é projetada em duas manifestações diferentes , mas
complementares: o "regime", para cuidar da "silhueta"; e o "exercício'',
para manter a "forma". Os cidadãos dos Estados Unidos, da França ou
da Espanha são constantemente bombardeados com mensagens que
recomendam que estejam magros e em forma . Assim, foram proliferando
centros de "dietética", especializados em aplicar, "sob vigilância médica",
regimes de emagrecimento, academias, comércios especializados na venda
de "alimentos de regime" ou "produtos dietéticos", que nos Estados
Unidos são chamados de healthy foods e healthy stores.
Pareceria, então, que estávamos abocanhando, como disse Fischler
(1990), a abstinência alimentar, a "dieta". É como se, hoje, fosse preciso
voltar a aprender a viver com a fome , domando-a, enganando-a. Drogas
são consumidas em massa para saciar a fome, substitutos alimentares sem
calorias - os produtos light ou "leves", tão em moda, ou os chamados
'snacks dietéticos' -, destinados a eliminá-la sem alimentar; lembrança
paradoxal e irônica das práticas dos povos famintos que se empanturravam
para impor silêncio ao sofrimento. Aqui há uma mensagem publicitária
do ano de 1991, na Espanha:

XXX é uma bebida natural à base de fibra liquida e com um agradável


sabor de frutas que, simplesmente, reduz o apetite. XXX é um complemento
ideal para comer menos, sentir-se satisfeito e evitar calorias desnecessárias.
Além disso, suas fibras naturais favorecem a função digestiva e intestinal.
Tomado entre as refeições, XXX proporciona um alívio eficaz. Se você
tomá-lo 30 ou 45 minutos antes de uma refeição, ele o ajudará a controlar
seu apetite e a digerir melhor. Se você está cansado de comer excessivamente,
prove XXX, logo verá como ficará satisfeito. (grifos nossos)

Fischler sugere que a estética da silhueta magra e a dietética que


lhe acompanha poderiam constituir uma resposta à crise do regime
alimentar provocada pela superalimentação e pelos desequilíbrios
alimentares. A preocupação com a "silhueta" e a "forma " poderia
significar um processo de reequilíbrio, um ajuste adaptativo, em resposta
aos transtornos provocados pela abundância. A proliferação de dietas

185
emagrecedoras, assim como algumas mudanças de sinal na estética
culinária ("leveza", "natural", "nova cozinha" etc.) remetem à questão
dos reequilíbrios, das regulações, dos ajustes culturais. Com efeito, nos
Estados Unidos, entre 1960 e 1980, o número de doenças cardiovasculares
diminuiu espetacularmente.
A difusão desse novo valor - a dietética - entre as massas parece
ter produzido um novo fenômeno muito importante: a "consciência
alimentar" (Barthes, 1961a). Agora, a dietética moderna não está ligada,
como antes, aos valores morais de ascese, sabedoria ou pureza. Se antes
o "regime" era "sacrifício" para se alcançar a santidade ou a salvação da
alma, hoje, pelo contrário, parece constituir uma " inversão", ou, talvez,
o preço a pagar para se alcançar o prazer. Disse Baudrillard (1974a) que,
depois de uma era milenar de puritanismo, o corpo foi "redescoberto",
sob o signo da liberação física e sexual. Sua onipresença, especialmente
a do corpo feminino , na publicidade, na moda, na cultura de massas - o
culto higiênico, dietético, terapêutico, a obsessão pela juventude, pela
elegância, pela virilidade, pela feminilidade , pelos cuidados, pelos
regimes, todos os sacrifícios que são oferecidos, o medo do prazer que
nos envolve - , tudo prova que hoje é o corpo, e não a alma, que se
converteu no objeto de salvação. Se antes nos diziam que "temos apenas
uma alma para toda a vida, e há que salvá-la'', a propaganda dos meios
de comunicação de massa de hoje parece nos dizer de modo reiterado
que " temos apenas um corpo para toda a vida, e é preciso salvá-lo".
Nesse processo, poderíamos dizer, de secularização do corpo, a beleza e
a sensualidade são dois princípios fundamentais e recorrentes a serviço
dos quais parece estar subordinada a alimentação contemporânea nas
sociedades industrializadas.
Com o desenvolvimento posterior da ciência da nutrição, foram
produzidas modificações nesses conceitos, ainda que as recomendações
dietéticas para prevenir e curar enfermidades não tenham tido uma base
verdadeiramente científica até muito pouco tempo atrás. Hoje, existe
um melhor conhecimento sobre o que constitui uma dieta saudável e os
tipos de regimes dietéticos que podem ajudar no tratamento da
enfermidade. Mas é certo, também, que atualmente são produzidos de
maneira simultânea uma grande abundância e diversidade de mensagens
dietéticas procedentes de fontes muito variadas que contribuem para
obscurecer e confundir os avanços que se produzem no terreno da
nutrição.
Muitas pessoas ainda acreditam que alguns alimentos têm
propriedades particulares para promover a saúde, de maneira que a

186
ingestão de alguns deles em específico seria suficiente para estar saudável
e não contrair doenças. Lembremo-nos, por exemplo, dos refrões "Cebo/la,
limón y ajo, médicos al carajo" ou " Una manzana al día mantiene al médico
en la lejanía". Também, enquanto uma afirmação como "o leite é bom
para você" implica apenas que é uma excelente fonte de numerosos
nutrientes, a afirmação "o mel é bom para você" não implica apenas que
o mel seja igualmente rico em nutrientes, o que é certo, mas também
que ele incrementa positivamente o nível de saúde para qualquer pessoa
saudável , o que não se pode afirmar de nenhum alimento ou droga
conhecida (Yudkin, 1978). Para qualquer caso, é certo que várias pessoas
continuam muito confusas, desinformadas ou indiferentes no que diz
respeito à relação entre dieta e saúde. As razões dessa confusão ou
desinformação devem ser buscadas na proliferação de recomendações
dietéticas nem sempre coincidentes e no escasso aval profissional de
muitas das fontes que as produzem. As "dietas" estão em moda, e não
apenas por um interesse crescente pela saúde, mas também por outras
razões bastante distantes, como a estética. Na prática, no total das revistas
de moda e de beleza são constantes as recomendações de dietas para
emagrecer associadas a uma preocupação exclusiva com um corpo magro
de acordo com os cânones estéticos desenvolvidos, sobretudo, depois da
Segunda Guerra Mundial.
Nos países desenvolvidos, os hábitos de comida e de bebida estão
implicados em seis das dez causas mais importantes de mortalidade
(enfermidades do coração, câncer, diabetes, apoplexia, arteriosclerose,
doenças hepáticas crônicas e cirrose), assim como em outras muitas
desordens não fatais , mas potencialmente incapacitadoras, como a
osteoporose ou a diverticulose. Em qualquer caso, hoje em dia, as dietas
terapêuticas, ou seja, dietas específicas para o tratamento de uma doença,
são menos empregadas do que o eram na primeira metade do século
XX. Por outro lado, para algumas enfermidades, bastante comuns em
sua maioria, um tratamento dietético é essencial.
As dietas terapêuticas mais comuns são várias das dietas
consistentes em baixo consumo de energia recomendadas no tratamento
da obesidade. Existem, também, dietas para indivíduos hipersensíveis a
determinados componentes nutricionais, como, por exemplo, dietas sem
leite para aqueles que sofrem de intolerância à lactose, ou dietas
sem glúten para os pacientes com a doença celíaca, ou dietas sem mariscos
ou sem ovos para as pessoas alérgicas a esses alimentos. Os pacientes de
gota recebem recomendações de excluir alimentos animais como o fígado
ou os rins, pois contêm alta proporção de células e, assim, maior

187
quantidade de ácido nucleico, o que provoca um aumento do ácido úrico
no corpo. As pessoas que sofrem de hipertensão usualmente recebem
recomendações de uma dieta baixa em sal, e para algumas doenças dos
rins recomenda-se uma dieta baixa em proteínas. Para o caso de diabetes,
a recomendação é dispensar o açúcar e o excesso de gorduras saturadas.
Além dessas doenças em cujo tratamento uma dieta específica pode
desempenhar papel importante, existem outras para as quais muitos
acreditam que um tratamento dietético é eficaz. De fato, algumas pessoas
consideram que uma dieta específica pode melhorar a artrite, a asma, a
enxaqueca ou, inclusive, a esquizofrenia. O certo é que um tratamento
nutricional é ineficiente para o caso dessas doenças.
Mas faz-se necessário voltar a mencionar a relação entre dieta e
modo de vida em geral. A Organização Mundial da Saúde (OMS) voltou
a chamar a atenção sobre esse aspecto em seu Objetivos de Salud para e!
Afio 2000. Faz falta uma melhor compreensão da influência dos estilos
de vida sobre a saúde. É necessário investigar os efeitos, em separado e
conjuntamente, de diferentes tipos de conduta sobre a saúde, para
compreender que fatores favorecem cada um deles. Hoje, já se sabe que
a extensão do risco de determinadas enfermidades como, por exemplo,
as doenças cardiovasculares ou o câncer, é claramente influenciada por
um conjunto de características individuais e sociais que podem atuar
separada ou conjuntamente. Assim, por exemplo, os hábitos sociais em
transformação, o turismo e o ingresso de grande proporção da população
feminina no mercado de trabalho produziu importantes mudanças nos
padrões alimentares. Em alguns países, a maior parte dos almoços
acontecem fora de casa, o fornecimento de comida em massa, então,
substituiu a comida caseira e provocou novos problemas relacionados
com os métodos em transformação de produção, armazenamento e
preparação de alimentos. Ainda assim, são cada vez maiores as descobertas
científicas que destacam as situações que produzem "estresse", tanto
físico como mental. Alguns problemas mais complexos podem ser
consequência da interação dos hábitos alimentares, dos conflitos
psicológicos e dos estereótipos culturais (cf. capítulo 7). As meninas
adolescentes, por exemplo, apresentam maior risco de desenvolver
transtornos alimentares devido às tensões que surgem das pressões
contraditórias dos modelos de beleza feminina e das recomendações de
comer em uma idade que coincide com o desenvolvimento físico pessoal
e social.
Por outro lado, caberia perguntar sobre os efeitos da escolaridade
precoce, da pressão do ambiente, das condutas adotadas para fazer frente

188
a situações vitais, do apoio social e das condições ambientais, sobre os
estilos de vida e a capacidade de alterar a conduta. Seria importante,
por exemplo, averiguar por que motivo as pessoas, apesar de conhecerem
as consequências, se comportam de forma perigosa com relação à saúde.
Nesse sentido, também, faz-se necessário investigar os métodos eficazes
de fazer chegar a informação ao público e de promover 'estilos de vida
saudáveis', dentro do marco de uma política social apropriada. Em alguns
países foram colocados em prática programas de educação sanitária de
caráter integral: seguir uma "dieta equilibrada", fazer exercício físico
regularmente, assegurar o descanso e o relaxamento, manter relações
sociais e sexuais satisfatórias, livrar-se do estresse etc. ajudam a aumentar
a sensação individual de bem-estar e atuam como amortizador contra a
do~nça e constituem, portanto, recomendações nesse sentido.

Há , também, outra série de crenças relativas ao valor de


determinados alimentos e à sua conveniência segundo o sexo, a idade ou
as circunstâncias particulares por que as pessoas passam. Vejamos alguns
exemplos dados por Farb e Armelagos (1985).
Não existe nenhuma sociedade cujos costumes não reconheçam a
necessidade de as mulheres grávidas seguirem determinado regime,
expressando com isso a convicção sobre a influência que os seus costumes
alimentares terão sobre a saúde do futuro bebê. É bastante comum dizer
à mulher grávida, desde o início de sua gravidez, que "deve comer por
dois" e espera-se, ainda assim, que seus maridos satisfaçam seus "desejos" .
Precisamente, um estudo sobre os "desejos" das mulheres grávidas
foi realizado na cidade de Albany (EUA) e serviu para mostrar que as
crenças populares em matéria de desejos nem sempre eram desprovidas
de fundamento . Assim, por exemplo, seus desejos, muito fortes , por
sorvetes ou outros produtos com ingredientes derivados de leite e
por alimentos açucarados podem ter sua origem na necessidade de calorias
suplementares, assim como na maior necessidade de cálcio, durante o
período da gravidez. Quando a dieta alimentar seguida por uma mulher
grávida é deficitária em cálcio, o feto retira o que necessita dos ossos e
dos dentes de sua mãe. Esse fato pode explicar o provérbio popular de
que "um filho custa um dente".
Uma vez que o filho tenha nascido, o leite materno basta para
satisfazer todas as necessidades nutricionais do recém-nascido. Além disso,
o leite materno proporciona ao filho os anticorpos presentes na mãe

189
que contribuem para reforçar seu sistema imunológico. Por essa razão, a
passagem massiva da amamentação materna à mamadeira, em muitos
países em vias de desenvolvimento, assim como também nos países mais
industrializados, foi uma das mudanças alimentares produzidas no século
XX mais difíceis de compreender. Dada a indiscutível superioridade do
leite materno, a única explicação plausível é que a mamadeira foi tomada
como sinônimo de status social mais alto. Muitas mães passaram a considerar
a amamentação como um costume vulgar dos camponeses, que deveria ser
modernizado por meio da adoção da mamadeira. De qualquer forma, essa
e muitas outras práticas alimentares estiveram sujeitas às modas mais ou
menos em transformação, ditadas ou pelas razões médicas próprias de
cada época ou por qualquer outro tipo de motivo.
O desmame é sempre um momento crítico para o bebê, qualquer
que seja ele. Todo tipo de método pode ser recomendado ou imposto
para amenizar o impacto desse período de transição. Um bebê que acaba
de ser desmamado corre o perigo de sofrer uma infecção severa se
consumir al imentos em mau estado ou preparados com água contaminada.
Depois dos anos difíceis que se seguem ao desmame, as precauções são
menores, pois as crianças já estão em condições de mastigar maior
quantidade de alimentos.
Muitas são as sociedades que marcam o fim da infância com uma
ou outra forma de rito de iniciação. Muitas dessas práticas compreendem
mudanças no regime alimentar e a supressão de certos tabus que pesavam
sobre eles. Na sociedade espanhola, por exemplo, o consumo do café,
do vinho e de outras bebida s alcoólicas é autorizado a partir de
determinadas idades, de acordo com cada caso. Isso não exclui que o
vinho, misturado com açúcar, em uma fatia de pão, tenha sido uma
merenda infantil comum em alguns lugares da Espanha (vale mencionar
o refrão catalão sobre os benefícios do vinho: "La cam fa carn i e/ vi fa
sang", ou seja, "A carne faz carne e o vinho faz sangue").
Com o início da adolescência aparece, em muitas culturas, uma
estreita relação entre sexo e alimentação. Em alguns casos, essa relação
é tão estreita que uma mesma linguagem pode ser aplicada em um ou
outro caso: uma pessoa pode "estar satisfeita" ou "passar fome" em
relação tanto ao alimento quanto à prática sexual. Uma pessoa com
apetite sexual está "para ser comida" e um "bocato di cardinale" serve
para expressar a satisfação tanto sexual quanto alimentícia. Quando um
aborígine da Austrália central pergunta Utna ilkukabaka?, pode ser que
queira dizer, indistintamente, "Você comeu? " ou "Você fez sexo?". Esses
mesmo aborígines dizem, para caracterizar uma garota e indicar se está

190
ou não na idade de se casar, que está ou não "madura" ou "no ponto".
Nos Andes peruanos, os Quéchua dizem que determinados matrimônios
são chawachan, isto é, "crus" ou "sem cozer", quando foram celebrados
sem o cortejo ou o noivado prévio.
O binômio sexo-alimento aparece estreitamente vinculado em todas
as culturas, já que representa duas formas entrelaçadas de sensualidade.
Segundo Goody (1984), a palavra utilizada para 'comer' (di o dzi , na
língua de diversas sociedades do norte de Gana) também é utilizada com
frequência para o sexo, e cobre grande parte do campo semântico da
palavra 'desfrutar'. Na ideologia hindu, a pureza de casta supõe evitar
contato com pessoas, alimentos ou bebidas fora do âmbito do próprio
grupo. Qualquer hindu, observando sua religião, evitará tanto os contatos
sexuais como a comida com pessoas inferiores. A impureza e o dano
espiritual vinculam estreitamente essa dualidade entre sexo e alimento,
já que, como afirma Lévi-Strauss, "copular e comer são duas formas de
conjunção por complementaridade". Em sua obra Mitológicas: o cru e o
cozido o autor recorda como, na África, o trabalho de cozinhar se assimila
ao coito entre os esposos: pôr lenha no fogo significa copular. As pedras
do fogo são as nádegas, a marmita é a vagina e a concha é o pênis.
Essas correspondências entre atividade culinária e sexual, também
indicadas por Pujadas (1997), têm presença destacada em algumas línguas.
É muito interessante que o verbo francês consommer signifique ao mesmo
tempo consumir (alimentos) e consumar (uma relação sexual). Às
mulheres, sujeitos sexuais passivos nas metáforas populares, "se les pasa
per la pedra" (em catalão) ou ainda "sont passées à la casserole" (em
francês). A mulher como objeto de consumo "est belle à croquer'', ou "on
en mangerait bien un petit peu ". Essa relação metafórica entre consumidor
e consumido fica mais explícita na frase "j'ai faim de toi, dit l'homme, tu
es belle à croquer, je te croquerai", em que volta o tema do canibalismo
subentendido. De forma paralela, na maioria das línguas, o órgão sexual
é descrito com numerosas imagens de animais comestíveis, tais como o
coelho, a batata ou _o marisco.
Seguindo essa associação entre alimentação e sexualidade, cabe fazer
menção às crenças que atribuem a certos alimentos a capacidade
de aumentar a potência sexual, às vezes até grandes extremos. Uma lista de
tais alimentos, afrodisíacos, poderia incluir milhares deles. Uma lista bem
pequena, procedente de diferentes sociedades e épocas, permite citar os
seguintes: pinhão, fígado, cuny, sopa de ninho de andorinha, chocolate,
cacau (que os astecas proibiam a suas esposas), ovos de vários peixes,
ostras, enguia, línguas de ganso, testículos de cisne, ovos de todo tipo de

191
pássaros, miolo de boi, maçã, banana, cerejas, tâmara, pêssego, pistache,
aspargos, alcachofras, cebolas, batatas, tomates etc. No período
elisabetano, acreditava-se que as ameixas tinham uma virtude afrodisíaca
tão grande que eram servidas gratuitamente nos prostíbulos. A origem
dessas crenças é difícil de estabelecer. Em muitos casos, em todos aqueles
relativos aos órgãos sexuais de animais ou quando as formas de um
alimento lembrem o sexo masculino ou o feminino, a razão parecia
responder à fala que "de lo que se come se cría", ou "do que se come, se
cria". Alguns alimentos, tais como o pimentão picante, o cuny e outros
condimentos, estimulam o organismo com eficácia, pelo menos na
atividade cardíaca e nas secreções gástricas. A razão profunda da aparente
eficácia de grande número de alimentos pode se referir ao fato de que,
simplemente, contribuem para gerar uma sensação de bem-estar, tanto
física como mental. Nesse sentido, quase todos os alimentos teriam
virtudes afrodisíacas, pois o fato de comê-los isoladamente acelera o
pulso, aumenta a pressão sanguínea, eleva a temperatura corporal e,
inclusive, às vezes, provoca um pouco de transpiração, mudanças
fisiológicas idênticas às que normalmente acompanham o orgasmo.
Com a velhice, parece que o paladar perde sensibilidade e que a
necessidade de calorias torna-se menor que na juventude. Na velhice,
por outro lado, parece que o interesse pelos afrodisíacos desaparece e o
interesse se volta para uma dieta que prolongue a vida. Nesse sentido,
também são escassas as crenças relativas ao elixir da eterna juventude ou
as considerações sobre ·diferentes tipos de regime alimentar que conservem
a saúde e aumentem a longevidade. Alguns povos se orgulham de ter
grande quantidade de longevos e atribuem o fato ao consumo de um
alimento em especial. É o caso, entre outros, dos habitantes da região
do Cáucaso que dizem que sua longevidade se deve a um produto lácteo
parecido com o iogurte.

Sociabilidade, Ritualidade e Comunicação Social


A comida constitui um meio universal de expressar sociabilidade e
hospitalidade. A proximidade ou o estreitamento das relações sociais
entre as pessoas pode ser expresso por meio dos tipos de alimentos e
refeição que fazem juntas, assim como por sua frequência. Em todas as
sociedades, diz Cohen (1977: 218),

A distribuição e o consumo de alimentos é uma expressão de uma variedade


das relações sociais: as de proximidade ou distância social, fraternidade e

192
status religioso-ritual, sua ordenação e relação política, laços dentro e entre
as famílias etc. A definição dos alimentos, sua distribuição e seu consumo
sempre ocorrem em relação a indivíduos em sua condição de detentores de
status e pertencentes a categorias dentro de grupos institucionalizados.

Em outras palavras, o alimento por si só é usado simbolicamente


para representar certas formas sociais e sentimentos pessoais dentro de
uma sociedade, que geralmente figuram entre as formas e os sentimentos
pessoais importantes na vida do grupo. Assim, observando os contextos
sociais específicos e limitados (clã, aldeia, relações de parentesco político,
amizade, vizinhança, relações de trabalho etc.) dentro dos quais são
empregados simbolicamente os alimentos, pode-se, com frequência, inferir
quais são os grupos e relações importantes na sociedade.
Entre alguns povos da Melanésia, a regra de que um homem deve
dar parte de sua colheita à irmã, enquanto que sua mulher recebe uma
parte similar de seu próprio irmão, nos dá uma ideia da importância de
certos laços baseados na descendência por linha materna. Nas sociedades
que estão organizadas segundo um sistema de castas, a regra de que os
pertencentes a castas diferentes não podem comer juntos indica a
importância da distância formal entre as castas, assim como a organização
em castas por si mesma. Em relação a isso, quando os alimentos deixam
de ser considerados como veículo para a expressão dos sentimentos sociais
dentro do grupo (por exemplo, um clã) , ou quando são atacadas as
proibições referentes ao consumo de alimentos, pode-se supor que estão
ocorrendo mudanças significativas na estrutura socioeconômica da
sociedade correspondente.
As normas que regulam a distribuição de alimentos dentro de uma
sociedade refletem e reforçam as orientações éticas e morais predominantes
em tal sociedade. Por exemplo, quando um governo fornece de boa
vontade alimentos a pessoas pobres de outras sociedades, mas não dentro
da própria sociedade , parece que seus valores dominantes tendem
implicitamente a definir a pobreza como uma indicação de fracasso moral,
como pecado. Parece supor que se fossem distribuídos alimentos
gratuitamentes aos próprios cidadãos, a ação seria considerada como
recompensa, ou mesmo como aprovação de tal fracasso.
Quase todas as sociedades humanas definem alguns alimentos como
aceitáveis em certas circunstâncias, mas inteiramente inaceitáveis em
outras. Por exemplo, os alimentos associados ao lazer são normalmente
considerados impróprios para as cerimônias ou para as ocasiões rituais.
Nas sociedades pluralistas e estratificadas, a maior parte dos alimentos

193
de produção indígena é consumida por pessoas de todos os grupos;
entretanto, em quase todas elas, há alguns alimentos e bebidas que não
são universais ou que são consumidos por membros de diferentes grupos
em diferentes contextos e situações. Assim, por exemplo, as mesmas
bebidas alcoólicas serão tomadas em condições e lugares totalmente
distintos por membros de grupos diferentes. Tais definições simbolizam e
reforçam ao mesmo tempo a consciência de pertencimento e a de
separação ou a distância entre os grupos delimitados nas sociedades
pluralistas e estratificadas.
Por razões que ainda não estão completamente claras, as maiores
crises de transição do ciclo de vida (os ritos de passagem) estão marcadas
em quase todas as sociedades pela distribuição e consumo ritual ou
cerimonial de alimentos. Uma possível explicação desse costume quase
universal está no fato de que cada uma dessas crises de transição
(nascimento, matrimônio, morte ... ; primeira comunhão, serviço militar,
estudos, emprego, mudança de trabalho, mudança de residência ... ) inicia
uma alteração significativa nas relações e reciprocidades socioeconômicas,
e estaria simbolicamente indicada em exibições, distribuições, empréstimos,
intercâmbio de objetos e consumo de alimentos.
Além dessas celebrações ritualísticas por meio da distribuição e do
consumo de alimentos, grande número de sociedades celebra
acontecimentos históricos ou cerimônias de acordo com seus sistemas de
calendário. Essas celebrações periódicas e fixas estão habitualmente
marcadas por consumos ritualísticos de alimentos (como o dia de Ação
de Graças ou o costume de muitos norte-americanos de celebrar o Dia
da Independência com piqueniques familiares) . Os acontecimentos
religiosos regulados pelo calendário são celebrados de maneira análoga.
As diferentes formas de comensalidade constituem, também, uma
forma primária de convivência extrafamiliar, uma forma de consagrar a
vizinhança:

A mesa comum com pratos excelentes ou considerados como os mais


saborosos é a forma primária de convivência extrafamiliar. Ao scntarem-
se à mesa, aqueles que estão sujeitos aos mesmos afazeres e papéis no
decorrer do ano colocam sobre a toalha de mesa a identidade de seus
problemas. A essa comunhão simbólica não podem se aproximar com
ódios e ressentimentos internos (.. .). A participação na distribuição de
comida vizinha cria um laço místico - inclusive entre vivos e mortos - que
une , liga em estreita interdependência, obriga a corresponder, a se

194
comportar como um vizinho. O comer entre vizinhos marca o princípio
de igualdade dos comensais, todos gozam dos mesmos direitos e deveres;
premia e move a ação comum, é um incentivo para o trabalho requerido. A
comensalidade de vizinhos é sinônimo de festa , de música, canto e dança
( ... ).A comensalidade consagra a vizinhança. (Lisón, 1971: 166-167)

Em alguns povoados do Pallars (Lleida) eram celebradas refeições


comunitárias, caldeiradas (carne de porco, feijão, morcela branca, linguiça
e arroz), cujos ingredientes eram coletados entre a população. Nessas
comunhões comunitárias, podiam participar tanto as pessoas do povoado
como as procedentes de outros lugares da região. Os que um dia eram
convidados, no dia seguinte eram anfitriões. O equilíbrio gastronômico
ficava assegurado, independentemente do fato de que as populações
vizinhas, assim como os Kwakiult com seus potlatchs, rivalizassem na
qualidade dos produtos e na medida das tortilhas com presunto (Fábregas,
1982). Na Inglaterra, um novo vizinho pode ser convidado a tomar um
chá com biscoitos (ou café, nos Estados Unidos); os visitantes casuais
esperam uma reunião noturna com queijos e vinhos; aos sócios nos
negócios se oferece um buffet, os amigos íntimos são convidados a se
sentarem à mesa e a compartilhar uma refeição completa, enquanto que
um coquetel, no qual são oferecidos alimentos sólidos, constitui um ponto
intermediário entre a intimidade dos jantares e a distância das "bebidas"
(Douglass, 1972; Fieldhouse, 1986). De fato, a comida e a bebida, ainda
que se trate apenas de um café com biscoito, constituem um aspecto
importante na maioria das relações sociais, formais ou informais.
O ato de compartilhar a comida com outras pessoas indica um
certo grau de compatibilidade e de aceitação. A comida é oferecida como
um gesto de amizade, e quanto mais elaborada for, maior é a intimidade
que expressa ou maior é o grau de estima ou também de interesse. Até
certo ponto, pode-se pensar que oferecer compartilhar a refeição própria
é ofertar um pouco ou uma mordida de si próprio. Nesse mesmo sentido,
se a qualidade e a elaboração dos alimentos oferecidos podem expressar
o grau de intimidade na amizade, também é certo que a grande intimidade
pode ser expressa justamente com o contrário: somente às pessoas de
muita confiança, parentes próximos ou amigos íntimos, pode-se oferecer
"qualquer coisa". Esse gesto pode ser apreciado como uma expressão
dessa confiança, de sinceridade nas relações. Assim, dada a intimidade
que se supõe no ato da comida, em muitas sociedades camponesas foi
considerada uma norma de boa vizinhança e de cumprimento obrigatório
não fazer visitas sem aviso prévio no horário das refeições e, no caso em

195
que houvesse alguma necessidade, enviar uma criança pequena para dar
o recado.
Era muito comum, principalmente nos lares dos países europeus,
ter sempre algum tipo de alimento e de bebida, geralmente vinhos doces,
licores e massas ou doces para oferecer a visitantes ocasionais. Além
disso, recusar alimentos quando esses são oferecidos pode ser considerado
como uma recusa à amizade. Aceitar um convite para uma reunião social
e, depois, recusar a comida eventualmente oferecida é considerado uma
conduta inaceitável nos Estados Unidos.
A comida e a bebida são, pois, um presente de aceitação universal,
em todas as culturas e em todas as classes sociais. Por meio do presente
de comida pode ser expressa uma enorme variedade de relações e de
emoções: parentesco, compromisso, simpatia, gratidão. Na língua catalã,
existe um refrão que diz "El que es paga en diners es paga en dinars" (o
que se paga com dinheiro, se paga com comida). Na medida em que
o dinheiro constitui um meio universal de transformação, esse refrão
atribuiria à comida a possibilidade de cumprir essa mesma função , a de
meio universal de transformações, de relações.
Assim, por exemplo, entre os bosquímanos Kung (Marshall, 1961),
caçadores-coletores da África do Sul, as partes de um grande animal que
foi caçado são distribuídas pelo acampamento em várias fases. Inicialmente,
é dividida entre os caçadores participantes da captura. Esses, por sua vez,
a dividem da seguinte forma: a primeira obrigação de um homem é com os
pais de sua mulher; ele deve lhe dar o melhor que tem em porções tão
generosas quanto for possível, sem esquecer com isso outras obrigações
primárias, como as que tem para com seus próprios pais, com sua esposa e
com sua prole (toda essa gente cozinha a carne em separado). É reservada
uma porção para si mesmo, da parte que teria que dar ao conjunto de seus
irmãos e aos de sua esposa se estiverem presentes no acampamento, e a
outros parentes e amigos que estiverem presentes. Todos que recebem
carne, por sua vez, em outra fase, devem reparti-la entre seus pais, sogros,
esposa ou esposo, prole, irmãos e outros. A carne pode estar cozida e as
quantidades podem ser pequenas. Os visitantes, inclusive, ainda que não
sejam parentes próximos, recebem carne de pessoas que visitam.
Entre os agricultores, a reciprocidade segue caminhos distintos
daqueles dessa reciprocidade generalizada própria dos caçadores-coletores
e está mais circunscrita às relações de parentesco. Os Bemba (Richards,
1939), população de agricultores da África Central, dizem que "alimento"
é aquilo a que os parentes têm direito, e que "parentes" são aqueles que

196
proporcionam alimento ou recebem sua parte do alimento de outro. Se
as colheitas de um indivíduo são destruídas por alguma calamidade
imprevista, ou se o que plantou for insuficiente para suas necessidades,
seus parentes, em seu próprio povoado, o ajudam com sacos de grão ou
lhe dão de comer. Mas, se toda a comunidade sofreu da mesma desgraça
- por exemplo, se uma nuvem de gafanhotos arrasou os campos - , cada
família busca o socorro dos seus parentes que vivem em outra área na
qual o alimento não seja tão escasso.
Na realidade, todas as sociedades camponesas institucionalizaram
formas de "ajuda" e, em boa medida, as ritualizaram até o ponto de
praticar a distribuição de alimentos inclusive quando tal distribuição não
pretende socorrer nenhuma necessidade relativamente urgente. Assim,
por exemplo, nas sociedades camponesas da Europa, América ou Ásia,
durante todo o ano, há uma série de trabalhos que, por sua urgência,
por sua importância ou por circunstâncias particulares que podem afetar
alguma casa, exigem, em maior ou menor medida, a ajuda dos vizinhos.
Normalmente, a ajuda recebida é devolvida em outra ocasião igual ou
parecida, e da mesma forma. Em todas as ocasiões, a ajuda recebida dos
vizinhos precede a oferta de uma refeição, mais ou menos abundante,
segundo as características do trabalho recebido. Nessa situação, a música
e a dança para os jovens também estão incluídas. Em Tapia de Casariego,
Astúrias, nas refeições oferecidas pela casa que recebia ajuda, a comida
"tinha que sobrar" (Valdés, 1976). No dia seguinte, o que havia sobrado
era levado e acrescentado ao que a próxima casa a receber a ajuda dos
vizinhos estava preparando. Por essa razão, disse Valdés, as casas que
mais gasto tinham eram as que iniciavam e as que terminavam o turno,
pois o último dia da comida tinha que ser "mais especial". Nessas ocasiões,
cada casa oferecia o melhor, a comida "de festa '', "o que nunca se come,
tudo do melhor". As casas reservavam uma parte de sua produção, a de
maior substância. Eliminavam-na de sua alimentação comum e a
separavam para a festa comunitária. A festa, a comida comum, supõe um
gasto público, e nessa mesma medida supõe os meios materiais de
existência da mesma sociedade, já que transforma em comunitário, em
social, uma parte do próprio consumo.
Nas diferentes formas de comensalidade entre vizinhos, tal como
considera Bonnain (1981) em estudo realizado em uma comunidade
camponesa dos Pireneus franceses, a comida é um "agradecimento" e
não um "pagamento", pois tal refeição não encerra, não conclui a relação
entre a casa que recebe a ajuda e as casas que a oferecem; ao contrário,
podemos dizer que a "alimentam" para que continue viva. De fato, a

197
refeição compartilhada consagra e fortalece os laços criados pelo trabalho.
Desse modo, os aspectos do trabalho, solidariedade, convivência,
amizade ... remetem um ao outro, e assim são mantidos. Como indica
Lisón (1971), a pergunta "quem convida quem?" deveria ser precedida
da pergunta "quem ajuda quem?". Quando uma nova família se instala,
os vizinhos vão ajudá-la e recebem o agradecimento sob a forma de um
jantar. Assim, a nova casa passa a fazer parte do sistema de comida e
troca de préstimos. Não há cálculo a respeito, e essa mesma gratidão é
encontrada nos jantares e lanches que são oferecidos. Mas os alimentos
oferecidos respondem, também, a um código: oferece-se apenas o
supérfluo (café e biscoito ou bolos caseiros) ou o luxo (aves, carnes cozidas,
sobremesas), mas nunca aquilo que poderia lembrar a necessidade (uma
refeição comum), o cotidiano ou uma transação econômica. Desse modo,
tenta-se manter e reproduzir a ideologia igualistarista das relações de
vizinhança. Essas relações de vizinhança são regidas por quatro princípios,
sempre presentes, ainda que nunca formulados de forma explícita:

Em primeiro lugar, o mais conhecido, o da alternância sucessiva nos


intercâmbios de bens. Desvincula-se das relações de ajuda mútua, ainda
que delas não se suprima. Recebe-se o primeiro fruto da horta da vizinha,
se 'voltará a dar' - expressão que contém a ideia de que não se 'devolve', já
que cada um dá na sua vez, o último fruto a ser oferecido é aquele que o
vizinho não tenha: frutos do outono, saladas no inverno, ovos no momento
em que as galinhas não botam, um pato se o vizinho só tem peru ( ...).
O segundo princípio refere-se à natureza e ao valor da doação. Colocam-se
em circulação os bens que são qualitativamente importantes, mas cujo
valor em termos monetários é menor( ... ). Corolário desse princípio é o da
igualdade dos bens e dos serviços trocados (... ). Último princípio, o
da oportunidade de recorrer ao vizinho. Três parâmetros entram em jogo,
então: a proximidade, a permanência das relações entre famílias (o que
chamam de amizade) e a natureza do serviço. (Bonnain, 1981: 172-173)

Comentaremos muito rapidamente um último aspecto: o papel


social da bebida. Hunt e Satterlee (1985) estudaram os usos e as ocasiões
sociais da bebida em um povoado inglês e observaram atentamente as
relações sociais de vizinhança e comunitárias que se desenvolveram em
torno do pub (abreviatura de public house). O pub e o bar são lugares de
reunião de profunda significação social, ainda que com particularidades
distintas segundo os países e as épocas às quais façam referência. Na
realidade, considerando as práticas de diferentes culturas, o certo é que

198
existe um consumo generalizado de substâncias que, em maior ou menor
medida, são excitantes e podem provocar alterações da personalidade.
De todas elas, sem dúvida alguma, o consumo de álcool é o mais
disseminado. Dentro de cada sociedade, a ingestão de bebidas alcoólicas
tem suas próprias regras e significados. À parte o valor nutritivo que, em
determinadas ocasiões, a bebida pode apresentar, como no caso do
altíssimo consumo de cerveja por parte dos jivaros de um dos afluentes
do Amazonas, queremos nos referir, fundamentalmente, a seu valor
social. Um caso extremo seria o dos Camba, índios do leste da Bolívia
(Farb & Armelagos, 1985), pois parecem ser a população mundial que
consome a maior quantidade de álcool per capita. A bebida que ingerem
é o resultado de uma destilação da cana-de-açúcar que alcança os 89
graus de álcool etílico. Os Camba não atribuem nenhuma consequência
nefasta ao consumo dessa bebida, dizem não apreciar o gosto e que a
tomam pelo estado de embriaguez que produz. Começam a se iniciar na
bebida aos 12 anos de idade. Suas "sessões" podem se prolongar por
todo um fim de semana. Os Camba jamais bebem sozinhos, e compartilham
um mesmo copo entre todos. Isso pode permitir pensar que a motivação
da bebida é social, pois também não dispõem de nenhum outro meio para
expressar o que lhes é comum. Essas festas proporcionam um pretexto
para viver uma relação social intensa e, em boa medida, as embriaguezes
são fruto do fato de que não se pode recusar beber outro copo nem
arriscar ser suspeito de falta de senso social.
Os Camba não são o único exemplo de que o comportamento do
bebedor é determinado, em boa medida, por padrões culturais próprios.
De fato, para citar somente alguns casos, os padrões de bebida dos judeus,
de italianos, dinamarqueses ou irlandeses são profundamente diferentes.
É preciso buscar as razões na própria história desses povos e no que a
bebida significou para cada um deles. Assim, por exemplo, a relação dos
irlandeses com o álcool é antiga e se converteu em parte integrante de
seus comportamentos culturais. Como os primeiros álcoois foram
administrados para o tratamento de diversas desordens físicas e mentais,
seu gosto, que a maioria considerava desagradável em um primeiro
momento, acabou sendo aceito. As bebidas fortes acabaram sendo
sinônimo de hospitalidade, sem que quase nunca estivessem associadas
com alimentos, como ocorre em outras sociedades europeias. Os
numerosos períodos de jejum que os irlandeses respeitavam durante o
ano envolviam apenas os alimentos sólidos, e os que sentiam fome durante
o jejum estavam autorizados a beber. Ainda assim, uma longa história de
provisões incertas de alimentos e terrível escassez contribuíram para os

199
costumes irlandeses em matéria de bebida. Pode-se dizer que, como
medida de proteção, os irlandeses adotaram um modo cultural
caracterizado por uma tendência a comer irregularmente , jejuar
voluntariamente e por sentimentos de vergonha por não disporem de
bons alimentos para serem oferecidos quando era necessário ser
hospitaleiro. Nessas circunstâncias, com o álcool procurava-se garantir,
além da satisfação social e psicológica de ter algo que oferecer, as calorias
habitualmente proporcionadas pelos alimentos em outras sociedades.
Longe de condenar o álcool, a maioria dos irlandeses lhe atribuíram,
durante muito tempo, um valor terapêutico, persuadidos pelo fato de que
ele os protegia contra o frio úmido de seu país. Assim, não surpreende
que o abuso das bebidas alcoólicas tenha sido considerado com certa
tolerância e que a embriaguez só fosse condenada quando colocava em
perigo os recursos da família.

A alimentação é um componente importante das festas, dos ritos e


das cerimônias em geral. A festa exige uma alimentação determinada,
e uma comida específica, por sua vez, pode "fazer a festa". A palavra
"festa " refere-se a uma ocasião especial, geralmente de caráter público,
apesar de também se poder falar em festas "familiares", durante as quais
a comida é consumida, tanto em qualidade como em quantidade, de
maneira diferente daquela dos dias normais. Geralmente, os alimentos
consumidos durante as festas são mais "raros", no sentido de menos
frequentes; são de alta qualidade, pelo menos comparativamente;
são mais difíceis de preparar e requerem mais tempo; e, geralmente, são
mais caros. Em determinadas ocasiões, trata-se de alimentos que por
si sós simbolizam ou denotam a festividade, e podem fazê -lo
independentemente das características anteriores. Por exemplo: as
castanhas e as batatas-doces consumidas nas festividades de Todos os
Santos e do Dia dos Mortos, os torrões no Natal, as tortilhas e outros
próprios da quinta-feira posterior ao Carnaval, determinadas roscas e
bolos da festa de São João, os ovos de Páscoa etc.
As festas costumam ser celebradas, não importa o tipo de sociedade,
por muitas e diferentes razões. Por exemplo: a celebração de um evento
religioso particular (Natal, Páscoa, Ramadã, Ação de Graças, Yon Kippur
etc.); celebração da colheita ou do plantio: oferecimento aos deuses em
razão dos solstícios de verão ou de inverno; homenagem aos antepassados
mortos; festas de iniciação, festas patronais etc. A lista poderia ser

200
interminável. Como se vê, existem festas seculares e festas religiosas, e as
que formam parte de celebrações mais gerais. Às vezes, as festas são
celebradas em momentos dos ciclos da vida, do cosmos ou das sociedades
ou dos seres que formam parte delas; as mesmas festas podem, inclusive,
ser um reflexo de uma determinada cosmovisão e/ou de uma determinada
percepção da própria história. Momentos como o nascimento , o
matrimônio e a morte referem-se a indivíduos, povos ou mesmo à natureza
ou alguma de suas partes, são comuns e cíclicos, e suscetíveis de serem
festejados. Resumindo, poder-se-ia considerar quatro grandes tipos de
festas: as 'ecofestas', relativas a celebrações de acontecimentos
astronômicos ou estacionais e que, frequentemente, são associadas a
rituais ancestrais orientados para assegurar o controle sobre o
fornecimento de comida; as 'teofestas', que celebram acontecimentos
religiosos e, muitas vezes, estão associadas com as ecofestas (por exemplo,
o ciclo do Natal, que celebra o nascimento de Jesus Cristo, assim como o
solstício de inverno; ou as festas de Carnaval, antessala da Quaresma,
que coincidiram com diversos ritos agrários de fertilidade e celebração
do equinócio da primavera). Muitas festas têm origem agrária ou pastoril,
mas, segundo a expansão das grandes religiões dominantes, foram
associadas a acontecimentos diversos ou a deuses determinados,
perdendo, em boa medida, seu caráter sazonal. Ao mesmo tempo, são
instituídas novas festas, sem relação com as lógicas agrárias e suas pautas
de calendários sazonais. Assim, são celebrados acontecimentos da história
do próprio país, município, com a intenção de estabelecer coesão
comunitária e identidade "nacional", local ou regional. Essas seriam as
festas 'seculares'. Uma última categoria seria a das festas ou rituais pessoais
ou 'familiares', dentro das quais poderiam ser incluídos os nascimentos,
casamentos, aniversários e outros ritos de passagem próprios das diferentes
sociedades. Todos esses acontecimentos festivos supõem uma correlação
gastronômica. Uma possível explicação desse costume quase universal é
que cada uma de tais crises de transição (nascimento, matrimônio e morte)
indica uma alteração significativa nas relaçõ es e reciprocidades
socioeconômicas e são indicadas , simbolicamente, por exibições,
,distribuições, préstimos, intercâmbios de peças de roupa e consumo de
alimentos (Cohen, 1977).
Vejamos uma ilustração da maioria desse tipo de festas ou
celebrações com suas correspondências gastronômicas no exemplo do
calendário social da sociedade judaica medieval, pois o conjunto das
práticas culinárias e alimentícias foi, e continua sendo, uma das expressões
mais precisas dos elementos socioculturais de identificação das

201
comunidades hebraicas. Provavelmente, os rituais próprios do calendário
litúrgico forjaram as dimensões sagrada, humana e histórica ao compasso
da diáspora, pois os judeus não acederam aos recursos do Estado onde
se estabeleceram.

Quadro 11 - Os ritos alimentares do caiendário festivo judaico

FESTAS RELIGIOSAS

Shabbat. Evoca o repouso do Senhor. Para esse dia, são lavadas e trocadas a
vasilha e a toalha de mesa, como símbolo de regeneração. A Mishna enumera
39 atividades proibidas para o dia de sábado (cocção de alimentos, sacrifício de
animais, amassar a farinha, acender fogo: para esse dia, portanto, é preciso
cozinhar na véspera). O Hamin (sopa dos judeus) é o principal prato do
sábado.

Rosb Hashanah . Primeiro dia da lua de setembro (relembra a descida de Moisés


do Monte Sinai). Comem-se maçãs cobertas de mel com a intenção de
compartilhar um "ano doce", acompanhas por todo tipo de tâmaras, romãs,
grão-de-bico, doce de nozes, peras e outros vegetais. Tudo isso é símbolo de
fertilidade.

Yom Kippur. É o jejum por excelência. É momento de confiança, penitência e


reconciliação. Comemora a identificação do povo judeu com Deus (é a
culminância dos dez dias de penitência que se iniciam com o Roch ha-shanah).
A casa é arrumada com panos limpos e novos. A celebração começa com a ceia
da vigília. Essa ceia deve ser muito leve. São preferidas as aves, as galinhas ou os
frangos . São descartadas as bebidas alcoólicas, as especiarias como o açafrão ou
a pimenta, por serem excess ivamente "quentes" e "secarem" o paladar.

Soukkoth. A "festa dos sacrários", cinco dias depois do Yom Kippur, evoca a
proteção que Yahvé dispensou a seu povo na fuga do Egito. A ação de graças é
realizada com frutos da terra, doces e vinho, tinto ou branco.

Pourim. Festa da rainha Esther. Relembra uma situação de perigo iminente.


Tem sua origem na liberação que o rei persa concedeu ao povo de Israel.
O jejum interrompe a vigília com um jantar à base de galinha e ovos com
salsinha. Bebe-se vinho, quase até a embriaguez. São confeccionados disfarces e
é uma ocasião para oferecer bolos e doces.

202
Pessah. A páscoa. Dura oito dias, durante os quais são relembradas as setes
pragas do Egito e celebrada a liberação da opressão faraô nica. O pão sem
fermento é o alimento mais característico, assim como as pastas de amêndoas e
grão-de-bico caramelizados. O pão e o aipo são símbolos de tristeza, enqu anto a
alface é de alegria. A refeição pascoal começa, na primeira noite, com um jantar
composto por uma salada de aipo e alface com vinagre, ou com pratos de
legumes e ovos com mel. No fim da Páscoa, os judeus davam a suas fa mílias e
amigos pão ázimo e, ao mesmo tempo, recebiam queijos, ovos, guloseimas,
rabanete, alface, amêndoas etc.

AS ETAPAS DA VIDA

Entrada na vida e na sociedade: o doce. O nascimento, sobretudo de um


menino, é um dos maiores acontecimentos. São pre parados pratos especiais
(galinha, bolinho, arroz ao azeite e mel) antes da apresentação do menino.
A cerimônia das fadas (derivação do hebreu bessorah) era fe ita em honra do
recém-nascido na sétima noite depois do nascimento e, no caso de um homem,
antes da circuncisão.

O banquete nupcial: o peixe e a fertil idade. A almosana, prelúdio das


celebrações nupciais, começava no sábado à tarde e antecedia a semana nupcial.
A assistência era majoritariamente fe minina. Eram repartidas bebidas e bolos. A
famíl ia do noivo enviava a seus parentes e aos da noiva pães de sésamo antes da
cerimônia religiosa. O banquete nupcial era celebrado no início da noite, em
companhia dos íntimos e de quem ti vesse oferecido um presente. Antes, podia-
se oferecer uma pequena rece pção na qual eram servidas gu loseimas como as
tarales, biscoitos em forma de braçalete à base de fa rinha, azeite e açúcar. Ainda
hoj e, entre os sefa rdistas, as mães dos noivos colocam bolinhos e bombons
debaixo da almofada do leito nupcial para que os recém-casados "adocem a
boca". Depois do casamento, houppa, começa a semana dos festejos. O marido
recepci ona os visitantes com rosquinhas e tarales preparados durante vários
di as de antecedência por sua mãe. Para concluir a semana do casamento,
algumas comunidades celebravam o dia do peixe. O marido ia ao mercado para
comprar uma boa variedade de peixes. Colocava-os em uma bandej a no chão e
saltava três vezes por cima dela ao mesmo tempo que seus parentes e vizinhos o
animava m a ser tão fértil como os peixes. Antes que a bandeja fosse retirada, os
assistentes depositavam moedas para a cozin heira .

203
A alimentação constitui, também, um sistema de comunicação
(Barthes, 1961a; Douglas, 1982), na medida em que é não apenas uma
coleção de produtos, sujeitos a estudos estatísticos ou nutricionais, mas
também um complexo sistema de signos, um corpo de imagens, um
protocolo de usos, de situações e de comportamentos próprios. Segundo
Barthes (1961b ), os fatos alimentares são encontrados nas técnicas,
nos usos, nas representações publicitárias, na economia e, também, nos
valores, nos preconceitos e nas atitudes de uma determinada população.
A necessidade de alimentos sempre foi fortemente estruturada.
Substâncias, técnicas, usos ... entram em um sistema de diferenças
significativas no qual está baseado o sistema de comunicação que constitui
a alimentação. E se a alimentação constitui um sistema, quais podem ser
suas unidades significativas? Para averiguá-lo, diz Barthes (1961a), é
necessário proceder a um inventário de todos os "fatos alimentares" da
sociedade (produtos, técnicas e usos) e submetê-los, em seguida, à prova
da comunicação; ou seja, observar se a passagem de um fato a outro
produz uma diferença de significação. Por exemplo, a passagem do pão
"em barra" para o pão de miolo - "bolo" - pode levar a uma diferença
de significado: vida cotidiana / recepção (é difícil imaginar um banquete
com qualquer tipo de pão cortado em fatias no lugar de pães individuais).
Ainda assim, a passagem do pão branco ou "normal" para o pão
"integral", hoje em dia, corresponde a uma transformação de significados
sociais: paradoxalmente, o que foi o pão da guerra (da Guerra Civil
Espanhola) ou pão "preto", hoje se converteu em pão "integral" e passou
a ser sinal de refinamento. Também as diferentes formas de cocção e,
também, o fato de que um mesmo produto constitua a totalidade do
prato ou apenas uma guarnição pode supor diferenças significativas em
termos de maior ou menor adequação a este ou àquele contexto. Assim,
por exemplo, a batata cozida não seria um produto "adequado" para
constituir um primeiro prato oferecido em um jantar com convidados,
mas sim como o "acompanhamento" de um peixe. Assim, as diferentes
variedades de pão, as formas de cacção da batata e o fato de ser o prato
ou guarnição podem constituir unidades significantes.
Dado o significado simbólico dos alimentos, torna-se fácil, então,
identificar as pessoas segundo o que comem; do mesmo modo como as
pessoas, por si próprias, se identificam ou "se constroem" por meio da
comida, tal como analisaram Chiva (1979) e Fischler (1985).
Mediante determinados usos e preferências alimentares, um
indivíduo se identifica com um determinado grupo social, étnico ou etário.
Já foi dito, por exemplo, que a junk-food é uma forma de comer que

204
pode identificar adolescentes em relação aos adultos; da mesma maneira
que se pode identificá-los, também, por meio de uma determinada forma
de vestir, de falar e dos lugares que frequentam. Podia-se pensar, então,
e certa publicidade pareceria atestá-lo, 14 que existe uma forma jovem de
comer. Ainda assim, com um determinado comportamento alimentar,
um indivíduo pode expressar sua vontade de integração em um
determinado grupo social. Packard (1959) relata um caso muito
significativo que expõe, ao mesmo tempo , a diversidade de usos
alimentares entre diferentes grupos étnicos e diferentes classes sociais.
Trata-se de um jovem nascido e criado no seio de uma família pobre de
origem italiana. Como tal, disse Packard, foi educado com o salsichão, a
pizza, os espaguetes e o vinho tinto. Depois de completar seu ensino
secundário, mudou-se para Minessota e começou a trabalhar em
acampamentos, onde, ansioso por ser aceito entre seus companheiros,
aprendeu rapidamente a preferir a carne de vaca, os feijões e a cerveja,
afastando-se de toda a comida italiana. Mais tarde, chegou a uma fábrica
de Detroit e tornou-se um jovem e promissor executivo. Nesse papel,
moldou-se cultivando os alimentos e as bebidas favoritas dos jovens
executivos: o steak, o whiskey e o peixe. Finalmente, ganhou a aceitação
da classe superior da cidade. Então, ganhava a admiração das pessoas
dessa elite recordando seu conhecimento da comida italiana e
oferecendo-lhes, com a ajuda de um criado, autênticos produtos italianos
tais como salsichão, espaguete, pizza e vinho tinto.
Como se vê, compartilhar hábitos ou preferências alimentares
proporciona um certo sentido de pertencimento e de identidade. Assim,
seria possível dizer que a comida alimenta, também, o coração, a mente
e a alma. Em um artigo intitulado ''American culture and food habits",
Jerome (1979) afirma que as pessoas comunicam o que são por meio de
seus comportamentos e preferências alimentares. Nos Estados Unidos,
disse Jerome, a alimentação expressa temas culturais básicos ou recorrentes
que são, entre outros: o ' individualismo ', expresso pelas escolhas
individuais que se pode fazer entre os milhares de alimentos oferecidos
nos supermercados, ainda que se trate de pequenas variações sobre um
mesmo tema; o 'pluralismo', expresso pela multiplicidade de cozinhas
étnicas diferentes e de estabelecimentos comerciais nos quais se
pode adquirir esses produtos (chineses, gregos, italianos, mexicanos etc.),
assim como nas múltiplas e diversas influências étnicas recebidas pela
"cozinha americana"; o 'ócio', destacado pelo incremento na utilização
14
Uma campanha publicitária da Coca-Cola veiculada em princípios dos anos 90 do
século passado era acompanhada do slogan "Comer jovem é assim".

205
de restaurantes para comer fora de casa, assim como pela popularidade
da conveniência dafast food ou "comida rápida" e do take away ou "comida
para levar"; e a 'juventude', exibida, particularmente, por meio das
chamadas health foods ou "comidas saudáveis".
Todas essas questões, relativas à alimentação como sistema de
comunicação e, especialmente, como veículo para expressar uma
determinada identidade , podem ser observados, para o caso das
sociedades de consumo, analisando-se a publicidade. Para Barthes (1961a,
1961b), um olhar sobre a publicidade da alimentação permite considerar
diferentes grupos de temas, dos quais neste momento nos interessa
destacar dois:

1) A 'função recordatória ' da alimentação: a alimentação permite ao


indivíduo integrar-se cada dia a um passado nacional: as técnicas
(preparação, cocção, fritura, assado etc.) têm uma espécie de virtude
histórica, vêm de longe. A questão histórica, tão frequente na publicidade,
move doi s tipos de valores diferentes: a) uma tradição aristocrática
("dinastias" de fab ricantes, por exemplo); e b) a sobrevivência "saborosa"
de um a antiga sociedade rural (assim, é mantida a lembrança do torrão,
inclusive na vida moderna da cidade: "feito em casa", "como em casa'',
"como a avó fazia " etc. , tudo isso complementado com imagens mais ou
menos rústicas ou bucólicas de ambientes rurais, assim como na exibição
de técnicas manu ais tradicionais ou artesanais etc.);

2) O conj unto de valores ambíguos, somáticos e psíquicos, reunidos em


tomo do conceito de 'saúde'. A saúde é vivida com base na alimentação,
sob a forma de "disposições'', que implicam a aptidão do corpo para
enfrentar um certo número de situações mundanas. Essas disposições
partem do corpo, mas o ultrapassam: a) a "energia " (o açúcar, alimento
"obrigatório": "o cérebro necessita de açúcar"; a margarina, "base dos
músculos sólidos"; o café, "que diminui o cansaço" etc.); b) o "descanso"
(a água mineral, o suco de fruta , os refrigerantes, outra vez o café etc.);
c) o "ânimo'', a "evolução" ("cubatas", "bebidas alcoólicas" etc.). Todas
essas considerações permitiriam destacar, além disso, a função psicológica
dos alimentos.

Mas, por outro lado, a alimentação é caracterizada pela polissemia,


a qual, por sua vez, caracteriza uma certa " modernidade alimentar".
Antes, a alimentação "indicava", de forma positiva, organizada, apenas
as circunstâncias festivas. Hoje, ao contrário, todas as situações têm a "sua"

206
alimentação. O trabalho, por exemplo, requer uma alimentação energética
e leve que é concebida como o próprio signo (e não somente como o
auxiliar) de uma participação ativa na vida moderna. Assim, o snack não
apenas responde a uma necessidade nova, mas também dá a essa necessidade
uma certa expressão teatral, converte quem os consome em "homens
modernos", em "executivos" com poder e controle sobre a extrema rapidez
da vida contemporânea. O snack representa, também, uma modificação
particular, regida não pelo afã de confraternizar, mas sim

pelo afã de economizar. De economizar tempo, é claro. Essa nova categoria


de comida desenvolve seu próprio rito e sua própria gestualidade ( ...)
O self-se1Vice funde em uma mesma pessoa duas funções diferentes: a de
garçom e a de comensal (... ) Economia de tempo, economia de mão
de obra. O selfse decanta até a produção de comensais em cadeia. Comensais
que devem fazer fila, ter os eq uipamentos necessários, e avançar de forma
disciplinada. Esse fato transforma profundamente os prolegômenos da
comida e introduz uma nova gestualidade ( ... ). A consideração do
restaurante se/f permite a introdução de um novo tema: a comida,
que quando inscrita no tempo do ócio tende a estabelecer laços de relação,
quando tem lugar dentro do tempo da produção adota formas que favorecem
o isolamento e, inclusive, a incomunicação e falta de solidariedade.
(Fábregas, 1982: 58-61)

Também no tempo do trabalho, mas em um sentido diferente do


anterior, encontramos as "comidas do trabalho , ou o "almoço de
negócios", inclusive comercializado sob a fórmula de menus
especializados. Esse tipo de almoço, ao contrário do que acontece com
o snack ou com o self-service, exige o conforto e a duração das sobremesas
e permite vislumbrar a subsistência do vestígio mítico do poder da
conciliação que sempre teve a comensalidade. Por essa mesma razão,
possivelmente, mantém o valor gastronômico das refeições (uma
necessidade tradicional) , utilizando esse valor como um fermento de
euforia para facilitar as transações comerciais. Como diz o refrão: "o
que presenteia bem vende se o que recebe o entende".
Assim, como vemos, a alimentação serve não apenas para nos indicar
determinados temas ou questões, mas também indica "situações", ou
seja, "um modo de vida". Alimentar-se é uma conduta que se desenvolve
além de seu próprio fim, que substitui, resume ou denota outras condutas;
e é nessa medida que constitui um signo. A atividade, o trabalho, o
esporte, o esforço, o estudo, a festa, o descanso, o ócio etc., cada uma

207
dessas situações tem sua própria expressão alimentar. Convidar para um
churrasco, por exemplo, é um convite para algo mais do que ingerir
determinados alimentos cozidos de uma determinada maneira. Um
churrasco supõe um ambiente determinado, de certa informalidade e
camaradagem; exige uma forma de vestir, ou não a exige etc.
De fato, a atualidade é caracterizada por uma expressão
extraordinária do campo associativo da alimentação. Esta incorpora uma
lista cada vez maior de situações particulares. Essa adaptação, em geral,
é feita em nome da "higiene" e de um "viver melhor". Mas, na realidade,
o alimento também se encarrega de significar a situação na qual é usado.
Tem, ao mesmo tempo, um valor nutritivo e um valor protocolar.
E, precisamente, esse valor protocolar está cada vez mais desenvolvido,
em detrimento do valor nutritivo. Pode-se dizer que, em nossa sociedade
contemporânea, a alimentação tende, sem cessar, a se transformar em
"situação", de tal modo que perde em substância e ganha em "função".
A sociedade contemporânea está organizando o sistema significante de
sua alimentação em torno de dois grandes polos. Por um lado, a atividade
ou atividades em geral, e não o trabalho. E, por outra, o ócio, e não mais
a festa. Tudo isso mostra, se necessário, até que ponto a alimentação é
um sistema orgânico, organicamente incorporado a um tipo definido de
sociedade: nesse caso, a sociedade industrial e de consumo (Barthes,
1961a) que, como diz Ascher (2005), não para de inventar formas de
alimentação suscetíveis de contribuir para o aumento da autonomia, da
independência, da intimidade ou da privacy dos indivíduos; ao mesmo
tempo que as formas comunitárias das comidas são, praticamente, cada
vez menos inevitáveis, pois, constantemente, a sociedade questiona o
modelo das relações interindividuais: torna possíveis as distâncias, as
separações, os descompromissos mas, também, os encontros, as reuniões
e os novos compromissos. Graças aos meios de comunicação e de
transporte e à elevação do nível de vida, os casamentos, batizados, as
comunhões ... converteram-se, nas cidades, nos grande acontecimentos
festivos que antes se davam no meio rural. Com o aumento da esperança
de vida e a coexistência de três, ou até quatro, gerações, essas reuniões
(juntamente com os aniversários e intercâmbios natalinos) tomam
proporções crescentes que animam os donos de restaurantes e os
hoteleiros. A importância dos aniversários aumenta também tanto entre
os menores como entre os mais velhos e anciãos, com os bolos, bebidas,
presentes e manifestações de amor filial e entre parentes. Multiplicam-
se, por isso mesmo, os brindes nos espaços de trabalho, suscitados e
organizados tanto por colegas como por chefes e colaboradores para

208
festejar um acontecimento local (uma saída, uma chegada, uma promoção
etc.) ou para celebrar no lugar de trabalho uma festa geral. Por sua vez,
associações, clubes e outros tipos de entidade celebram também por
motivos diversos. Definitivamente, a sociedade contemporânea se
caracteriza por uma proliferação festiva de caráter profano, mas em que,
como nas festividades religiosas de outrora, pequenas ou não, experiências
alimentares compartilhadas continuam sendo um acompanhamento
imprescindível.

209
4
Alimentação, Sociedade e
Distinção Social

Alimentação e Classe Social


As pessoas podem ser socialmente identificadas e classificadas
segundo o que comem, da mesm a forma como são identificadas e
construídas por meio da comida. Como exemplo, os contrastes entre as
comidas de ricos e pobres em termos de ingredientes, estru tura e modos à
mesa serviram historicamente para manifestar diferenças de status e de
controle político. É da época medieval um ditado muito significativo a
respeito de como as diferenças sociais determinam a alimentação: "O nobre
come quando quer, o padre quando tem vontade, o pobre quando pode".
Atualmente, tais diferenças continuam se manifestando em tomo do preço,
da qualidade e do grau de sofisticação dos alimentos e bebidas consumidos.
Historicamente, a alimentação esteve ligada ao prestígio social e
ao status. Os diferentes modos de se alimentar podem ser um meio de
afirmar o próprio status diante dos demais e, inclusive, de adquirir
prestígio. O desejo de promoção social manifestado fundamentalmente
por meio da adoção de alimentos, de pratos e de maneiras à mesa
inspirados naqueles de uma categoria social considerada superior e que
se pretende imitar ou à qual se pretende igualar constituiu um dos motores
mais poderosos das transformações da alimentação . Por exemplo, a
discrepância entre a nobreza e os camponeses da Inglaterra medieval
poderia ser exemplificada pelo contraste entre seus consumos alimen tares.
Enquanto os pobres se sustentavam com pão, queijo e outros alimentos
simples, os nobres e os fazendeiros poderiam sentar-se à mesa para ingerir

211
banquetes formados por vinte ou trinta pratos diferentes, muitos deles
contendo carne de um ou vários tipos. Dessas grandes festas, pode-se
dizer que tinham um propósito sociopolítico, pois simbolizavam o poder
que os nobres exerciam sobre o povo simples, assim como também sobre
as provisões alimentares (Tannahill, 1973). Extraímos de Martínez Alier
(1968) outro contraste similar, ainda que mais contemporâneo, nas
palavras dos trabalhadores rurais de Córdoba que comparam sua
alimentação com a dos "patrões":

A alimentação atual dos trabalhadores [o estudo foi realizado na década


de 1960] continua sendo a tradicional, de épocas normais, como se vê nos
orçamentos familiares que, de vez em quando , as organizações de
trabalhadores detalharam para fundamentar suas petições de aumento
de di árias. Nelas, os trabalhadores dizem explicitamente que não querem
luxos, e para demonstrá-lo não incluem nem o tabaco, nem o vinho. Incluem,
como alimentos, o pão, o azeite, o grão-de-bico e o feijão, e pouca coisa
além disso. Em um orçamento familiar redigido em 1919, dizia-se que
para cada membro da família operária eram necessários 600 gramas de
pão di ários, e o mesmo está dito em outro orçamento de 1961. Ambos
incluem quantidades parecidas de azeite e de grão-de-bico ou feijão. Em
nenhum são mencionados carne, ovos ou leite ( ... ).A importância do pão
faz com que, em determinadas ocasiões, a diária seja estipulada em quilos
de pão ( ... ), mas não vivem somente do pão. Na realidade, o azeite é o
produto cujo preço por caloria é menor, e essa é a razão pela qual ele é tão
usado ( ...). Pode-se obter uma dieta adequada em calorias e proteínas a
um custo mínimo, comendo-se basicamente pão, azeite e grão-de-bico ou
feijão. O pão e o azeite proporcionam as calorias; o pão e os legumes,
proteínas. Uma dieta 'típica' de um trabalhador do campo, que proporciona
82 gramas de proteínas e um pouco mais que 4.600 calorias, suficiente
para um homem de envergadura mediterrânea que trabalha, é a seguinte:

Pão 700 gramas 6,30 pesetas


Azeite 250 gramas 8,50 pesetas
Tomates 500 gramas 2,50 pesetas
Grão-de-bico 80 gramas 1,50 pesetas
Batatas 250 gramas 1,00 pesetas

( ... )A dieta é, de maneira bastante próxima, a que poderia ser observada


como habitual , em 1964 e 1965, tanto nas fazendas como nas casas dos

212
trabalhadores que, hoje e antes, preparam esses alimentos das formas
habituais: joyos (pão com azeite), cozidos de grão-de-bico (algumas vezes
substituído pela sopa de feijão ou por um guisado de arroz), miolos de pão,
gazpacho, molhos ... É costume comprar um pouco de salsicha ou queijo, ou
marmelada que ajude a comer o pão; essas são as 'ajudas', e gasta-se algo
como um 'duro' por dia, por pessoa( ... ). Quando os trabalhadores comparam
sua alimentação com a 'deles' (os patrões), sabem muito bem do que estão
falando, e essa comparação, baseada na realidade, é feita com frequência
(... ): 'nós comemos os gostosos cardos-de-ouro e a deliciosa beldroega e eles
comem o fedorentojamón e a asquerosa linguiça'. A mesma ideia, de maneira
menos irônica, foi expressa muitos anos atrás pelos trabalhadores do Carpia
- 'Essa é a diária mínima que o trabalhador deve ganhar para cobrir as
necessidades mínimas de seu lar, sem comidas de luxo, como carnes, pernil,
vinho .. .' -e de Luque- ' ... de presunto e carne, como a diária não dá para isso,
não sabemos o preço'. (Martínez Alier, 1968: 93-99)

Os comportamentos anteriores, que consistem em alcançar ou


manifestar ou refletir a distinção social por meio das diferenças
alimentares, em quantidades ou qualidade, contrastam com os de muitas
sociedades tribais nas quais, pelo contrário, o acúmulo de comida, para
sua posterior distribuição entre os parentes, aliados ou, inclusive, entre
o conjunto da comunidade é um comportamento que deve
necessariamente acompanhar a estratégia daqueles que aspiram a serem
considerados "grandes homens" ou "chefes". Nesse sentido, uma das
instituições que mais chamaram a atenção dos ocidentais foi o potlatch
(Piddocke, 1981 ), praticado por diversos motivos pelas tribos que
habitavam a costa noroeste do Pacífico: celebrações de funerais , para
que o sucessor do defunto alcance sua posição e para outras trocas de
status, pela chegada da puberdade, em razão do matrimônio e da
inauguração de uma nova casa, entre outros motivos. Para poder realizar
um potlatch, deveriam ser acumuladas, de antemão, grandes quantidades
de comida e outros bens. Também eram esculpidas novas modelagens
para representar os emblemas do anfitrião, o qual oferecia presentes a
todos, em forma de túnicas, mantas, canoas e, a partir de então,
alimentos. Para tornar possível esse acúmulo, o anfitrião recebia ajuda
de todos os demais membros de sua linhagem que, conforme seus meios,
colaboram com comida, mantas etc. Ainda que a glória que determinava
a generosidade fosse em todas as partes extraordinária, a obrigação de
corresponder tinha importância excepcional, especialmente entre os índios
Kwa-kiult. Em fins do século XIX, a abundância característica do potlatch

213
podia ser manifestada, inclusive, destruindo-se as propriedades- as canoas,
por exemplo - ou derramando-se sobre as fogueiras grandes quantidades
de azeite de peixe. Desse modo, o anfitrião desafiava seus hóspedes e os
induzia a realizar, caso pudessem, festas maiores que a sua.
Nem sempre, entretanto, o potlatch teve essas características. Antes
da penetração europeia, o potlatch era uma festa na qual um numaym,
ou linhagem, representado pelo seu chefe, dava presentes a outros
numaym com seus respectivos chefes . Quanto mais generosidade
manifestasse o chefe anfitrião, mais prestígio angariava. Segundo
Piddocke (1981), o potlatch anterior à ocupação europeia, iniciada em
fins do primeiro terço do século XIX, tinha três funções, essencialmente:
a redistribuição de alimentos e de riqueza entre diferentes numaym; a
revalidação das trocas de status social e a conversão da riqueza oferecida
pelo anfitrião para manter seu prestígio em relação ao seu numaym,
motivando, dessa forma, a continuidade no ciclo de intercâmbios .
Nessa perspectiva, o potlatch pode ser considerado como parte de um
sistema socioeconómico muito mais amplo que capacitava o conjunto do
sistema social, constituído por várias comunidades, para manter um alto
nível de produção de alimentos e regular seu consumo, tanto no seio das
comunidades como entre elas.
Vejamos outras manifestações da desigualdade social por meio das
diferenças no consumo de alguns produtos especialmente valorizados,
como, por exemplo, a carne. De fato , o consumo de carne é um exemplo
significativo do modo como os consumos alimentares refletem a distinção
social existente no seio de uma mesma sociedade, assim como as variações
entre diferentes sociedades.
A maior ou menor presença, quantitativa e qualitativa, da carne
na dieta foi desigual não apenas entre culturas diferentes, mas, também,
no seio de uma mesm a socied ade. Historicamente, em sociedades
estratificadas e hierarquizadas, o acesso à carne era um indicador de
bem-estar e, inclusive, de poder e, nessa mesma medida, um elemento
de diferenciação social ("Carneiro, comida de cavalheiro"). Comer muito,
sobretudo carne bem condimentada, era uma obrigação social para o
nobre medieval (Riera, 1988). Até meados do século XIX, a gordura,
considerada como "corpulência", significava saúde, prosperidade, honra
(Fischler, 1979) e, em muitas sociedades dominadas pela subalimentação,
a obesidade foi destacada como sinal de riqueza.

Engordar era um sinal de riqueza nas cidades italianas da Id ade Média nas
quais o popolo grosso designava a aristocracia dirigente e popolo magro, o

214
povo. Podemos supor que a sedução da gordura é tanto mais poderosa na
medida em que a magreza significava fome, enfermidade e pobreza.
(Nahoum, 1979: 26)

A carne e a gordura foram bens escassos na maioria das sociedades


e em quase todos os períodos históricos. Diz-se com frequência que nossos
ancestrais comiam muito mais gordura do que nós, e a preferiam. É o
que se conclui não apenas das recordações vividas pelos mais velhos entre
nós, mas, também, ·das pesquisas etnológicas sobre a cozinha europeia
do século XIX e de alguns dados históricos relativos a épocas anteriores.
Hoje, quando os açougueiros limpam a carne, eliminam as partes mais
gordurosas, pois seus clientes não a querem. Nos séculos XVII e XVIII,
pelo contrário, a gordura das diversas carnes de abate custava em média
duas vezes mais que a parte magra. Certas peças gordurosas como o peito
de boi também eram consideradas de qualidade, enquanto hoje são vistas
como peças de segunda categoria.
Esses dados históricos não devem precipitar a conclusão de que as
pessoas de épocas passadas comiam mais gordura animal que os
contemporâneos, nem que sempre, e em todas as classes sociais, se prefira
uma alimentação gordurosa. Apesar da escassez de dados e de sua baixa
confiabilidade, pode-se dizer que os lipídios teriam representado menos
de 15% da porção calórica. No século XVIII, as porcentagens mais baixas
(menos de 8%) seriam, precisamente, as das categoriais sociais mais
modestas: trabalhadores rurais, artesãos, marinheiros etc. Em sua porção
alimentar, os glicídios proporcionavam em torno de 80% das calorias.
O mesmo ocorria nos séculos XVI e XVII. Na Itália e na Romênia da
primeira metade do século XIX, por exemplo, o milho representava até
90% da ingestão total de alimentos, uma predominância muito próxima
da exclusividade. Os vegetais frescos ou em conserva participavam muito
pouco da dieta dos trabalhadores rurais europeus e provavel mente
significavam menos de 5% do consumo de milho. O consumo de carne,
com frequência reservado para algumas festas , era muito baixo e quase
não tinha influência na nutrição. Os produtos lácteos, com frequência
reservados para as crianças, eram escassos. Também era reduzido o consumo
de gorduras, mais usadas como temperos do que como alimentos
nutritivos. A predominância do milho na dieta se acentuava durante o
inverno, quando sua massa era complementada com reduzida quantidade
de queijo ou manteiga de porco para lhe conferir sabor e era acompanhada,
com muito pouca frequência, por alguma verdura em salmoura. Os homens
recebiam alguns complementos durante as temporadas de trabalho mais
duro. Não é assim com as mulheres (Warman, 1988: 160-161).

215
A geografia constitui, também, um fator de diferenciação
importante em relação ao consumo de gorduras. Uma geografia paradoxal.
Era nos países mais quentes, Itália e Espanha, que a proporção de lipídios
era mais alta (entre 14 e 34% ), enquanto que em um país frio como a
Polônia a proporção era de apenas entre 4 e 13%. Em algumas regiões
da Europa meridional, o consumo de gordura podia ser, inclusive, muito
elevado. Era o caso dos camponeses andaluzes, uma situação bastante
excepcional, desde então, devida ao seu contexto particular:

A alimentação do trabalhador do campo é composta por uma telera diária


- pão que pesa 1.400 gramas e que em muitos pontos não parece ser da
melhor qualidade, e além disso - para o mês - três litros de azeite, quatro
litros de vinagre, meio de sal e alguns alhos. Com esses elementos são
preparados os notórios gazpachos, salmorejos ou sopas. Três desses por
dia e, muito pontualmente, também podem comer algumas azeitonas,
laranjas, pimentões, tomates etc. Ou seja, fruta da época, que era barata.
Ninguém come comida quente além dos caseiros, capatazes, operadores e
guardas, que preparam uma sopa à noite, feita com grãos-de-bico ou fava
com batatas ou arroz, temperada com azeite e, algumas vezes, acrescida de
50 gramas de toucinho por indivíduo. (Argente dei Castillo, 1924: 37)

Na Polônia, as gorduras haviam proporcionado entre 4 e 8% da


porção calórica dos lares dos trabalhadores rurais e entre 7 e 13% daquela
consumida nas moradas dos nobres, incluindo os castelos reais. Essa
escassez de gordura podia provocar excessos curiosos: um francês que
visitava a Polônia no século XVIII observou que, em uma festa preparada
no meio de um jardim, quando quiseram acender as lâmpadas, os
trabalhadores contratados para a iluminação haviam comido a gordura
disponível para isso.
As gorduras tinham preços altos nos séculos XVII e XVIII,
certamente como consequência de sua escassez: por um lado, eram
produzidas em quantidade muito menor que a atual e, por outro, tinham
muitos outros usos. A iluminação das casas, em particular, absorvia grandes
quantidades de azeite e de sebo. O poder nutritivo desses produtos
escassos e caros também podia explicar o apreço que lhes devotavam os
trabalhadores rurais, em cuja alimentação os glicídios predominavam
muito mais do que atualmente (Flandrin, 1989).

216
Essa foi, historicamente, uma situação muito recorrente e que
persiste até a atualidade em muitos países subdesenvolvidos. De fato,

na maior parte das sociedades, desenvolvidas ou subdesenvolvidas, a


presença de produtos de origem animal na dieta é tanto mais elevada quanto
mais alto é o nível de renda. Um estudo clássico dessa relação mostrou que
em mais de cinquenta países os grupos de renda mais alta obtêm, de fontes
animais, uma proporção muito mais alta de gorduras, proteínas e calorias
que consomem do que os grupos de renda mais baixa. Em proporção à
renda, as calorias procedentes das gorduras animais substituem as
procedentes das gorduras vegetais e os carboidratos, e as procedentes de
gorduras animais substituem as de origem vegetal. Na Jamaica, por
exemplo, a farinha de trigo é a primeira fonte de proteínas para os 25%
mais pobres da população, estando o frango e a carne de boi em décimo e
em décimo terceiro lugares, respectivamente. Para os 25% mais ricos, em
contrapartida, o boi e o frango ocupam o primeiro e o segundo lugares,
respectivamente, e a farinha de trigo o sétimo. Essa relação é válida para
todo o mundo. As elites de Madagascar consomem 12 vezes mais proteínas
animais do que as pessoas situadas na base da hierarquia social. Inclusive
nos Estados Unidos, quem ocupa o cume da pirâmide come 25% mais
carne do que os que se encontram na base. Na Índia, os grupos de renda mais
alta consomem sete vezes mais proteínas animais que os de renda
mais baixa. (Harris, 1985a: 23-24)

Muitos pratos modernos tais como a pizza e a massa, o cozido e o


bolo de pastores irlandeses, o chop suey e outros devem suas origens aos
pratos camponeses tradicionais nos quais uma grande quantidade de
alimento básico ficava mais apetitosa quando se lhe acrescentava uma
pequena quantidade de carne ou de vegetais (Fiddes, 1991).

No mundo moderno, como no de outrora, a comida continua sendo


um meio muito importante de afirmação do próprio status social.
O prestígio pode ser atribuído aos próprios alimentos e/ou às circunstâncias
em que são servidos, e aos modos como isso é feito. Distinções muito
precisas podem ser sutilmente estabelecidas por meio da conduta alimentar
ou das regras sociais relativas a como servir os alimentos, como levá-los à
boca, que alimentos e que bebidas são adequados a cada tipo de pessoa
e a cada tipo de situação etc. Nesse sentido, a proliferação, em épocas
anteriores, mas também agora, de manuais de " urbanidade" ou de

217
"etiqueta" e "distinção" contempla a complexidade desse assunto, muito
bem historiografado e analisado por Norbert Elias em seu livro O Processo
Civilizador.
Eckstein (1980) considera diferentes mecanismos com os quais se
pode afirmar o status por meio da comida: a) a possibilidade de escolher
produtos raros e caros para impressionar os demais, b) a possibilidade de
escolher restaurantes caros para gratificação pessoal e c) a possibilidade
de preparar pratos muito elaborados cuja preparação exija muito tempo.
Na sociedade de consumo, a possibilidade de "escolher" é muito
estimada, e a impossibilidade de fazê-lo é considerada, muitas vezes, de
modo negativo . Esse fato pode permitir compreender alguns
comportamentos "extravagantes" como, por exemplo, os das pessoas que,
vivendo em uma situação de pobreza ou amparadas pela assistência social,
algumas vezes parecem _se comportar irracionalmente ao comprar alguns
alimentos considerados "de luxo". Talvez esses comportamentos, diz
Fieldhouse (1986), sejam mecanismos de escape da realidade cotidiana
da pobreza e tenham o efeito de aumentar a autoestima criando a ilusão
da liberdade de escolha. Exemplos diferentes, mas complementares,
poderiam ser encontrados nas frequentes sensações de desgosto
observadas em relação às comidas hospitalares, escolas, exército e de
outras instituições nas quais não há possibilidade de escolher os alimentos
que são ingeridos.
A natureza dos alimentos consumidos, de acordo com seu grau de
exotismo, raridade, tipo e grau de elaboração, preço etc., constitui uma
expressão do status dos próprios alimentos e, por meio deles, das pessoas
que os consomem. O status dos alimentos também pode ser determinado
pelo fato de serem consumidos por pessoas de alto status. O modo e a
rapidez como o leite de mamadeira, apesar de seu valor nutritivo muito
menor, substituiu, em muitos lugares, o leite materno foi explicado, pelo
menos parcialmente, por considerações relativas a status , já que se
considerava que as práticas da amamentação eram próprias das "classes
baixas". Depois, as "classes baixas" teriam adotado a mamadeira porque,
como era utilizada pelas "classes altas " , pensaram ser melhor.
Curiosamente, a partir dos anos 1970, as classes mais altas voltaram à
lactância materna, reivindicando para o leite materno todas as virtudes
que antes lhe haviam negado. Outros exemplos significativos de alimentos
que, no decorrer da história, denotaram ' alto status, ainda que seu valor
nutritivo seja menor, porque foram consumidos pelas classes altas são,
ou foram , o pão branco e o açúcar refinado e branco - em relação ao pão
"preto" e ao açúcar mascavo. O consumo de um e de outro produto foi

218
considerado como um índice de bem-estar e expressava a passagem do
necessário para o supérfluo.
Assim, pois, em muitas ocasiõe.s, as preferências por alimentos
considerados de alto status podem excluir as considerações quanto a seu
valor nutritivo. Em um artigo intitulado "Comida, tradición y prestigio",
Garine (1976) analisa os alimentos de prestígio entre as tribos Moussey,
Massa e Tupuri da África Central e, a propósito disso, comenta que os
seres humanos são os únicos que evitam o uso de alimentos nutritivamente
valiosos por serem de "baixo status" e, ao contrário, consomem produtos
organolepticamente medíocres e nutritivamente pobres com a finalidade
de aparentar prosperidade econômica. Essas constatações o levam a
afirmar que, apesar de a maioria das sociedades estar capacitada para
resolver sua subsistência e dispor dos excedentes suficientes, a maior parte
da alimentação se desenvolve por razões de prestígio.
Nas sociedades industriais contemporâneas, o componente classe
social, apesar de alguns trabalhos (Fischler, 1995a, 1995b; Warde, 1997)
contemplarem outras variáveis sociais, tais como idade ou gênero,
continua sendo um aspecto central para explicar os diferentes tipos de
dieta. Não se pode esquecer, por exemplo , que nos países
industrializados, durante as últimas décadas, as discrepâncias sociais
em função do nível salarial das pessoas foram aumentando, de forma
que os modelos de consumo dos setores mais pobres permanecem iguais
no tocante a algumas das questões historicamente definidas: estão
excluídos da possibilidade de variedade e de qualidade . Na Grã-
Bretanha, por exemplo, as disparidades no nível de salários não
diminuíram, e sim aum entaram entre 1980 e 1990 (Atkins & Bowler,
2001). Em um estudo comparativo relativo ao período compreendido
entre 1966 e 1998 sobre as aspirações alimentares dos franceses, diante
da pergunta "se você tivesse mais dinheiro para a alimentação, em que o
empregaria?", as respostas revelaram que diminuía a porcentagem das
pessoas que aumentariam a quantidade (de 38% em 1966 para 16% em
1998), enquanto aumentava a daquelas que incrementariam o gasto
em restaurantes (de 9% em 1966 para 51 % em 1998). Entretanto, a
cifra de 16% obtida em uma amostra de donas de casa entrevistadas em
seu domicílio confirma que, em 1998, nem todos tinham a sensação de
comer o suficiente ou a quantidade que desejaria. Essa porcentagem
indica que, para muitas pessoas, os problemas da modernidade alimentar
não são derivados da superalimentação (Poulain, 2002a).
Nesse sentido, os trabalhos de Gonzáles-Turmo (1993 , 1995)
indicam que o status social em uma situação de transformação dos hábitos

219
alimentares é o que permanece e inclusive se torna mais agudo em
determinadas ocasiões, sobrepondo-se às diferenças marcadas pela idade,
pela categoria socioprofissional ou pelo habitat. Indicam também que,
em relação à cozinha andaluza, não se trata apenas da evidência de que
distintas classes sociais tenham se alimentado de diferentes maneiras,
mas sim que seus respectivos hábitos alimentares tenham sido aceitos e
evoluído de forma notoriamente independente. Assim, por exemplo, é
mais fácil que haja semelhanças entre as comidas das classes populares
de distintas regiões andaluzas do que entre essas e a comida de seus
compatriotas burgueses. As elites, com exceção das situações críticas,
sempre comeram o que quiseram e sempre puderam escolher. Nesse
sentido, o grande proprietário agrícola ou o industrial andaluz não
comeram alimentos diferentes segundo sua categoria profissional, mas
sim segundo as variedades locais e movidos mais pela vontade do que
pela necessidade. Pelo contrário, o comportamento alimentar das classes
populares foi determinado pelas escassas possibilidades econômicas, pelo
que o meio oferece e pelas restrições laborais. Também não foram iguais
os conhecimentos culinários, nem as formas de transmissão desse saber,
entre "ricos" e "pobres". Os primeiros foram guiados pelos bons modos
à mesa e pela aquisição de ensinamentos culinários por meio de aulas ou
receitas, enquanto os segundos, bem menos instruídos, foram guiados
pela transmissão oral e doméstica dos conhecimentos e habilidades
maternas ou, em qualquer caso, femininas. Desse modo, a cozinha de
ricos e a cozinha de pobres se materializam em práticas e consumos que,
abrangendo uma mesma região, a da Andaluzia Ocidental, incluem
diferenças significativas. Por exemplo, os estratos mais altos utilizam
procedimentos culinários mais variados e, em alguns casos, não
compartilhados pelos demais. O bechamel, as preparações de verduras
ou os pratos ao forno são novas aquisições próprias dessas classes, como
antes o foram certas frituras e algumas elaborações de confeitaria.
Inclusive, as elaborações culinárias mais comuns, como o puchero, o
gazpacho , as migas ou o cozido, mudam de acordo com as diferentes
localizações geográficas, mas também quando se passa das cozinhas das
elites para as populares porque, dependendo do status social, surgem
versões próprias da "comida de ricos" e da "comida de pobres".
Quando se faz esse tipo de considerações e de comparações em
escala mundial, fica claro que as desigualdades sociais no tocante ao
consumo de alimentos são ainda mais alarmantes (Dupin & Hercberg,
1988; Hercberg et ai., 1988; Hercberg & Galán, 1988). De acordo com as
estimativas da FAO (2002), correspondentes ao período 1995-1997, no

220
mundo industrializado cerca de 790 milhões de pessoas não têm comida
suficiente. Essa cifra é maior que a população total da América do Norte
e da Europa juntas. Essa espécie de "continente" virtual formado pelos
que passam fome engloba homens, mulheres e crianças que provavelmente
nunca desenvolverão a totalidade de sua capacidade física ou psíquica
porque não têm comida suficiente, e muitos mouerão por não terem
alcançado o básico direito humano de se alimentar. Um direito factível
apenas nas economias dos países mais industrializados e, como indicamos
antes, apenas de forma parcial. O mesmo informe da FAO apresenta
estimativas do número total de pessoas que sofrem de subnutrição nos
países industrializados. A cifra resultante, que alcança os 34 milhões de
pessoas, confirma que inclusive nesses países é preciso enfrentar o desafio
de superar a insegurança alimentar, entendida como falta de
abastecimento. Ainda que a imensa maioria desses 34 milhões de pessoas
viva em sociedades que experimentaram importantes transformações
políticas e econômicas na década de 1990, há focos de fome distribuídos
por todo o mundo. Sem ir muito longe, calcula-se que mais de oitocentas
mil famílias norte-americanas passem fome . No caso da Espanha, a
extensão da pobreza, composta pelas pessoas e famílias que estão
economicamente abaixo da linha dos 50 % da renda média líquida
disponível alcança, no conjunto do Estado, 2.192.000 lares nos quais
vivem 8.509.000 pessoas em situação de "pobreza extrema". Um total de
86.800 lares e 528.200 pessoas cujo nível de renda impede de ter acesso,
de forma regular, aos alimentos e faz com que dependam dos recursos
sociais públicos e/ou privados para poder comer (Cáritas, 2002).

Alimentação e Gênero
Tarefas Associadas à Alimentação Cotidiana
Segundo diferentes constatações empíricas, pode-se, generalizando,
afirmar que as mulheres foram e são, etnográfica e historicamente,
excetuando-se as que fazem parte dos grupos de elite nas diferentes
sociedades, as pessoas responsáveis pela alimentação cotidiana (Mennell,
Murcott & Van Otterloo, 1992; Goodman & Redclift, 1991; Devault, 1991),
especialmente em relação às tarefas de abastecimento e preparação das
comidas. Referindo-se a uma das tarefas vinculadas à alimentação e ao
trabalho doméstico, cozinhar, Mennell (1985) demonstra que, na maioria
das culturas e através do tempo, as mulheres são associadas à cozinha
doméstica diária, enquanto que nas sociedades em que aparece
uma cozinha diferenciada, o papel do cozinheiro - o chef - é masculino.

221
Do mesmo modo, Goody (1984) argumenta que, já nos tempos da
hegemonia egípcia, os homens utilizavam as receitas cotidianas praticadas
diariamente pelas mulheres em seus grupos domésticos para a cozinha
da corte, caracterizada por um reconhecimento social que nada tinha a
ver com o referente ao trabalho alimentar diário. Nos Estados e cortes
eurasiáticas, a diferença entre a grande e a pequena cozinha tendia a ser
confundida com a diferença entre a cozinha masculina e a cozinha
femini na, respectivamente. Desse modo, enquanto os homens são chefs,
as mulheres são cozinheiras.
Ainda que essa diferenciação entre cozinha diária, feminina, e
cozinha especializada, masculina, nos sirva, inicialmente, para questionar
os aspectos biológicos de certas atribuições, a responsabilidade feminina
pela alimentação cotidiana está relacionada com aq uil o que se considera
uma atribuição 'natural' dos trabalhos domésticos às mulheres e, em
particular, com a aceitação, também 'natural', por parte das mulheres,
da responsabilidade pelo cuidado dos membros do grupo doméstico
(Gracia, 1996c: 19-29). A alim entação cumpre funções fisiológicas
essenciais para a sobrevivência humana. É um dos principais processos
que permitem a sobrevivência física e condicionam a saúde. Alimentar é
nutrir, é cuidar, é reproduzir. As mulheres, por disposição fisiológica,
também são quem alimenta as pessoas durantes seus primeiros meses de
vida e, em parte por essa razão, quem acaba cuidando dos membros do
grupo doméstico durante o resto de se u ciclo vital.
Os conteúdos culturais associados a essa função nutridora e dela
derivados são múltiplos. Carrasco (1992b) destaca como especialmente
interessante para a relação entre cultu ra, saúde e alimentação aqueles
que convertem as mulheres, dentro dos grupos domésticos, em receptoras
naturais de responsabilidades preventivas, terapêuticas e assistenciais em
referência ao grupo, para que cumpram a totalidade dessas funções
nutridoras. Essa responsabilidade 'natural/cultural' pode ser resumida
de maneira simples na obrigação fem inina de nutrir os diferentes membros
do grupo, de lhes oferecer, através das práticas alimentares, os alimentos
prontos para consumir. Isso pode ser interpretado, em um primeiro nível,
como a responsabilidade de satisfazer, por meio da culinária, necessidades
que são, em primeiro lugar, fisio lógicas (de reprodução biológica e da
força de trabalho). Entretanto, essa tarefa comporta, além disso, a
reprodução e satisfação de outras relações sociais, tais como identidade,
reciprocidade, comensalidade ou comunicação, expressas em cada um
dos conteúdos das atividades que incorpora.

222
Mennell, Murcott e Van Otterloo (1992) afirmam que, na divisão
do trabalho doméstico nas sociedades industrializadas, a alimentação
abrange atividades múltiplas, tais como a produção, o abastecimento e
as compras, o armazenamento e a conservação, a preparação e a cacção,
a preparação e a lavagem/coleta de utensílios, a reciclagem das sobras,
assim como tarefas de horticultura, empréstimos e trocas. Corresponde,
além disso, a atividades menos óbvias - mas não menos importantes - ,
como o controle da qualidade, a cronometragem do tempo ou a satisfação
entre cliente/trabalhador. Por esse motivo, essas atividades, junto com
outras tarefas diárias (lavar a roupa, cuidar das crianças, limpar o chão
etc.), são uma verdadeira ocupação, além de um trabalho produtivo.
O fato de as sociedades contemporâneas começarem a pensar em termos
do duplo papel cumprido pelas mulheres (trabalho doméstico e
extradoméstico) leva a um reconhecimento um pouco mais justo da dupla
carga que recai sobre muitas delas. De fato , muitas mulheres continuam
arcando com a responsabilidade de adquirir e preparar as comidas
domésticas, mesmo quando são assalariadas em tempo integral (Mennell,
Murcott & Van Otterloo, 1992; Goodman & Redclift, 1991).
Ocorre que os conteúdos das tarefas do lar se transformaram
substancialmente nas últimas décadas. Capatti (1989b) relaciona a
delegação de certos papéis femininos ligados à alimentação doméstica
com a emergência das grandes cidades. Segundo ele, o papel maternal
da cozinheira começa a ser questionado em benefício do restaurante em
princípios do século XX, quando a cidade-metrópole modifica o apetite
urbano ao mesmo tempo que a oferta de restaurantes se amplia para
cada vez mais pessoas, normalmente homens, que trabalham longe do
grupo doméstico. A imagem da família reunida em torno da mesa é
sacrificada em favor da refeição com os colegas e companheiros de
trabalho. Capatti fala de um intercâmbio de papéis (mulher versus
restauração e indústria) para compreender a modernidade culinária.
Compara a perfeição familiar em relação aos menus , sabores,
comensalidade etc. - só interrompida quando a dona de casa fica doente
ou sua empregada está indisposta - com o comportamento improvisado
do homem que vive independentemente, propenso ao uso de conservas
e pratos pré-cozidos. Esse indivíduo busca as funções femininas e o serviço
na indústria alimentar, e a converte em sua companheira fiel.
Entretanto, é preciso ter cuidado com as generalizações. Nem todas
as mulheres assumem as responsabilidades alimentares, nem todas as
delegam ou as compartilham tão rapidamente como sugere Capatti.
A repercussão das transformações socioeconômicas e tecnológicas afeta

223
de formas diferentes o conjunto de mulheres. Essas diferenças são muito
notórias no que concerne à classe social e à idade (Moore, 1991) e segundo
o tipo de ocupação ou o nível de estudos. As mulheres não são uma
classe homogênea em termos de circunstâncias ou condições, nem dentro
de uma mesma cultura, nem entre culturas, e os conteúdos da
responsabilidade são afetados por essas variáveis. Um estudo significativo
nessa linha é o de Van Otterloo e Van Ogtrop (in Mennell, Murcott &
Van Otterloo, 1992). As autoras procuram avaliar as diferenças entre
crenças e atitudes de mães de crianças holandesas de educação primária,
pertencentes a três classes sociais diferentes , e concluem que
determinadas atitudes das mulheres em relação à alimentação dependem
da posição que ocupam na sociedade. Nos resultados, surge aquilo que
se entende como 'comida boa', gostos, imagem e controle do corpo,
formando parte de um complexo diferenciado de sentimentos e condutas
para com a comida que revelam um sutil leque de variações de acordo
com a classe social. Por exemplo, as mães pertencentes aos estratos altos
parecem impor normas mais estritas à mesa familiar do que as mães de
estratos mais baixos.
Por outro lado, o fato de que, na maioria das sociedades, as
mulheres são as responsáveis pelo abastecimento, pela preparação e por
servir os alimentos também não significa que determinados aspectos dessa
atividade não sejam assumidos ou desempenhados pelos homens, os quais,
por sua vez, são receptores dos valores, gostos e práticas alimentares
transmitidas/adquiridas no grupo doméstico. Há trabalhos específicos
de produção, transformação e preparação dos alimentos que constituem
parte das tarefas masculinas. Em diferentes sociedades, os homens podem
participar de alguma das fases que precedem o cozinhar e, inclusive, do
próprio cozinhar, como é o caso da tarefa de assar as carnes.
Em relação aos conteúdos do trabalho alimentar cotidiano, Charles
e Kerr (1987) indicam que um dos aspectos mais importantes oferecidos
pelas mulheres na execução dessas tarefas é o elemento de serviço: as
mulheres servidoras diante dos homens servidos. Trata-se de um elemento,
sobretudo, qualitativo que é mais evidente nas fases da preparação e
apresentação da comida. O ato de servir a comida também pode variar
em seu estilo, sua forma, segundo a classe social e a idade, podendo ser
delegado a cozinheiras e criadas entre as classes mais altas, ou
igualitariamente dividido entre os casais mais jovens.
A introdução de novas tecnologias no âmbito doméstico, assim
como o fato de as mulheres terem se incorporaâo ao mercado de trabalho
ou prolongarem sua atuação profissional para além do matrimônio ou

224
da maternidade, serviu para acelerar as características que definem os
conteúdos e os novos comportamentos alimentares (Goodman & Redclift,
1991). Entre as inovações, encontra-se a incorporação na cesta de compras
de produtos alimentícios de preparo rápido e fácil, cuja principal
característica é, certamente, o fato de prestarem um serviço. Os artigos
oferecidos incorporam o entretenimento e o trabalho das fases de
preparação dos pratos e a limpeza da cozinha, ou seja, são 'alimentos-
serviço' que poupam trabalho e tempo (Fischler, 1995b). Contreras (1993b)
indica que quando as mulheres adquirem um 'alimento-serviço' - por
exemplo, a "salada russa" congelada-, normalmente não estão comprando
apenas um prato preparado, mas também o tempo de que necessitam
para dedicar a outros trabalhos. Essa diferenciação é importante. São as
mulheres, mães e esposas que, agora ocupadas em outras tarefas
extradomésticas, não abandonam a cozinha porque (Pynson, 1987) a
indústria as auxilia nesse espaço. Assim, os produtos prontos para servir
podem economizar seu tempo na preparação, mas, além disso, evitam os
aspectos sujos do tratamento das matérias-primas (descascar, cortar,
triturar). Evitam os trabalhos culinários menos qualificados e, se for
preciso, também os especializados.
A incorporação de alimentos e pratos preparados, que permite
diminuir o tempo dedicado à cozinha 15 e espaçar as compras ocorre,
contudo, paralelamente a certo repúdio para com esse tipo de comida
"industrial '', tanto entre as mulheres que trabalham fora como entre
aquelas que o fazem dentro de casa (Pynson, 1987). A desconfiança
quanto à origem e aos ingredientes que são acrescentados a esse tipo de
produtos fez com que, em meados dos anos 70 do século passado, as
mulheres temessem especialmente a "química" agroalimentar e, em
particular, os 'aditivos'. Essa desconfiança é depois deslocada para os
produtos que não são etiquetados como "naturais" ou para os riscos
bacteriológicos (mariscos, ovos, molhos). Por um lado, há o medo de
consumi-los e, por outro, a necessidade e/ou comodidade de usá-los.
Diante dessa primeira recusa, os produtos alimentícios elaborados pela
15 Murcott (1983b) defende que o tempo teoricamente economizado parece ser
investido em outras tarefas, culinárias ou não. Por outro lado, adquirir alimentos-
serviço nem sempre significa economizar tempo em comparação com outras formas
de se alimentar. Kaplan (1980) faz uma comparação entre o tempo que leva
preparar uma salada e uma comida congelada para questionar os conteúdos dos
anúncios alimentícios que promovem , normalm en te , o valor nutricional
dos produtos e falam da facilidade da preparação. Em todo caso, segundo ela,
pode-se economizar tempo/calorias em certos pratos ou alimentos, mas não nas
lasanhas desvitalizadas, nos shakes dietéticos ou nos snacks.

225
indústria apresentarão ambiguidades: por um lado apresentando um
conjunto de vantagens práticas obtidas pelo avanço da ciência (são
produtos fáceis e rápidos de preparar) e, por outro, oferecendo pratos
pré-cozidos adaptados ao estilo 'caseiro' e dietéticos. A indústria
agroalimentar, com sua enorme variedade de produtos, é capaz de
oferecer essas vantagens e apaziguar a consciência de muitas mulheres
porque oferece artigos quase prontos para consumir que guardam uma
relação de identidade com seus referenciais autênticos e atendem, além
disso, às preferências e necessidades individuais mais díspares. Esses
produtos, além de promovidos como tradicionais e exóticos, são
apresentados como saudáveis, de forma que o discurso médico-nutricional
minimiza os temores sobre a inconveniência de se recorrer a eles
(Contreras, 1993b ).
A 'revolução tecnológica' provê os lares de eletrodomésticos que
transformam as maneiras de realizar os trabalhos alimentares. Entretanto,
a intromissão da moderna tecnologia nos ingredientes, os utensílios e o
espaço culinário proporcionam um ambíguo e parcial alívio da dupla
carga ou do duplo papel (Murcott, 1983a, 1983b). A incorporação de
tecnologia doméstica pode significar a geração de uma mais-valia que
permite às mulheres trabalhar fora de casa assim como, sem que recebam
por isso, cuidar dos filhos e do lar. Diferentes pesquisas demonstram
que o alívio das cargas domésticas originado pela revolução tecnológica
aperfeiçoa a capacidade das mulheres de suportar os demais compromissos
remunerados. Portanto, as libera para que dediquem seu tempo a outros
trabalhos (cf. Bose, 1979; Aronson, 1980; Kaplan, 1980). Murcott (1983a)
prefere defender a ideia de que os avanços na cozinha doméstica tanto
simplificam como complicam os trabalhos femininos e, sobretudo, não
os anulam. Podem economizar tempo ou tarefas pesadas, mas as
cozinheiras dos grupos domésticos contemporâneos devem saber mais
sobre a qualidade dos ingredientes, a preparação dos pratos, a
decomposição das comidas e as técnicas de preparação ou os modismos,
na medida em que esses avanços estão relacionados a um aumento do
nível de exigências. 16 Paradoxalmente, essa aprendizagem mais ampla pode
ser percebida como uma desvalorização do trabalho doméstico, já que,
16
As situações de abundância e segurança favorecem , segundo Mennell, Murcott &
Van Otterloo (1992), as tendências de refinamento na preparação da mesa familiar.
E ainda que, dependendo da classe social , as mulheres se liberem do trabalho
manual mais duro da cozinha, há a exigência de que preparem pratos mais
elaborados e saudáveis. Entretanto, para os autores , esse possível efeito é
neutralizado com os esforços da indústria da alimentação e do negócio dos
restaurantes.

226
enquanto são aprendidos novos conhecimentos, o uso de maquinarias e
as novas formas de cozinhar podem fazer perder a criatividade e as
habilidades anteriores. O aumento do nível de exigências é facilmente
deduzido da . análise dos livros de cozinha e das revistas at uais, que
continuam orientadas exclusivamente para as mulheres e, agora, para as
mulheres ocupadas. 17 Por outro lado, aceitar que a recente expansão da
tecnologia e dos produtos alimentícios de "conveniência'', rápidos e fáceis
de preparar, permite uma mudança nas tarefas da casa não significa que
a posição protagonista das mulheres na preparação e serviço das comidas
domésticas seja modificada (Burnett, 1979), assim como seu papel central
no lar e nas atividades familiares.
Como veremos no capítulo 7, nas sociedades industrializadas o
conteúdo das tarefas da casa foi se transformando substancialmente nas
últimas décadas. No caso da alimentação, tais modificações nos levam a
falar, entre outros processos, da 'revolução' tecnológica do equipamento
doméstico, da proliferação industrial de comidas rápidas e cômodas ou
de 'co nveniência ', do recurso da oferta dos restaurantes (públicos e
privados) , da concentração espacial e temporal das compras ou da
formalização de elementos de apoio (assistência doméstica, escolarização).
Pode-se afirmar que esses processos redefiniram - ' levemente/
rapidamente' - o conteúdo das tarefas alimentares cotidianas e, no geral,
trouxeram uma variação dos comportamentos alimentares cotidianos em
relação ao tempo dedicado, à formalização de estratégias, aos conteúdos
dos trabalhos ou à reformulação dos conhecimentos. Entretanto, a maior
permanência das mulheres no mercado de trabalho, por um lado, e o
aumento de mecanismos de serviço para 'aliviar' e 'agilizar' as tarefas
alimentares, por outro, não interferiram no fato de que a responsabilidade
em matéria de alimentação cotidiana do grupo doméstico continua sendo
feminina. De fato, as mulheres continuam assumindo a responsabilidade
familiar no planejamento da compra, na aquisição e no armazenamento
dos alimentos, na preparação das comidas, no serviço da mesa ou no
cuidado em guardar os utensílios de cozinha. Para muitas mulheres, as
mudanças registradas não significaram necessariamente transformações
significativas no compartilham_e nto das tarefas alimentares com outros
membros do grupo doméstico.
17
Porém, pode-se constatar que os interesses edi toriais começam a ampliar seu
público-alvo dos livros de cozinha em direção aos homens. É o caso do livro de
Costa (1993), La Cocina Varonil, Madrid, A!janza Editorial. Ainda que seu conteúdo
não reflita um tipo de cozinha especialmente " masculino", confirma a ideia de que
há mais homens com necess idad e de resolver por si mesmos as questões
alimentares.

227
Participação Doméstica e Tempo Dedicado
Com efeito, a mecanização e a realização por 'terceiros' (serviços
públicos e privados) do trabalho doméstico estão propiciando nas últimas
décadas a substituição de uma parte dos conteúdos referentes a esse tipo
de tarefa (Subirats, 1993). Ainda assim, segundo diversas fontes, as
mulheres trabalham em casa três vezes mais que os homens (Burnett,
1979; Fischler, 1995a; Segalen, 1992). No que se refere ao tempo dedicado
a "cozinhar", de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística
(INE, 2004), as mulheres dedicam a essa tarefa específica 1 hora e 57
minutos todos os dias, enquanto os homens dedicam 49 minutos. Essa
circunstância é explicada pelo fato de que a participação progressiva das
mulheres no mercado de trabalho não modificou a vida cotidiana, como
se poderia esperar, pois sua maior incorporação não se fez acompanhar
de uma correspondência superior dos homens nas tarefas domésticas.
Por outro lado, tal incorporação não alcançou níveis de igualdade com
relação à participação masculina. A análise das taxas de atividade nos
mostra que ainda existem diferenças muito importantes entre homens e
mulheres em benefício dos primeiros. É certo, também , que, em alguns
casos, as diferenças tendem a diminuir nas idades mais jovens (Enquesta
Metropolitana de la Regió de Barcelona , em Subirats & Masats, 1990) .
Uma análise comparativa entre os anos de 1985 e 1990 mostra isso.
A situação laboral da população barcelonesa potencialmente ativa
segundo o sexo em 1985-1986 era de 49,6% para as mulheres, contra
84,8% para os homens. Entretanto, cinco anos mais tarde, em 1990, a
taxa alcança 56,2% de mulheres, seis pontos acima, enq uanto a masculina
se situa em torno de 83,9%. Segundo as idades, o índice de população
varia potencialmente, de forma que se igualam e, inclusive, a taxa de
atividade masculina é superada pelas mulheres jovens nesses cinco anos.
Em 1985, por exemplo, entre aqueles de menos de 26 anos a proporção
era de 70,6% para homens e 58% para mulheres, enquanto que em 1990 a
proporção é de 68,8% e de 76,2% respectivamente. 18 No nível estatal,
a taxa de atividade também aumentou nos últimos anos. Assim, enquanto
que em 1996 a taxa de atividade feminina era de 37,24%, no ano de 2004
18
Segundo Segalen (1992), a taxa de atividade das mulheres francesas em idades
compreendidas entre os 25 e os 29 anos e entre os 30 e os 34 anos aumentou no
período de 1968 a 1975 de 50,2% para 62,7% e de 42% para 54,6%, respectivamente.
Por sua vez, na Grã-Bretanha, enquanto que em 1951 somente 25 % das mulheres
casadas trabalhavam, em 1974 essa porcentagem havia aumentado para 49% da
população feminina - para 57%, se consideramos as idades de 25 a 44 anos (Burnett,
1979).

228
alcançou 43,8% , tendo sido confirmado um aumento progressivo.
Entretanto, ainda dista bastante da taxa de atividade masculina que,
ainda que mais estável, se localiza, para esse último ano, em 85,3%.
Se contemplarmos a divisão do global das tarefas domésticas entre
os diferentes membros do lar em termos de 'conteúdos' e 'tempos',
quantificados por alguns estudos de base estatística, poderemos observar
como, efetivamente, em casa, as mulheres continuam desenvolvendo o
maior número de atividades e, além disso, aquelas que requerem maior
tempo e especialização. Para o caso da Espanha, Durán e colaboradores
(1988) propõem uma classificação que divide em dez blocos as tarefas
habitualmente desenvolvidas na maioria dos lares espanhóis:
administração de recursos e consumos, socialização e cuidado das crianças,
limpeza, costura, alimentação, cuidado de doentes, transporte, reparação
e manutenção da casa, cuidado com as plantas e animais domésticos e
representação simbólica. São dez blocos que, por sua vez, são divididos
em 32 trabalhos específicos. O bloco que corresponde à preparação de
alimentos, por exemplo, se subdivide em preparação de comidas leves
(café da manhã e lanche), comidas principais (almoço e jantar) e atenção
ao serviço à mesa. A classificação das tarefas também contempla os
trabalhos de aquisição dos produtos alimentícios, a atenção durante as
refeições de crianças e doentes, a limpeza dos utensílios culinários ou a
retirada do lixo para fora. Pois bem, das 32 tarefas específicas que podem
ser desenvolvidas em uma unidade doméstica, e segundo a Encuesta sobre
Desigualdad Social na vida familiar e doméstica (C.I.S., 1984), 28 são
executadas em sua maioria pelas donas de casa, enquanto somente duas
são desempenhadas majoritariamente por seus maridos: aquelas referentes
à reparação e manutenção da habitação e do automóvel. Esse estudo de
âmbito estatal confirma também que a maior parte dos trabalhos
alimentares do lar é executada majoritariamente pelas mulheres.
Junto com o número de trabalhos assumidos pelas mulheres e seus
respectivos conteúdos , outro fator que devemos considerar é a
'distribuição do tempo' empregado por homens e mulheres na realização
das tarefas domésticas. Partindo das principais atividades da casa que
sempre foram de responsabilidade feminina (alimentação, limpeza da
casa, roupa e sapatos, compra de comida, costura e cuidado com as
crianças), os dados (La Mujer en Cifras, 1991) revelam diferenças notáveis
em termos de dedicação temporal entre ambos os sexos. Por um lado, as
diferenças se dão, levando-se em consideração a variável tipo de ocupação
da responsável doméstica, entre mulheres exclusivamente donas de casa
e mulheres com trabalho extradoméstico e, por outro, entre homens e

229
mulheres com ocupação profissional. Enquanto as primeiras dedicam
um total de 6h12min, as mulheres que trabalham fora investem 4h48min.
Por sua vez, os homens com trabalho remunerado dedicam a essas tarefas
somente pouco mais de uma hora por dia. Assim, as mulheres que
trabalham fora de casa acrescentam mais horas de participação no trabalho
doméstico do que os homens e, consequentemente, trabalham mais horas,
dispondo de menos tempo de uso pessoal. Esse é um dado muito
significativo porque questiona uma hipótese da qual derivam duas crenças
distintas: a de que a transformação dos equipamentos domésticos liberou
as mulheres do trabalho da casa e, consequentemente, facilitou a
incorporação destas ao mercado de trabalho. Em relação ao tempo
dedicado às tarefas domésticas, tradicionalmente masculinas (reparação
e manutenção da casa, cuidado e condução do carro da casa e do trabalho,
gestões de contabilidade), vemos que mulheres e homens que têm um
trabalho remunerado fora de casa compartilham a sua realização, ainda
que os homens lhes dediquem mais tempo que as mulheres.
Para o caso espanhol, o estudo La Mujer en Cifras, 1996-2001
continua mostrando diferenças importantes no uso do tempo segundo
sexo e atividades importantes, ainda que pareça que tais diferenças
tendem a diminuir. Os resultados desse trabalho não diferenciam,
entretanto , o uso do tempo entre mulheres ocupadas fora e/ou as
ocupadas dentro de casa. Enquanto em 1996 as mulheres dedicaram
7h35min ao trabalho doméstico e os homens 3h5min, no ano de 2001 as
primeiras gastaram 7h22min e os segundos, 3h10min. Contrariamente,
em 1996, as mulheres dedicaram ao trabalho remunerado l h23min e os
homens, 3hl0min, enquanto que no ano de 2001 as primeiras investiram
nessa tarefa lh52min e os segundos, 3h28min. Uma pesquisa posterior 19
sobre o emprego do tempo em 2002-2003 continua corroborando as mesmas
diferenças significativas no emprego do tempo entre homens e mulheres.
Em um dia, as mulheres dispõem de uma hora, em média, de tempo livre
a menos que os homens, pois ainda que trabalhem quase duas horas
menos do que eles em tarefas remuneradas, dedicam três horas a mais à
realização dos trabalhos domésticos e ao cuidado das crianças e adu ltos
do lar. Às atividades do lar e da fa mília, as mulheres dedicam três
vezes mais tempo que os homens. Entre as tarefas que continuam a lhes
tomar mais tempo estão as culin árias (l h38min, em média, por dia),
enquanto os homens empregam pouco mais de meia hora.
O tempo dedicado ao trabalho da casa varia, entretanto, segundo
os grupos etários, a estrutura familiar ou o nível de salários. Se o tempo
19
Instituto Nacional de Estadística (2004).

230
que os responsáveis utilizam nas tarefas domésticas é relacionado à variável
idade, 20 constata-se que os homens que mais tempo dedicam ao trabalho
doméstico têm entre 36 e 45 anos, ainda que em nenhum caso ultrapassem
três horas diárias. Em contraposição, são as mulheres mais jovens as que
dedicam menos tempo a esse trabalho. A estrutura familiar também é
importante porque influencia nessa dedicação. Por exemplo, os lares
constituídos por famílias com filhos ou outras pessoas são os que mais
horas investem , sobretudo se eles são pequenos. Quanto à variável
categoria socioeconômica, a mesma fonte nos indica que são as mulheres
dos grupos de nível baixo as que dedicam maior número de horas,
enquanto as de status alto participam menos. Também é preciso considerar
a possível contratação de ajuda externa ao grupo familiar, isto é, do
trabalho que não vem da colaboração voluntária dos membros da unidade.
Segundo resultados desse estudo, a contratação de assistência por horas,
normalmente também feminina, é a mais habitual, sobretudo naqueles
lares jovens, onde ambos os cônjuges trabalham e estão em ciclos familiares
que significam maior trabalho doméstico, por exemplo, quando as crianças
são pequenas. À medida que melhora a posição econômica, também
aumenta a contratação dessas horas. Em uma cidade como Barcelona, a
contratação de pessoas no modelo de jornada completa representa apenas
1% de tal amostra.
Grande parte do trabalho doméstico remunerado não especializado
é dedicada a tarefas de substituição direta de mão de obra feminina
incorporada ao setor extradoméstico. Se nos lares onde a dona de casa
não trabalha recorre-se à ajuda remunerada para as tarefas domésticas
em 5% dos casos, nos lares onde essa trabalha a proporção é triplicada,
14% (Durán et ai., 1988). Na cidade de Barcelona (Espanha), por exemplo,
21,6 % da população relatam contar com atendimento no modelo de
horas, 2,6% com assistência interina e somente 0,7% com assistência fixa
(Subirats & Masats, 1990). A mesma pesquisa, dez anos mais tarde (2000),
mostra que a assistência remunerada aumenta ou diminui em função das
características da pessoa que se declara chefe da família. Assim, se a
situação desta é de ocupada, quem se encarrega da limpeza da casa e de
sua manutenção é, em 10,4% dos casos, uma pessoa remunerada,
enquanto que se sua categoria profissional é alta, essa cifra aumenta
para até 29,1 % . A delegação dos trabalhos femininos a ' terceiros' é feita
cumprindo-se dois requisitos básicos. Em primeiro lugar, o fato de que a
tarefa não possa ser evitada e seja incompatível com o trabalho das
mulheres fora de casa e, em segundo lugar, respondendo à situação de
20
Enquesta Metropolitana de la Regió de Barcelona.

231
fadiga física, nível de sujeira ou à escassa qualificação. Assim, à parte a
atenção a crianças e doentes, as tarefas mais frequentemente delegadas
são, por ordem: varrer; tirar o pó e limpar o chão; lavar as panelas e as
louças da cozinha; lavar, cuidar e passar a roupa e retirar o lixo de casa
(Durán et ai., 1988).
Apesar dessa delegação, a incorporação das mulheres ao mercado
de trabalho não significou substituir por 'relações capitalistas' a totalidade
de seu trabalho na área reprodutiva, nem, o que é importante, sua
responsabilidade. Porque, diante da progressiva incorporação feminina
no trabalho remunerado, ainda persiste um descompasso tão pronunciado
entre sujeitos responsáveis, tempos dedicados e trabalhos domésticos
assumidos? Estudos recentes mostram a correlação entre a perpetuação
dos papéis familiares segundo o modelo de divisão sexual do trabalho
predominante e o grau de participação dos diferentes membros nas tarefas
domésticas. Assim, entre os casais que formam os lares barceloneses, o
papel de chefe da família normalmente é assumido por homens, enquanto
que, paralelamente, continuam tendo um peso importante aqueles lares
onde a mulher se declara dona de casa. Em Barcelona, é o que ocorre
entre 35,8% da população feminina de mais de 18 anos. Essa divisão de
papéis significou durante muito tempo o cumprimento de uma série
de direitos e obrigações no seio familiar. Em poucas ocasiões, por
exemplo, o papel de chefe de família é atribuído às mulheres. Por outro
lado, acontece que nem todas as mulheres que foram incorporadas ao
mercado de trabalho mudaram sua percepção e práticas domésticas, mas,
sim, continuam seguindo o modelo de divisão sexual de trabalho.21
Declarar-se22 dona de casa varia segundo a idade do responsável pela
família, sendo menos frequente entre as mulheres jovens e, por sua vez,
é mais comum fazê-lo em famílias completas e não em estruturas
monoparentais ou unipessoais. De 35,8% de mulheres que se declaram
donas de casa, o acúmulo se dá em idades superiores a 46 anos e,
sobretudo, em famílias nucleares com filhos em idade jovem e adulta e
entre mulheres com baixo nível de estudos (Subirats & Masats, 1990). Na
última década, o número de entrevistas sobre o emprego do tempo e a
distribuição de tarefas aumentou de forma considerável, tanto em nível
regional como estatal. A Encuesta de Trabajo no Remunerado realizada
21
Em Comas D 'Argemir et ai. (1990) e Comas D'Argemir (1995), os autores indicam
que, por enquanto, a interiorização do modelo ideal burguês entre a maioria das
mulheres, com base no qual se dá prioridade às obrigações familiares e domésticas
sobre as derivadas do trabalho produtivo, favorece essa situação.
22
Segundo os dados da Enquesta de la Regió Metropolitana de Barcelona.

232
em Madrid em 1998 permite ver que apenas 5% dos responsáveis pelos
lares são homens e que também a população menor de 25 anos tem um
comportamento totalmente diferente das demais, com escassa dedicação
a todas as tarefas, incluindo a alimentação . A partir dessa idade,
entretanto, e coincidindo com uma mudança na situação familiar/
matrimonial, a participação das mulheres aumenta drasticamente,
enquanto que a dos homens aumenta apenas ligeiramente (Durán et ai.,
1988). Um aspecto que convém destacar é que a maioria das mulheres
responsáveis pelo lar considera que realiza todo o trabalho não
remunerado de suas casas. Certamente, sobre essas há uma grande
concentração do trabalho doméstico que é compartilhado com outras
pessoas. Essa pesquisa também indica que a concentração de tarefas sobre
o responsável pelo lar cresce paulatinamente na medida em que aumenta
a idade, e também que a dedicação compartilhada está relacionada com
essa variável: é mais frequente a participação entre os menores de 30
anos ou os maiores de 75 do que em lares com idades intermediárias.

Tabela 2 - Distribuição das tarefas domésticas entre homens e mulheres,


Tarragona (%)
Sempre Às vezes Sempre o Às vezes o
Tarefas domésticas Ambos
você você companheiro compa nh eiro
Cozinhar 82,3 0,3 1,0 0,3 16,1
Comprar 66,7 0,3 1,6 31,4
Lavar pratos 78,5 2,3 1,3 18,0
Levar o lixo para fora 28,3 1, 1 38,8 2,5 29,3

Fonte: Comas d' Argemir et al. , 1990.

De acordo com essa tendência, a responsabilidade pelo trabalho


alimentar cotidiano, como ocupação doméstica, continua sendo, hoje,
majoritariamente feminina. É certo, também, que a interiorização de tal
responsabilidade é produzida com mais frequ ência entre o grupo de
mulheres que priorizam seu trabalho de dona de casa em relação ao
trabalho remunerado fora do lar. Isso está relacionado com a ascensão
específica dos papéis familiares e domésticos que são derivados do modelo
burguês. Se observarmos a pesquisa realizada por Comas d'Argemir e
colaboradores (1990) sobre a distribuição das tarefas domésticas
alimentares entre homens e mulheres, os dados obtidos indicam que, de
forma geral, a alimentação e a maior parte das tarefas associadas são
atividades desenvolvidas por estas.

233
O trabalho alimentar doméstico, como ocupação relacionada
estreitamente ao cuidado e à saúde, à nutrição e à socialização, é, também,
uma responsabilidade feminina. Como veremos a seguir, essa circunstância
tem também a ver com o fato de que, em diversas culturas, a alimentação
cotidiana está diretamente relacionada com a função primeira das
mulheres: criar e cuidar física e psiquicamente dos membros da família.
Nesse sentido, Durán e colaboradores (1988) destacam que a tarefa menos
delegada é a preparação de alimentos, à qual o responsável principal
dedica em média 94% do tempo necessário, ou seja, outros familiares
contribuem com apenas 6%.
Para se verificar o modo como é produzida a concentração de
encargos e responsabilidades entre determinados membros do grupo
doméstico, assim como as possíveis incumbências, é preciso 'saber quem,
em quê, como e quando' participa dos trabalhos designados, a frequência
com que são realizados e o tempo que certamente lhes é dedicado .
Algumas tarefas relacionadas à alimentação, como pôr ou servir a mesa,
preparar o café da manhã e o lanche ou lavar os utensílios da cozinha, se
compartilham com mais frequência entre homens e mulheres do que as
tarefas de lavar ou estender a roupa, passar ou costurar. As diferenças
com relação a outros trabalhos da casa não são muito notórias. Junto com
as tarefas que cada um dos indivíduos realiza em casa, é precisamente o
uso que se faz do tempo, muito diferente entre homens e mulheres, que
manifesta também a perpetuação de desigualdades entre os gêneros.
Quantitativamente, o tempo dedicado às tarefas de alimentação e compra
de comidas se divide, no caso espanhol (La Mujer en Cifras, 1991 , em
Instituto de la Mujer, 1992), da seguinte forma: as donas de casa dedicam
2h30min, as mulheres com trabalho remunerado fora do lar, lh36min e
os homens, nas mesmas condições, 30 minutos. Os últimos dedicam a
essas tarefas mais tempo do que à limpeza da casa, da roupa, do calçado,
à costura ou ao cuidado das crianças. Por sua vez, a pesquisa sociológica
dirigida por Subirats e Masats (1990), que tem como objeto de análise a
população urbana de Barcelona (Espanha), também nos indica que são
ocupações realizadas de forma preferencial pelas mulheres. Cozinhar é
uma tarefa realizada em 76,7% dos casos principalmente pelas mulheres,
assim como comprar alimentos (70% ); 3,4% e 4,9% dos homens cozinham
e principalmente compram. A tarefa de comprar, entretanto, é
majoritariamente dividida entre o homem e a mulher das famílias
constituídas por casais sem filhos - jovens e aposentados, segundo nossos
dados - , representando 30% dos casos; quando há filhos, tal tarefa é
compartilhada em apenas 8% dos casos.

234
Tabela 3 - Tempo dedicado à alimentação doméstica (homens/mulheres)

Ocupação total Compra Comida

Don a de casa lh48' 42' 2h30'


Mulher com trabalho remunerado lh06' 30' lh36'
Homem com traba lho remunerado 18' 12' 30'

Fonte: La Mujer en Cifras, 1991, em Instituto de la Mujer, 1992.

Tabela 4 - Participação na alimentação doméstica (homens/mulheres) (%)


Ta refa Homens Mulheres
Cozinhar 3,4 76,7
Comprar 4,9 70,0
Chefe de família ocupado
Turefa Homens Mu lheres Ambos
Cozinhar 2,6 82,8 4,8
Comprar 3,2 79,9 8,9
Ambos os cônj uges ocupados
Tarefa Homens Mulheres Ambos
Cozinhar 3,3 63,2 19,3
Comprar 3,6 57,9 29,4

Fonte: Enquesta de la Regió Metropolitana de Barcelona em Miguelez & Torns, 1990.

Segundo a Enquesta de la Regió Metropolitana de Barcelona, e em


re lação com a divisão das tarefas alimentares baseada na situação laboral
dos membros do casal, observa-se que cozinhar e comprar alimentos é
um papel principalmente feminino (82,8% e 79,7% ) e não masculino
(2,6% e 3,2%) apenas quando o chefe da família trabalha fora de casa.
Entretanto, quando o chefe da família e a mulher estão ocupados, essas
porcentagens variam . Cozinhar e comprar alimentos continuam sendo
atividades majoritariamente femininas (63,2% e 57,9% ), na medida em
que a proporção de dedicação principalmente masculina é alterada apenas
nessa situação (3,3% e 3,6% ). Entretanto, o indicador que contempla a
participação de ambos os cônjuges conjuntamente se modifica de forma
significativa: de 4,8% e 8,9% passa para 19,3% e 29,4%.

235
Tabela 5 - Pesquisa da Região Metropolitana de Barcelona
Total da província Chefe de família ocupado Dona de casa

Cozinhar

Principal pessoa masculin a 73,2 11,2 4,8

Principal pessoa feminin a 13,5 4,7 9,0

Ambos conjuntamente 0,9 9,4 71,0

Outras pessoas do lar 14,1 79,8 0,5

Comprar

Principal pessoa masculina 54,4 26,7 6,7

Principal pessoa feminina 28,3 5,7 10,4

Ambos conjuntamente 1,4 10,0 55,2

Outras pessoas do lar 18,5 71,1 1,9

Dez anos mais tarde, a Enquesta Metropolitana de la Regió de


Barcelona mostra que as pessoas encarregadas de cozinhar e de comprar
os alimentos continuam sendo majoritariamente as mulheres: 73,2% e
54,4%, respectivamente. Entretanto, aumentou a porcentagem de pessoas
principalmente masculinas. Para toda a Espanha no ano de 2000, a
porcentagem de homens encarregados de cozinhar e comprar era,
respectivamente, de 4,8% e 6,7%. Mas o mais significativo foi o aumento
produzido na categoria "ambos conjuntamente". Segundo essa fonte ,
cozinhar é uma atividade re alizada individualmente para 11 ,2% e
compartilhada para 26,7%.
Por outro lado, a divisão das tarefas alimentares com outros
membros da família alcança porcentagens pouco relevantes. A divisão
das tarefas de cozinhar e comprar alimentos entre mães e filhas é superior,
em geral, à que ocorre entre mães e filhos (2,8% e 2,5 % contra 0,8% e
0,8% ). De novo, outro dado significativo. Ainda que esse resultado
percentual indique que, certamente, os filhos, em geral, não divid am
com a responsável doméstica o trabalho alimentar cotidiano, sugere-se
que, no caso de fazer a comida, tal participação é predominantemente
feminina. As filhas , ainda qu e assumindo pequena responsabilidade
alimentar, são mais participativas que os filhos. Isso confirma que se
trata de um trabalho relacionado às mulheres. Por sua vez, a reduzida
participação atual das filhas nessas ocupações poderia ser explicada pela
dispersão e ruptura que se produz na transmissão do saber alimentar

236
cotidiano e, em geral, pelo baixo valor que as gerações mais jovens
outorgam ao trabalho doméstico, como veremos nos próximo item.
O fato de haver evidências de ruptura e dispersão na transmissão do
saber alimentar diário tanto em sua forma, normalmente oral e geracional,
como entre os sujeitos destinatários, quase sempre femininos, não significa
que, uma vez que abandonam o grupo de origem para constituir um
novo, individual ou compartilhado, as mulheres não assumam novamente
essa responsabilidade, perpetuando, assim, um modelo de divisão sexual
do trabalho doméstico não muito diferente do anterior.
Em relação à divisão de tarefas com outros membros do lar, a
última pesquisa da Região Metropolitana de Barcelona discriminou
a informação de forma distinta com relação a 1990. O critério analisado
é "outras pessoas do lar", outros membros do lar que, por sua vez, podem
compartilhar tal tarefa com a pessoa masculina ou feminina do mesmo
grupo. Como consequência, ainda que se imagine que dentro dessa
categoria estejam incluídos filhos e filhas, tal critério não no_s permite
saber em que medida são responsáveis diretos por algumas dessas tarefas.
A alimentação cotidiana inclui múltiplas atividades cuja
dedicação, em tempo e em esforços, é difícil de quantificar. A classificação
realizada por Durán e colaboradores (1988) inclui apenas as ocupações
mais visíveis. Esse trabalho não contempla ou não especifica, entretanto,
outras tarefas alimentares de responsabilidade feminina citadas por
Mennel, Murcott e Van Otterloo (1992), tais corno a produção o
armazenamento, a conservação, a preparação, a reciclagem das sobras,
os empréstimos, as trocas, o controle de qualidade ou a cronometragem
do tempo. A essas tarefas deveríamos acrescentar outras, de ordem
qualitativa, tão importantes como as anteriores: o planejamento da compra
e o abastecimento, a organização do cardápio - pensar a comida, "o que
faço hoje para comer?" - , a supervisão do que há na despensa ou a
manutenção do equipamento e do espaço culinário. Do total de vinte
ocupações diferentes, e segundo nossos dados, somente a manutenção
técnica dos eletrodomésticos ou do espaço culinário (eletricidade,
carpintaria) é de ordem masculina e, muitas vezes, não parece ser realizada
pelos responsáveis domésticos, mas sim por pessoal especializado. Por
sua vez, as ocupações relacionadas com a produção de alimentos ou de
produtos alimentares, praticamente as únicas realizadas tanto por homens
como por mulheres, são pouco frequentes no âmbito urbano e, quando
ocorrem, parecem ser compartilhadas. Paralelamente, pôr e tirar a mesa,
tirar o lixo de casa e, inclusive, comprar são as tarefas nas quais há maior
participação de outros membros do grupo familiar.

237
Quadro 12 - Ocupações domésticas vinculadas à alimentação cotidiana
l. Produção
2. Abastecimento (compra, troca, empréstimos)
3. Conservação
4. Armazenamento
5. Preparação
6. Cozinhar
7. Reciclar sobras
8. Atendimento e serviço (servir e recolher)
10. Limpeza e coleta de utensílios (faqueiros, toalhas de mesa ... )
11. Manutenção e limpeza do equipamento e espaço culinário
12. Recolher o lixo
13. Dar comida às crianças e a idosos incapacitados
14. Cronometragem do tempo
15. Controle de qualidade
16. Organização do cardápio
17. Planejamento da despensa
18. Supervisão das reservas
19. Atenção e cuidado com a saúde familiar
20. Transmissão do "saber alimentar" cotidiano
Fonte: Gracia, 1996c: 43.

A próxima questão que cabe apresentar é: o que se entende por


participar e por compartilhar? Como já indicamos, excluída a atenção a
crianças e doentes, as tarefas delegadas com mais frequência pelas
mulheres a-'terceiros' são, nesta ordem: varrer, tirar o pó e limpar o
chão; lavar a louça e outros utensílios da cozinha; lavar, cuidar e passar
a roupa; tirar o lixo de casa. Se dessas tarefas delegadas isolarmos as
alimentares - tais como dar comida para as crianças e para os doentes,
lavar a louça e os utensílios da cozinha ou tirar o lixo de casa - e as
quantificarmos tendo como base a lista aqui elaborada, nos daremos
conta de que, no concernente à alimentação cotidiana, as mulheres
delegam muito poucos trabalhos. Do total de vinte ocupações diferentes,
apenas três costumam ser substituídas por pessoas contratadas para essa
finalidade. Por exemplo, a preparação da mesa e dos talheres é delegada
em apenas 1% dos grupos domésticos, assim como a preparação da comida
ou do jantar. Na Enquesta de la Regió Metropolitana de Barcelona, também
se demonstra que o pessoal externo é empregado mais na limpeza, no
cuidado da roupa e nos reparos do lar que na preparação ou aquisição
dos alimentos. Por sua vez, a participação e o compartilhamento do
trabalho entre os membros do grupo doméstico não são fáceis de

238
quantificar, dado o grau de subjetividade que se inclui nesse tipo de
perguntas/respostas. Uma pessoa pode entender por 'participar' tanto
protagonizar a execução de uma atividade quanto o fato de ajudar
pontual e esporadicamente, e o mesmo acontece com o 'compartilhar'.
São abundantes os exemplos que ilustram muito bem o descompasso que
se produz, nesses casos, entre os discursos dos informantes e suas práticas.

Tabela 6 - Tempo dedicado às tarefas alimentares (em horas)


Donas de casa l h30' - 2h30'
Mulheres jornada parcial 1h30' - 2h30'
Mulheres jornada completa 30' - lh30'

Homens jornada completa 00- 20'


Homens aposentados 00- 30'

Fonte: Gracia, 1996c: 60.

O 'tempo dedicado' e o 'tipo de trabalho' realizado para a satisfação


dos diferentes serviços alimentares cotidianos são um indicador que ajuda
a compreender as diferenças internas em torno das responsabilidades
domésticas. Os resultados apresentados por Gracia (1996c) confirmam
uma situação diferencial em torno do tempo investido e das atividades
assumidas por donas de casa, por um lado, e mulheres e homens com
atividade remunerada por outro, sobretudo se, no caso destas últimas,
esse trabalho é qualificado e a jornada é completa. Nos grupos em que a
mulher não trabalha fora de casa, o tempo investido na alimentação
doméstica é superior ao empregado por aquelas que trabalham fora de
casa. No primeiro caso, quase todas as tarefas (comprar, cozinhar, servir,
conservar, armazenar, reciclar, planejar) são realizadas por elas, que
recebem apoio de outros membros quase que exclusivamente nos
momentos de pôr e tirar a mesa, de levar o lixo para fora de casa ou de
comprar algo, enquanto a maior parte das refeições de todos os membros
são resolvidas em domicílio. No caso das mulheres que trabalham em
tempo parcial e em serviços pouco qualificados, o tempo dedicado e as
tarefas executadas podem ser menores quando os filhos almoçam na escola
ou quando contam com o apoio de outras mulheres de sua própria família
(mães e sogras, de preferência). Quando isso não acontece, o trabalho e
o tempo dedicado não variam em função das primeiras, da mesma forma
como as colaborações dos demais membros também não se incrementam.
Por sua vez, as mulheres que trabalham em jornada completa fora de
casa, em atividades qualificadas, são as que menos tempo dedicam à

239
alimentação cotidiana, as que contratam mais serviços públicos e privados
e as que podem receber mais aj uda de outros membros do grupo.

Dificuldades para Delegar/


Compartilhar o Trabalho Doméstico
A maior dedicação feminina a tarefas relacionadas com a
alimentação cotidiana se explica, na maioria das vezes, pelas dificuldades
associadas à sua delegação. As tarefas alimentares podem ser mais
compartilhadas entre os membros do grupo doméstico por diversas razões.
Certamente existe um 'fator de status e de gratificação' em relação às
tarefas que conformam o trabalho doméstico. Nesse sentido, aquelas
relacionadas com a limpeza em geral são as que suscitam menor
reconhecimento e maior ingratidão: varrer, esfregar, tirar o pó ou passar.
A cozinha, ao contrário, é uma das tarefas mais valorizadas do trabalho
doméstico, inclusive entre os homens, alguns dos quais associam essa
tarefa à criatividade, à gastronomia e ao prazer.
É, contudo, necessário definir o que se entende por cozinhar, na
medida em que determinadas partes do processo culinário - como a
limpeza dos alimentos (pescados ou verduras), o armazenamento e
a conservação dos produtos, a lavagem dos utensílios, a coleta de lixo ou a
manutenção da limpeza da cozinha - são menos agradáveis ou pouco
consideradas, e, consequentemente, não se vinculam a esse
reconhecimento ou prazer. Nesse sentido, o interesse se concentra,
sobretudo, nas fases de aquisição e preparação, e nas refeições especiais.
A atitude mais dinâmica acontece quando se trata de realizar tarefas
que 'masculinizam', como cuidar do fogo nos churrascos, das carnes na
brasa, da paella, do fornecimento de lenha. Normalmente , são
reconhecidos pelos demais membros como trabalhos de maior 'sacrifício',
pelo calor quê há junto às chamas, e não se percebe seu caráter pontual
e esporádico, mas sim o esforço que significa sua realização. De fato , o
resultado desse "sacrifício" costuma ser sempre recompensado porque,
comparativamente, os pratos assim preparados parecem ser mais saborosos
que os elaborados nos fogões a gás ou à lenha: são mais "naturais" e
"mais saborosos". Em geral, no âmbito urbano, essas tarefas esporádicas
costumam mobilizar os indivíduos varões das famílias, que, por outro
lado, não costumam intervir no trabalho alimentar cotidiano.
Quando, por sua vez, as mulheres responsáveis pela alimentação
cotidiana expressam que a cozinha é menos ingrata que outros trabalhos
da casa, não parecem se referir ao eventual reconhecimento verbal que

240
os demais membros domésticos possam manifestar por seu esforço, pois os
parabéns não são frequentes quando se trata das refeições diárias de
caráter cotidiano. Os cumprimentos são mais habituais nas ocasiões
especiais ou quando são preparados pratos preferidos por algum dos
membros . A gratificação está relacionada, principalmente, com a
possibilidade de satisfazer certas necessidades fisiológicas, psicológicas e
sociais por meio da alimentação. Essas tarefas envolvem lilll conjunto de
atenções especiais para com a saúde física e mental dos membros, tal
como o crescimento, a socialização ou a identidade, que outras atividades
da casa não incorporam ou incorporam de forma menos evidente. Por
essa razão, o trabalho alimentar, juntamente com o cuidado das crianças,
é o que parece suscitar maior reconhecimento por parte do grupo .
É mais frequente ouvir elogios às qualidades da cozinha do que às
aptidões da pessoa que limpa o chão ou passa a roupa.
Em segundo lugar, existe um 'fator de complexidade e de
qualificação' vinculado ao trabalho alimentar. Antes que um prato seja
colocado à mesa e comido, deve ser cumprida uma série de passos prévios,
tais como a disponibilidade de orçamento , adaptação à oferta no
momento de compra, consideração sobre os gostos e prescrições nas
escolhas ou conhecimento em relação a ingredientes e técnicas de
preparação. Quando se afirma que 'a compra' - a forma de abastecimento
de alimentos mais frequente nas sociedades industrializadas - é um dos
trabalhos domésticos mais compartilhados entre o casal, é preciso ver
que parte do processo é realizada separadamente. Por exemplo, quando
se trata de produtos enlatados, pão ou bebidas, é mais fácil que sua
compra seja compartilhada ou, inclusive, delegada, porque essa é uma
tarefa simples se comparada com a compra de carnes, peixes ou verdura,
que exige certo tipo de "conhecimentos" relativos à qualidade ou "estado"
dos produtos. Também precisamos saber o que significa dividir a comida
com o companheiro e com os filhos, já que se trata de uma tendência
constatada nas compras de fim de semana, nos supermercados, por
exemplo. Mas o que é realmente compartilhado? O peso e o transporte
das bolsas? A condução do carro pelos corredores enquanto a mulher
escolhe os produtos entre as prateleiras do supermercado? As filas nos
estabelecimentos? O maior compartilhamento de trabalhos como 'ir
comprar', por exemplo, deve ser buscado, sobretudo, na própria dinâmica
que atualmente requer o fornecimento dos alimentos. A concentração
da compra em um dia da semana, "a compra grande", e o aumento do
volume do peso em uma única ocasião facilita a participação de outros
membros do grupo doméstico. Assim , o aumento da participação

241
masculina em determinadas tarefas alimentares significa que os homens
tenham assumido não a responsabilidade, mas sim uma parte dos
conteúdos dos trabalhos. Há tarefas imprescindíveis relacionadas à
alimentação, como a supervisão da despensa e da geladeira, a confecção
da lista, "pensar a compra", a definição dos menus, as adaptações de
orçamento que só são realizadas pelos homens quando vivem sozinhos.
Em pouquíssimos casos a participação masculina passa pela organização
do fornecimento para a semana seguinte, levando em consideração o
que fait.a na despensa e na geladeira, o gosto e as preferências de todos
os membros, o orçamento ou o tempo que deverá ser investido. Essas
tarefas continuam sendo basicamente femininas (Gracia, 1996a).
No momento de compartilhar determinadas tarefas entre os membros
do grupo doméstico, é comum que as pessoas responsáveis pelo lar
deleguem aquelas que não demandam muitos conhecimentos e são mais
fáceis de executar: comprar determinados produtos que normalmente
são sempre os mesmos (bebidas, enlatados, pão), se.rvir a mesa, limpar os
pratos, levar o lixo para fora da casa ou preparar os cafés da manhã.
As mulheres costumam delegar o mais fácil e o mais desagradável, quando
possível, enquanto assumem os trabalhos de maior responsabilidade,
em termos de organização do conjunto, tanto em dedicação como em
qualificação. Realizam atividades como a compra de produtos específicos,
a preparação e elaboração das refeições principais, a reciclagem das
sobras, a lista e os orçamentos. Por isso, em muitas ocasiões, quando a
responsável doméstica não está nos momentos das refeições principais,
deixa a comida quase pronta (comprada, preparada e cozida) para que
os demais só precisem esquentar, fritar, assar.
Em terceiro lugar, há um 'fator de dispersão e frequência de
horários' relacionado às tarefas alimentares. São, portanto, menos
adaptáveis aos possíveis serviços do empregado doméstico do que, por
exemplo, trabalhos como limpar o apartamento, passar a roupa, os quais
podem ser sobrepostos e concentrar-se em horas determinadas da manhã
ou da tarde, indistintamente. Entretanto, os horários e a frequência das
refeições englobam diferentes horários do dia. Por esse motivo também
são delegadas com maior frequência ao trabalhador doméstico assalariado
a limpeza dos utensílios da cozinha ou a eliminação de lixos porque,
além de serem trabalhos menos agradáveis, não estão tão sujeitos a
horários, como a preparação e o serviço à mesa. Quando são contratadas
horas de trabalho doméstico externo - normalmente essa circunstância
ocorre naqueles grupos em que os responsáveis trabalham fora de casa
ou em que há alto status quo - , os trabalhos mais frequentemente

242
delegados são varrer, tirar o pó, esfregar o chão, lavar e passar a roupa,
limpar os azulejos e armários da cozinha e banheiros ou limpar os pratos,
mas não comprar alimentos, preparar cafés da manhã ou refeições ou
dar comida às crianças, a não ser quando o serviço também engloba o
cuidado das crianças. Quando esse serviço cobre um número considerável
de horas diárias, mais de meia jornada, também lhe são atribuídas tarefas
relacionadas com a realização das refeições.
Nesses mesmos grupos, a redefinição dos papéis acontece, portanto,
em função daquelas tarefas inevitáveis e diárias que sobram: o cuidado
das crianças e a alimentação em geral. É então que pode ocorrer maior
participação masculina, que consiste em pôr a mesa, preparar o café da
manhã, comprar, lavar os pratos ou jogar o lixo fora, levar as crianças
para a escola, vesti-las, dar-lhes de comer ou cuidar delas em casa. Quando
os trabalhos alimentares são compartilhados entre o casal, os homens
preferencialmente compram, preparam a mesa ou lavam os pratos. Nessa
mesma linha 'alimentos-serviço', as tarefas mais compartilhadas com
outros membros do grupo são preparar o café da manhã, cuidar do lixo,
comprar as bebidas e os produtos que faltaram na compra semanal e pôr
e tirar a mesa. São as tarefas menos qualificadas. Essa conduta bastante
geral está relacionada com o fato de que durante as horas das refeições
principais parece haver um maior contingente de 'mãos livres' e que os
produtos menores podem ser comprados no caminho de casa ou em uma
loja perto de casa.
Em decorrência do que foi dito até o momento, pode-se afirmar
que algumas das tarefas relacionadas à alimentação cotidiana, tais como
'fazer as compras', 'lavar os pratos' ou 'cozinhar', aparecem como ocupações
domésticas das quais participam um número maior de membros do grupo
e são mais realizadas conjuntamente (homem/mulher) do que, por exemplo,
lavar a roupa ou passar. Entretanto, e ainda que determinados fatores
próprios do trabalho alimentar (status dos trabalhos, gratificação, dispersão
e frequência de horários) pareçam facilitar a participação mais geral,
dependendo, não obstante, de sua cotidianidade e especialização, o
trabalho alimentar diário nem sempre é o mais compartilhado no âmbito
doméstico, a não ser que tenham sido delegadas outras tarefas da casa a
'terceiros', e, consequentemente, seja mais compatível. Essa ideia é central
para a relativização dos resultados de alguns estudos de base estatística
que indicam a alimentação como uma área na qual convergem, em maior
medida, o trabalho de homens e mulheres.
A pergunta que convém formular agora é a seguinte: se o trabalho
alimentar mais especializado é pouco dividido entre os diferentes membros

243
do lar, quem cumpre essas tarefas ou aquelas que requerem maiores
conhecimentos, caso as mulheres não as realizem? Acabamos de indicar
que existe uma diferença na dedicação dispensada entre as mulheres que
fazem parte do mercado de trabalho e aquelas que não. As primeiras
ocupam menos minutos diários que as segundas, entre 30' e lh30' em
comparação às lh30' e 2h30', respectivamente. Entretanto, essa menor
dedicação de tempo que se vê nos grupos em que as mulheres responsáveis
trabalham fora de casa não é compensada pelo aumento do tempo que
seus pares, ou os demais membros, dispensam para as mesmas tarefas. De
onde vêm, pois, os aUXJ1ios domésticos mais significativos? No geral, e
diante da participação dos membros do grupo doméstico, as soluções
são procuradas fora de casa e as ajudas provêm de diversas áreas externas
ao âmbito doméstico: do equipamento eletrodoméstico e dos 'alimentos-
serviço', do recurso aos restaurantes coletivos e privados e, em menor
grau, da prestação remunerada de serviço.
Por outro lado, ainda que a introdução de certos equipamentos
tecnológicos e produtos alimentícios tenha inicialmente sido feita de
forma vertical, conforme o nível de salários do grupo doméstico antes da
participação feminina no mundo do trabalho remunerado, na maioria
dos lares o recurso a serviços alimentares extradomésticos está estreitamente
relacionado com o tipo de trabalho exercido pela pessoa responsável pela
alimentação diária, assim como com sua posição econômica e idade. Assim,
ele se dá com maior frequência nos lares onde as mulheres jovens fazem
parte do mercado de trabalho em jornada completa e, ainda mais, se estão
ocupadas em atividades qualificadas bem remuneradas. Nesses lares, são
articulados, de forma simultânea, o uso de 'alimentos-serviço' (congelados,
pré-cozidos, conservas), a contratação de serviços externos (restauração
privada e institucional, empregadas domésticas) e a aquisição de bens
(tecnologia e mobiliário) em proporção superior à de outros grupos.
A incorporação na casa desses recursos e serviços qualificados permite
entender de onde vêm os minutos, o tempo, que as mulheres que trabalham
fora o dia todo 'economizam' nas tarefas alimentares cotidianas em relação
ao tempo dispensado pelas mulheres que permanecem no âmbito
doméstico. E indica, assim, de onde é extraído o máximo 'apoio' e 'ajuda'
para aliviar e agilizar o trabalho alimentar. Contudo, essa solução faz com
que o custo da comida seja, em geral, mais alto. Nessa situação, o trabalho
alimentar doméstico adquire também um valor econômico que destaca
o preço, subestimado, daquilo que frequentemente parece invisível: o
trabalho doméstico feminino.

244
Alimentação e Idade
Junto com o gênero, do qual acabamos de falar, a idade é a outra
variável sociocultural que marca de forma mais evidente as diferenças
sociais no consumo alimentar. No capítulo 3, mostramos algumas crenças
relativas ao valor de determinados alimentos e à sua conveniência segundo
a idade e de acordo, também, com as circunstâncias particulares que as
pessoas atravessam. Contudo, pode-se dizer, como Bourdieu (1986: 145),
que "a idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável".
De um ponto de vista antropológico, a 'idade' só destaca algo mais que
um dado convencional quando a idade civil significa capacidade social
e/ou biológica, maturidade ou debilidade em uma comparação implícita
com o adulto "normal". Nesse sentido, as crianças e os idosos ocupam
lugares sociais parecidos. As práticas de consumo alimentar e as crenças
que os acompanham são um terreno no qual essa localização cultural
pode ser destacada.
Em qualquer caso, a idade, entendida como a expressão do processo
de crescimento e desenvolvimento biológico e social de uma pessoa, é
causa de múltiplas mudanças que afetam direta ou indiretamente a
alimentação.
• Mudanças biológícas: a idade pode significar tanto diferentes necessidades
nutricionais como diferentes graus de aptidões, capacidades e
incapacidades para digerir ou mastigar. Nesse sentido, o desenvolvimento
da dentição, por exemplo, é muito importante, assim como o será sua
perda em uma idade mais avançada. Assim, com a idade, primeiro
aumentaram e depois diminuíram as possibilidades do autoabastecimento
alimentar, tanto em sociedades mais tradicionais ou de subsistência como
em sociedades de mercado. Com a idade, finalmente poderão surgir
debilidades que podem, por sua vez, afetar novamente a digestão e a
sensibilidade em relação a estes ou àqueles sabores.
• Mudanças na posição social: bebé, niiío, zaga!, adolescente, joven, adulto,
viejo, anciano etc. [bebê, criança, menino, adolescente, jovem, adulto,
velho, ancião] são termos próprios da língua espanhola que apenas
aparentemente se referem a uma idade biológica ou cronológica. Nem
sequer o termo "bebê", que alguns poderiam equiparar a "lactante",
tem um significado biológico preciso, pois a duração da Jactância não
é determinada apenas pela disponibilidade do leite da mãe, mas também
por outras considerações sociais, econômicas e ideológicas. Praticamente
todas as sociedades do mundo estabeleceram algum tipo de
categorização social baseada na idade, mas os critérios empregados

245
para essas categorizações podem ser muito diferentes entre uma
sociedade e outras e, inclusive, dentro de uma mesma sociedade, entre
uma época histórica e outras.
• Mudanças econômico-laborais - inativo, estudante, aprendiz, ativo,
aposentado, dona de casa, desempregado etc. - e mudanças na posição
doméstica - filho/a, pai-mãe, avô/ó, dependente, independente, cuidador/
a, solitário/a, viúvo/a etc. Todos esses termos se referem a outras
categorizações sociais, nem tão universais como as do ponto anterior,
mas, em qualquer caso, consideravelmente difundidas, seja com os
mesmos termos ou com outros mais ou menos parecidos. As diferentes
situações que podem expressar esses termos estão relacionadas, em grande
medida, pelo menos em termos de probabilidade, com as mesmas
categorias de "idade" do item anterior. E, também, cada uma delas pode
expressar uma situação diferente em relação às possibilidades de maior
ou menor autonomia, maior ou menor grau de dependência, maior ou
menor grau de responsabilidade moral, em relação ao abastecimento
alimentar, o próprio e o distante. Lembremos os ditados: "Quem ganha
o pão come a carne" e "Quando você for pai, comerá ovos". São
ilustrativos de algumas considerações relativas ao consumo alimentar
diferencial implícitas nos termos anteriores.
Além disso, para cada indivíduo, as mudanças experimentadas no
decorrer de sua vida, como consequência de qualquer tipo de mudanças
relativas às questões citadas nos três pontos anteriores, são paralelas às
mudanças que a própria sociedade experimenta e que, por sua vez, podem
afetar as categorizações sociais como as que acabamos de citar.
Definitivamente, as diferenças alimentares segundo a idade são notórias
em quase todas as culturas. Ilustraremos a relevância dessa variável
centrando-nos no caso de pessoas mais velhas na sociedade industrial
contemporânea e, particularmente, na sociedade espanhola.

Alimentação e Idade:
o caso das pessoas idosas ou da 'terceira idade' 23
Em primeiro lugar, é preciso perguntar o que se entende por
" pessoas idosas " e por que esse coletivo apresenta peculiaridades
23
Esse item reproduz, parcialmente, o conteúdo de um artigo publicado previamente
por Contreras e Espeitx (2002), e também algu ns dos resultados do projeto europeu
de pesquisa [H ea lthy Ageing : how changes in sensory physiology, sensory
phychology and socio-cogn itive factors influence food choice. V Programa Marco
de la UE: QLKl-CT-1999:00010] que, na Espanha, fo i dirigido por Jesús Contreras.

246
alimentares em relação a outros grupos etários. Alguns estudos recentes
consideram o conceito de "pessoas idosas" como uma construção social
que contribui para viver a velhice como um período de dependência.
Poderia falar-se de um discurso social ocidental de infantilização das
pessoas mais velhas que as incapacita e as torna dependentes. Esse
discurso é determinante para os hábitos e os comportamentos alimentares
de tais pessoas.
No decorrer dos últimos anos foram realizados vários estudos sobre
"as pessoas idosas" ou a "terceira idade", partindo de diversos âmbitos
(acadêmicos e assistenciais, principalmente) e com diferentes finalidades
(conhecer necessidades e demandas, orientar políticas assistenciais,
implementação de serviços específicos etc.). Esses trabalhos, em geral,
foram orientados para o conhecimento , em maior ou menor
profundidade, dos aspectos com base nos quais foi caracterizada uma
problemática específica da terceira idade e suas consequências diretas
ou indiretas, com seu maior ou menor bem-estar, tanto físico como
anímico e social. A maioria desses estudos é de caráter quantitativo e se
centra na tipificação de atitudes e opiniões sobre questões muito
diferentes como, por exemplo, as percepções sobre a terceira idade (por
parte dela mesma ou da população em geral), a soljdão das pessoas mais
velhas, o consumo em geral, a dependência, o cuidado e as ajudas
informais, o grau de conhecimento e uso dos serviços de assistência, a
evolução demográfica e as perspectivas de aumento da população de
mais de 65 anos, assim como sobre a saúde em geral e a assistência
sanitária, entre outros.
Todos esses estudos 24 proporcionam informações de caráter geral
que permitem reconstruir certo marco socioeconômico e de atitudes
dentro do qual se desenvolve a vida das pessoas mais velhas. Assim,
24
Existem muitas pesq uisas dedicadas aos hábitos alimentares das pessoas mais
velhas. Baseadas em amostras nacionais, propõem fazer uma comparação entre as
pe ssoas mais velhas e o conjunto da po pulação. Entretanto , seu grande
inconveniente é que as pessoas mais velhas são tratadas como um segme nto de
população homogêneo apesar das importantes diferenças destacadas pelos estudos
antropológicos e sociológicos. Essas pesquisas enfatizam a importância da idade e
colocam à margem outras variáveis como, por exemplo, o tipo de habitat e de lar
nos quais são integradas as pessoas mais ve lhas, que, em geral, são elementos
importantes nas diferenciações existentes em relação ao consumo alimentar. De
qualquer forma, convém citar alguns estudos que levaram alguns fatores em
consideração, como, por exemplo: Bertie re et ai. , 1999; Chaudron et ai., 1995;
Clément, 1997; Gojard, Lhuissier & Meunier, 2003; Larmet, 1999, 2002; Volatier,
2000.

247
contribuem para caracterizar uma problemática específica de tal grupo
etário que, cada vez mais, sobretudo na medida em que não deixam de
insistir que se trata de um grupo em constante crescimento (em termos
absolutos e relativos), é, também, uma problemática específica da
sociedade em geral. Entretanto, no que se refere aos hábitos alimentares,
esses estudos oferecem muito pouca informação, e sempre de modo
indireto. Por exemplo, se o interesse do estudo for a dependência dos
anciãos ou os auxílios recebidos ou necessários, pode-se indagar sobre as
práticas relativas à compra ou à preparação de alimentos, mas não sobre
o que realmente é ingerido e por quê.

A Influência dos Fatores Socioculturais nos Hábitos Alimentares


É amplamente admitido que as mudanças nas formas de vida
incidem sobre os comportamentos alimentares e que isso se reflete nos
padrões de morbimortalidade. Contudo, apesar dessa certeza
compartilhada, não parece que sejam incluídas nos estudos análises em
profundidade da relação entre formas de vida e alimentação, tampouco
do papel que desempenham os fatores socioculturais nos comportamentos
alimentares das pessoas mais velhas. Também não parece que sejam levadas
em consideração - apesar de sua grande importância e relevância -
questões que, apesar de estarem à margem do estritamente nutricional,
desempenham papel fundamental na alimentação. Isto é, como, quando,
com quem e de que forma se come (vendo ou não televisão, em família
ou sozinho, na mesa da copa ou no quarto na frente do computador, em
casa ou na rua, seguindo um número constante e regular de refeições ou
sem uma ordem ... ).
Os estudos e as pesquisas consultados25 se centram nos aspectos
fundamentais do consumo e da nutrição, mas deixam de lado outros
aspectos da alimentação igualmente importantes. Apesar de nas pesquisas
alimentares serem incorporadas perguntas sobre os conhecimentos, as
opiniões e as atitudes quanto à relação entre alimentação e saúde, são
deixadas de lado outras relações significativas que têm, indiscutivelmente,
papel relevante na interpretação dos comportamentos alimentares. Por
exemplo, a relação entre alimentação e imagem corporal, a relação entre
alimentação e status social, entre alimentação e identidade étnica,
entre alimentação e integração dentro de um grupo etário etc.

25
Cf. CENTRO DE INVESTIGACIONES SOCIOLOGICAS. La Tercera Edad
(1989); La Soledad de las Personas Mayores ( 1997a ); La Calidad de Vida de los Espanoles
(2000a) ; El Cuidado de los Mayores (2002).

248
Por outro lado, é muito importante considerar que o desenvolvimento
de normas de regulação alimentar, de políticas de fortalecimento e dos
guias dietéticos úteis na educação nutricional requerem informação prévia
sobre os padrões de consumo alimentar e o alimento ou grupo de
alimentos, fonte habitual da ingestão de nutrientes. Essa informação
será insuficiente se não forem bem conhecidas as práticas, isto é, a forma
de cozinhar e de preparar os alimentos e suas razões ou porquês. Os
estudos de consumo alimentar realizados no âmbito familiar não permitem
obter esse tipo de informação. As pesquisas alimentares proporcionam
informação mais profunda sobre os comportamentos individuais, mas,
geralmente, não abordam os complexos fatores socioculturais que incidem
fortemente sobre a alimentação e cuja análise exigiria o uso de técnicas
qualitativas.

Uma Sociedade em Processo de 'Envelhecimento':


a velhice, 'circunstância ' biológica e categoria sociocultural
Na Espanha, como nos demais países mais industrializados do
mundo, constata-se a mudança que está sendo provocada em sua estrutura
populacional pela confluência de diversos fatores como a queda da
natalidade, por um lado, e o incremento da esperança de vida, por outro.
Essa mudança comporta o aumento do número e da proporção do grupo
constituído pelas pessoas de mais idade, fenômeno conhecido sob o nome
de envelhecimento da população.
O conceito de envelhecimento, entretanto, é vago, pois é difícil
caracterizar a velhice de modo minimamente preciso. Alguns autores
(San Román, 1985) falam da fase anciã como um momento da vida que
coloca os indivíduos em condições propensas à marginalização. Algumas
das imagens dos anciãos - infelizes, diminuídos, próximos da morte etc.
- são bastante negativas e contribuem para gerar ou per~ma
limitação de sua autonomia e de suas opções de vida. Independentemente
dessas considerações mais ou menos extremas, nossa sociedade at~al
apresenta a velhice como um problema, não apenas para os indivíduos
que já estão na última etapa da vida, mas para toda a coletividade, na
medida em que pode representar um problema econômico (um sistema:
de pensões e aposentadorias ameaçado de saturação) e um problema de
saúde pública (dependência, Alzheimer, aumento dos gastos com
saúde ... ).
São muitos os que pensam que o fenômeno da "terceira idade" é
novo, próprio da segunda metade do século XX, e será um fenômeno
demográfico, social e econômico de vasto alcance até o final do primeiro

249
quarto do século. De fato, do ponto de vista estatístico, talvez seja assim,
pois está previsto que, em 2020, a população de mais de 64 anos terá
aumentado em 66% nos países ocidentais e em 200% nos países asiáticos.
Na Espanha, a cada mês, 36 mil pessoas alcançam a idade de 65 anos.
Hoje, a população de 65 anos ou mais significa 17% do total e,
provavelmente, alcançará os 25 % antes de 2025. Mas, o "envelhecimento"
não é " novidade" apenas por razões demográficas; ele o é, também, pelo
fato de ter sido assim conceituado pela modernidade.
Até meados dos anos 60 do século XX, as pessoas mais velhas
podiam viver em sua casa com pouca ajuda ou com pouco ou nenhum
auxílio por parte do Estado (por um lado, os serviços próprios do Estado
de bem-estar quase não existiam e, por outro, as famílias - além de mais
numerosas -estavam muito presentes). Hoje, na maioria dos casos, quando
uma pessoa quer continuar morando em sua casa, seu modo de vida lhe
é imposto. Se não conta com ajuda a domicílio, os cuidados a domicílio,
o telealarme, ou com uma vigilância permanente, o corpo médico,
sobretudo o generalista, diz que "não é razoável '', que ela "corre riscos"
etc. E, assim , a partir dos anos 60, os 'velhos' foram convertidos em
objeto de uma " técnica", de saberes, de profissionais especializados e,
inclusive, de uma nova disciplina, a gerontologia. O envelhecimento da
população afeta todas as facetas da sociedade. Comporta, também, um
vazio, uma distância nem sempre fácil de cobrir, entre aqueles que
precisam de ajuda e aqueles que se sentem chamados a proporcioná-la.
A denominada sociedade ocidental, aquela formada pelos países
mais industrializados do mundo , foi a primeira a constatar que a
confluência de diversos fatores - como a queda da mortalidade e da
natalidade e o aumento da esperança de vida - está provocando mudanças
na estrutura da população. Essa mudança compreende o aumento do
número e da proporção do grupo constituído pelas pessoas de mais idade,
fenômeno conhecido com o nome de envelhecimento da população.
O conceito de envelhecimento é vago. Delimitar a velhice é difícil. De
acordo com Teresa San Román (1985), vale considerar duas suposições:
a primeira refere-se à diferença entre distintos grupos e/ou categorias de
anciãos, e o segundo, à determinação das tendências centrais nas posições
integradas ou marginalizadas mediante a interação dos dois fatores
relacionados. A marginalização depende das condições do sistema
ecocultural, da atribuição das características que esse outorga à fase anciã
como etapa vital culturalmente pautada.
Os últimos estudos (Neugarten, 1999) afirmam que a idade não se
relaciona com a qualidade de vida das pessoas, com o bem-estar

250
psicológico ou com a satisfação na vida. A adaptação e a autorrealização
apresentam múltiplas faces. Mas é mais provável conseguir os bens que
constituem a qualidade de vida das pessoas mais velhas (bem-estar,
autonomia e companhia) quando estão presentes a normatização de
atividades e ocupações, o desfrute da vida e a satisfação com a vida, as
oportunidades, as ilusões e os desafios, que possibilitam, por meio de
políticas sociossanitárias adequadas, estilos de vida saudáveis. A maioria
das pessoas mais velhas conserva certa vitalidade e é competente,
mantendo uma atividade em suas famílias e comunidades.
Contudo, não existe um padrão único de envelhecimento
sociopsicológico, nem um único padrão de envelhecimento dito "exitoso".
Sánchez Vera (1996) lembra que os anciãos são um grupo diverso e que
existem diferenças entre eles no tocante a hábitos, atitudes, valores,
condições de vida, saúde etc. e indica três razões para se falar em uma
'terceira idade' e uma 'quarta idade': a) os dois subgrupos apresentam
necessidades e problemáticas diferentes; b) a terceira idade em si não é
um grupo social delimitável de um modo minimamente preciso; c) a
solidão é uma circunstância fundamental nas formas de convivências das
pessoas mais velhas e constitui um dos traços que definem o atual sistema
familiar espanhol, assim como um dos fatores mais significativos ou
transcendentes para o estabelecimento das políticas sociais.
As pessoas envelhecem não apenas de formas diferentes, e a
variação entre as pessoas incluídas dentro da denominação ' terceira
idade' torna-se mais ampla à medida que aumenta a idade. Por outro
lado, os padrões do envelhecimento se veem afetados, ainda que não
determinados, pelas experiências que cada pessoa teve no decorrer de
seu próprio ciclo vital e social, assim como pela própria evolução da
sociedade. Nessa medida, as definições de grupos etários se modificam
de acordo com os tipos de transformações sociais. As transformações
acontecem com rapidez, as normas referentes à idade vão mudando à
medida que muda também o conjunto da sociedade.

Em cada momento histórico, a sociedade é formada por uma série de faixas


etárias, cada uma caracterizada por suas próprias formas de participação no
mundo do trabalho, pelo comportamento do consumidor, pelas atividades
de lazer, pelos estados civis, crenças religiosas, ed ucação, natalidade,
fertilidade e cuidado das crianças. As diferenças (ou semelhanças) entre
faixas etárias devem ser entendidas nas duas dimensões do curso vital e da
transformação histórica. (Neugarten, 1999: 121)

251
Os períodos da vida se relacionam com a idade cronológica, apesar
de as linhas etárias não estarem bem definidas. Em determinadas ocasiões,
a terceira idade foi definida como o começo da saúde debilitada, que
provoca uma limitação importante à realização de atividades cotidianas.
Também é verdade que, segundo os diferentes estudos consultados,
chegou-se à conclusão de que a saúde é um marcador de pouca
significação. O fato de não existir uma delimitação precisa entre os
diferentes períodos etários não significa, contudo, que as normas relativas
à idade desapareçam. Por outro lado, nos países desenvolvidos, nos quais
uma proporção importante da população chega à velhice, o futuro mais
imediato já nos anuncia um prolongamento da própria terceira idade.
Assim, a variável idade não basta para caracterizar a velhice ou o
heterogêneo grupo das chamadas "pessoas idosas" ou "da terceira idade"
ou "da quarta idade'', ou "jovens velhos" e "velhos velhos". A "velhice"
é uma construção cultural e, portanto, uma categoria arbitrária. Não
designa uma realidade objetiva, específica. A linha divisória é, em nossa
sociedàde , a idade de 65 anos , baseada no fato sociolaboral da
'aposentadoria'. A aposentadoria significa uma mudança que pode ter
efeitos nocivos sobre a saúde e o bem-estar físico e psíquico do indivíduo,
ainda que, para a maioria, os aspectos sociais e psicológicos desse estado
sejam mais prazerosos do que a recompensa social do trabalho.
A aposentadoria pode ser, também, um momento de certa turbulência
residencial (Cribier, 1988).

As 'Pessoas Idosas ': independentes, dependentes e cuidadoras


Como se viu, a categoria "pessoas idosas" ou "terceira idade" ou
"anciãos" não se refere a um coletivo com atributos precisos e comuns,
mas sim a pessoas com características diferentes. Podem ser muito
importantes as diferenças entre homens e mulheres, solteiros e casados,
viúvos e divorciados. Entre pessoas com atividades profissionais muito
diversas, de educação e cultura distintas, que vivem em habitats e com
tipos de posse muito diferentes. Que vivem sozinhas, com seu cônjuge
ou com outros membros de sua própria família ou em uma residência.
Com diferentes níveis de saúde ou doença e, como consequência de
tudo isso, seu grau de independência ou autonomia ou de dependência
ou necessidade de cuidados etc. O único elemento comum é a
aposentadoria . E nem sempre , pelo menos 'de fato', pois em
determinados casos não é raro que alguns aposentados mantenham
alguma atividade laboral ou profissional, de forma mais ou menos
"escondida". A variável mais significativa na avaliação da qualidade de

252
vida das pessoas não é, portanto, a idade, mas sim o seu estado de saúde
e seu grau de autonomia física. Por sua vez, as variáveis socioeconômicas
(nível salarial, grau de escolaridade, estrutura do lar , rede de
relacionamentos etc.) incidem de forma muito significativa sobre o estado
de saúde e o grau de autonomia.
Do 'ponto de vista econômico', a heterogeneidade da "terceira
idade" é muito importante , pois , além de seus " antecedentes "
econômicos, as pessoas dessa faixa etária podem continuar se
relaçionando com o ambiente econômico em novas circunstâncias que as
afetam no seu devir (emancipação ou não dos filhos, manutenção de
atividades econômicas, viuvez, casa própria ou alugada etc.). Um aspecto
de grande importância é a composição do lar, pois a posição econômica
individual é matizada pelo pertencimento a um lar determinado e pelas
características deste quanto a, por exemplo, tamanho e composição
particular. A posição econômica individual é resultado não apenas da
própria capacidade de gerar, ou ter gerado, renda ou riqueza, ou das
próprias necessidades, mas sim das capacidades e das necessidades de
todos os membros do lar. Dependerá da distribuição interna dos recursos
e da 'posição específica que se ocupa dentro do lar'. Essa questão é
particularmente relevante para as pessoas mais velhas que estão integradas
em outros lares - por exemplo, o de seus filhos. Por outro lado, a forma
de convivência não apenas é um condicionante da posição econômica,
mas pode, precisamente, estar por esta condicionada (Pérez Ortiz, 1996).
As diferenças de salários mais acentuadas aparecem na análise segundo
o sexo. Para os homens, a pensão é de 98% e a ajuda familiar é de 5%,
enquanto que para as mulheres a pensão é de 69% e a ajuda familiar é
de 38%. Essas cifras, entretanto, não dão uma amostra clara da enorme
heterogeneidade de situações que, do ponto de vista econômico, existe
dentro da "terceira idade", como, por exemplo, a relativa aos salários,
demonstrada na tabela que se segue.

Tabela 7 - Salários disponíveis por mês, em média (%)


Até 600 euros 22
Entre 600 e 1.200 euros 45
Entre 1.200 e 2.400 euros 27
Mais de 2.400 euros 5

Fonte: CIS (2830), Calidad de Vida de los Espanoles, enero 2000a.

253
O nível socioeconômico e socioprofissional marca, por sua vez,
importantes diferenças dentro do grupo das pessoas idosas
independentes. A possibilidade de manter atividades de lazer, viajar,
fazer cursos etc. depende, em boa medida, do nível salarial, ainda que,
também, das atividades desenvolvidas antes da aposentadoria, pois tudo
isso se traduz em "estilos de vida" muito diferentes. Pessoas mais velhas,
com boa saúde, entre 70 e 80 anos, mantêm uma vida mais ativa e desfrutam
de uma rede social mais ampla do que pessoas de 60 ou 65 anos, também
com boa saúde. Assim, mulheres mais velhas que sempre viveram como
donas de casa têm uma rede de relações e atividades mais limitada do
que aquelas que trabalharam fora do lar, ainda que tenham um nível
salarial similar. Assim, pois, ainda que a saúde seja um fator fundamental
para se avaliar a qualidade de vida das pessoas mais velhas, esses outros
aspectos também são decisivos. A aposentadoria, portanto, não significa
necessariamente isolamento social, pelo menos para aquelas pessoas que
praticavam atividades diversas (esporte, viagens, associações culturais,
voluntariado etc.) anteriormente.
O 'estado de saúde' é outro elemento diferenciador. Chega-se a
idades cada vez mais avançadas em melhor estado de saúde, ainda que
uma vida mais longa também aumente as possibilidades de doenças mais
ou menos graves. Assim, no que se refere ao gasto com saúde, ainda que
as pessoas mais velhas consumam, geralmente, mais serviços médicos e
medicamentos do que outros grupos de idade mais jovem, as pautas de
consumo podem variar muito de um grupo social para outro, de modo
que também nesse aspecto não se pode falar em pautas comuns e
compartilhadas por todas as pessoas mais velhas.
Assim, pois, em perspectivas diversas, convém estabelecer diferenças
dentro da categoria geral "pessoas mais velhas". Uma diferenciação muito
pertinente, sobretudo em relação à análise dos hábitos alimentares, dentro
da categoria da terceira idade ocorre entre as 'pessoas mais velhas
independentes', em estado de saúde relativamente bom, e as 'pessoas mais
velhas dependentes', doentes ou inválidas. Segundo o estudo realizado
pelo próprio Instituto de Mayores y Servicios Sociales (Imserso) em 1999,
Cuidados en la Vejez: el apoyo informal, 54% das pessoas de mais de 65
anos afirmam padecer de alguma enfermidade ou carência física. E, dessas,
53% recebem algum tipo de assistência. As doenças mais frequentes são a
hipertensão arterial, as broncopneumonias crônicas, as artroses, os
problemas cerebrovasculares, a insuficiência cardíaca, a cardiopatia
isquêmica, o diabetes, a demência senil, a depressão e os reumatismos
inflamatórios. O suicídio figura, na Espanha, entre as primeiras dez causas

254
do falecimento entre a população anciã. Em qualquer caso, a idade não é
uma variável determinante para que um indivíduo pertença a uma ou outra
dessas categorias. Há pessoas doentes e dependentes de 65 anos e pessoas
completamente independentes de 75 e 80.
As 'pessoas idosas' na Espanha, como em outros países, quando
em seu ambiente são majoritariamente ' independentes' e não precisam
de ajuda para realizar suas atividades cotidianas (Bazo, 1990). O período
vital durante o qual os indivíduos conservam as forças físicas e intelectuais
se amplia cada vez mais nas sociedades desenvolvidas. Essas são as pessoas
mais velhas independentes. Os indivíduos que pertencem a essa categoria
e que, além disso, dispõem de salários suficientes costumam desfrutar de
um nível considerável de integração social. Em alguns casos, mantêm
uma atividade profissional, remunerada ou não, e podem participar de
atividades sociais como, por exemplo, o voluntariado e manter uma rede
de relações sociais à margem das estritamente familiares. Também podem
ser politicamente ativos e participar da vida da coletividade por intermédio
de associações diversas. Às vezes, mantêm uma atividade intelectual (aulas
universitárias para a terceira idade, cursos de formação, seminários,
conferências etc.) e participam de atividades culturais diversas. Também,
sobretudo se o faziam anteriormente, podem praticar algum esporte. As
viagens e as atividades de lazer são uma prática habitual, sobretudo a
partir de certo nível de salários. Vale considerar que, além disso, existe
grande número de ofertas específicas para esse grupo etário.
Definitivamente, os salários, a categoria socioprofissional, o nível de
formação, o estilo de vida anterior, de formação e o estado de saúde são
as variáveis mais importantes desse grupo de pessoas mais velhas
independentes.
Hoje, na Espanha, dos mais de seis milhões de pessoas com mais de
65 anos, dois milhões apresentam algum grau de dependência. Desses,
0,4% precisam de cadeira de rodas, 22,8% têm mobilidade reduzida e
17,9% podem precisar de ajuda em geral. A categoria de 'pessoas idosas
dependentes', doentes ou debilitadas, é constituída por aqueles indivíduos
que, seja por seu estado mental ou físico, seja por terem perdido sua rede
normal de relações, necessitam de ajuda familiar e/ou assistência sanitária
e social. O nível de dependência pode ser avaliado com base em diversas
variáveis. Uma delas se refere ao fato de estarem confinadas na cama e no
sofá. São pessoas que precisam de ajuda para serem lavadas, vestidas e
para poderem sair de casa. Vale considerar, também, o intervalo máximo
dentro do qual podem ser dependentes para se entender as situações de
dependência psíquica que geram situações especiais de cuidado.

255
Na Espanha, a maioria das pessoas idosas dependentes recebe a
assistência de que precisam fora do sistema de saúde, de maneira não
institucional, proporcionada por membros de suas próprias famílias,
geralmente mulheres: esposas, filhas ou noras. No ano de 1990, a Entrevista
de Necessidades e Demandas (Imserso, 1990) estimava que apenas 10%
das pessoas dependentes recebia das instituições a ajuda de que
necessitavam. No ano de 2001 , de acordo com López e Casado (no E!
País), 83% dos anciãos em situação de dependência dependiam de suas
famílias e não recebiam nenhum tipo de ajuda pública.
Concretamente, cada mil donas de casa cuidavam de 76 pessoas
incapacitadas, das quais dois terços estavam nessa situação havia mais de
seis anos (Durán, 1992). A maioria das pessoas idosas dependentes
pertence às faixas de idade mais altas, de 85 anos em diante e, dentro do
grupo familiar, são as mulheres que assumem essa responsabil idade com
mais frequência. Essa circunstância obriga a considerar outra categoria
de pessoas mais velhas, é a das 'pessoas idosas cuidadoras'. Trata-se de
um grupo significativo e cujas cifras estão aumentando. Constitui-se, na
maioria das vezes, de mulheres que poderiam integrar a categoria
de pessoas idosas independentes, mas sofrem graves restrições por terem
pessoas dependentes sob sua responsabilidade. O grupo majoritário é
composto por mulheres entre 60 e 75 anos que têm sob seu cuidado seu
pai, sua mãe, às vezes os dois, ou seus sogros. Alguns homens dessas
idades cuidam da esposa doente. Em alguns casos, essas pessoas
dependentes padecem de doenças, como o Alzheimer, que exigem
atenções e cuidado constantes. Essa responsabilidade significa uma
frequente degradação da qualidade de vida e da saúde das próprias pessoas
cuidadoras. As restrições de mobilidade são a queixa mais frequentemente
verbalizada pelas cuidadoras. A extrema subordinação, a alteração de
sua vida pessoal e o impacto sobre sua saúde aparecem também de modo
repetido. Consideram que a sua vida pessoal e familiar se vê
completamente alterada por esse fato e constatam um empobrecimento
de suas relações com o ambiente, sobretudo no caso da viuvez.

A 'Terceira Idade' e os Comportamentos Alimentares


A idade, do ponto de vista fisiológico, comporta mudanças
importantes. As pessoas de idade perdem parte de suas papilas gustativas
e, portanto, seu paladar já não tem a mesma sensibilidade. Assim,
necessitam de menos calorias que os mais jovens e sentem necessidade
de comer com muito menos força. Entretanto, se a necessidade de calorias
diminui , a de elementos nutritivos de base continua relativamente

256
constante. Por outro lado, se a sensibilidade ao salgado, que é o que
confere gosto aos alimentos, diminui paralelamente com a idade, o mesmo
não acontece com a receptividade ao doce, o que significa uma causa
suplementar de tentação para as pessoas de idade, que tendem a consumir
maior quantidade desse tipo de alimentos, considerados de segunda
qualidade. A degeneração das glândulas salivares é sensível a partir dos
60 anos e é acompanhada por uma redução de secreções na boca. Ainda
que outras enzimas possam substituir a saliva no processo digestivo dos
carboidratos, sempre falta um lubrificante. Por essa razão, as pessoas de
idade preferem os alimentos macios e úmidos, como as batatas em purê
e as sopas leves, que não lhes proporcionam fibras suficientes. Por outro
lado, quanto maior é a esperança de vida, maior é a possibilidade de
perder os dentes. O resultado dessas mudanças biológicas é que as pessoas
de idade tendem a comer cada vez menos. 26 Por outro lado, como as
pessoas tendem a comer da forma como aprenderam quando eram jovens,
os maus hábitos adquiridos têm todas as possibilidades de persistir no
decorrer da existência. Ao contrário, quando uma pessoa se torna velha,
pode ser difícil conservar os bons hábitos adquiridos, sobretudo se é muito
pobre, como ocorre às vezes com as pessoas anciãs. Ao dispor de menos
dinheiro, essas pessoas tendem a substituir os legumes e as frutas frescas
pelo pão e os cereais, que são mais baratos, o que pode explicar as
carências de vitaminas A e C que, com frequência, apresentam as pessoas
anciãs (Farb & Armelagos, 1985; Llaosa Milla, 2002).
Mas as mudanças alimentares entre as pessoas mais velhas não têm
relação apenas com as mudanças fisiológicas. O envelhecimento da
população afeta todas as manifestações da vida social. Tradicionalmente,
os estudos sobre hábitos alimentares das pessoas mais velhas partiram de
uma visão eminentemente biologista e sanitária, enfatizando unicamente
os aspectos nutricionais e esquecendo em grande medida os sociais e
culturais. Entretanto, a socialização dos indivíduos em relação à comida
começa muito cedo e os acompanha durante toda a vida. Os alimentos,
suas categorias, suas valorações, positivas e negativas, estão intimamente
26 Em 1948 iniciou-se na Califórnia um estudo sobre quinhentos anciãos que foi
finalizado em 1962, quando 141 deles ainda estavam vivos. Observou-se, no curso
de cada uma das décadas, uma redução muito apreciável do consumo alimentar,
muito mais sensível entre as pessoas com mais de 75 anos. Entretanto,
contrariamente ao que se imaginou, a proporção relativa, na dieta, de gorduras,
proteínas e de carboidratos se manteve constante, apesar de em conjunto haverem
ingerido menos alimentos. Desse modo, por exemplo, os que, em 1948, comiam
poucas proteínas de origem animal, haviam conservado, mais ou menos, 14 anos
depois, o mesmo comportamento (Farb & Armelagos, 1985).

257
vinculados à cultura (normas de conduta, alimentos adequados/
inadequados a cada contexto ou circunstância, individual ou social, a
apresentação dos pratos e a estruturação dos me nus, as qu antidades
pertinentes etc.) (Fjellstrõm, Sidenwall & Nydahl, 2001). E, também, as
associações entre a comida e as ideias, a memória , as emoções, as
recordações associadas a cada situação segundo suas características etc.
Assim, cada geração tem suas próprias concepções sobre a comida e sobre
o que possa ser considerado como a alimentação que convém a cada
etapa vital (Warde, 1997). Assim, por exemplo, a comida rápida seria um
conceito genérico e, também, uma preferência relacionada com a etapa
da vida em que o indivíduo se encontra.
Também são muito importantes as modificações no modo de vida
e nas circunstâncias econômicas que podem ocorrer em razão da
aposentadoria, assim como da progressiva incidência de enfermidades e
deficiências que possam significar alterações na ingestão diária, na absorção
e na metabolização dos nutrientes. Desse modo, pode-se falar em fatores
primários e em fatores secundários que atuam mais frequentemente à
medida que a idade avança e podem ocorrer deficiências nutricionais,
sobretudo a partir dos 80 anos (Exton-Smith, 1980):

Quadro 13 - Deficiências nutricionais a partir dos 80 anos

Fatores primários Fatores secundários


Ignorância Perda de apetite
Isolamento social Deficiência mastigató ria
Deficiência física Má absorção
Pobreza Alcoolismo
Deficiência mental Drogas
Iatrogenia Aumento de necessidades

O aumento progressivo da população da terceira idade, sua


heterogeneidade e as deficiências nutricionais e energéticas que alguns
estudos destacaram tornam necessário que as recomendações nutricionais,
que até agora foram dirigidas à população em geral, sejam direcionadas
mais especificamente a essa faixa etária, e, de acordo com suas
especificidades, com o objetivo de manter esse importante grupo de
população no estado mais saudável possível.

258
Segundo o estudo pan-europeu (Euronut Seneca Study on Nutrition
and the Elderly, 1991), a terceira idade, diferentemente do resto da
população, não define uma dieta saudável em função da teoria nutricional,
mas sim com base no conceito de proper meals ou refeições apropriadas.
Nesse sentido, os aspectos sensoriais dos alimentos (variedade, gosto,
temperatura, odor, textura ... ) e os aspectos situacionais da refeição (comer
sozinho ou em companhia, a decoração, o mobiliário, as vasilhas ... )
condicionam a quantidade de alimentos ingerida, a motivação para ingeri-
los etc. e, consequentemente, podem contribuir para promover ou
dificultar o bem-estar objetivo e subj etivo, assim como para prevenir as
deficiências nutricionais das pessoas idosas (Fjellstrõm, Sidenwall &
Nydahl, 2000).
Por outro lado, o fato de que, como consequência da maior
esperança da vida das mulheres, haja mais mulheres idosas do que
homens, os potenciais fatores de risco estão diretamente relacionados à
condição de gênero. Na medida em que socialmente se espera que as
mulheres sejam as responsáveis pelas tarefas dom ésticas, entre elas
comprar e cozinhar, e pelo cuidado de seus mar idos, é frequente
considerar que elas precisam de menos ajuda que os homens. Esse é um
tema complexo e o será ainda mais em um futuro próximo, já que, para
as mulheres mais velhas das atuais gerações, o sentimento de bem-estar
está muito vinculado à manutenção das rotinas cotidianas e, muito
particularmente, aquelas que estão relacionadas com a preparação da
comida para familiares e amigos (Fenell, Phillipson & Evers, 1994;
Sidenwall et ai., 2000). Esse fato marca uma diferença importante entre
homens e mulheres no comportamento alimentar: os homens comem
mais para satisfazer seu apetite e dão menos importância que as mulheres
aos aspectos de serviço e sociabilidade.
Para as pessoas mais velhas é muito importante manter sua
independência tanto tempo quanto for possível. O fato de necessitar de
ajuda para, por exemplo, se prover de alimentos afeta o próprio
significado da alimentação e da comida e pode chegar a afetar sua saúde
mental e física. Nesse sentido, é importante observar as funções sociais,
de sociabilidade e de bem-estar psíquico e físico, que os atos de compra
podem representar, já que, por exemplo, obrigam/permitem, entre outros,
o exercício físico, exercer a capacidade de escolher e de decidir, manter
as comidas tradicionais etc.
Com o aumento da idade, as motivações psicológicas são cada vez
mais importantes nos comportamentos alimentares. Entre as pessoas mais
velhas, especialmente entre aquelas que vivem sozinhas, as recentemente

259
viúvas, e independentemente de seu estado de saúde, observa-se uma
tendência a negligenciar sua dieta e à deterioração nutricional.
Entre os "solitários" podem ocorrer diferentes comportamentos e
atitudes alimentares segundo a duração e as circunstâncias dessa solidão:
da normalidade de um comportamento estruturado às patologias. De fato,

se o período de solidão é vivido como uma duração indeterminada da qual


não se conhece o final, há mais sensibilidade à ausência de marca ou de
requisitos. Sabe-se que os solteiros estão muito mais preocupados com seu
futuro, sua aposentadoria, sua saúde do que aqueles que vivem em família.
Escutando os discursos sobre as práticas alimentares, encontramos essa
mesma vulnerabilidade( ... ). Se a dimensão social, ritualizada, se debilita,
resta apenas a dimensão psicológica para satisfazer o estômago, mas não o
imaginário e tampouco o prazer. Esse contexto desestruturado ,
aparentemente mais próprio das mulheres, é propício a patologias do
comportamento alimentar, como a bulimia e a anorexia. Parece que entre
a normalidade de um comportamento estruturado e o desequilíbrio dessas
patologias existe um continuum de comportamentos desordenados que
fragilizam nossa identidade alimentar. (Rigalleau, 1989: 195-196)

As pessoas idosas que vivem sozinhas não têm as motivações


indispensáveis para o preparo das diversas comidas. Não é raro observar
comportamentos alimentares anárquicos entre os anciãos, que podem
passar um dia ou dois "beliscando" e, por isso, comendo excessivamente
no dia seguinte, de maneira que sua porção diária de calorias pode variar,
por exemplo, de 800 a 3.700 (Farb & Armelagos, 1985: 111). Gracia (1998)
relata o caso de uma mulher de 75 anos que vive sozinha há algum tempo
(ainda que o grupo familiar de sua filha viva no piso de baixo). Essa
mulher pode comer dois pratos de sopa ao meio-dia, e apenas isso, e
esperar a noite para, então, comer um pedaço de pão e queijo. Comer
ovos fritos com chouriço, lanchar madalenas e não jantar. .. E tomar café
da manhã, não comer ou jantar, mas sim lanchar. Em qualquer caso,
deixa de realizar muitas das refeições habituais. E diz "estar gorda", ter
problemas de circulação e colesterol alto. Sabe que não segue os conselhos
do médico. Mas tem dores na boca e nos dentes. Para ela, é difícil mastigar.
De acordo com Exton-Smith (1980: 187), a comparação entre
homens que vivem sozinhos e os que vivem com suas esposas (com ou
sem outros parentes) mostra que os homens de mais de 75 anos que
vivem sozinhos se alimentam pior:

260
Os homens de. mais de 75 anos que viviam sozinhos se alimentavam pior
que os demais no que se refere a um grande número de nutrientes ( ... ).
Assim, entre os homens nos grupos de idade avançada, uma proporção
estatisticamente maior dos que viviam sozinhos sofriam de anemia, níveis
baixos de albumina, baixas concentrações de ácido ascórbico, leucócito
e baixos níveis de fosfato. Não surpreende o fato de que os homens mais
velhos que vivem sozinhos são em geral particularmente vulneráveis, já
que em sua maioria desconhecem o que é uma dieta equilibrada. Para
homens de idades entre 65 e 75 anos, o modo de vida exerce pouca
influência sobre o consumo de nutrientes e os valores bioquímicos; muitos
homens dessa faixa etária que viviam sozinhos eram perfeitamente capazes
de cuidar de si mesmos. As mulheres de 75 anos e as mais velhas também
podiam viver bem sozinhas, as de menos de 75 anos se alimentavam melhor
que todos os outros grupos.

Também a ausência de responsabilidades culinárias para com outros


além do casal, junto com a consideração de que com a idade os
requerimentos alimentares são menores, pode representar uma falta de
motivação e provocar certo desleixo e desordem na alimentação cotidiana
("para dois, não abro a cozinha"). Por outro lado, a modernização
alimentar introduziu a individualização na própria maneira de pensar e
de ingerir a comida. Cada vez nos sentamos à mesa mais solitariamente.
Essa evolução contribui para a banalização da alimentação, para sua
desritualização e, nessa medida, propicia um reforço da desmotivação.
Como consequência de todas essas circunstâncias (e levando-se em
consideração o fato de que aumenta progressivamente o número de
pessoas mais velhas que vivem sozinhas, assim como a esperança de vida),
os comportamentos alimentares das pessoas mais velhas estão cada vez
mais influenciados pelo apoio social e integrados em redes sociais
(incluindo as organizações assistenciais). As "comidas a domicílio" são
um exemplo. Essa possibilidade é muito apreciada nos períodos de
enfermidade, no inverno ou quando há dificuldades passageiras. É um
bom complemento de um dispositivo de ajuda a domicílio. Entretanto,
representa um perigo: a pessoa mais velha pode perder o costume de
comprar e cozinhar, o que pode levar ao desenvolvimento de uma nova
dependência. Os restaurantes de comida caseira, ao contrário, dão às
pessoas de idade um motivo para sair, para encontrar outras pessoas.
São, cada vez mais, um lugar de informação e de animação.

261
Relações entre Gerações, 'Ajudas' e
Comportamentos Alimentares das Pessoas Idosas
Tradicionalmente , um a d as formas d e evit a r a so lid ão e o
isolamento social foi a coabitação da pessoa mais velha viúva, ou do
casal de anciãos, com outras pessoas, geralmente da própria família e,
mais frequentemente , com um a filh a. Entretanto, o aumento da
esperança de vida, de mais de 50% desde 1940, a redução das taxas de
natalidade, a maior duração do trabalho assalari ado das mulh eres fora
do lar e a emigração em massa a partir de meados dos anos 50 até princípios
dos 70 do século XX alteraram profundamente essas possibilidades.

Tabela 8 - Aumento da esperança de vida na Espanha entre 1940-2000


(em anos)
1940 1960 1970 1980 1990 2000
50,10 69,85 72,36 75,62 76,94 79,2

A Espanha contava, em 2001 , segundo o Imserso, 2001(Instituto


de Imigração e Seviços Sociales), com uma população de 6.500.000 de
pessoas de mais de 65 anos. Dessas, 58,1% viviam autonomamente, 23,8
% com sua fam ília e 18,1 % em residências.
Por outro lado, no decorrer dos últimos qu arenta anos, como
consequência dos fatores que acabamos de citar, a estrutura e o tamanho
médio dos lares espanhóis modificaram-se profundamente. Comparando
os censos de 1970, de 1981, de 1991 e de 2001 , segundo os tipos de lares
e seu tamanho médio, temos os seguintes dados:

Tabela 9 - Recenseamento sobre o tamanho médio dos lares (%)


Tipo de Lar 1970 1981 1991 2001
Urna pessoa 7,0 10,0 10,8 20,27
Sem núcleo co njuga l 3,0 12,8 8,40
Nucleares 69,0 7 1,0 61,8 56,39
Nucleares + o utras pessoas 15 ,0 12,0 8,0 7,29
Múltiplas 6,0 3,0 2,7 2,00
Tamanho médio do lar 3,9 3,5 3,2 2,90

262
Também é certo que essa evolução se abranda a partir dos anos 70,
como consequência da interrupção da queda na idade média do
matrimônio, voltando a aumentar o atraso na idade de emancipação dos
filhos.
Coabitar significa viver de maneira permanente na mesma casa. As
situações de residência mais recorrentes no que se refere às "pessoas
mais independentes'', sós ou em casais, que convivem com algum de seus
filhos, são as seguintes:
• Núcleo conjugal da terceira idade convivendo com alguns de seus filhos,
ainda não independente.
• Núcleo conjugal da terceira idade que convive com um de seus filhos,
seu cônjuge e os filhos destes.
• Viúva/o que convivem com a família nuclear de algum de seus filhos.
• Pessoas da terceira idade que convivem com uma pessoa ainda mais
velha e mais "dependente".
Para qualquer caso, como se pode observar na tabela anterior,
esse tipo de situações de residência é de todo minoritário na Espanha,
mas, na análise dos hábitos alimentares das pessoas mais velhas, vale
levar em consideração um fenômeno cada vez mais comum, o da
proximidade residencial entre parentes. É cada vez mais significativo, de
acordo com algumas das entrevistas, o número de lares de pessoas mais
velhas que vivem perto de algum de seus filhos (geralmente, é maior a
proximidade entre mãe e filha), ainda que em casas independentes. De
forma que, se a coabitação não é em absoluto a norma, é cada vez mais
habitual viver perto dos pais. Além disso, vale considerar, também, quando
a distância residencial é importante, a prática bastante difundida de os
pais mais velhos "passarem temporadas" relativamente grandes na casa
de algum dos seus filhos. 27 Tudo isso é traduzido em uma relação
permanente que consiste em um fluxo de intercâmbios recíprocos de
visitas e serviços, favores e ajudas diversas, em alguns casos, sobretudo
com a presença de netos ainda sem autonomia, de maneira regular e,
inclusive, diária.
Para esse fluxo de intercâmbios contribuiu, também, o relativo
aumento (há cerca de 20 anos) do nível de aposentadorias, que tem
proporcionado aos idosos maior capacidade financeira para ajudar os
filhos em seu processo de independência e para ajudá-los a cuidar dos
27 Nesse sentido cabe prever, para as próximas gerações de pessoas mais velhas, que
a redução do número de filhos tornará mais difícil essa alternativa.

263
netos. Em qualquer caso, a direção das trocas (de pais para filhos ou de
filhos para pais) e seus conteúdos podem variar muito de acordo com as
mesmas variáveis e circunstâncias que comentamos nos itens anteriores.
Em relação às práticas alimentares, nos limitaremos a considerar as trocas
relativas ao abastecimento alimentar em seus diferentes aspectos: pensar
a compra e a cozinha, comprar, cozinhar, e o custo correspondente.
As 'pessoas mais velhas dependentes' parecem prestar auxílios
muito importantes a seus filhos, sobretudo as mães a suas filhas e genros
e aos filhos de ambos. Esses auxílios podem se dar de diferentes formas:
ajuda nas tarefas domésticas, convites regulares para almoçar e/ou jantar
(com todas as tarefas prévias que isso implica) por causa dos horários de
trabalho e/ou de aulas, realização da compra alimentar para as filhas
(além da comodidade, se acrescenta todo o "conhecimento" das mães),
oferecer-lhes comida já preparada etc. Todos esses tipos de ajuda, e muitos
outros que estão fora do escopo deste estudo, aparecem de maneira
recorrente nas pesquisas e nos estudos consultados e informam sobre
uma economia considerável de tempo e energia (às vezes, também, de
dinheiro) para os filhos.
H á diferenças, de intensidade e conteúdo, entre a relação entre
mãe e filha e aquela entre mãe e filho. Talvez as diferenças de intensidade
expliquem as diferenças de conteúdo. As relações entre mãe e filha podem
ser quase cotidianas e referentes a muitos aspectos, como já foi dito (e
caberia acrescentar muitas outras ajudas relativas às várias tarefas
domésticas, cuidado dos netos etc.). As relações com os filhos costumam
ser mais esporádicas e, nessa medida, podem ter certo caráter de exceção.
Os casais mais velhos que ainda convivem com um filho não
independente são os que prestam mais serviços, pois esses filhos não
parecem contribuir em absoluto para as tarefas domésticas. Compram
para eles, cozinham, lavam, passam etc. Nos lares nos quais convivem
duas ou mais gerações, as ajudas dos mais velhos podem não ser
reconhecidas por tais filhos , pois se considera que formam parte da
organização da vida cotidiana no interior do lar. Assim, por exemplo, se
os avós já estão em casa, não lhes é pedido que cuidem dos netos enq uanto
os pais trabalham ou que fiquem com eles quando estão doentes, que
lhes preparem o lanche ou o jantar; parece que tudo isso já acontece
habitualmente.
Ainda que as pesquisas reportem casos nos quais os entrevistados
dizem que não prestam nenhuma ajuda a seus filhos "porque eles não
precisam", em geral a maior parte das pessoas mais velhas destaca que
ajuda seus filhos e se sente satisfeita por ser útil. Em qualquer caso, se

264
manifestam alguma insatisfação , esta alude à preocupação de não
poderem continuar ajudando no futuro.
Definitivamente, o que constatam as pesquisas é que, atualmente,
as pessoas idosas independentes prestam numerosos serviços a seus filhos.
Para analisar o sentido inverso, os serviços e auxílios dos filhos para os
pais, é preciso, mais uma vez, diferenciar claramente os casos de pessoas
mais velhas independentes e pessoas mais velhas dependentes (pessoas
"muito" mais velhas, de 90 anos ou mais, ou mais jovens, mas doentes ou
incapacitadas).
As 'pessoas idosas dependentes' recebem uma ajuda importantíssima
de seus filhos. Apesar de as pessoas mais velhas dependentes poderem
precisar de cuidados especializados, a ajuda informal é muito mais presente
que a ajuda profissional ou assistencial Uá falamos disso no item dedicado
às 'pessoas cuidadoras' e voltaremos ao tema no item a seguir) e se
convertem em uma grande responsabilidade para seus filhos ou para seu
cônjuge (principalmente nos casos de demência, Alzheimer, invalidez
permanente etc.). Assim, a problemática das pessoas idosas dependentes
afeta, além delas mesmas, as outras pessoas que têm que se responsabilizar
por seu cuidado. E no caso de que essas sejam, por sua vez, pessoas mais
velhas, a carga é ainda mais pesada. Assim, por exemplo, encontramos
casos em que duas mulheres vivem com sua mãe dependente. Recebem
de outros membros de sua família (irmãs, cunhadas e filhas) uma ajuda
doméstica remunerada e outras ajudas mais pontuais e irregulares. Uma
terceira leva a mãe - durante quatro horas diárias - a um centro para
pessoas dependentes. Uma quarta cuidou de seus sogros dependentes (o
sogro com Alzheimer e a sogra com demência senil) durante vários anos
(morreram com 92 e 94 anos) e não teve nenhuma ajuda doméstica nem
de familiares, com exceção de ajudas pontuais das irmãs e cunhadas que
cuidavam deles quando ela precisava ir ao médico ou realizar alguma
tarefa inadiável. Tentou colocá-los em uma residência pública para idosos
(seu nível salarial não lhe permitia mantê-los em uma instituição privada),
mas eles morreram antes de obter a vaga. Nesses quatro casos, nossas
entrevistadas falam da perda de mobilidade e de autonomia que significa
cuidar de pessoas idosas dependentes.
Por sua vez, o grupo de 'pessoas idosas independentes', em número
crescente, apresenta uma situação completamente diferente. Em geral,
não apenas não necessitam de atenção - tampouco a recebem - mas,
sim, como vimos, são elas que ajudam seus filhos de modo muito ativo e
significativo, inclusive quando estes já estão completamente emancipados
e independentes. De acordo com as pesquisas consultadas, as únicas ajudas

265
que essas pessoas recebem são pontuais e pouco significativas (regar as
plantas quando estão viajando, realização de algumas tarefas
administrativas, acompanhamento durante consultas médicas, companhia
no carro em alguns deslocamentos etc.). O grau e a frequência dessas
ajudas variam muito de um caso para outro e dependem, na maioria dos
casos, da maior ou menor experiência ou habilidade das pessoas idosas
no trato com esse tipo de questões.
De maneira geral, as pessoas idosas não consideram um problema
não receber nenhuma ajuda dos filhos nas tarefas domésticas na
atualidade, ou seja, em sua situação de independência. Entretanto, a
possibilidade de ficarem doentes ou de não poderem realizar por si mesmas
essas tarefas no futuro aparece como uma preocupação. Para algumas
dessas pessoas, inclusive, preocupa a possibilidade de "se tornarem um
peso" para seus filhos no futuro e dizem preferir contar com a ajuda de
outras pessoas quando necessitarem (profissionais, serviços assistenciais ... ).

Gênero, Dependência, Cuidado e Alimentação


Já dissemos que, na Espanha, a cada mês, 36.000 pessoas alcançam
a idade de 65 anos e se espera que, para o ano de 2025, o grupo etário
com mais de 65 anos represente 25 % do total da população do país. Esse
crescimento do número de pessoas com idade avançada significará um
aumento do número de pessoas dependentes, doentes ou frágeis. Essa
situação significa para suas famílias e para a sociedade o problema do
cuidado dessas pessoas mais velhas dependentes. A estimativa atual de
pessoas dependentes é de setecentas mil. Para elas, existem diferentes
formas de assistência institucional. Nos últimos anos, foram desenvolvidas
e diversificadas as fórmulas de acolhida e de assistência a domicílio.
Apesar de tudo isso, as necessidades desse coletivo estão muito longe de
serem atendidas na Espanha.
Assim, por exemplo, os objetivos previstos no Plano Gerontológico
Estatal para o ano de 2000 no que se refere às vagas em asilos (a média
estatal é de três vagas para cada cem anciãos) ou às casas tuteladas não
foram em absoluto alcançados. A Sociedad Espafiola de Geriatría y
Gerontología calcula que faltam cerca de noventa mil vagas de residência
para idosos e de casas tuteladas. Tal plano previa, também, a execução
de medidas para as pessoas idosas dependentes que vivem em seu próprio
domicílio. O objetivo era que 8% dessas pessoas pudessem se beneficiar
de tal serviço. Entretanto, a ajuda domiciliar alcança apenas cerca de
cem mil pessoas, menos de 1,4%. Finalmente, o " teleatendimento
reduzido", que segundo o plano deveria chegar a 12% dos idosos que

266
vivem sozinhos, ou seja, a cerca de 125.000 pessoas, chega a apenas cerca
de cinquenta mil.
No que se refere ao fornecimento alimentar e a todas as tarefas
relacionadas com a alimentação, o cenário é o mesmo do caso do cuidado
em geral. Majoritariamente, continuam sendo as mulheres que assumem
esse tipo de responsabilidades, o que tem repercussões importantes na
qualidade de vida e na saúde das mulheres mais velhas. Portanto, na análise
das práticas alimentares é necessário considerar as diferenças de gênero.
Nesse sentido, é necessário insistir no papel que muitas mulheres idosas
independentes desempenham no cuidado das pessoas idosas dependentes.
Também é certo que a característica da geração é muito importante e que
essa situação pode mudar com as próximas gerações.
No geral, as responsáveis pela alimentação dom éstica são também
as principais responsáveis pelas compras, ainda que possam receber ajudas
pontuais do resto da família , mas muito pouco significa tivas. Entre os
casais qu e vivem sozinhos, a mulher é norm alm en te a responsável pelas
compras e pela cozinha. O cônjuge pode acompanhá-la e ajudá-la a
transportar as compras, mas seu papel como responsável ("pensar
a compra" ou "fazer a lista") é marginal. A situação mais comum é a
compra da sobremesa do domingo e das bebidas. Quando convivem com
algum filho, sua participação também é mínim a, exceto quando se trata
de comprar produtos para se u consumo excl usivo . Somente em lares
formados por du as ou ma is gerações se observa maior divisão da
responsabilidade de comprar, organizar os cardápios e cozinhar. É nesses
casos que se observa menor acúmulo de responsabilidades alimentares.
No caso de pessoas que mora m sozinhas, homens ou mulheres, elas são
as únicas responsáveis pelo fornecimento e pela preparação culinária,
mesmo qu ando dispõem de aj uda para outras tarefas domésticas.
Quando as pessoas mais velh as são responsáveis por outras pessoas
idosas dependentes, parecem responsabilizar-se pela co mpra, ainda que
possam receber ajuda em outras tarefas ou responsabilidades (cuid ar da
pessoa dependente quando sua aj ud ante vai às compras) . Também se
pode recorrer a algum vizinho ou fa miliar para que cuide da pessoa
dependente enqu anto vai às compras porque, entre outros motivos, há a
necessidade de "sair de casa para se distrair um pouco" e a compra é
uma boa desculpa para isso.
E m relação à cozinha, as responsabilidades são aind a menos
divididas que aquelas relativas à compra. Nos casos em que o cônjuge ou
os filhos participam mais ativamente na compra, não participam na

267
cozinha, exceto em situações de estrita necessidade ou doença da
"responsável". Geralmente, fala-se dessa situação com naturalidade, como
se nem representasse um problema, e não se considera que poderia ser
diferente. Somente em alguns casos fala-se em termos de prejuízo .
Também, no caso da cozinha, é nos lares nos quais convivem duas ou
mais gerações que as tarefas aparecem mais divididas. É uma minoria
dos homens que afirma participar das responsabilidades pela cozinha.
8
A Importância da Comida e da Comensalidade na Terceira ldade2
Falar da importância da comida e da comensalidade na terceira idade
poderia dar a entender que esta não existe em outras idades. Claro que não
é assim. Queremos falar sobre a especial e particular importância que
têm na terceira idade como consequência da maior probabilidade de
perda dos contextos de comensalidade que são relativamente normais
em outras idades e dos quais, exatamente por isso, as pessoas idosas têm
carência, e sobre como isso pode repercutir negativamente, como veremos,
em seu bem-estar geral e em sua saúde em particular.
Paralelamente ao fenômeno do envelhecimento da população, os
problemas nutricionais associados à velhice tornaram-se objeto de atenção
prioritária em relação à saúde. O processo de envelhecimento significa
uma série de mudanças , biológicas e sociais , que aumentam a
suscetibilidade a deficiências nutricionais, o que levou a considerar as
pessoas idosas como um grupo de alto risco nutricional (Exton-Smith,
1980; Campbell et al., 1994; Rosenb loom & Whittington, 1993). Um
estudo recente sobre o estado nutricional das pessoas mais velhas na
Catalunha identifica quatro tipos de fatores de risco de má nutrição:
1) as alterações na autonomia funcional (incapacidades e deficiências);
2) fisiopatológicos próprios da velhice (deterioração sensorial, alterações
da cavidade oral, alterações digestivas e em secreções ocasionadas pela
velhice, transtornos metabólicos condicionados à idade e prisão de ventre);
3) médicos (aumento de patologias, interações farmaconutrientes,
imobilidade); 4) psicossociais, emocionais e culturais (Garcia-Lorda; Salas-
Salvadó & Foz, 2002). A solidão, a pobreza, a limitação de recursos e o
isolamento são alguns dos fatores de ordem social identificados como
indutores de uma dieta inadequada (Charlton, 1999). Assim, os processos
28
Esta seção corresponde a uma parte do estudo realizado por Silvia Bofill e Jesús
Contreras motivado pelo projeto de investigação Choosing Foods, Eating Meals:
sustaining independence and quality of life in old age (SENIOR FOOD-QOL),
financiado pela Unión Eurnpea em seu V Programa Marco (Key Action 1: Food
Nutrition and Health QLRT-2001-02447).

268
de demência podem conduzir a processos de má nutrição proteico-
energética irreversível (Borson et al., 1986; Rudman & FeJJer, 1989).
Sem esquecer a relevância do conjunto de fatores fisiológicos que
podem induzir à má nutrição no processo de envelhecimento, trata-se
de aprofundar a compreensão dos fatores sociais e culturais que explicam
e significam, em última instância, determinadas mudanças e transtornos
do comportamento alimentar entre as pessoas idosas, que chegam ,
algumas vezes, à perda quase absoluta do apetite. Queremos nos referir,
particularmente, às situações de 'solidão' real e/ou sentida. Trata-se,
definitivamente , de relacionar três questões - velhice, solidão e
alimentação - para refletir sobre as causas sociais da falta de apetite e da
má nutrição entre as pessoas idosas.
O contexto, sempre, é o que verdadeiramente define e dá sentido
aos comportamentos alimentares. O contexto do consumo é o resultante
da soma de um "valor de tempo" e um "valor de comensalidade'', ou
seja, um contexto de celebração, de satisfação de uma necessidade, de
participação restrita, oportunista, de adaptação etc. Três dimensões
parecem determinantes para se especificar os diferentes contextos de
consumo:
• O lugar (a cozinha, a copa, o sofá, em casa, fora de casa, o restaurante
etc.).
• O momento ou a temporalidade do consumo, já que o tempo do
consumo não é uniforme e está muito marcado socialmente segundo,
por exemplo, o tempo de festa ou o cotidiano, ou qualquer outra
circunstância. Assim, o tempo define a hierarquia das diferentes refeições
no decorrer de uma jornada (café da manhã, almoço, lanche, jantar...),
assim como o significado e alcance de sua ausência.
• A situação de comensalidade (com quem se come). A percepção do
ato de comer está intrinsecamente ligada a "comer com ... " (família,
casal, filhos, amigos, adultos etc.). A comensalidade pode ocorrer ou
não, e os significados ou valores de sua presença e ausência podem
corresponder a uma mesma lógica.
Em termos gerais, considera-se que "envelhecer" significa, em certa
medida, uma simplificação da dieta. Mas não falaremos aqui, agora, das
mudanças fisiológicas relacionadas com a idade que podem favorecer
maior ou menor perda do apetite, transformações nos gostos ou
predileções por este ou aquele tipo de alimentos como, por exemplo, a
preferência, com a idade, por alimentos gratinados, e o abandono gradual
de alimentos cozidos de outras formas, como as frituras, os assados e os

269
guisados. Por outro lado, uma das mudanças que mais afetam a dieta das
pessoas idosas é, exatamente, o imperativo de seguir uma dieta prescrita
por um médico. O que pode afetar mais de uma pessoa, pois, quando as
pessoas idosas são, ao mesmo tempo, as que cuidam das pessoas doentes
que devem fazer uma dieta específica, elas adaptam sua alimentação à
das pessoas que cuidam.
De todas as formas, 'envelhecer' não é somente resultado de um
processo biológico. É, também, um processo social pleno de circunstâncias
e significados. Envelhecer pode significar, e sempre significa, maior ou
menor perda de saúde; pode, além disso, significar a aposentadoria e
pode estar também relacionado à viuvez e à maior ou menor perda de
relações sociais de caráter afetivo. Tudo isso pode afetar mais ou menos
diretamente, e em maior ou menor grau, a qualidade da dieta das pessoas
mais velhas. É verdade, também, que nos casos em que um dos cônjuges
trabalhou fora do lar, a aposentadoria pode favorecer uma melhora na
alimentação, na medida em que se passa a dispor de mais tempo e/ou de
ajuda para a compra e a cozinha.
Por essas razões, queremos apresentar e analisar o processo social
que permite considerar que a manutenção de uma dieta minimamente
adequada ou equilibrada ou , pelo contrário, su a desestruturação ,
simplificação ou empobrecimento estão relacionados com a manutenção,
empobrecimento ou perda de um ambiente de sociabilidade. Em outras
palavras: quanto maior a sociabilidade, maiores as possibilidades de um a
dieta satisfatória tanto em termos relativamente hedonistas como
nutricionais. E vice-versa.
Os casos que usamos como referências vêm de 83 entrevistas em
profundidade (43 mulheres e 40 homens) que ilustram situações diversas
que vão desde o que poderíamos qualificar como ausência total (real ou
sentida) de ambiente social, até o caso de pessoas que mantêm um
ambiente de sociabilidade estável, regular e satisfatório.

As Práticas
• As pessoas idosas que moram em pares ou as mulheres que vivem
sozinhas costumam comer acompanhadas quase sempre nas festas,
principalmente nas consideradas "tradicionais". Também podem comer
acompanhados durante muitos dias comuns. Nesses casos, a companhia
mais habitual é algum filho/a ou os netos. Em contraposição, os homens
que vivem sozinhos parecem comer sozinhos em sua casa ou em algum
restaurante. Quando o fazem acompanhados, são eles que se deslocam
para o domicílio de seus familiares. A capacidade econômica é relevante

270
nos casos de homens sozinhos que comem em restaurante com certa
assiduidade.
• A alta frequência da alimentação acompanhada por algum familiar
por parte das mulheres idosas que vivem sozinhas ou com seu cônjuge
não necessariamente estão relacionadas à própria necessidade ou desejo
de companhia; pode ser uma "ajuda" às suas filhas ou filhos para tomar
compatíveis as restrições de horários derivados de suas atividades
laborais e de suas responsabilidades com seus filhos menores. Com muita
frequência, são as pessoas idosas, os "avós", que compram, cozinham e
servem as refeições para seus filhos e netos. O casamento dos filhos
e sua "emancipação" em uma nova casa não necessariamente aumenta
o grau de solidão das pessoas idosas. Algumas vezes, inclusive, pode
acontecer o contrário.
• Por causa das refeições das quais participam outros membros da família,
a dieta das pessoas idosas, majoritariamente no caso das mulheres,
parece adaptar-se às de seus "convidados", seja por suas necessidades
ou por seus gostos.
• Nos dias em que as pessoas idosas recebem visitas, ainda que sejam as
comuns (é o caso das filhas , principalmente), as refeições preparadas
são mais elaboradas e mais estruturadas. Quando comem sozinhos, pelo
contrário, pode-se optar mais pela comodidade e/ou facilidade de
preparo.
• Muitas pessoas idosas que comem sozinhas, se m a companhia de
familiares, dizem se sentir "acompanhadas" pelo noticiário, pelo rádio,
pela televisão ou, inclusive, pelos animais de estimação. Esse tipo de
declaração confirmaria que os idosos têm a necessidade de companhia.
• As festas que são celebradas de uma maneira muito especial, "mais em
família", concentram-se no ciclo do Natal, mas existem muitas outras,
as do calendário festivo e as derivadas dos ciclos propriamente familiares
(santos, aniversários etc.). É comum a reunião familiar e um aumento
importante no consumo alimentar ligado às tradições gastronômicas
próprias dessas datas.
• Em referência à época de celebração, existe uma crítica comum ao
aumento dos preços do mercado em relação aos produtos que são mais
consumidos. Essa crítica não impede, salvo poucas exceções, a aquisição
dos produtos que são considerados emblemáticos.

271
Os Efeitos Colaterais da Viuvez ou as
Consequências Nutricionais da Solidão
No caso das pessoas idosas, a perda do marido ou da esposa pode
implicar a perda de apetite e um desânimo geral, sobretudo se não há
filhos nos quais se apoiar, ou famj)jares próximos, em qualquer um dos
sentidos do termo. Tudo isso, por sua vez, pode significar uma deterioração
da saúde. Assim, a viuvez, como o matrimônio ou a aposentadoria, exerce
grande influência sobre a dieta praticada pelas pessoas idosas, ainda que
de modo mais claro, todavia, no caso dos homens.

A morte de minha mulher me afetou muito. De repente, ela morreu. Foi


uma mudança radical, em tudo. Fui morar com meus filhos. Minha mulher
cozinhava tremendamente bem, não tinha desperdício. Com sua morte,
fiquei sem apetite, sem fome. Agora como menos. Quase sempre como
sozinho. Como salsichas, fruta, hambúrgueres, mas não como muito.

Ficar viúvo pode significar comer "qualquer porcaria". Não se


cozinha, não porque não se saiba ou não se possa cozinhar, mas sim
porque a 'motivação afetiva' desaparece. Cozinhar para apenas uma
pessoa parece não ter sentido:

Para cozinhar, é preciso vontade e amor, amor à cozinha, amor aos de casa
para que comam bem, amor ao ego, a si mesmo.

Expressões como "comer qualquer porcaria" em contraposição a


"comer bem" - esta última associada à dimensão social e afetiva da
alimentação ("amor aos de casa", "amor a si mesmo") - relacionam o
presente e o passado de maneira clara: o presente recupera e confere
outro significado para o passado; o passado, por sua vez, significa o
presente e confere sentido e significado, nesse caso, à falta de apetite.
Assim , ficar viúvo pode favorecer certa magreza e abandono
alimentar. No caso de algumas mulheres que vivem sozinhas, o fato de
ficarem viúvas pode significar magreza e quase abandono na questão
alimentar. Abandonar a comida ou "comer sanduíches" expressa um
abandono físico e pessoal que, com frequência, é convertido - aos olhos
dos demais - em objeto de valoração e sanção moral.

Tenho uma vizinha, ao lado de casa, que não tem apetite, nem come. Faz
sanduíches, ou come fruta, compra um melão e come melão. É um.a mulher
que tem oitenta anos e, o que me dá pena, essa mulher está sozinha. Não
tem. filhos. Tem. um irmão, mas ele só vem vê-la quando quer. Mas cozinhar,

272
não cozinha. Dorme durante todo o dia. Até às três horas, já não tem
vontade de viver. À noite, também dorme às três ou quatro. Você não acha
que uma pessoa assim estaria melhor em um asilo? Cuidariam dela e lhe
dariam comida. Porque ela só come sanduíches. E isso é horroroso. Essa
mulher não tem nenhum incentivo para nada. Sim, é bem triste... não tem
ninguém... e fica comendo sanduíches.

Como consequência, comer sozinho remete a um significado e


experiência, em comparação a comer acompanhado, em uma ausência
sentida de relação social, e remete a uma circunstância maior de solidão,
que por sua vez repercute sobre o comportamento alimentar. A cozinha
exige relação social, requer comensalidade. A normalidade alimentar é a
normalidade do comer em família, e do cozinhar para a família: "antes
fazia pratos normais, e com frequência". A perda de apetite, assim como
a de vontade de cozinhar, expressa com eloquência a vivência de solidão
em relação à família:

Antes cozinhava mais. Chegava o domingo e podia dedicar mais ...


Estávamos os três juntos. Mas de muito tempo para cá, não tenho mais
vontade.

A obrigação de comer parece conduzir a um processo de pura


'fisiologização' e/ou 'desritualização' das refeições. Na solidão, o ato de
comer se desprende de sua dimensão social, cultural ("Como porque
preciso comer, para encher o estômago"). O esquecimento - ou a atitude
de esquecer- em relação à cozinha ("Nem me lembro, nem me interessa")
expressa um sentimento de insatisfação diante do fato de não ter para
quem cozinhar. Esquecimento que, em certa medida, se expressa de forma
clara na linguagem ambivalente do cuidado e das expectativas criadas
nesse sentido:

Compreendo que os filhos devem ser independentes e devem construir sua


vida. O que acontece é que quando a minha filha se casou, eu lhe disse:
'Agora construa sua vida, mas não se esqueça que você tem uma mãe e teu
marido tem uma tia e que demos a vida para vocês e vocês têm que estar
disponíveis para nós'.

Receber atenção dos filhos é percebido como um direito adquirido


não somente pelo fato de terem criado os filhos e terem lhes dado "a
vida", mas, também, pelo fato de terem cuidado de seus pais, o que
significa que agora esperam receber cuidado de seus filhos:

273
Nunca levaremos minha mãe para um asilo. Nada de estar em um asilo,
isso nunca.

Assim, mais que uma realidade objetiva, a solidão está relacionada


com a maneira como as pessoas avaliam sua rede social e seus níveis de
interação e compromisso social: com o modo como percebem seu ambiente
social. Referimo-nos à experiência e à vivência da solidão, e não meramente
à solidão, na medida em que - além dos fatos de viver sozinho ou
acompanhado, de ter ou não família, amigos ou boas relações de vizinhança
- os processos sociais produzidos e a forma como são vivenciados é que
são determinantes para as pessoas idosas. O que os idosos estão nos dizendo
quando afirmam 'se sentirem sozinhos', quando manifestam 'medo da
solidão', quando dizem 'sentir solidão' ou quando identificam a solidão
como 'o maior problema' que têm atualmente? O que tudo isso nos diz
sobre o amplo contexto que se forma e se cristaliza? E como essa experiência
de solidão, complexa e diversa, se relaciona com a falta de vontade e de
apetite que os idosos entrevistados afirmam sentir?
As experiências de solidão tomam formas diversas e, também, se
expressam de diferentes maneiras no âmbito alimentar. Em muitos casos,
a experiência de solidão é cristalizada nos comportamentos alimentares
sob a forma de inapetência ou perda de apetite que adquirem uma
significação fundamental.

'Comer Sozinho' é uma Forte Experiência de Solidão

Comer sozinho é a coisa mais triste do mundo... Uma pessoa idosa tem
muitas dificuldades para cozinhm; mas se há algo que não tem solução é a
falta de companhia. Por melhor que esteja de saúde, no momento de entrar
na cozinha para fazer um prato simples para você sozinho, você o faz
mecanicamente, sem nenhuma vontade, porque você sabe que uma vez à
mesa comerá bem ou não segundo sua fome, mas sem que ninguém te
elogie, acompanhado somente por tua sombra e por um ambiente triste e
frio ... Desde que estou sozinho, não cozinhei mais, não tenho vontade.
Como qualquer porcaria.

Os diferentes depoimentos destacam que " ter que comer" sozinho


é um dos momentos nos quais a experiência de solidão é mais forte.
É um momento no qual a ausência de relação social e afetiva se faz
evidente e se intensifica. Ter que comer sozinho é também - social e
culturalmente falando - um momento semanticamente forte, carregado
de sentidos vinculados à sociabilidade e à companhia. A cozinha e o ato

274
de comer parecem adquirir sua plenitude dentro da relação social, da
mesma maneira como há pratos que não podem ser pensados fora da
relação social, que exigem compartilhamento, exigem comensalidade.
Como consequência, comer sozinho tem significados, é uma experiência
percebida como falta de relação social e remete a uma circunstância maior
de solidão que, por sua vez, repercute no comportamento alimentar.
A solidão, a ausência de comensalidade , permite "comer qualquer
porcaria" porque a motivação afetiva desaparece. De fato , cozinhar para
si mesmo não tem sentido:

Para cozinhar, é preciso vontade e amor, amor à cozinha, amor aos de casa
para que comam bem, amor ao ego, a si mesmo.

Assim, a relação com o corpo - sem apetite - adquire igualmente


sentido nessa mesma relação. Mais que uma perda de apetite - que sem
dúvidas aparece - , o que ocorre é uma perda de sentido, uma perda de
sua razão de ser:

Por melhor que esteja de saúde, no momento de entrar na cozinha para


fazer um prato simples para você sozinho, você o faz mecanicamente, sem
nenhuma vontade, porque você sabe que uma vez à mesa comerá bem ou
não segundo sua fom e, mas sem que ninguém te elogie, acompanhado
somente por tua sombra e por um ambiente triste e frio.

A alimentação é um ato social. A noção do apetite condensa relação


social, condensa identidade. A circunstância de solidão relaciona os
aspectos social e fisiológico próprios do fato alimentar de maneira distinta.
A frieza dos pratos "simples" e a tristeza de sentar-se sozinho para comer
e saciar a "fome" se contrapõem ao calor e ao desejo das comidas
compartilhadas. A solidão desnuda e, em certa medida, despoja o fato
alimentar de sua dimensão ou razão social, induzindo à sua quase
mecanização. O fisiológico quase se separa do social. Aspectos de ordem
mais fisiológica ordenam, estruturam e significam, a partir desse momento,
sua alimentação cotidiana. Assim , sensações como a "fome " e atos
fisiológicos corno "engolir" substituem , em sua experiência de solidão, o
"apetite" e o ato de "comer" em sua lembrança de comensalidade. Diante
da ausência de comensalidade ou relação social, o comer se dessocializa
e inclusive parece que se desumaniza, como a própria vida. A solidão no
comer e a perda de motivação estão relacionadas à ausência de um
ambiente familiar e ao isolamento social no qual estão imersas algumas
pessoas idosas.

275
A 'Perda de Apetite', uma Reclamação Afetiva
diante da Vivência da Solidão

Há pouco tempo não notava a solidão, mas agora sim, me sinto sozinha.
Isso ataca os nervos. Há cerca de um mês e meio que noto que não tenho
fome, não sei se são os nervos que interferem no estômago ou o quê. Como
porque tenho fome, para encher o estômago. Quando como na casa da
minha filha, claro, você fica com gases porque come mais que o normal,
porque está em família, fala, bebe mais, é normal, e nesses dias, sim, você
come, mas não é aquilo de falar que come muito e sozinho pensa nessa
comida, é porque é a família e está acompanhado. O fato de estar em
família é o que influencia mais. Agora cozinho coisas mais simples, porque
já nem me lembro, nem gosto. Antes cozinhava mais, chegava o domingo e
você podia dedicar mais, estávamos os três juntos. Mas de um bom tempo
para cá, não tenho vontade. Agora eu faço tudo na grelha, nada de panela.
Antes tinha que fazer prato, prato. Agora já não tenho mais vontade.

A inapetência como expressão de mal-estar- produzida e significada


dentro dessa solidão vivida - expressa, no limite, uma reclamação social
ou afetiva, visto que se produz sempre diante de algo ou de alguém
(uma filha , um filho, a família, a sociedade). Destaca-se assim o valor
comunicativo da linguagem alimentar: a perda de apetite fa la de um
vínculo social e afetivo que, em alguns casos, foi quebrado e em outros
se procura reforçar. Fala também da ansiedade que a possibilidade de tal
ruptura produz (medo da solidão). O medo, a ansiedade ou a reclamação,
que se destacam diante da solidão por meio de determinadas condutas
alimentares, assumem, além disso, uma clara expressão de gênero, a qual
deve ser levada em consideração na hora de compreender e significar os
comportamentos e os transtornos alimentares manifestados pelas pessoas
idosas (Arber, Davidson & Ginn, 2003; Gracia, 2002c).

O 'Medo de Não Poder Cozinhar',


uma Expressão do Medo da Solidão

Antes comia de tudo, mas agora estou perdendo o gosto pelo cozido, a não
ser que venham meus filhos. Se um dia meus filhos vêm e me dizem 'Faça
espaguete com creme de cogumelos', faço para eles. Na cozinha, não há
quem ganhe de mim! Mas a última vez que convidei meu sobrinho para
comer, ele me disse: 'Tia, se você não pode fazer as coisas para você, por
que convida os outros?'. Eu já trabalhei muito na cozinha, mas, agora,
penso: vamos ver se não perderei a habilidade.

276
Não poder cozinhar anuncia a solidão, na medida em que reduz
ou modifica os espaços potenciais de encontro com a família : "Eu já não
posso convidar ninguém, e também não posso levá-los ao restaurante ... ".
O medo de perder a capacidade de cozinhar nos fala de uma preocupação
maior de manter o ambiente da sociabilidade mais próximo, sem deixar
de sentir-se útil para os demais. É um medo social. Convidar a família
para comer ou levá-la a um restaurante aparece, no cotidiano da solidão,
como um reduto quase institucionalizado de encontro familiar e social,
além de um espaço de reafirmação de sua identidade: "Já trabalhei muito
na cozinha, mas agora, penso: vamos ver não perderei a habilidade ... ".

'Comer Qualquer Coisa', uma Expressão de Solidão

Paquita me dá pena. É hoJToroso, essa mulher que não tem nenhum incentivo
para nada, e eu acho que ela esta va bem porque o marido era médico.
E tem um apartamento fantástico. Sim, é bem triste, por isso penso que é
bem triste que não tenha ninguém. Essa solidão tão absoluta ... e viver
comendo sanduíches. Acho que uma vez, no Natal, seu irmão lhe disse que
iria lá para comei; porque não mora muito longe. É bem triste estar sozinha,
não ter ninguém.

A perda do gosto pelo cozido - em sua dupla acepção, fisiológica


(gustativa) e psicológica (prazer)- remete, também, à perda de motivação
e de sentido relacionada diretamente à fragilidade do ambiente da
sociabilidade fami liar. É, então, o aspecto lúdico e social da alimentação
(aglutinador) que produz o gosto pelo cozido, tanto por prepará-lo como
por saboreá-lo.

Estou sozinha. Tenho filhos, mas os filhos trabalham e não podem estar
disponíveis para mim, eles têm sua vida. Quando uma mulher fica viúva,
ela fica desamparada.

Os diferentes depoimentos analisados mostram, além dos aspectos


nutricionais, até que ponto a alimentação está no conjunto dos enfoques
que integram e ordenam a vida social, assim como a extraordinária
faculdade que tem a alimentação de condensar e transferir significado e
identidade. Alimentar-se é uma conduta que se desenvolve para além de
sua própria finalidade, que substitui, resume ou indica outras condutas
(Barthes, 1961a). A experiência de solidão é expressa por meio da
alimentação, e como dimensão sociocultural do fato alimentar, oculta,
em grande medida, determinados transtornos do comportamento

277
alimentar entre as pessoas idosas. Fenômenos como, por exemplo, "perder
o apetite", "perder o gosto pelo cozido", "comer qualquer porcaria",
"perder o interesse ou a ilusão pela cozinha", "o esquecimento em relação
com a cozinha", "comer porque é preciso comer", "comer sanduíche" ou
"comer para encher o estômago" não são compreendidos fora da relação
social ou, especificamente, fora do sentimento de insatisfação que produz
uma circunstância como o sentimento de solidão.
O sentido e a experiência de mudança social (e de transformação
normativa) em relação à rede de relações sociais e afetivas que envolvem
o processo de envelhecimento são, portanto, o marco que permite
relacionar a inapetência com a solidão vivida - entendida como a falta
de uma rede social e afetiva satisfatória-, e o isolamento social - entendido
como a falta de integração social. Seguindo a linha de análise aberta por
George Devereux (1955) e retomada por Richard A. Gordon para explicar
transtornos da ingestão de comida como a anorexia e a bulimia entre as
mulheres, a perda de apetite entre as pessoas idosas, como fenômeno
sociocultural e não meramente individual, seria o reflexo das ansiedades
básicas e dos problemas não solucionados em relação à velhice de nossa
sociedade, e ntre os quais a solidão ocupa lugar central (Gordon, 1994
apud Gracia, 2002c). Aspectos de ordem social e psicológica, mais que
fisiológica , surgem como fundamentais no momento de se compreender
a conduta alimentar - nesse caso, a inapetência - de nossos informantes
(Rowe & Kahn, 1997).

'Comer em Família', a Antítese da Solidão:


o valor da comensalidade
Diante da inapetência provocada pela solidão, o comer bem é
pe nsa do , significado e realizado dentro da comensalidade e da
sociabilidade familiar. A famíl ia surge, além de outros possíveis espaços
de relação social e afet iva, como o referencial quase único dentro do
qual a solidão é sentida e pensada, como o último reduto de afeto e
sociabilidade. Efetivamente, a instituição familiar e o cenário de mudanças
produzidas em relação ao cuidado nos últimos trinta anos constituem o
âmbito em que as se nsações de déficit e insatisfação - comumente
associadas à experiência de solidão (Hazan, 1980; Jong Gierveld, 2003) -
podem ser manifestadas com maior veemência.
É, certamente, a ausência de comensalidade, o " ter que comer
sozinho'', que destaca em toda sua intensidade a importância de relação
social e afetiva da qual a compartilhamento da refeição é um expoente.
"Ter que comer sozinho" é também - social e culturalmente falando -

278
expressão semanticamente forte, carregada de sentidos vinculados à
sociabilidade e à companhia ("Ter que comer sozinho é a coisa mais
triste do mundo"). A cozinha e o ato de comer adquirem sentido dentro
da relação social, da mesma maneira como há pratos qu e não podem ser
pensados fora da relação social, que pedem e condensam comensalidade:

Tenho agora que fazer só para mim um arroz para uma única comida ? Não
fica bem, não fica bem, porque não há nem lugar para o molho, nem para
o arroz...

Os dias de festas sempre foram ritualizados por meio da comida,


ne les rompe-se a rotina e são pre parados pratos um pouco mais
elaborados:

Para os santos não faltavam canelones à mesa e as garrafas de cava.


E para o Natal, fazíamos o tradicional pato, o toucinho assado. E reuníamos
toda a família em casa, e fazíamos uma festa enorme. Às vezes ainda me
lembro daquelas comidas e lembro-me delas com estima, com carinho.

As comidas familiares são um a desculpa para elaborar comidas


mais suculentas, mais elaboradas:

Nos dias em que os filhos vêm, sempre há algo diferente. Vem o filho, a nora
e os netos, e então, nesses dias, bom, faço a merluza ao forno ...

Nos fins de semana faço pratos mais elaborados. Às vezes faço canelones
ou fiicandó, an-oz com peixe e acrescento cogumelos, lula e um pouco de
camarão, faço um bom refogado. Eu gosto de cozinhar, meu marido me
dizia que eu cozinhava muito bem. Ele ficava muito agradecido,
principalmente se eu fazia esses pratos, mas não verduras. Isso não. E lhe
convinha porque era diabético, mas não queria. Quando fazia verduras
para ele, ele sempre se queixava, mas tinha que comer.

"Adaptar-se" ou exercer a responsabilidade, inclusive sentir


satisfação, não exclui que algumas pessoas idosas, homens ou mulheres,
se lamentem da escassa participação ou corresponsabilidade de seus filhos
ad ultos, casados ou não. Em alguns casos, principalmente nas ocasiões
em que ocorre alguma celebração, parece qu e se não fosse pelo papel
desempenhado pelas mulheres idosas, a convivência da família seria muito
menor e a ma nutenção de determin adas tradições, também. São as
mulheres idosas as qu e, e m muitos casos, parecem ass umir quase
exclusivamente a responsabilidade pela enorme quantidade de tempo

279
que os preparativos festivos exigem (abastecimento, preparações culinárias,
adequação dos espaços etc.). Uma vez mais, entretanto, parece existir
um equilíbrio relativamente precário entre a satisfação de se reunir com
a família em qualquer circunstância - ainda que, particularmente, devido
às diversas celebrações - e o fato de continuar sendo úteis e centrais nas
relações familiares, apesar dos custos econômicos e do esforço extra que
tais preparações requerem.
Festa e comensalidade tornaram-se as duas faces de uma moeda
da qual não se sabe qual é a cara e qual é a coroa. A festa exige prazer
comensal, mas a comensalidade pode, em qualquer dia, se converter em
uma festa. Uma mulher expressa sua alegria ao ver seus filhos com
frequência, ainda que possa ser percebida certa desarmonia gerada por
demandas repentinas. Aparecem de improviso, sem avisar, e isso a chateia
um pouco, porque nem sempre pode lhes oferecer o que gostaria. Além
disso, os filhos saem de casa, mas, ao invés de deixarem de ir para comer,
passam a ir com seus cônjuges, o que faz com que a carga sobre a mãe
aumente. Esse tipo de situação parece bastante recorrente, a julgar pela
quantidade de depoimentos parecidos colhidos entre os entrevistados.
Esse caso nos leva a outros temas também interessantes: as refeições dos
dias festivos são diferentes daquelas dos dias comuns? Nos dias comuns
com visitas a refeição muda? As festividades são celebradas com a
preparação de pratos especiais? Nesse aspecto, as diferenças de gênero,
uma vez mais, parecem influenciar.

Os filhos vêm para casa quando querem. Um, o pequeno, há pouco tempo
está casado. Quando morava sozinho, normalmente, vinha um dia por
semana. E o maior, também. Ao meio-dia, dizem 'Mamãe, você nos convida
para comer?'. E agora já são três, e com o que virá, quatro. E nunca lhes
digo não, porque eu gosto que venham. E, se é Natal ou um aniversário ou
algo assim, certam ente virão. Mas, assim de surpresa, muitas vezes
aconteceu deles me falarem na hora, sempre tenho algo, mas... (Mulher,
Barcelona)

- As mulheres fazem o que têm vontade. Minha mulher me pergunta:


'O que você quer que eu faça hoje para comer?' 'Faça tal coisa. Sim, mas
não nos cairá bem. Melhor que o faça com a chapa.' Então, um dia me diz
que fará carne grelhada e chego em casa e encontro uma zarzuela. 'Caramba,
o que é isso ?' 'É que o nosso filho vem.' Quando vem o filho, a comida que
ele quer.

280
- É que quando os filhos trabalham, vêm em horários diferentes, você
também muda o sistema de refeições. Coisas que podem ser esquentadas,
e se chegam tarde se servem. Os homens pensam que nós, as mães, fazemos
o que os filhos querem, não o que querem as filhas. Claro, minha filha vem
com er todos os dias e ela faz o mesmo que eu faço. Já o meu filho vem a
cada 15 dias ... é preciso observar! (Marido de 73 anos e mulher de 65)

Ano passado, desde que meu filho está casado ou com alguém, 1O ou 11
anos já ... o dia de Natal sempre veio comer em casa, mas no ano passado,
como eles gostam de neve, foram à neve. Claro que sentimos falta dele e ele
sempre dizia: 'Sempre comendo a m esma coisa'. E eu dizia: 'É verdade,
você tem razão, por que no dia do Natal não se pode comer uma tortilha de
batatas?' É verdade, mas meu marido normalmente no dia do Natal gosta
de cozido, de carne de panela e de frango. Não sei o que celebrávamos num
dia e meu filho comentou que, no Natal, os restaurantes estavam fechados
e que eles comeram muito mal. E nós sentimos falta dele. E ele disse: 'E nós
também, mamãe, nós também. É preciso fazer escudella [cozido], sentimos
falta da escudella'.

A defesa das festas parece ser mais a defesa de uma ocasião para o
encontro, para a reunião familiar. São defendidas as festas tradicionais,
com o componente culinário que as acompanha, como um encontro das
famílias. E se indica que, sem esse tipo de celebrações festivas, seria mais
difícil que o encontro acontecesse. No caso das mulheres cujos filhos
vão "para a neve" (trata-se de uma manifestação das novas formas de
entender o período de férias do Natal, que traz o sentido mais puramente
religioso, mas também o mais familiar, substituindo-o por um componente
de férias no sentido estrito, reduz o encontro da família ampliada ao
e ncontro unicamente da família nuclear) , percebe-se em suas
manifestações, primeiro, uma certa dor e, logo, uma certa alegria quando
o filho e a nora reconhecem que, nessas datas, comerão melhor na casa
dos pais do que em qualquer outro lugar. É significativo que a comida
típica do dia de Natal sirva como um referencial de união e estreitamento
dos laços familiares: ao dizerem "sentimos falta da escude/la ", parecem
querer dizer "sentimos falta de vocês", da casa, da família, do ambiente
e, como referencial simbólico, da comida tradicional que os acompanha.
Por outro lado , os requerimentos es pecífi cos das pessoas
dependentes em decorrência de seu estado de sa úde tornam-se
especialmente visíveis nas celebrações familiares e das festas tradicionais
do calendário anual. Definitivamente, se reconhecem que estão se

281
perdendo muitas tradições, as pessoas idosas entrevistadas defendem sua
manutenção.

Conclusão: o significado social, moral


e emocional da comida cozinhada
A alimentação aparece, no cotidiano das gerações que constituíram
nosso objeto de estudo - as de mais de 65 anos e, portanto, nascidas
entre 1907 e 1939 - como um âmbito de relação social e afetiva básica e,
ao mesmo tempo, como um meio de comunicação intensa. A comida, a
alimentação, é um campo multidimensional, através do qual é possível
recorrer e compreender o sentido dos processos sociais e a rede de relações
sociais e afetivas (de parentesco, entre vizinhos, de amizade) que ordenam
e, em certa medida, dão sentido à vida social das pessoas idosas. Isso
também permite compreender os processos sociais e afetivos que, à
margem das consequências nutricionais, repercutem e, de fato, ocultam
as escolhas alimentares e os comportamentos alimentares das pessoas
idosas.
Em nosso estudo, a análise das diferentes dimensões da comida, e
sobretudo da alimento cozido, permitiu destacar, pelo menos, os seguintes
aspectos:
• A cozinha, como a comida, só adquire sentido dentro de uma relação
social, da mesma maneira como há pratos que não podem ser pensados
fora da relação social, que pedem e condensam comensalidade.
• A sol idão, a ausência de comensalidade, permite "comer qualquer
porcaria" porque a motivação afetiva desaparece. De fato, cozinhar
para si mesmo não tem sentido.
• A relação com o corpo - inapetente - adquire sentido igualmente
nessa mesma relação. Mais que a perda do apetite, o que se destaca é
a perda de sentido. A alimentação é, fundamentalmente, um ato social;
a noção de apetite condensa relação social, condensa identidade.
• A circunstância de solidão 'relaciona' os aspectos social e fisiológico
próprios do fato alimentar de maneira distinta. A frieza dos pratos
"simples", "feitos mecanicamente", e a tristeza de sentar-se sozinho
para comer a saciar a "fome" - mais que o "apetite" - se contrapõem
ao calor e ao sentimento das comidas compartilhadas. A solidão desnuda
e, em certa medida, 'despoja' o fato alimentar de sua dimensão ou
razão social, induzindo a sua quase mecanização. Come-se porque é
preciso comer. O fisiológico se distancia do social. Na solidão, somente

282
aspectos de ordem mais fisiológica ordenam , estruturam e dão
significado à alimentação cotidiana. Assim, sensações como a "fome"
e atos fisiológicos como o "engolir" substituem, na experiência da
solidão, o "apetite" e o "comer" em 'comensalidade'.
• Para além das funções materiais, a alimentação atua como um poderoso
'aglutinador' social, da mesma maneira como a falta de aglutinação
contribuiu para desestruturar a comida. É pouco menos que um círculo
vicioso. A comensalidade, o processo de comer juntos, de dar e receber
comida reforça a relação social e o pertencimento ao grupo.
• Da mesma maneira como determinados acontecimentos marcados pela
alimentação (festas, celebrações ... ) condensam valores sociais centrais,
atividades cotidianas como comer, cozinhar e sair para comprar
transferem igualmente valores sociais e afetivos centrais, os quais guiam
a escolha e o comportamento alimentar.
• Diante da ausência de comensalidade ou de relação social, comer perde
seu caráter social e humano, como aprópria vida.
Definitivamente, a alimentação se une no conjunto de aspectos que
integram e ordenam a vida social, de tal forma que condensa e transfere
significado e identidade. Assim, paradoxalmente, a comida e a cozinha
'expressam e colocam em circulação processos e relações sociais e afetivas'
que adquirem sentido dentro do contexto histórico, social e pessoal que
os integra. Por meio delas, podem ser descritas e compreendidas as
'dinâmicas de integração social' das pessoas idosas, assim como se pode
refletir sobre a 'experiência de solidão' às quais tão frequentemente as
pessoas se veem submetidas. Trata-se de destacar que tipo de relações sociais
é expresso por meio da alimentação e de que maneira uma circunstância
de solidão confere outro significado a essas relações.

Perspectivas
Segundo duas pesquisas, uma do Imserso e outra da Federação de
Consumidores e Donas de Casa da Espanha, as pessoas da "quarta idade"
têm três preocupações fundamentais: dinheiro (46% ), saúde (43 %) e
solidão (27% ). Assim, então, o pior da velhice não parece ser tanto a
idade, mas a pobreza e suas derivações. A depressão, a tristeza, a falta de
autoestima, a negligência são perigos que ameaçam as pessoas idosas
mais que o resto da população. Mas essas três preocupações
são fundamentais e têm correspondência com três situações próprias da
idade: a aposentadoria e a decadência econômica que a acompanha; o

283
envelhecimento e a perda progressiva de saúde; a emancipação dos filhos
e o endividamento. Tudo isso repercute, direta ou indiretamente, nos
comportamentos alimentares, ainda que, como vimos, outras situações
ou circunstâncias também condicionem tais comportamentos . Tais
situações ou circunstâncias poderiam ser assim resumidas:
• As experiências e antecedentes que determinaram as representações
sobre sua própria situação e condicionam suas atitudes, expectativas e
motivações.
• O fato de serem pessoas idosas independentes, dependentes ou
cuidadoras.
• O grau de bem-estar material relativo que se depreende da situação
econômica pessoal.
• A rede de relações sociais (parentes, vizinhos e amigos) na qual se está
integrado.
Por outro lado, a velhice das próximas gerações está sendo
construída neste momento. Por exemplo, o fato de que entre a pessoas
que hoje são idosas haja pouco hábito de utilizar cartões de crédito ou
de que não esteja muito difundido o costume de fazer compras por
telefone e recebê-las em casa tem relação com os hábitos dessas pessoas
antes de sua aposentadoria, mais do que com o fato de pertencerem à
"terceira idade". As gerações posteriores, já acostumadas a essas práticas,
provavelmente as manterão quando estiverem velhas. Um exemplo muito
ilustrativo pode ser a compra pela Internet. O fato de que essas gerações,
em geral, não estão familiarizadas com essa prática não quer dizer que a
situação não vá se modificar com as futuras gerações de pessoas idosas.
Ou seja , não podemos atribuir determinadas escolhas, práticas,
preferências ou recusas exclusivamente à idade, mas, sim, em grande
medida, à su a história individual e coletiva. E essas histórias se
transformam constantemente, hoje talvez de forma mais acelerada do
que em outras épocas. Tudo isso se reflete, necessariamente , na
alimentação, já que a "terceira idade" atual sofreu majoritariamente
períodos de escassez e privações da Guerra Civil e do pós-guerra e
interiorizou em sua infância comportamentos alimentares anteriores à
e ntrada massiva de produtos da indústria alimentícia, dos
eletrodomésticos e ao desenvolvimento das comunicações. As gerações
imediatamente posteriores terão interiorizado modelos muito diferentes.
Essas considerações referem-se, também, a outros aspectos relevantes da
alimentação como, por exemplo, o papel dos filhos, dos netos e das avós

284
atuais, que pode mudar muito na medida em que as mulheres idosas
assumam papéis diferentes no decorrer de sua vida ativa.
Também, as representações e as práticas das pessoas idosas, além
de serem consequência de sua própria história particular e coletiva,
refletem e manifestam, também, as representações e as práticas do mundo
em que vivem e podem ser, portanto, compartilhadas pelas gerações mais
jovens. Assim, por exemplo, a recusa atual a consumir excessivamente
carnes vermelhas manifestada por muitas mulheres idosas é observada,
também, entre mulheres muito mais jovens. Em boa medida, isso é
resultado da confluência de diversos fatores que hoje atuam com força
sobre o conjunto da sociedade (notícias alarmantes sobre o uso abusivo
de hormônios de crescimento, escândalos como o das "vacas loucas",
advertências dos médicos sobre sua relação com doenças cardiovasculares,
mudanças nas tendências dietéticas que aconselham seu menor consumo
etc.), e não tanto de mudanças estritamente fisiológicas próprias da
velhice, ainda que também possam intervir. Do mesmo modo, as
transformações nas estruturas comerciais podem incidir sobre as práticas
de abastecimento das pessoas idosas, mas, também, das demais gerações.
Por exemplo, a prática muito difundida entre as mulheres idosas de
comprar produtos frescos no mercado ou em lojas especializadas e
produtos enlatados e bebidas nos supermercados ou hipermercados
também se observa entre as mulheres de 40 ou 50 anos.
A principal incógnita está em como será o envelhecimento no
futuro, pois a geração que hoje tem menos de 50 anos já não foi educada
para exercer o papel de cuidadora familiar, mas sim para o trabalho
assalariado. Essa é uma questão fundamental , se considerada a
importância que continuam tendo atualmente as diferenças de gênero
no tocante às "pessoas cuidadoras". É preciso estar muito consciente
disso para avaliar as possíveis políticas dirigidas aos grupos mais
problemáticos da terceira idade. Nesse sentido, convém recordar que, na
Espanha (Santos dei Campo, 1996), 60% das pessoas de mais de 65 anos
e 70% do total daquelas com mais de 85 anos são mulheres. Delas, 92%
estavam sozinhas, 80% por viuvez. A maioria dessas mulheres nunca
trabalhou fora de casa, mantendo uma subordinação econômica e social
em relação a seu marido no decorrer de tod a a vida. A isso é preciso
somar a falta de recursos de outro tipo como, por exemplo, de formação,
de preparação para solicitar auxílios sociais ou resolver problemas
administrativos. Tudo isso se converte em uma limitação grave quando
não estão presentes filhos ou outros familiares, ou seja, quando a tais
limitações se soma o isolamente social. Essa situação faz com que essas

285
mulheres enfrentem a velhice como uma perspectiva problemática que
exige atenção particular e evidencia a necessidade de não se analisar a
categoria "terceira idade" como um grupo homogêneo com os mesmos
problemas, as mesmas possibilidades e as mesmas necessidades.
Hoje, as mulheres que têm cerca de 50 anos não tiveram a
aprendizagem de 'mulheres cuidadoras' e, em contrapartida, os pais
esperam que elas correspondam a esse papel, como eles cuidaram de
seus idosos. Por outro lado, como consequência da diminuição das taxas
da natalidade, o número de pessoas " potencialmente cuidadoras" se
reduziu consideravelmente. Estudos realizados no País Basco indicam
que, antes da Guerra Civil, cada casal de anciãos havia gerado 11 pessoas
capazes de cuidar deles. Os casais que agora entram na aposentadoria
têm cerca de seis descendentes diretos e indiretos, mas apenas dois são
possíveis cuidadores. A pressão sobre as mulheres é muito grande, tanto
por parte de seus pais como por parte da sociedade. E essa pressão é
exercida em termos de uma reciprocidade baseada em critérios mais morais
que econômicos. Os "especialistas" também contribuem para isso quando
afirmam que o ideal para o idoso é que não saia de seu ambiente e resida
em sua casa durante toda sua vida. Alguns políticos afimam, também,
que a intervenção social destrói a "solidariedade familiar".
Alguns estudos (Bazo, 1996) mostram que, frequentemente, se
expressa descontentamento, por parte das pessoas que cuidam, com a
escassez de auxílios morais, materiais e, inclusive, mecânicos (cadeiras de
rodas etc.), com a falta de atenção, de coordenação e, em alguns casos,
com a negligência por parte dos sistemas de saúde e sociais. Tudo isso
faz com que, na maioria das vezes, atender uma pessoa idosa e dependente
seja visto como um problema e se considere que a atenção não pode
continuar exclusivamente a cargo da mulher, nem da família, ainda que
exista o desejo de mantê-la em casa. A situação pode se complicar muito
mais nas próximas gerações, quando as pessoas que teriam que assumir
os cuidados ainda terão suas próprias atividades, já que uma alta
porcentagem de mulheres não terá sido "dona de casa", mas sim exercido
uma profissão ou qualquer atividade de trabalho assalariado.
Em um mundo globalizado, o futuro mais imediato parece vislumbrar
a 'globalização do cuidado'. De fato, cada vez mais filipinas, equatorianas
ou dominicanas emigram para o Primeiro Mundo para cuidar de crianças
ou anciãos. Com o que ganham, economizam, mantêm suas famílias em
seu país de origem e inclusive pagam um salário dez vezes inferior para
que alguém cuide de seus próprios filhos e idosos, em seu lugar de origem.
Assim, as mulheres mais pobres cuidam dos idosos ou filhos dos mais ricos,

286
enquanto que outras mulheres ainda mais pobres, ou mais velhas ou
mais rurais, cuidam de seus próprios filhos e idosos. Ou seja, a dupla
exigência exercida sobre a mulher de, por um lado, integrar-se no trabalho
e ascender em um sistema profissional desenhado essencialmente por
homens sem responsabilidades no lar e, por outra, não deixar de se ocupar
com o cuidado dos filhos e idosos, está fazendo com que o 'cuidado',
assim como outros trabalhos, seja cada vez mais transferido, mediante
terceirização, a imigrantes.

287
5
Corpos, Dietas, Culturas

Para iniciar este capítulo, convém recordar algumas considerações


básicas tratadas nos capítulos anteriores. Concordamos que comer é uma
necessidade primária e que, para sobreviver, o ser humano deve se nutrir.
Entretanto, também mostramos (capítulos 2 e 3) que os alimentos não
são compostos apenas por nutrientes, mas também por significações. Não
cumprem uma função unicamente fisiológica, mas social, e não são
'digeridos' exclusivamente através de processos orgânicos internos, mas
também por meio de representações que vêm de fora e foram geradas
pelo ambiente cultural. Do mesmo modo, o ser humano não come tudo
o que está a seu alcance, nem seu estômago é capaz de assimilar tudo o
que está disponível. É, ao mesmo tempo que onívoro, seletivo: é obrigado
a comer alimentos de origens diferentes, mas , entre a gama de
possibilidades que lhe são apresentadas, costuma eleger e hierarquizar.
Partindo das disponibilidades, classifica o que é comestível e o não
comestível, o que é preferível e o não preferível, o que é recomendável e
o não recomendável e, claro, o que é acessível ou não acessível. É assim
que, por meio da comida, os seres humanos dão conta de sua especificidade
biológica e cultural. "Diga-me o que comes e te direi quem és" ou "És
aquilo que comes" são alguns dos provérbios que melhor sintetizam as
dimensões expressivas da alimentação.

289
Do 'Comer Pouco, Muito ou Nada',
ou dos Problemas Associados ao
Comportamento Alimentar
Definir o que é comer muito ou pouco implica em si mesmo um
dilema, colorido pela subjetividade e delimitado pela cultura.
Gilbert, 1986

Comer é um meio de se comunicar com outras pessoas. Por isso


comemos certas comidas em ocasiões particulares: festas, acontecimentos
pessoais, celebrações locais. Em outras ocasiões podemos nos abster de
alguns alimentos ou não comer as quantidades habituais. Podemos
comunicar nosso interesse com relação a nossos colegas, convidados ou
amigos, dividindo com eles uma comida. Do mesmo modo, quando as
relações sociais são ruins, comer pode ser doloroso e, inclusive, desagradável.
Nas sociedades " ocidentais ", uma refeição caseira tem conotações
diferentes daquelas de uma refeição realizada em um restaurante. De
fato , em todas as culturas, comer sozinho tem um significado muito
diferente daquele de comer com outra pessoa. Tal como assinalamos
(cap. 2), as refeições especiais com frequência incluem um valor ritual
considerável: por exemplo, o banquete de casamento, a refeição de Natal
ou o bolo de aniversário. Todas essas comidas têm menos a ver com a
necessidade de "encher o corpo de combustível" do que com as práticas,
tradições e representações simbólicas que articulam as relações sociais
(Gilbert, 1986).
Em um sentido similar, comer exageradamente, comer pouco ou
não comer nada frequentemente constituem mensagens destinadas a
outras pessoas e instituições, de forma que essas condutas, assim como o
peso corporal e as formas corporais deles derivadas, podem expressar
uma informação tanto sobre os hábitos alimentares como sobre a
personalidade, as intenções ou o status social das pessoas. Em geral, as
hierarquias baseadas em classe, casta, etnia, religião e gênero são mantidas,
pelo menos em parte, pelo controle diferenciado do acesso, da distribuição
e do uso dos alimentos (Counihan, 1999). Por exemplo, na Índia, uma
casta pode ser distinguida por hábitos e proibições alimentares que outra
casta inferior não tem. Padrões de cons umo distintos constituem uma
via através da qual os ricos se diferenciam dos mais pobres, e sua imitação,
por outro lado, se converte em um caminho para a mobilidade social
entre as classes em via de ascensão (Bourdieu, 1988; Elias, 1989).

290
Consequentemente, se comer pode , e parece , se revestir
necessariamente de múltiplos significados sociais e psicológicos além do
nutricional, o mesmo acontece com o 'não comer' (Toro, 1996). Na prática,
não foram encontradas sociedades nem culturas nas quais não existam
proibições coletivas mais ou menos punitivas com relação à ingestão de
alimentos. Trata-se de tabus estabelecidos de forma muito sólida. Em
grande parte, são justificados por seu caráter religioso, ainda que se
possa argumentar a origem histórica de muitos deles com justificativas
de caráter econômico, ecológico ou nutricional. Sabemos que os hindus
são proibidos de comer carne de vaca e coalhada, os judeus carne de
porco e os mulçumanos, além da última, álcool. No Ocidente cristão, o
jejum se estabeleceu como conduta de restrição alimentar no século IV,
identificando-se com a pureza do coração ante Deus e com a penitência
(Bell, 1985). As origens da 'anorexia santa' (holy anorexia) remontam ao
decorrer da Idade Média e a parte do Renascimento, quando um número
crescente de mulheres religiosas se entregou a práticas ascéticas de toda
ordem, incluindo o jejum. Por sua parte, a 'anorexia mental' foi definida
em fins do século XIX, sendo associada a práticas restritivas seguidas
por um número inestimável de jovens burguesas que se negavam a comer
para alcançar a perfeição espiritual e o ideal de feminilidade da época,
assim como pelas meninas de condição humilde que recorriam ao jejum
"milagroso" para obter dinheiro.
No início do século XXI , entretanto , nas sociedades mais
industrializadas, o jejum é muito mais estético, e inclusive reivindicativo,
do que religioso ou espiritual. De fato, essas sociedades foram
experimentando uma progressiva secularização e dessacralização da
sociedade em relação à substituição da hierarquia eclesiástica e das ideias
religiosas hegemónicas. Os valores predominantes dependem menos dos
ditames eclesiásticos do que daqueles que emanam de outras instâncias,
como a moda, o cinema e os meios de comunicação. Nessa sociedade,
inclusive os jejuns apresentados como reivindicações sociais ou políticas
mediante greves de fome continuam sendo, porém, medidas excepcionais.
Hoje, a restrição alimentar mais generalizada é praticada principalmente,
ainda que não somente, em função de uma determinada concepção da
beleza e da saúde. De fato , os valores estéticos e os cuidados corporais,
estes como meios de aceitação social e para consigo mesmo, constituem os
motores ideológicos de muitas dessas práticas alimentares. As ideias que
hoje fundamentam as diferentes formas de jejum são, consequentemente,
relativamente novas.

291
Entretanto, esses valores não estão isentos de diversos paradoxos.
Nessa sociedade laica ou pelo menos desprovida das numerosas obrigações
religiosas de antes, e nessa sociedade relativamente 'opulenta e
superalimentada', na qual a fome ameaça apenas uma minoria de
pessoas, 29 a abstinência alimentar alcança um caráter quase generalizado
e, em alguns casos, extremos nunca antes vistos até agora. Parece lógico
perguntar se, nesse contexto, os diferentes graus de jejum são uma resposta
lógica às consequências da recente profusão alimentar.
Apesar da relativa acessibilidade aos alimentos e da oportunidade
de escolher entre múltiplas ofertas, alguns problemas de saúde parecem
ser derivados do superconsumo de alimentos nas sociedades
industrializadas. O não alcance do ótimo nutricional continua sendo
objeto de preocupação para os especialistas da saúde, enquanto que a
má nutrição não abandonou os chamados países ricos. Comer pouca fibra
e poucos carboidratos complexos e , pelo contrário, consumir
excessivamente proteínas de origem animal com elevada carga de lipídios
saturados e ingerir açúcares simples, assim como calorias em excesso,
repercutem negativamente na saúde. A má nutrição característica dos
países industrializados, seja pelo consumo excessivo ou pela carência de
certos alimentos, está relacionada atualmente com o aumento das
enfermidades coronárias, cerebrovasculares e ósseas, anemias, neoplasias,
diabetes , cirrose hepática ou cáries e inclusive com outras que,
apresentando-se sob a forma de transtornos psicológicos e implicando a
desestruturação do comportamento nas refeições, ocasionam problemas
graves de saúde física e mental. É o caso da obesidade, da anorexia e da
bulimia nervosas.
Todas essas doenças constituem as denominadas patologias da
'sociedade da abundância' ou do 'bem-estar' que não deixam de ser,
entre si, certamente paradoxais. Como se pode compreender o aumento
de enfermidades tão extremas mas tão próximas como a obesidade ou a
anorexia nervosa? Se comer e, certamente, comer em excesso é bom para
o negócio da indústria alimentar, não parece que o seja tanto para a
saúde física ou mental das pessoas. Tudo tem validade; entretanto, em
uma sociedade na qual convivem milhões de produtos alimentícios com
milhares de mensagens para evitá-los, em uma sociedade que promove a
satisfação perpétua e ao mesmo tempo a magreza mais rigorosa. O sistema
29
O informe da FAO "EI estado de la inseguridad alimentaria en el mundo" de 2003
indica, porém, um incremento notório do número de pessoas que também padecem
de fome nas sociedades industrializadas e em transição, o qual já supera os quarenta
milhões.

292
proporciona o "mal" (a abundância e a promoção do consumo compulsivo)
e, paralelamente, "seu remédio" (a restrição ou o consumo de substâncias
e atividades emagrecedoras). Tamanha é a pressão exercida pelos discursos
dietéticos e pelo marketing do corpo, tamanho é seu papel na construção
da imagem social, que nas últimas décadas um número cada vez maior de
pessoas, especialmente entre as mulheres, vem manifestando insatisfação
com suas formas corporais e evita ou se abstém de determinados alimentos
como mecanismo de autocontrole.
É preciso destacar, pois, que a industrialização e a relativa
acessibilidade alimentar não supuseram tudo o que se poderia esperar
para a saúde. Ao que parece, não basta haver um mínimo de comida
garantida, mas é preciso cuidar daquilo que comemos, saber o que
comemos, como, quanto, quando e para que comemos. Os especialistas
em saúde desses países dizem que se trata de adequar, com base nos
requisitos nutricionais, a relação entre a quantidade de calorias ingeridas
e o tipo de nutrientes que elas proporcionam. De fato, uma das mensagens
culturalmente predominantes em nossa sociedade, difundida em primeiro
lugar pelos especialistas, é baseada na 'moderação', na 'variedade' e no
'equilíbrio dietético' como meios para se manter ou, inclusive, melhorar
o estado de saúde em nossa sociedade repleta de atividades sedentárias.
Nos últimos anos, um número considerável de pessoas teve que negar ou
se abster, dizer "não", diante da grande oferta alimentar com a finalidade
de evitar, ou de não aumentar, seus problemas de saúde, 30 de forma que
os principais culpados pelas doenças já citadas, as gorduras de origem
animal - o colesterol - e os açúcares - a sacarose - se converteram em
uma espécie de inimigos, em substâncias socialmente estigmatizadas.
Simultaneamente, não se pode esquecer outro motivo importante
da estigmatização das gorduras e dos açúcares. O abuso de certos
alimentos repercute na saúde, mas também no aspecto físico, nas formas
do corpo. Comer excessivamente ou de maneira desordenada pode ter
outra consequência: o sobrepeso e a obesidade. E esse estado físico,
'estar gordo', contradiz a segunda mensagem predominante em nossa
cultura: 'a magreza como beleza natural e ideal estético'. Fischler (1990)
afirma que na cultura urbana o fenômeno da lipofobia, a aversão às
gorduras, tem a ver com a transformação ocorrida nas normas relativas
30
Para exemplificar, a obesidade e os problemas de saúde dela derivados converteram-
se na segunda causa de mortalidade entre a população dos Estados Unidos. Esse
país conta com dez milhões de obesos, ou seja, pessoas cujo peso ultrapassa em 45
quilos o estimado como ótimo. Nesse ritmo, calcula-se que em meados do século
XXI 50% dessa população será obesa.

293
ao peso e com a paralela transformação nas representações do corpo.
O estereótipo do obeso,3 1 sobretudo o do "gordo glutão" que come
desenfreadamente, é considerado recusável, de maneira que esse tipo de
gordo, imagem de gordura, se converte em um ser criticável. Assim, o
"glutão" é um indivíduo percebido como egoísta, que transgride as normas
da divisão por comer mais do que todos. Esse modelo de conduta, e sua
consequência física, converte-se em nossa cultura no exemplo daquilo que
não se deve fazer nem ser: comer em excesso e ficar gordo. É também
assim que a magreza se converte em um valor moral. Mas o que acontece
quando o culto ao corpo supõe a negação dos alimentos e essa negação
acaba provocando estados de magreza extrema e problemas de saúde graves
e até mesmo a morte? A resposta nos remete a um modelo de conduta que
extrapola, novamente, os limites médica e socialmente admitidos. Assim,
ainda que com menos pressões, a magreza extrema também se converte em
estigma. Antes por excesso, agora por falta. Nosso ambiente cultural, ainda
que bem menos que a obesidade, limita também a magreza. Nem toda
magreza é aceita, principalmente se entra em contradição óbvia com a
primeira mensagem: a da saúde, do equilíbrio físico e mental.
Entretanto, nem tudo acaba aqui. Ter que se negar a uma boa
parte da oferta alimentar contrasta, também, com a terceira mensagem
predominante em nossa cultura: 'comer bem e por prazer'. Numerosos
produtos alimentícios que promovem satisfação física, psicológica e social
são hoje pouco recomendáveis para a saúde ou/e para a estética e, mesmo
assim, para várias pessoas - especialmente os jovens - o critério básico
para a seleção e para a preparação dos alimentos são suas preferências e
gostos pessoais: consomem apenas aquilo que satisfaça o seu paladar,
afague os seus sentidos e os identifique como tais.
Consequentemente, 'saúde, estética e hedonismo' são, segundo
essas três mensagens, os valores que impregnam ideologicamente uma
parte importante da cultura alimentar contemporânea. Se a preocupação
com o fato de estar gordo ou magro, ou seja, com as formas corporais e
sua relação com o estado de saúde, não é uma preocupação atual, mas se
reporta, especialmente entre as classes altas, a princípios do século XIX,
atualmente a preocupação se redefine e se faz mais complexa. Redefine-
se porque a magreza deixa de ser um objetivo exclusivamente médico e de
saúde para se relacionar com os modelos de moda e beleza e de aceitação
e reconhecimento social, com referências estéticas e de identidade para
tanto e, quando, para alcançar esses modelos, as pessoas devem renunciar,
31
Fischler (1990) estabelece uma diferença entre o gordo/guloso, aceito socialmente
como "simpático", e o gordo/glutão, rejeitado como egoísta.

294
com frequência, aos critérios de saúde que lhes deram origem. Se a isso
acrescentamos que, paralelamente, adquire valor cada vez maior a terceira
mensagem, ou seja, a de que a alimentação nos proporciona prazer e
satisfação, encontramo-nos diante de uma equação de difícil solução.
Diante da necessidade diária de comer e selecionar os alimentos, é possível
interiorizar e colocar em prática ao mesmo tempo as três mensagens sem
afetar a saúde física e/ou mental? Algumas das enfermidades associadas
ao comportamento alimentar (eating disorders) 32 que exemplificam bem
essa situação contraditória são a obesidade, a anorexia e bulimia
nervosas: 33 respondem a escolhas alimentares aparentemente
"inapropriadas" ou "anormais" (seja por falta , seja por excesso) que levam
a estados fisiológicos do corpo considerados, especialmente pela literatura
médica, como anormais e desviados. Vejamos agora algumas das relações
existentes entre as práticas alimentares que definem essas psicopatologias
e o contexto social no qual são produzidas.

A Obesidade: uma perspectiva sociocultural


O Problema
A julgar pelo alarde de manchetes da imprensa diária relativos ao
sobrepeso e pela profusão de informações sobre os riscos para a saúde
32
O termo eating disorders, aqui traduzido para o português como transtornos do
comportamento alimentar, revela uma primeira conceituação psicomédica desses
problemas em termos de condutas desordenadas, confusas e pouco normais.
Apesar das críticas de que é objeto, esse é o termo utilizado normalmente no
âmbito das disciplinas que se dedicam a seu estudo e abordagem. Neste capítulo
optamos por apresentar os transtornos do comportamento alimentar de forma a
mostrar o caráter cultural de certas práticas. Para uma discussão crítica em relação
a sua caracterização como psicopatologias modernas e à lógica cultural que subjaz a
tais práticas, ver Gracia (2003).
33
Contudo, hoje não é tão comum agrupar a anorexia e a bulimia mental, problemas
cuja origem é considerada principalmente psicológica, com a obesidade, classificada
ordinariamente como uma enfermidade de origem metabólica. Nesta parte citamos
a obesidade muito pontualmente por razões de especificidade e de espaço.
Consideramos, entretanto, que se trata de uma enfermidade também com claras
origens e consequências sociais (Garine & PoUock, 1995; Soba!, 1995; Poulain,
2002a) que a tornam suscetível de ser considerada em numerosos casos como um
' transtorno cultural', apesar de só muito recentemente os estudiosos terem
começado a vinculá-la de forma global aos demais problemas do comportamento
alimentar, ampliando assim a causalidade genética e/ou familiar da obesidade
(Apfeldorfer, 1995).

295
dele derivados, poderia se concluir que o sobrepeso constitui, hoje, um
grave problema de saúde. Vejamos algumas amostras de seus ecos em
alguns meios de comunicação:

Crianças pobres, obesas ... e agora doentes. 40 % dos adolescentes de


famílias pobres dos EUA apresenta sintomas de diabetes por má
alimentação (La Vanguardia , 8 jun. 2004)

Quase 20% dos madrilenos enfrentam problemas de obesidade (ABC, 29


abr. 2004)

França declara guerra à obesidade infantil e juvenil. Proibidas as máquinas


de venda de guloseimas nos colégios (El País , 31 jul. 2004)

Uma sociedade de peso. Mais da metade da população espanhola tem


sobrepeso. Um fenômeno generalizado nos países ocidentais (El País, 20
jun. 2004)

De fato , na Espanha, de acordo com a Encuesta Nacional de Salud


[Inquérito Nacional de Saúde] (2001), 13 % da população estariam
incluídos na categoria obesidade e, além disso, 36% dos espanhóis (44%
dos homens e 28% das mulheres) apresentam sobrepeso. E em termos
mundiais, fala-se da existência de 320 milhões de pessoas obesas.
Essas cifras relativas à obesidade e ao sobrepeso propiciam que,
frequentemente , se fale em "epidemia" e na necessidade de tomar
medidas urgentes para tratá-las e preveni-las. Em termos gerais, considera-
se sobrepeso e obesidade como consequência direta das modificações
ocorridas nos hábitos sociais em geral e nos alimentares em particular.
Tudo isso leva, como indicado já em vários capítulos anteriores, a que os
pesquisadores em nutrição dos países "ocidentais" destaquem mais uma
vez a importância da relação entre alimentação e saúde e a que proliferem
os "roteiros" e os padrões de "boa alimentação" e a que, recorrentemente,
se advirta a população da necessidade de manter uma "dieta prudente"
para manter a saúde. Assim, pois, constata-se que, com a abundância
própria dos países industrializados , os problemas de saúde se
transformaram, passando daqueles relacionados com a desnutrição, como
o raquitismo ou a anemia, àqueles relacionados com a superalimentação
e o sobrepeso. Por um lado, os profissionais da saúde falam em uma
piora de nossos hábitos dietéticos. Essa piora é determinada, entre outros
aspectos, pelo consumo excessivo de calorias e pelo sobrepeso
correspondente, que, como tal, é considerado um "fator de risco". Por

296
outro, o valor social atribuído à alimentação, à saúde e à beleza física
aumentou constantemente no decorrer da segunda metade do século
XX. Definitivamente, nossa sociedade ocidental parece muito preocupada
com as gorduras no corpo e com as calorias. A cultura de massa, produtora
desenfreada de imagens, nos faz admirar e invejar os corpos juvenis e
esbeltos. Os corpos reais parecem perder o fôlego, a maioria das vezes
em vão, perseguindo esses modelos sonhados ou impostos. As estatísticas
revelam: nos países mais industrializados, grande porcentagem da
população parece magra, se vê gorda e sofre, aparentemente, a
contradição. Por outro lado, a medicina vê na obesidade um problema
de saúde pública: trata-se de um fator de risco, que é necessário reduzir
para prevenir numerosas enfermidades, sobretudo cardiovasculares
(Fischler, 1995b).
Assim, por um lado, os médicos empreendem uma luta contra a
gordura destinada a prevenir patologias que atacam sobretudo os homens
e, por outro, as mulheres praticam freneticamente o regime. A situação
é, pois, contraditória. Por um lado, a medicina , durante décadas,
prescreveu à população que emagrecesse. Por outro, cada vez mais,
psiquiatras e nutricionistas condenam o culto excessivo da magreza
feminina, suscitada e mantida, segundo eles, pela cultura dé massa e
pela moda. Perseguem cada vez mais a defesa contra os efeitos nefastos
dos regimes. Alguns propõem, inclusive, regulamentar as representações
do corpo feminino nos meios de comunicação (Fischler, 1990).
Vemo-nos, pois, diante de uma questão médica ou, mais amplamente,
biológica, que parece ter suas raízes em um fenômeno complexo surgido
de novas circunstâncias cujos desencadeadores têm a ver com fatores sociais,
econômicos e culturais. De fato, visto que existem na espécie humana
mecanismos de regulação da alimentação muito sofisticados e precisos,
como explicar, então, que cada vez mais o homem coma mais do que o
necessário e, além disso, mais do que exigiria sua saúde?

A explicação que surge espontaneamente, a mais frequente, é que as pautas


culturais fizeram submergir a capacidade que o homem tinha de equilibrar
sua alimentação do modo mais benéfico para sua saúde e sua longevidade;
em outras palavras, a 'sabedoria do corpo' é enganada pela 'loucura da
cultura'. Contudo, o que a análise parece indicar é que não é a evolução
cultural em si que contribui para perturbar os mecanismos reguladores, mas
a crise da cultura que atravessam os países desenvolvidos, fundamentalmente
a desestruturação dos sistemas normativos e dos controles sociais que regiam,
tradicionalmente, as práticas e as representações alimentares ( ... ). Uma

297
crise multidimensional do sistema alimentar se perfila com seus aspectos
biológicos, ecológicos, psicológicos, sociológicos, e essa crise se inscreve
em uma crise de civilização. (Fischler, 1979: 190-191)

As questões básicas prévias parecem estar relacionadas com a


percepção que nossa sociedade atual tem da gordura e da magreza e
com sua respectiva relação com outros símbolos e outros valores. Da
mesma forma, seria pertinente abordar as diferenças de símbolos e valores
existentes entre diferentes classes sociais, grupos étnicos e religiosos,
grupos de idade e de gênero, assim como entre diferentes indivíduos.
Talvez se possa falar em um conflito de valores em relação à gordura e à
magreza, à comida e à atividade física, do mesmo modo como em muitos
outros aspectos de nossa vida e como consequência das rápidas
transformações que constantemente afetam a nossa sociedade. Como
antropólogos, estamos convencidos de que uma perspectiva comparativa
(por exemplo, conhecer o simbolismo da obesidade e da magreza ou as
diferentes funções e valorações da comida e do comer em outras culturas
ou em outras épocas) pode nos proporcionar alguma luz sobre as
contradições de nossa sociedade em geral e sobre o problema da obesidade
em particular. Além disso, não devemos nos esquecer de que

O grau de ê nfase sobre o prazer sensorial pode estar culturalmente


determinado, pode variar de um período histórico para outro na mesma
cultura, e de uma classe para outra e um grupo étnico para outro. E dentro de
cada grupo pode haver variações devido a fatores genéticos idiossincrásicos
na história de vida de indivíduos. (Powdermaker, 1997: 209)

Os Antecedentes: a biologia
Tradicionalmente, considerou-se que as anomalias alimentares têm
sua origem na quantidade ingerida: comemos pouco ou em excesso,
engordamos ou emagrecemos conforme a quantidade ingerida.
A realidade é um pouco mais complexa. O peso está longe de depender
exclusivamente das quantidades de alimentos ingeridas. Nele intervêm,
também, mecanismos hormonais e neuro-hormonais, fatores genéticos,
metabólicos e constitucionais.
Hoje, os fatores hereditários são reconhecidos como determinantes
no modo como cada pessoa reage a um ambiente de abundância. Estudos
recentes realizados nos EUA e na Dinamarca com crianças adotadas
tornam claro que, em um determinado ambiente, se forem comparados

298
o peso dos filhos quando se tornam adultos com aquele de seus pais
adotivos, não se observa correlação. Mas a correlação é forte com os pais
biológicos, mesmo que tenham sido separados poucas semanas depois
do nascimento. Definitivamente, a reação a uma quantidade constante
de alimentos ingeridos é variável segundo o patrimônio genético. Nos
~xperimentos de superalimentação, uma parte dos indivíduos armazena
totalmente o excedente, outra parte não armazena nada, e outra parte
armazena a metade e expulsa o resto: os resultados são inteiramente
genéticos.
Em uma sociedade cujo principal problema de nutrição é a
obesidade, esquece-se facilmente quão terrível pode ser para o organismo
humano a falta de comida e de bebida (Harris, 1991). Entretanto, a
obesidade é apenas uma forma de fome encoberta. O espectro do excesso
de peso persegue alguns, assim como a fome persegue a outros, porque
nossa necessidade e apetite de comida são o resultado de dois milhões
de anos, pelo menos, de seleção positiva da faculdade não somente de
comer, mas de comer em excesso. O estômago o atesta: quando está
vazio é uma bolsa pequena, mas aumenta rapidamente para dar espaço
para 3/4 de quilo ou 1 quilo de alimentos de uma vez. As grandes refeições,
com dez mil ou mais calorias, não originam problemas mecânicos ou
fisiológicos. Em todo o mundo, as festas e banquetes dão testemunho
do respaldo entusiasmado que a superalimentação recebe da nossa
espécie, inclusive por parte de pessoas bem alimentadas. Assim, o fato
de que muitas sociedades tenham sofrido fome está correlacionado com
o desenvolvimento do hábito de jejuar entre os membros adultos que
fazem da necessidade uma virtude. Um jejum de três dias pode ser um
modo de adiar ou deslocar o impulso da fome. Têm sido comum recorrer
a ajudas para suprimir a fome: mastigar folhas de coca em lugar de comida
(inibem a fome e o cansaço) ou consumir peiote (com efeitos similares),
noz de betel, tabaco, café, chá etc. (Fieldhouse, 1986).
Por outro lado, as pessoas sadias que passaram por uma perda de
peso considerável por falta de comida durante certo número de meses
são capazes de devorar quantidades assombrosas de comida. Quando os
voluntários de um célebre experimento sobre a fome , realizado por
Anselm Keys, voltaram a comer com liberdade, começaram a engolir dez
mil calorias diárias. Entretanto, independentemente da fome que se tenha
no princípio, as pessoas normalmente não continuam se abarrotando.
Sentimos um desejo quase irresistível de comer, mas dispomos também
de alguns controles internos que reduzem nosso apetite por comida e
limitam a acumulação de excedente de gordura. Em certo experimento,

299
alguns presos se dispuseram, como voluntários, a se abarrotar até aumentar
seu peso em 20%. Alcançado esse objetivo, foi-lhes permitido comer
quanto quisessem. Muitos deles começaram imediatamente a consumir
apenas algumas centenas de calorias diárias até que recuperassem seu
peso original (Harris, 1991).
Parece, segundo defende Harris, que nossos organismos estão
equipados com algum tipo de 'ali mentostato ' (ao estilo de um
termostato), o que seria provado pelo fato de que as pessoas, em média,
aumentam relativamente pouco de peso durante toda a vida. Entre os
18 e os 38 anos de idade, período em que ingerem vinte toneladas de
comida, os norte-americanos não engordam, em geral, mais do que quatro
ou oito quilos. Os especialistas em nutrição consideram que o fato de
que o ganho de peso se mantenha nessa pequena porcentagem dos
alimentos consumidos significa que o alimentostato funciona com uma
tolerância de menos de 1%. Por mais impressionante que isso possa
parecer, não cabe confiar no alimentostato humano para evitar que as
pessoas comam exageradamente. Aumentar de quatro a oito quilos até
os 38 anos de idade significa muitas vezes ser quatro ou oito quilos mais
gordo nessa idade. Essa mesma tolerância aparentemente baixa aos desvios
permitirá a muitos de nós engordar de oito a 16 quilos antes de chegarmos
aos 58 anos.
O verdadeiramente notável na incidência da obesidade da época
moderna é que ela persiste, apesar das modas e dos cânones estéticos
que menosprezam os gordos, apesar do grande esforço educativo
empreendido pelas autoridades da Saúde para relacionar a obesidade
com as doenças cardiovasculares e apesar das indústrias multimilionárias
dedicadas à saúde, à comida dietética e ao controle do peso:

Como a metade da população adulta das nações ocidentais segue uma ou


outra dieta, creio que se pode concluir que o alimentostato não funciona
bem nas circunstâncias atuais. A razão disso parece clara: durante a maior
parte do tempo desde que os hominídeos estão na terra, não foi o
alimentostato que os impediu de engordar, mas sim a falta de comida. E se
é verdade que para nossos antepassados era difícil obter comida suficiente
para engordar, então se explica por que nossa espécie engorda agora com
tanta facilidade. (Harris, 1991: 142)

A seleção natural nunca teve oportunidade de discriminar as pessoas que,


de tanto comer, ficavam obesas, prejudicando seus corações e suas artérias.

300
Durante muito tempo as vítimas da obesidade foram culpadas por sua
própria doença. A superalimentação não é um defeito da personalidade,
uma consequência do sexo ou uma compensação para a pobreza; na
verdade, constitui uma imperfeição hereditária no desenho do organismo
humano, uma debilidade que a seleção natural não conseguiu evitar.
(Harris, 1991: 149)

Os Antecedentes: a cultura e a história


Vistos os condicionamentos biológicos favoráveis ao açúcar e às
gorduras, sua atual e crescente impopularidade deve ser inserida em seu
contexto histórico (Flandrin & Montanari, 1996), pois, em outras épocas,
os alimentos eram mais, e não menos, desejáveis tanto por seu baixo
conteúdo de fibras como por seu alto teor de gorduras.
Diz-se frequentemente que nossos ancestrais comiam muito mais
gordura que nós e que a preferiam. Isso é o que se conclui não apenas
das lembranças vivas dos mais velhos entre nós, mas, também, das pesquisas
etnológicas sobre a cozinha do século XIX e de alguns dados históricos
relativos a épocas mais antigas. Hoje, quando os açougueiros limpam a
carne, eliminam as partes mais gordurosas, pois seus clientes já não as
querem mais. Nos séculos XVII e XVIII, pelo contrário, a gordura das
diversas carnes de abate custava em média duas vezes mais que a carne
magra. Assim, certas peças gordurosas como o peito do boi eram peças
de primeira, enquanto hoje são peças de segunda categoria.
Esses dados históricos não devem precipitar a conclusão de que as
pessoas de épocas passadas comiam mais gordura que nós; nem que
sempre, e em todas as classes sociais, preferia-se uma alimentação
gordurosa. Apesar da escassez de dados e de sua baixa confiabilidade,
pode-se dizer que os lipídios representavam menos de 15% da ração
calórica. No século XVIII, as porcentagens mais baixas (menos de 8%)
seriam as das categorias sociais mais modestas: camponeses, artesãos,
marinheiros etc. Em sua porção alimentar, os glicídeos proporcionariam
cerca de 80% das calorias. O mesmo teria ocorrido nos séculos XVI e
XVII. Na Itália e na Romênia, por exemplo, o milho representava até
90%, em peso, da ingesta total de alimentos, uma predominância muito
próxima da exclusividade. Os vegetais frescos ou em conserva participavam
de forma muito restrita na dieta dos camponeses europeus e
provavelmente significavam apenas 5%, em peso, do consumo de milho.
O consumo de carne, com frequência reservado a algumas festas, era
muito baixo e quase não tinha influência na nutrição. Os produtos lácteos,

301
com frequência reservados às crianças, eram escassos. Também era escasso
o consumo de gorduras, mais usadas como temperos que como alimentos
nutritivos. A predominância do milho na dieta se acentuava durante o
inverno, quando sua massa era temperada com quantidades muito
reduzidas de queijo ou gordura de porco para lhe dar sabor e era
acompanhada, muito raramente, por alguma verdura em salmoura.
Os homens recebiam alguns complementos durante as temporadas de
trabalho mais duro, mas as mulheres não (Warman, 1988).
O fator mais pertinente de diferenciação de consumo de gorduras
é geográfico. Uma geografia paradoxal, já que era nos países mais quentes,
Itália e Espanha, que a proporção de lipídios era mais elevada (entre 14 e
38%), enquanto que em um país frio como a Polônia, a proporção era de
apenas 4 a 13%. Em algumas regiões da Europa meridional, o consumo
de gordura podia ser, inclusive, muito elevado: três litros de azeite por
pessoa por mês, por exemplo, entre os trabalhadores do campo andaluz
no ano de 1924 (Argente dei Castillo, 1924). Na Polônia, os alimentos
gordurosos teriam proporcionado entre 4 e 8% da ração calórica dos
lares camponeses e entre 7 e 13% daquela das casas nobres, incluindo os
castelos reais.
As gorduras atingiam altos preços nos séculos XVII e XVIII,
certamente como consequência de sua escassez: por um lado, eram muito
menos produzidas que na atualidade; por outro, tinham muito mais usos.
A iluminação das casas, em particular, absorvia grandes quantidades de
azeite e de sebo. Também o poder nutritivo desses produtos escassos e
caros poderia explicar o apreço que lhes tinham os camponeses, em cuja
alimentação os glicídeos predominavam muito mais do que atualmente
(Flandrin , 1989).
Essa situação foi , historicamente, muito comum e persiste até a
hoje em muitos dos países subdesenvolvidos, nos quais a presença de
produtos de origem animal na dieta é tanto mais elevada quanto mais
alto é o nível de renda. Em proporção com a renda, as calorias procedentes
de gorduras animais substituem as procedentes de gorduras vegetais e
carboidratos, e as procedentes de proteínas animais substituem as de
origem vegetal. Na Jamaica, por exemplo, a farinha de trigo é a primeira
fonte de proteínas para os 25 % mais pobres da população; o frango e a
carne de boi encontram-se, respectivamente, em 10º e 13º lugares. Para
os 25 % mais ricos, em compensação, as carnes de boi e de frango ocupam
o 1º e o 2º lugares, respectivamente, e a farinha de trigo o 7º. Essa
relação é válida para todo o mundo. As elites de Madagascar consomem
12 vezes mais proteínas animais que as pessoas situadas na base da

302
hierarquia social. Inclusive nos Estados Unidos, aqueles que ocupam o
cume da pirâmide comem 25 % mais carne do que os que se encontram
na base. Na Índia, "os grupos de renda mais alta consomem sete vezes
mais proteínas animais que os de renda mais baixa" (Harris, 1985a).

As Representações Sociais do Corpo:


as transfarmações e suas razões
Uma análise antropológica, social e histórica dos modelos corporais
mostraria que sempre existiu uma profunda ambivalência nas
representações da gordura e da magreza (Fischler, 1979). E mostraria,
também, que tais representações influenciaram , de uma forma ou de
outra, os comportamentos alimentares.
Na maioria das sociedades tribais, a economia foi de subsistência -
seja de caça, colheita, pesca, agricultura, pecuária ou uma combinação de
várias dessas atividades. A maior parte de sua atividade produtiva estava
relacionada com a produção de alimentos. Uma atividade física mais ou
menos vigorosa era a norma para homens e mulheres em qualquer tipo de
economia. Mas, ainda que todos trabalhassem mais ou menos duro na
produção de alimentos, a fome era um a experiência relativamente comum,
pois os períodos de escassez ou mesmo de fome não eram pouco usuais.
Mudanças de estações, pragas, pestes e outras causas naturais provocavam
períodos alternados de relativa abundância e escassez. Assim, pode-se
entender que a gula, um dos pecados capitais de nossa sociedade, fosse
uma prática social aceita e até mesmo valorizada entre essas sociedades
tribais. Prevendo um a festa, um trobiandês dizia: "Estaremos felizes e
comeremos até vomitar". Uma expressão de uma tribo sul-africana diz:
"Comeremos até que nossos ventres explodam e não possamos nos manter
de pé" (Powdermaker, 1997: 204). Também, em castelhano, se diz: "Como
o pobre, estourar antes que sobre". Ou, em catalão: "Més vai que faci mal
que no que quedi" (Melhor fazer mal do que sobrar).
Dada a escassez de alimento e o temor, ainda hoje, da fome em
muitas sociedades tribais, o significado social da comida e o impacto
duradouro da primeira satisfação sensorial das crianças, não surpreende
que a forma robusta ou certo grau de obesidade sejam contemplados
frequentemente de modo favorável. Isso é particularmente válido para a
atratividade feminina. Entre os Banyankole, um povo pastor do leste da
África, quando uma garota começa a se preparar para o casamento, aos
8 anos, não pode mais brincar nem correr, mas deve permanecer em casa

303
e beber grandes quantidades de leite diariamente até engordar de tal modo
que, ao fim de um ano, mal consiga andar, e apenas desajeitadamente.
Quanto mais gorda, mais bonita; e sua condição contrasta com a do
homem, atlético e bem-conformado. As mulheres da corte, a mãe do rei
e suas esposas, são as mais gordas. Não fazem nenhum exercício e têm
que ser transportadas em liteiras quando vão de um lugar a outro
(Powdermaker, 1997).
Resumindo, para muitas das sociedades tribais, a fome foi uma
experiência comum, e boa parte da energia masculina e feminina é
empregada em produzir comida suficiente para se manterem vivos. Como
vimos no primeiro e no segundo capítulos deste livro, a comida não é
apenas uma necessidade biológica, mas suas funções sociais e psicológicas
são muito significativas. Os presentes de comida são uma parte importante
das relações sociais: entre parentes, entre clãs, com os antepassados e
com os deuses. A comida desempenha papel importante no ritual, na
magia, na bruxaria e na hospitalidade. O acúmulo de comida é um sinal
de prestígio e a obesidade, um sinal de beleza e de atratividade nas
mulheres (Powdermaker, 1997).
Pode-se supor que a sedução da gordura era tanto mais forte
quanto mais a magreza significasse fome, doença e pobreza. Essa
sublimação da obesidade é c_aracterística de todas as sociedades
subalimentadas nas quais a alimentação constitui a preocupação essencial
para todo mundo . As prescrições dietéticas das épocas passadas
contrastam fortemente com a dietética atual. Segundo (Skrabanek, 1994:
174), quando Ambrosio Paré (1510-1590) prescrevia um estimulante a
um paciente, sugeria-lhe um regime alimentar composto por

alimentos abundantes e suculentos, tais como ovos cozidos, uvas de


Damasco banhadas em vinho e açúcar, sopa de pão feita de guisado cozido
em uma caldeira grande, com o peito de um frango, asas de perdiz e outras
substâncias fáceis de digerir, como bezerro, cabrito, pombos, perdigões,
tordos e outros pratos parecidos. O molho será de laranja, azedinha e
maçãs amargas; o doente deverá comer, também, boi fervido com ervas
excelentes como azedinha, alface, chicória, beldroega e outras; seu pão,
finalmente, será feito de farinha de trigo e não será duro nem muito macio.

Hoje, em contrapartida, em nossa sociedade da abundância, a


repulsão que a obesidade desperta é tanto mais forte quanto a má nutrição
e a pobreza significam excesso de gordura (Nahoum, 1979). Nossos
cânones de beleza, particularmente os da mulher, sofreram importantes

304
transformações em relação àqueles das sociedades tribais e a épocas
anteriores de nossa própria sociedade. A magreza, a aparência juvenil, é
hoje desejada pelas mulheres de todas as idades. Hoje, o termo "matrona'',
com sua conotação de gordura, não é nada lisonjeiro. Ainda que o corpo
feminino tenha, comparativamente, maior predisposição à gordura e o
masculino ao músculo, o corpo robusto ou gordo na mulher não é
considerado belo nem sexualmente atrativo. O papel da esposa moderna,
sexualmente ativa, contrasta fortemente com o da mulher puritana do
século XIX, mais preocupada com a maternidade que com sua atratividade
sexual. Por essas e outras razões, o atual culto à juventude é muito forte
entre homens e mulheres, ainda que pareça ponto pacífico que a atração
física é mais importante para as mulheres do que para os homens
(Powdermaker, 1997).
No decorrer dos últimos quarenta anos consolidou-se uma série
de transformações relativas ao ideal do corpo, tanto masculino como
feminino, de maneira que, hoje, o desejo de saúde, longevidade, juventude
e atratividade sexual são uma poderosa motivação contra a obesidade.
Tudo isso se concretiza na preferência, falando de modo simplificado,
pela 'magreza', e não pela 'robustez'. A preocupação com a saúde se faz
acompanhar da preocupação com a "silhueta", ou seja, com a beleza:

... em ambas as bordas do Atlântico, o 'corpo de Narciso' se encontra em


vias de melhora. 'Teu aspecto exterior me dirá quem és'. No terreno do
'corpo triunfante', a iniciativa corresponde à Am érica. As estatísticas
(supondo-se-as confiáveis) nos informam sobre o esforço empreendido e
os resultados alcançados: entre 1960 e 1980, o número de americanos que
praticam algum esporte passou de 50 para 100 milhões (Bodi-Genfrot &
Orfali, 1989: 557)

As ideias sobre o corpo e a saúde têm influência muito direta e


muito importante sobre a cultura alimentar e os comportamentos
alimentares considerados adequados em cada caso. Como diz Bourdieu
(1988: 188),

O gosto em matéria de alimentos depende também da ideia que cada


classe faz do corpo e dos efeitos da alimentação sobre ele; ou seja, sobre
sua força, sua saúde, sua beleza, e das categorias que emprega para avaliar
esses efeitos, podendo ser escolhidos alguns deles por uma classe e ignorados
por outra, e podendo as difere ntes classes estabelecer determinadas
hierarquias muito distintas entre os diferentes efeitos: assim como as classes

305
populares, mais atentas à força do corpo (masculino) que à sua forma,
tendem a buscar produtos ao mesmo tempo baratos e nutritivos, os membros
das profissões liberais preferem produtos saborosos, bons para a saúde,
leves e que não engordem . Cultura convertida em natureza, isto é,
incorporada, classe tornada corpo, o gosto contribui para fazer o corpo da
classe.

Por outro lado, a idealização do corpo - jovem, belo e saudável -


provocou uma transferência de valores da qual o corpo médico se
beneficiou, em detrimento do clero. O Bem, os ideais da perfeição, de
pureza, que antes correspondiam a va lores transcendentais, agora
correspondem a uma "boa saúde" corporalmente idealizada. O Mal, os
pecados, tais como o abandono ou os apetites do corpo, a gula, a luxúria,
a preguiça ... já não são castigados com o inferno depois da morte, mas
conduzem a infernos muito mais imediatos: a enfermidade, a morte, a
obesidade, manifestações de envelhecimento ... Todos eles sinais patentes
de pecados contra a higiene corporal e alimentar (Apfeldorfer, 1994).
O valor moral atribuído à magreza e ao regime se justifica geralmente
em nome da saúde. Muitas explicações têm sido dadas para a profunda
importância de um físico magro. A maioria delas enfatiza a estética física
e traços de personalidade associados ao físico . A magreza não apenas é
apresentada como atrativa, mas também se associa com o sucesso, o poder
e outros atributos altamente valorizados. Por outro lado, a gordura é
considerada física e moralmente insana, obscena, própria de preguiçosos,
de glutões. As avaliações positivas e negativas do físico se projetam, por
inferência, nos padrões típicos de conduta correlacionados com atributos
morais: autocontrole e autoindulgência, respectivamente. Mesmo assim,
isso não deixa de ser secundário na explicação do ideal de magreza próprio
dos últimos cem anos, quando a maioria da população das sociedades
industriais teve meios e oportunidade de engordar. Só então as classes
altas escolheram distinguir-se das classes trabalhadoras adotando um ideal
de magreza que, em seguida, seria imitado pelas classes médias e baixas
(Mennel, Murcott & Van Otterloo, 1992).
O que aconteceu para que de uma valoração positiva das gorduras
e dos alimentos energéticos em geral se tenha passado à sua rejeição e à
sua eliminação em produtos nos quais constituía um de seus componentes
essenciais? A própria publicidade dos produtos nos oferece as chaves
para entendê-lo. Os produtos " leves" são um dos muitos exemplos.
"Gorduras" e "calorias" constituem uma espécie de inimigos públicos.
São inimigos de nossa "saúde" e de nossa "silh ueta". Para a prevenção

306
de doenças cardiovasculares, a redução do conteúdo em colesterol dos
alimentos é uma preocupação que surgiu recentemente e se converteu
em obsessão. Assim, os produtos sem colesterol representam hoje mais
uma nova geração dos produtos-saúde.
Tradicionalmente, até as décadas de 50 e 60 do último século,
para as classes trabalhadoras uma boa alimentação era, antes de tudo,
uma alimentação "nutritiva'', ou seja, saudável, mas sobretudo abundante
e saciante. Hoje, entretanto, a maioria da população acha que "comemos
demais". A preocupação quantitativa, o "temor de não conseguir
comida", retrocedeu. Hoje , a preocupação dominante é de caráter
qualitativo. Em nossos dias, diz Fischler (1995a, 1995b ), a questão crucial
é cada vez mais 'saber o que comer' e 'em que proporção'. A preocupação
com a quantitativa não está ausente, mas, quando se coloca, é abordada
mais em termos de restrição (tomem-se como exemplo os chamados
"snacks dietéticos"). As pesquisas mostram, de fato, que a cada instante,
entre um quarto e um quinto da população segue algum tipo de regime.
As sociedades da abundância estão preocupadas com a necessidade de
regular sua alimentação. O império do regime é imenso: invade os mass
media e a edição, o marketing e a publicidade, a medicina e as medicinas
"paralelas", "suaves" ou "alternativas".
Além disso, a sedentarização da força de trabalho sig11ificou a
redução dos gastos energéticos dos indivíduos e a menor atração pelas
carnes e gorduras de efeitos saciadores. A superalimentação e a tomada
de consciência sobre os excessos alimentares estão na origem das
mudanças de preferências observadas nos anos 1980 nos países mais
industrializados e, mais particularmente, nos fragmentos de população
mais acomodada. Assiste-se, assim, ao início de uma inversão de tendência
dos jogos de substituições entre os alimentos: agora, a atração dos
produtos de origem vegetal é maior e essa atração se vê reforçada pelos
discursos dos nutricionistas. É curioso que tais discursos pareçam
corresponder às preferências e aos comportamentos das classes mais
abastadas. As carnes (particularmente as vermelhas) são frequentemente
associadas às gorduras e, por essa mesma razão, rej eitadas em resposta à
aspiração "diestética" que se desenvolve, sobretudo, entre as mulheres
de meia-idade (Lambert, 1997a).
Por outro lado, comer gorduras deixou de ser um privilégio. Com
o aumento dos salários e a diminuição dos preços, a carne e os produtos
de açougue converteram-se, nas últimas décadas, em um luxo muito
acessível. Seu consumo cresceu incessantemente desde fins do século
XIX até os anos 60 do século XX, em detrimento dos legumes, batatas,

307
pão e massas. Nos anos 80, entretanto, observa-se uma inversão da
tendência: o destaque vai para a alimentação leve e o consumo de carne
é severamente criticado. Foram, sobretudo, os quadros superiores que
reduziram o consumo (particularmente de boi e bezerro, ao passo
que aumenta o de embutidos e aves). Os agricultores permanecem mais
tradicionalistas. Somente a partir dos 80 começam a ter gostos
mais sofisticados (legumes e pratos congelados, águas minerais, margarina
e iogurte). As outras categorias sociais têm comportamentos intermediários
entre esses dois extremos.'Entretanto, deve-se notar que, sejam quais forem
as modificações nos consumos, a porção proteica permanece marcadamente
fixa, em torno de 15 % da porção total. Altas e baixas no consumo de
produtos cárneos são compensadas com variações em sentido inverso de
cereais e produtos vegetais (Apfeldorfer, 1994).
Além disso, grande proporção das pessoas entrevistadas nas
diferentes pesquisas feitas em diferentes países industrializados declara
"evitar ou limitar o máximo possível" os pratos com molho, as gorduras,
o vinho e o açúcar. Por sua vez, a resposta gastronômica aos novos valores
dietéticos e estéticos, sintetizada pelos críticos gastronômicos franceses
Henri Gault e Christian Millau, em 1972, na expressão "nova cozinha",
preconiza menor presença das gorduras, o abandono dos molhos pesados
e a recuperação de verduras, legumes e saladas. Assim, nos anos 1980, a
cozinha tornou-se mais leve, sem gordura, frugal, "japonizada"; coloca
cada vez mais o peixe, os legumes e a cocção a vapor em primeiro plano,
à frente dos molhos e das carnes.
Por sua vez, a indústria segue a nova cozinha e a medicina com os
pratos " leves" e os produtos "de baixas calorias'', que integram no
alimento o benefício do regime. Nos últimos anos, a indústria alimentícia
colocou em circulação uma série de "novos produtos" cujas especiais e
inovadoras características consistem, fundamentalmente, em alterar sua
composição eliminando algum de seus componentes mais característicos
- por exemplo, a "gordura" - ou eliminando a carne por completo, mas
mantendo, isso sim, o nome do produto, o aspecto, a cor e alguma
referência a seu sabor e a sua textura.

A SAÚDE PELA ALIMENTAÇÃO. Alimentos alternativos 'NATURAlS', elaborados


com vegetais, cereais e legumes, fonte de proteínas, vitaminas, minerais e
oligoelementos. De alto valor biológico, podendo substituir a carne animal.
Destaca-se sua contribuição em gorduras vegetais ricas em ácidos graxos
poli-insaturados muito indicados em problemas de circulação, colesterol
e obesidade. Este produto satisfaz dois aspectos fundamentais da

308
alimentação: 1) Estar bem nutrido para uma melhor saúde. 2) Desfrutar
sabores variados e agradáveis. 1ª MARCA ESPANHOLA DE EMBUTIDOS VEGETAIS.
EMBUTIDOS 100% VEGETAL. TODOS os NOSSOS PRODUTOS (hambúrguer,
salsichas, massas, chouriço, chopensa no, morcisan, sobrasana) SÃO
VENDIDOS EM LOJAS DE PRODUTOS DIETÉTICOS E HERBORJSTAS. (grifos nossos)

A preocupação com a saúde pode dar ensejo, também, a outro


tipo de modificação nos produtos cárneos por parte da indústria: podem-
se reduzir alguns de seus componentes (gordura e colesterol, por
exemplo), a quantidade de um dos elementos utilizados para lhes dar
sabor e conservação (o sal) e, inclusive, acrescentar-lhe outro não apenas
distante do produto, mas também associado a um produto completamente
diferente, para não dizer "oposto", o 'bífido ativo', associado ao iogurte:

O chouriço Saníssimo é feito somente com carnes magras de porco


selecionadas, sal e pimentão. Em sua elaboração, tudo o que contribui
para melhorar a sua saúde é importante. Por exemplo, você achava que
os bífidos eram somente coisa de iogurtes? Pois o chouriço Saníssimo tem
bífidos ativos que melhoram sua flora intestinal. Você terá uma dieta mais
equilibrada e se sentirá melhor. Se você procura alimentos com menos
gordura, sal e colesterol, ou simplesmente quer ter um estilo de vida
saudável sem renunciar ao melhor sabor, já pode provar todos os produtos
da marca Saníssimo: chouriço, salsichas, empanada de pato, presunto
cozido e peito. O prazer é Saníssimo. Campofrío Saníssimo. O prazer de
comer saudável.

Assim, pois, a "revolução industrial" aplicada à indústria alimentícia


permitiu , nas últimas décadas , incrementar consideravelmente a
disponibilidade de todo tipo de alimentos a ponto de, nos países mais
industrializados, termos passado da escassez à superabundância.
Definitivamente, nossa sociedade contemporânea se caracteriza, em
comparação com a escassez das sociedades tradicionais, por uma economia
da abundância. Comemos exageradamente. Temos muito de todas as
coisas. Somos tratados como "consumidores". Constantemente somos
chamados a comprar mais e mais coisas, e coisas novas: alimentos, carros,
eletrodomésticos, vestidos etc. Constantemente nos é dito que a
prosperidade deve ser mantida aumentando-se frequentemente o
consumo. Tudo isso supõe um forte contraste com um passado não muito
distante, quando a economia e a frugalidade constituíam duas virtudes
apreciadas e a ênfase estava mais na produção do que no consumo
(Powdermaker, 1997). ·

309
Contudo, pode-se pensar que o apetite atual do Ocidente
industrializado, ainda que superalimentado, não está satisfeito. A superali-
mentação contemporânea se reveste de aspectos inéditos, pois não se
deve a "orgias alimentares" parecidas com as dos caçadores depois de
uma boa campanha nem às festas dionisíacas próprias das grandes ocasiões
da maioria das sociedades agrícolas durante as quais são absorvidas
quantidades extraordinárias de carne, gordura e álcool. Ao contrário,
em nossa sociedade contemporânea, parece que esse tipo de excessos
festivos está em vias de desaparição. Hoje quase não são celebrados os
banquetes nos quais se consumem de uma só vez milhàres de calorias ...
Mas, todo mundo, ou quase, desde a infância, "belisca", continuamente,
guloseimas diversas, e o percurso até a geladeira é uma constante viagem
de ida e volta. A fome já não nos ameaça, ela nos "faz cócegas". Já não
se vive na época da "grande bouffe", mas sim naquela da "grande
mordiscada" (Fischler, 1979).
Mennell (1985) indicou o contexto de um amplo e duradouro
processo social de transformações no controle do apetite em um sentido
quantitativo. A quantidade de alimentos que os humanos podem ingerir
não é apenas determinada por fatores biológicos, mas também fortemente
influenciada por pressões culturais, sociais e psicológicas. Além disso,
uma situação de aumento da capacidade aquisitiva, com maior ostentação
hospitaleira e festiva, pode incitar ao maior consumo e a uma demanda
crescente por alimentos socialmente prestigiados. E, assim, as pressões
culturais, de caráter cerimonial e social, sobretudo em lugar de dar o
"sinal " de parar, podem, pelo contrário, dar o sinal inverso (Douglas,
1979). Da mesma forma, em um contexto de abundância, quando a "dona
de casa" compra a comida ela está mais preocupada com o que sua família
comerá do que com o "melhor" para eles do ponto de vista nutricional
(Thomas, 1981). Por sua vez, a pessoa come para satisfazer-se a si mesma
(aspira a um modo de vida determinado, a expressar sua personalidade,
agradar a seus convidados etc.), e não aos nutricionistas. Consequentemente,
dizia Burnett (1979), não cabe esperar muita racionalidade dietética das
escolhas alimentares dos consumidores.
Biologicamente, a evolução não preparou nossos organismos para
a abundância. Pelo contrário, forjou mecanismos de regulação biológica
"previsores'', econômicos, capazes de preparar e administrar reservas
mobilizáveis na escassez. Por essa razão, o moderno ideal da magreza se
torna biologicamente difícil de conseguir. Além disso, por uma série de
razões, a relação moderna com a al imentação torna essa teoria ainda
mais difícil. De fato , não somente as condutas individuais estão menos

310
emolduradas socialmente, mas também reina uma cacofonia dietética,
uma proliferação de discursos, muitas vezes contraditória, sobre nutrição,
prescrições, avisos, advertências, solicitações atraentes e sectarismos
diversos (Fischler, 1995a, 1995b ). Além disso, as constantes tentativas de
modificar os comportamentos dietéticos baseados na presunção de que
a dieta afeta todos os indivíduos da mesma maneira e contribui para
melhorar a eficácia na prevenção das doenças pode, pelo contrário,
diminuir a confiança dos indivíduos na ciência da nutrição (Harper, 1988).
Por outro lado, com o surgimento das empresas transnacionais
dedicadas à produção e venda de comestíveis no mercado mundial; nossos
hábitos dietéticos se veem pressionados por uma forma de cálculo de
custos e benefícios cada vez mais precisa, mas também mais parcial. Em
um grau cada vez maior, o que é bom para comer é o que é bom para
vender. Além disso, a opulência teve suas próprias e imprevistas limitações
em forma de costumes alimentares cujos perigos derivam não da escassez,
mas da abundância de alimentos . Hoje, nos demos conta de que os
mecanismos que 'acendem' o apetite humano são muito mais sensíveis
do que os que o 'apagam'. Essa falha genética é um convite permanente
à indústria alimentar para que superalimente seus clientes. É certo,
entretanto, que o custo em termos de obesidade e transtornos
cardiovasculares está levando, como destacamos a princípio, a uma aversão
cada vez maior aos alimentos de origem animal com alto conteúdo de
gorduras e colesterol e aos doces e ao açúcar (lipofobia e sacarofobia).
É nesse contexto social, aparentemente tão díspar e contraditório
em relação às práticas alimentares, que se encontram os diversos
transtornos do comportamento alimentar, entre eles a anorexia e a bulimia
nervosa.

Os Transtornos do Comportamento Alimentar


(TCAs): a perspectiva da cultura
Pensar que a única explicação de uma enfermidade é que tem um
grande número de causas é precisamente o que caracteriza as
enfermidades cujas causas não se compreendem. E são essas
enfermidades, de causas supostamente múltiplas (ou seja,
enfermidades misteriosas) as que mais possibilidades oferecem
como metáforas do que se considera moral ou socialmente ruim.
Susan Sontag, A Doença como Metáfora, 1978

311
A Cultura na Concepção Multicausal dos TCAs
O estudo dos denominados transtornos do comportamento
alimentar preencheu, e continua preenchendo, milhares de páginas de
revistas e livros acadêmicos, mas, apesar de toda a literatura científica
escrita sobre sua causalidade, são males que, todavia, parafraseando Susan
Sontag, não são bem compreendidos. Talvez uma parte dessa
incompreensão proceda da própria construção do conceito de eating
disorders - um termo traduzido para o espanhol como transtornos da
conduta alimentar (TCAs) - e que revela a exclusiva conceituação clínica
de comportamentos que, por sua distância mais ou menos extrema dos
padrões alimentares aceitáveis, se identificam como desordenados, pouco
normais e, em boa medida, patológicos. O objetivo principal que guiou
nossos estudos até esta data 34 foi o de dirigir outro olhar para os denominados
'transtornos do comportamento alimentar' e evidenciar aspectos que não
foram percebidos por outros olhares. Optamos por utilizar a etiqueta
TCA por razões de pragmatismo de leitura, ainda que também para
destacar a presença de categorias e critérios diagnósticos com efeitos
concretos na atual valoração social dessas enfermidades. Isso não significa
que assumamos sem críticas as nosologias psiquiátricas, independentemente
do contexto histórico-cultural em que são produzidas, mas exatamente o
contrário.
As metáforas construídas em torno de certos comportamentos
alimentares e cuidados corporais fazem referência, precisamente, ao que
hoje se considera social ou moralmente ruim: o corpo como prisão, a
vida como um menu , o jejum como autopunição, a gordura como
epidemia ... A modernidade, como se encarregaram de demonstrar Castel,
(1981) e Castel, Castel e Lovell (1980), tende a ampliar cada vez mais o
espectro de condutas que é funcional considerar como patologias. Por
isso, como já indicara há um quarto de século Susan Sontag, qualquer
forma de desvio social pode ser considerada como patológica e qualquer
patologia pode ser enfocada psicologicamente, inclusive as que têm uma
clara causa orgânica. Ambas as afirmações são complementares. Enquanto
que a primeira parecia aliviar o sentimento de culpa, a segunda o reafirma.
As teorias psicológicas da enfermidade são maneiras muito poderosas de
culpar o paciente - a vítima -, explicam-lhes que ele ou ela são os
causadores de sua própria enfermidade, e se afirma que é merecida porque
34
Os estudos de base etnográfica que fundamentam esta parte da obra fora m
realizados na Catalunha por membros do Grupo de Investigações Antropológicas
(GIA) , U niversitat Rovira i Yirgili , e pelo Observatorio de la Alimentación/
Universitat de Barcelona, no período compreendido e ntre 2000 e 2006.

312
"procurou-se por ela". Às vezes, para não sobrecarregá-lo com mais
angústias, recorre-se à ideia de que a culpa é de "todos" e de "ninguém"
ao mesmo tempo.
Nos males relacionados com a alimentação é muito comum ver
como nas instituições de saúde, ainda aludindo ao ambiente social, se
tende a responsabilizar os sujeitos por seu próprio estado de saúde: comer
muito ou pouco é uma escolha pessoal, fazê-lo ordenada ou
desordenadamente depende de cada um de nós e se, supostamente por
isso, ficamos doentes, a responsabilidade é nossa. No capitalismo pós-
fordiano , não faltam as vozes que nos fazem sentir culpados por nossa
debilidade, nossa falta de resistência às tentações que o próprio sistema
se encarrega de construir, regular e transformar o suficientemente rápido
para impedir resistências ou críticas efetivas. O paradoxo é que, uma vez
criado o mercado, seus "efeitos colaterais" nunca são apresentados como
tais, mas como produto da debilidade e da falta de reflexão dos
consumidores sobre os quais se diz que não estão em condições de assumir
essa análise crítica, tampouco de responder a ela.
Na construção clínico-médica dos TCAs, as afirmações de Sontag
são validadas em todos os casos. Ainda que se reconheça unanimemente
- mas apenas como retórica - que a cultura também tem culpa, esta se
evapora para se fixar, insistentemente, nas trajetórias pessoais (sobretudo
nos atos cometidos pelas pessoas) e em sua responsabilidade pela
enfermidade: afinãl, se apesar de as mulheres serem as principais afetadas,
nem todas padecem de transtornos alimentares, por alguma razão há de
ser. .. Transferir para a sociedade em abstrato a responsabilidade por algo
que constitui, provavelmente, um processo que deriva, por um lado, da
desigualdade social entre os gêneros e, por outro, da exibição da indústria
alimentícia, farmacêutica, cosmética e têxtil assim como da movimentação,
nos países industrializados, das estratégias a longo prazo do próprio
capitalismo, não deixa de ser um argumento ilusório. A "sociedade" é
um emaranhado complexo de relações sociais em que nem todas as pessoas
participam do mesmo modo no acesso, distribuição e consumo de recursos
e bens, nem todas têm a mesma capacidade de modificar regras e estruturas
de gênero e nem todas podem estabelecer normas e regulações coletivas.
Tirar o foco - retoricamente - , da sociedade supõe eximir o Estado
da responsabilidade de assumir os efeitos ocultos no sistema. Se nas
primeiras décadas do século XIX os efeitos colaterais do capitalismo
estavam relacionados com a insalubridade , as enfermidades
infectocontagiosas, as doenças do trabalho ou os acidentes de trabalho,
o capitalismo pós-fordista tem como efeitos colaterais mal-estares

313
associados ao consumo recorrente de bens e serviços em constante
evolução e transformação. Em contraposição, o sistema permite acionar
dispositivos assistenciais, preventivos e terapêuticos cujo objetivo é,
principalmente, discernir os fatores de "risco", atender os "grupos de
risco" e individualizar, homogeneizar e isolar as causas de quem padece
da enfermidade ou dela "poderia" padecer. Desse modo surge na
economia um setor de serviços pessoais algumas vezes inserido no mercado
puramente privado, ou outras, como nos países em que vigora o Estado
do bem-estar, nas mãos reguladoras deste. Nesses contextos, os discursos
de psiquiatras, psicólogos e profissionais "psi " em geral devem ser
formulados de modo aparentemente neutro ou impermeável aos
julgamentos morais e aos valores culturais (Martinez-Hernáez, 2000), com
o qual não apenas despojam as transformações econômico-políticas de
qualquer efeito causal, mas frequentemente ignoram as transformações
na produção de representações de gênero. Por exemplo, na anorexia
nervosa, um mal considerado feminino por sua alta prevalência em
mulheres, o perfil das afetadas que se construiu ao longo do tempo variou
muito: as mulheres por ela acometidas foram definidas como "bruxas",
"trapaceiras", "puritanas" ou, mais recentemente, "adolescentes" de
todas as classes sociais, de todas as ideologias e, cada vez mais, de diversos
grupos étnicos, como se, agora, perder o apetite ou deixar de comer
fosse um mal próprio da idade.
Em nosso entender, aquilo que torna mais "incompreensíveis" os
TCAs e, consequentemente, os converte em um objeto de difícil
abordagem e solução, está circunscrito a três questões principais. Em
primeiro lugar, à rigidez e à relativa distância com que têm sido
catalogados seus sinais e sintomas e definidos os critérios para diagnosticá-
los; em segundo lugar, à peculiar aceitação de seu caráter multicausal e,
finalmente, ao deslocamento dos fatores culturais a um segundo termo
na discussão sobre sua etiologia. A anorexia nervosa, primeiro, e a bulimia
nervosa mais tarde, surgem como doenças mentais quando a medicina e
a psiquiatria se esforçam para definir clinicamente os sintomas de "deixar
de comer", "perder o apetite", "comer em excesso" ou "ter um apetite
desmesurado" e para criar, com base em concepções prévias relacionadas
a gênero e a cuidados corporais, novas categorias nosológicas. Por outro
lado, enquanto que se admite a multicausalidade dos seus sintomas, são
observadas incertezas e dúvidas sobre sua verdadeira etiologia. De fato,
os especialistas aceitam um relativo "não saber" e, consequentemente, a
multiplicidade de propostas de intervenção, díspares e frequentemente
contraditórias, que levam pacientes e seus familiares a iniciarem uma

314
longa e sinuosa trajetória pela rede de saúde pública e/ou privada,
a qual se sabe quando começa, mas não quando nem onde acaba. E a
circunstância de que, por serem consideradas doenças multifatoriais, seus
fatores não sejam todos abordados do mesmo modo nem com a mesma
intensidade as torna incompreensíveis, parcialmente abordáveis e pouco
solucionáveis.
E mais, se até agora a maioria dos manuais consultados apoiava
como intervenção uma tríade 'biopsicossocial ', segundo as recentes
posturas adotadas pela psiquiatria hegemônica em reuniões científicas e
congressos internacionais, o social e o cultural - e também o econômico-
político - parecem estar se apagando na pesquisa sobre TCAs, em favor
do biológico e do psicológico. O objetivo é oferecer diagnósticos baseados
nas manifestações clínicas. A pesquisa, segundo esse modelo, deve se
destinar ao melhor conhecimento das causas biogenéticas dos traços de
personalidade que predispõem os sujeitos a adoecer e/ou ao
aperfeiçoamento dos métodos de detenção, medição ou avaliação
biopsicológica. Com isso, prioriza-se a bateria de testes e questionários
psicométricos e antropométricos capazes de quantificar o tipo, o grau e
a intensidade do quadro clínico: distorção da imagem, insatisfação
corporal, obsessão pelo peso, medo de engordar, ansiedade diante da
comida, índice de massa corporal (IMC) etc. Porque efetivamente, e apesar
das críticas realizadas desde a antropologia, a considerar a lipofobia - o
temor de engordar - como primeiro sintoma, a psiquiatria hegemônica
continua mantendo a perda de peso voluntária e a distorção da imagem
como os principais critérios diagnósticos. Boa parte da práxis clínica está
orientada para demonstrá-lo: as mulheres apresentam mais riscos que os
homens de padecer de TCA porque recebem - 'e são mais sensíveis' - as
pressões sociais reguladores das formas corporais e porque, também, são
mais vulneráveis às atrações nutricionais. Supondo-se que isso seja
verdade, não haverá estreita relação entre as alterações nutricionais
provocadas pelo fato de deixar de comer ou de comer muito e essas
maiores pressões sociais que pretendem converter os cuidados corporais
em mercadoria e, portanto, em objeto de consumo? Como tratar um
aspecto sem tratar o outro?
Nesses esquemas, em que o mais relevante é apresentar categorias
descritivas (listas de sintomas, taxonomias discretas) e pelo menos
estabelecer hipóteses causais ou de tratamento, a cultura é como a "pedra
no sapato" da psiquiatria biomédica ou da psicologia clínica. Negá-la é
estúpido, mas delimitar sua presença é difícil; consequentemente, melhor
mantê-la na periferia. Como pedra que é, incomoda e, frequentemente,

315
dificulta a categorização das enfermidades: as ciências biomédicas são
supostamente objetivas, não têm -pelo menos aparentemente - ideologia,
são guiadas por evidências empíricas, por seus instrumentos de medição
e diagnóstico, e esses não servem, ou servem apenas parcialmente, para
"medir ou avaliar" o papel que desempenha a cultura - essa entidade
tão complexa e abstrata ao mesmo tempo - no surgimento, manutenção
ou aumento dos TCAs, ainda que às vezes possa ser útil destacar que
certos "estilos de vida", claro que não todos, predispõem certos sujeitos
- com um perfil biopsicológico específico de gênero, idade e etnia - a
deles padecerem.
Infelizmente, tal posição tem ajudado pouco a abordar de forma
eficaz esses mal-estares. Por um lado, os TCAs são apresentados como
doenças mentais que não pretendem classificar pessoas ou pacientes;
entretanto, o fundo psicológico e biológico dos sintomas não pode ser
desvincul ado do contexto no qual foram elaborados. Associados
principalmente às mulheres jovens nas sociedades modernas, algumas
vezes foram explicados por uma supostamente maior dependência pessoal
e emocional, por uma reduzida autoestima, por uma relativa capacidade
para se comunicar e, outras, por sua inclinação a acatar mais estritamente
ou menos criticamente os valores do marketing e da moda. Em nenhum
caso, essas mulheres são definidas por suas maneiras de ser e entender a
vida ou por sua capacidade de "usar" algo tão significativo, e com tanto
valor econômico e simbólico em nossa sociedade, como o corpo e a
comida como formas de resistência, resposta ou desacato às normas
familiares, culturais e/ou sanitárias (Esteban, 2004). Entretanto, tanto
foram reguladas e minimizadas as causas contextuais, que se evita
investigar, por exemplo, os significados pessoais/sociais de "deixar de
comer" ou de "fazê-lo em excesso". Nos protocolos epidemiológicos ou
nos questionários não se inclui realmente a multicausalidade da qual
tanto se fala. O que parece estar sendo feito é adaptar as técnicas aos
resultados (modelos preconcebidos) que se quer encontrar, propondo
questionários e entrevistas cujas perguntas já implicam uma resposta
condicionada ao diagnóstico previamente construído. Para esse modelo,
as experiências das pacientes e suas narrativas emic de sintomas também
não têm lugar.
Na Espanha, os fatores sociais associados aos TCAs, excetuando-
se somente em alguns casos as relações familiares, são pouco ou nada
considerados nos processos de abordagem e tratamento. Predominam os
enfoques da psiquiatria biomédica centrados no indivíduo e na terapia
pessoal. Essa desconsideração deve-se a uma desconexão importante entre

316
as diferentes aproximações científicas, principalmente entre ciências
biomédicas e sociossanitárias, sendo que apenas as primeiras se pretendem
cientificamente legitimadas para definir e abordar as doenças e seus
pacientes. Perguntamo-nos, entretanto, até que ponto os profissionais
da saúde 'podem, devem ou sabem' fazer diagnósticos sobre o
emaranhado social - do qual participam e no qual atuam - e sobre sua
mais que provável influência na emergência desses males; até que ponto
os diagnósticos realizados até agora sobre as causas culturais dos TCAs
foram certos e até que ponto se formularam/ofereceram sqluções plausíveis
para sua modificação.
Por outro lado, as teses culturalistas foram usadas, com frequência,
para "fechar" as fronteiras ou os limites dos TCAs, não somente para
ajustar taxonomias aparentemente neutras, mas também, sobretudo,
porque delimitando-se os sintomas unicamente às sociedades modernas
se poderia perfilar melhor os fatores e grupos de risco. Focalizou-se de
forma simples a origem de todos os "males sociais" no desmesurado culto
ao corpo magro. Entretanto , essas teses não foram utilizadas para
modificar as relações de poder e desigualdade produzidas nessas
sociedades, relações que poderiam explicar a incorporação (embodiment)
de certas práticas corporais e certos consumos alimentares (exercício,
dieta), por outro lado muito generalizados no conjunto da população
feminina. Essa é uma tarefa complexa, especializada também, para a
qual os especialistas da saúde não foram preparados.

Classificar, Classificando, ou da Emergência


de 'Novos' Transtornos Alimentares
Na revisão que fizemos da literatura psiquiátrico-epidemiológica
e psicológica sobre TCAs, advertimos para uma disparidade notória de
porcentagens e cifras, tão significativa que merece uma reflexão .
A diferença de números referentes a prevalência e incidência é
substancial, e leva alguns epidemiológicos a reconhecerem que há
discrepâncias metodológicas notórias e falta de uniformidade dos
pacientes e dos grupos de universos incluídos nas distintas amostras
selecionadas, sobretudo no caso dos transtornos do comportamento
alimentar não específicos (TCANEs), cuja definição clínica é ainda
imprecisa. Estudos internacionais sobre prevalência e incidência de TCAs
na população geral e em grupos específicos Qovens e mulheres) permitem
afirmar que esses males aumentaram ao longo das três últimas décadas,
ainda que estudos longitudinais com uma perspectiva de cinquenta anos

317
mostrem um crescimento das formas leves e a estabilidade das mais agudas
(Ruiz, 2002) . Se forem considerados para a estimativa de taxas de
prevalência os casos que preenchem todos os critérios diagnósticos
de anorexia ou bulimia nervosa, nos países ocidentais essa cifra gira em
torno de 0,5 % e 1 % respectivamente (Hsu, 1996; Fairburn & Beglin,
1990), o que em nenhum caso reflete uma doença de caráter epidêmico,
como às vezes se defende.
Por sua vez, os estudos epidemiológicos espanhóis indicam que,
no grupo de maior risco, as mulheres entre 12 e 24 anos, a prevalência
dos TCAs é aproximadamente a seguinte: 0,14% - 0,60% em anorexia
nervosa (AN), 0,55 % - 1,24% em bulimia nervosa (BN) e 2,76% - 4,71 %
em TCANEs. No total, entre 4,1 % e 5,2% padecem de algum transtorno
alimentar (Collegi Oficial de Metges de Barcelona, 19, 2005: 4). Essas
cifras são inferiores, entretanto, às referidas para a Catalunha. Um estudo
realizado em 2006 com 14.000 estudantes pela Asociación Catalana contra
la Bulimia y la Anorexia (Acab) em conjunto com a Fundación Viure i
Conviure de la Caixa de Catalunya indica que 6,4% dos catalães entre
12 e 24 anos, ou seja, 118.000 jovens, sofrem de algum tipo de transtorno
alimentar, uma cifra que, segundo essa associação, teria triplicado nos
últimos oito anos. A Acab informa que nessa com un idade 117.000
mulheres e 1.100 homens apresentam TCAs, sendo 21,5 % dos casos
crônicos e registrados 6% de mortalidade. Desses, 21.500 correspondem
a pessoas doentes de bulimia, 7.700 de anorexia nervosa e o resto, 88.000,
corresponde a TCANE. Observemos essa última cifra. Cada vez mais
chama a atenção a alta prevalência das chamadas 'síndromes incompletas
ou atípicas', quadros sintomáticos que não preenchem todos os critérios
estabelecidos na quarta edição do Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders (DSM-IV, Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais) e, portanto, não podem ser diagnosticados como
tais. O que explica isso ? Os profissionais consultados atribuem esse
espetacular aumento da incidência à maior difusão de informação na
rede assistencial, ao desenho e à aplicação de instrumentos específicos
para seu melhor reconhecimento, ao aumento da preocupação social
com os efeitos de alarme criado pelos sanitaristas, à mídia e à ampliação
da oferta de serviços e tratamento.
Nosso interesse consiste tanto em valorar a disparidade de cifras e
a diversidade de etiquetas utilizadas quanto em saber como são
estabelecidas as fronteiras que delimitam o que é e o que não é
considerado uma conduta alimentar patológica. Na revisão bibliográfica
realizada, encontramos apenas trabalhos sobre os "novos transtornos"

318
que circulam nas referências verbais de psiquiatras ou médicos - é o caso
da ortorexia e da vigorexia -, e são poucos os estudos epidemiológicos
que os fundamentam. Em nossa procura por informantes com diagnóstico
de TCANE na rede assistencial catalã também tivemos dificuldades para
encontrá-los e em nenhum caso o diagnóstico de ortorexia ou vigorexia
se aplicava. Talvez isso se deva aos fatos de que certos sintomas ainda
não foram classificados como transtorno e não há unanimidade nos
critérios diagnósticos. Entretanto, esses termos aparecem já como
desordens alimentares sem especificação, engrossando a " miscelânea"
dos TCANEs: vigorexia, síndrome do comedor seletivo, ortorexia,
síndrome do gourmet, obesidade por exagero, síndrome do comedor
noturno, síndrome do recheio ... Tal disparidade de rótulos demonstra,
uma vez mais, os problemas que implica a tendência, não explicitada nos
DSM e na Classificação Internacional de Enfermidades (CIE), a
considerar qualquer "desvio social" como patologia e entrar na alçada
das ciências médicas. Recentemente, considerou-se o ' transtorno por
exagero' como entidade diagnóstica independente, e como tal está
mencionado no apêndice B do DSM-IV, no bloco de novas categorias a
serem incluídas em futuras edições, vinculado à obesidade e a diversas
alterações psicopatológicas. Diferentemente de outros transtornos
alimentares, a porcentagem de prevalência do referido transtorno em
ambos os sexos é similar, e os estudos epidemiológicos dão a entender
que há um grupo significativo de pessoas adultas que praticam os exageros
sem usos de laxantes e que tanto podem ser mulheres como homens.
Perguntamo-nos se o costume, tão catalão, de associar gastronomicamente
Natal e Santo Estevão não pode ser uma forma étnica avant la lettre de
transtorno por excesso.
Algo semelhante acontece com a ortorexia nervosa (ON). Sua
recente conceituação como possível TCA é muito ilustrativa. Segundo a
literatura psicomédica, a dieta ortoréxica (Bratman, 2001) consiste em
eliminar progressivamente os alimentos básicos e as operações culturais
que, de diferentes maneiras, contradizem a conquista de um corpo e de
uma mente sãos. A saúde é mantida, segundo as pessoas que a praticam,
propiciando-se e mantendo-se a desintoxicação do corpo para impedir
sua contaminação por substâncias "impuras" como aditivos alimentares,
metais pesados nas águas e alimentos, vasilhames plásticas e alimentos e
produtos químicos ou industrialmente manipulados (transgênicos,
processados, sínteses), produtos desvitalizados (refinados ou não integrais),
alimentos não frescos ou congelados etc.; buscam-se, assim, alimentos e
métodos que permitam purificar o corpo e tenham propriedades

319
desintoxicantes. A dieta resultante dessas práticas parece radicalmente
diferente daquelas seguidas no próprio contexto cultural, e isso exige
daqueles que a seguem grande força de vontade. A maioria recorre a
uma disciplina extrema mantida pela crença de que são "melhores" ou,
pelo menos, mais capazes de "comer bem" do que os que comem "comida
ruim". As pessoas ortoréxicas parecem centrar sua vida na alimentação,
concebida como um ritual que se move em torno do valor da pureza
corporal e mental. Essa espiritualidade culinária desemboca eventualmente
em aflição quando aqueles que dela padecem empregam a maior parte
do seu tempo planejando, comprando e ingerindo as comidas.
Alguns autores, como Bratman (2001), indicam que a ortorexia
afeta principalmente mulheres jovens, apoiando-se na desigual proporção
detectada em anorexia e bulimia nervosa, ainda que outros destaquem
que ela ocorre tanto em homens como em mulheres (Catalina et al. ,
2005). Na ortorexia, como em outras TCAs, fala-se em transtornos
psicopatológicos em que as diferenças entre gêneros teriam um poder
explicativo importante. O fato de que as mulheres praticam em maior
medida dieting - fazer dietas de forma contínua - e demonstrem uma
preocupação com a saúde superior à dos homens as situa como grupo de
risco no caso da ortorexia. Ainda segundo a literatura psicológica e
biomédica, as mulheres mais jovens são as mais afetadas, pois tendem,
mais que os homens, a imitar as práticas alimentares de famosas e atrizes
excêntricas, especialmente aquelas que, por esnobismo e desejos de
distinção social, teriam se convertido ao vegetarianismo ou a outras seitas
alimentares. Agora, essas considerações dos especialistas, que simplificam
ao extre~o os motivos das preferências alimentares, redundam em uma
imagem cultural das adolescentes excessivamente estereotipada e as tratam
como meros sujeitos receptores e passivos diante das influências da midia.
A psicóloga María José González (2002) 35 assim descreve a ortorexia e as
pessoas ortoréxicas:

A ortorexia parece não afetar os setores marginais ou ignorantes, mas ao


contrário, já que esse tipo de comida é muito mais caro que a normal e
mais difícil de conseguir. De fato, é nos países desenvolvidos que as pessoas
têm maiores possibilidades de se preocupar com os ingredientes dos
alimentos que compram nos supermercados. Parece que se manifesta em
pessoas com comportamentos obssessivo-compulsivos e geneticamente

35
Artigo de 22 abr. 2002, disponível em: www.psicocentro. com, acesso em 26 set.
2005.

320
predispostas a isso. Trata-se, em sua maioria, de indivíduos com uma
preocupação exagerada e tirânica com a perfeição e com uma fé cega nas
normas e regras. Também se observou que pacientes que sofre~am anorexia
nervosa, ao se recuperarem optam por introduzir em sua djeta apenas
alimentos de origem natural, probiótica, cultivados ecologicamente, sem
gordura ou sem substâncias artificiais que possam lhes causar algum dano.
Novamente as mulheres mais jovens são as mais afetadas, seguindo a
famosas atrizes ou modelos, muitas vezes excêntricas, mas com grande
influência entre as garotas. (grifos nossos)

Entretanto, diante da quase total inexistência de estudos


epidemiológicos de âmbito estatal e internacional - mesmo que se saiba
que nos EUA há numerosos registros de entrada hospitalar com esse
diagnóstico - e diante do fato de que não foram descritos pacientes de
ortorexia na Espanha, salvo uma exceção (Catalina et ai., 2005),
inclinamo-nos a acreditar que estamos assistindo à construção - e possível
aceitação em um futuro mais ou menos imediato - de uma categoria
nosológica que, pelo menos na Espanha, antecede a detecção de casos
ou doentes, e cujo diagnóstico ainda não está bem definido nem
reconhecido medicamente. Nessa espécie de antessala nosológica, a
ortorexia foi colocada junto a outros comportamentos alimentares pouco
normais na cada vez mais cheia "caixa de miscelânea" dos TCANEs.
Levando isso em conta, nossa leitura sobre a conceituação da ortorexia e
sua contribuição desigual entre gêneros é outra: enquanto que o retrato
biopsicológico das pessoas que padecem desses males já está construído e,
segundo ele, as adolescentes são as pessoas mais afetadas, por extensão,
e diante de qualquer outra suposta anormalidade alimentar, as garotas
se colocam entre os principais candidatos a apresentar sintomas ortoréxicos
e, desse modo, patológicos.
Indagados sobre a ortorexia , a maioria dos profissionais
entrevistados tendeu a vê-la como uma conduta extravagante de garotas
que exageram as dietas naturais ou outros desvios similares, preparando
assim o terreno para posicioná-las na rede dos TCAs. Ainda que haja
consenso em torno de sua aceitação como psicopatologia, verifica-se uma
clara predisposição a prejulgar certos comportamentos e certos sujeitos
(nesse caso, e por inércia, as mulheres) como desviantes. Perguntamo-
nos por que, apesar de na medicina alopática as recomendações
nutricionais serem cada vez mais vegetarianas em comparação às de
décadas anteriores - hoje se aconselha diminuir o consumo de carnes e
aumentar o de cereais, legumes ou verduras - , determinados movimentos

321
filosóficos alternativos que implicam concepções de vida distintas da
ocidental e, consequentemente, comportam maneiras diferentes de se
alimentar (por exemplo, evitar o consumo de carne animal), são vistos,
dependendo do grau de extravagância cultural e dos sujeitos praticantes,
como exagerados ou aberrantes. Sob essa ótica, as pessoas macrobióticas,
crudívoras, frugívoras, granívoras, cerealistas ou veganas não se incluiriam
nos esquemas de normalidade nutricional desejável, e estariam colocando
em risco tanto sua saúde física, por reduzirem excessivamente seu repertório
de alimentos, quanto sua saúde psíquica, por limitarem seu cotidiano pessoal
e social à mínima expressão: reduzindo, como disse Bratman, "a vida a
um menu ". Assim, a mesma lógica que servia para classificar como
sintomáticos os fatos de deixar voluntariamente de comer ou de fazê -lo
em excesso agora serve para considerar sintomático o comer pensando
"excessivamente" na saúde (alimentos não tóxicos).

Riscos, Desvios e Competições Alimentares


A emergência das categorias TCA e TCANE foi se acelerando no
compasso da problematização das maneiras atuais de comer.
A alimentação constitui um "problema social" na medida em que é objeto
de preocupações econômicas, políticas ou sanitárias (excesso de gorduras
ou açúcares, desestruturação de hábitos, diminuição relativa do gasto
com comida ... ): as pessoas das sociedades modernas não sabem comer,
pois são doentes da abundância e da civilização! Mas, é verdade que não
sabemos comer? É verdade que a alimentação das mulheres e das
adolescentes está mais desestruturada que a dos demais coletivos? Ou é
mais correto afirmar que não são dadas as condições sociais, econômicas
que nos permitam "comer bem" segundo o que "hoje" é entendido por
comer bem? É surpreendente que, ainda que tendo nos mercados mais
alimentos do que nunca, dispondo de mais fontes informativas do que
nunca, tendo um nível aquisitivo médio mais alto do que nunca, estando
mais preocupadas com a saúde do que nunca, as pessoas não saibam
adotar as decisões alimentares adequadas. O que está acontecendo,
então?
Talvez a fronteira entre o que é considerado normal e o patológico
tenha sido desvirtuada, de forma que, cada vez mais, práticas alimentares
e corporais sejam consideradas de "risco" para a saúde psíquica e física
por terem sido medicalizadas. Nas sociedades modernas, o processo de
medicalização foi construído definindo-se um modelo voltado para a
instauração da normalidade dietética nos comportamentos humanos
diante da comida. Esse modelo normativo foi sendo especificado em

322
torno de um padrão de evitamento e restrição alimentar (o que, como e
quanto se deve ou não comer) cujos objetivos principais foram disciplinar
e padronizar os cuidados com o corpo e com a saúde e procurar a
manutenção de certa ordem social. Vale a pena indicar que o padrão
baseado na moderação alimentar já era desejável entre as mulheres das
classes altas da época vitoriana, na medida em que atuar com restrição
diante da comida constituía um símbolo de distinção social. Coincidindo
com o reconhecimento institucional e político da nutrição como ciência
'especializada na prescrição de normas alimentares', a dieta na maioria
das sociedades foi sendo concebida como "problemática" e os discursos
nutricionais, como "fábricas" de moralidade. Nesses contextos, tal
problematização foi maior na hora de se avaliar os comportamentos das
mulheres. Na medida em que essas estabeleceram relações de gênero
centrais no desenvolvimento da atividade humana (papel nutriz,
socializador, abastecedor, zeloso) , suas práticas demandaram maior
atenção por parte dos diversos atores sociais - clérigos, médicos,
legisladores, cientistas - que, ao longo do tempo, foram fixando a
normalidade das condutas humanas. Assim, foram e são problemáticas
as mulheres que comem pouco, as que comem muito, as que pensam na
comida com fins apenas estéticos ou as que a consomem de forma restrita
com fins equivocadamente saudáveis. Hoje, parece que o mero fato de
ser "comedora", "mulher" e "adolescente" aumenta as possibilidades de
risco e/ou desvio da norma e, consequentemente, de desenvolvimento
de doenças da ordem dos transtornos alimentares.
Em sociedades como a nossa, em que ocorre uma extraordinária
vigilância do peso corporal e potencializa-se insistentemente um único
modelo de "dieta ótima", a magreza e a gordura "excessiva" acabam
constituindo fatores de risco para a saúde e sinais de desvio social.
A premissa de que nesses contextos se "come mal" como consequência
do declínio, sobretudo moral, do mundo ocidental (Gard & Wrigth, 2005)
- somos preguiçosos, desordenados e glutões - converte os agentes da
saúde em zeladores da normalidade dietética e os credencia para a
intervenção social: para acabar com os hábitos preconcebidos como errados
- nos níveis familiar ou individual - , é preciso aumentar o controle
especializado sobre as decisões alimentares. Partindo dessa lógica, as
trajetórias de desvio das mulheres anoréxicas e/ou bulímicas supõem a
perda ou a anulação de todas as referências bioculturais que poderiam
orientar adequadamente suas escolhas alimentares. Um motivo a mais
para requererem uma reeducação/reprogramação nutricional, entendida
como uma aplicação estrita da norma: aprender a mastigar pausadamente,

323
a comer em companhia, nem rápido nem devagar, entre três e cinco
vezes ao dia, em horários definidos e em quantidades e variedades
equilibradas.
Ocorre, entretanto, que na trajetória desviante das mulheres que
apresentam esses males produz-se um fenômeno muito particular. Quando
se destaca que a origem dos TCAs é um regime de emagrecimento -
"tudo começou com um regime ... ficam obcecadas por perder quilos" -,
ainda que sabendo que nem sempre é assim, o ponto de partida para a
doença não constitui uma fase transgressora, uma vez que não há infração
da norma, mas, como demonstrou Darmon (2003), uma submissão à
mesma, já que "fazer dieta" é uma conduta muito comum no conjunto
da população e, ainda mais, entre as mulheres. De fato, nas sociedades
industrializadas, o regime instalou-se na vida, já não é uma atividade
temporal, pois é recorrentemente adotado ou deixado de lado, conforme
as circunstâncias. A dieta, tal como indica Ascher (2005), se impõe como
uma prescrição racional: a pessoa é responsável pelo seu corpo. Quando
se aceita que os sujeitos são, em parte, produto daquilo que fazem , o
regime adquire notável relevância social, pois tem uma dimensão de
ostentação. Desse modo, alcançar a magreza não é a única razão do
regime. Seguir uma dieta serve para manifestar para os demais que se é
capaz e reforçar, assim, valores associados ao controle, à contenção e ao
esforço. Precisamente, as mulheres fazem referência a esses diferentes
motivos para fazer a dieta. Ainda que seja muito comum a associação
entre fazer regime e querer perder peso, para elas estar de dieta significa
mais coisas (Masson, 2004) , e não necessariamente que estejam
preocupadas com sua saúde ou queiram emagrecer: fazer uma dieta
significa também mostrar força de vontade, enquanto que não "cuidar"
do conteúdo da comida se relaciona com descuidar-se ou deixar-se levar,
ser pouco disciplinada ou mesmo negligente.
Por outro lado, não é difícil observar uma notável coincidência
entre as considerações apresentadas pelas mulheres como argumentos
para iniciar um regime e as que implicam, para a maioria da população,
seguir a "dieta ótima":

Para fazer um regime é preciso muita vontade para cumprir as regras, há


que limitar o consumo de gorduras e açúcares, não comer nos intervalos
entre as refeições, equilibrar a alimentação, evitar o açúcar, beber muita
água, não pular refeições, reduzir as quantidades consumidas, não abusar
dos alimentos preparados, observar horários. (M. M., 42, mulher)

324
Algumas dessas normas são aquelas que, no limite, são registradas
como sintomáticas para o diagnóstico dos TCAs. Logo, o que, ou quem,
irá definir essa atitude como desviante e, a médio prazo, quando se
"tornar pública", em doença? No princípio, os limites para definir o
desvio não dependem dos cenários sociais em que o próprio ato é
exercido. Assim, comer em um refeitório escolar ou universitário, onde
boa parte das garotas belisca seus pratos, é diferente de participar de
uma refeição familiar em que "comer pouco" pode ser normal ou em um
grupo doméstico em que "comer muito" seja o mais comum. Além disso,
o que é considerado peso padrão do ponto de vista biomédico, como
recorda Darmon (2003), pode variar segundo critérios contextuais: há
garotas que passam despercebidas em uma família em que todas as
mulheres são muito magras, em que todos fazem esporte, dança ou
ginástica rítmica ou têm biografias corporais de magreza.
Consequentemente, o que converte uma pessoa em desviante são
"seus atos" e "sua intensidade". Fazer dieta, exercício ou se empanturrar
comendo não são comportamentos desviantes em si mesmos, apenas
quando considerados sintomas de disfunção mental. Nesse caso, a
disfunção está relacionada diretamente ao compromisso das pacientes -
a psiquiatria biomédica fala de obsessão - em manter essas atividades
por longo tempo e frequentemente. Quando são mantidas, estamos
diante de uma longa trajetória de atividades "de risco", acompanhada
de perda substancial de peso, de amenorreia ... Produz-se, então, uma
definição externa da conduta como patológica, e uma vez determinado
o diagnóstico, a pessoa perde o status de pessoa (passa de normal para
anormal) e adota o de doente ou paciente. A questão é que nesse percurso
nem sempre há sofrimento ou angústia, mas convicção e prazer. Muitas
vezes, segundo informantes entrevistadas, as técnicas de cuidado com o
corpo e a refeição são processos voluntários e reflexivos. Então, o que
expressam as mulheres por meio do regime e de determinados cuidados
corporais? Fazendo dieta, dizem que estão seguindo as recomendações
nutricionais, tornam-se competentes (em conhecimentos e- habilidades),
regulam sua atividade cotidiana e isso se converte, por sua vez, em um
modo de governo ou gestão de si mesmas, considerando-se positivo o
controle que podem exercer sobre seu corpo, e sua vida, por meio da
dieta. Os regimes são mais constantes e sistemáticos, produz-se um
trabalho de racionalização das práticas alimentares por meio da busca
de informação dietética (contar calorias, nutrientes, alimento) e de
manutenção (exercícios, remédios, cirurgia). A aprendizagem das práticas,
realização e aprendizagem dos efeitos pode ser via profissional (médicos,

325
nutricionistas), informal (boca a boca, na rede social) ou literária (meios
de comunicação, manuais etc.).
É certo que a regra estética baseada na magreza foi muito bem
difundida ao longo o século passado, e continua sendo, pela mídia, pela
literatura, pelo cinema, pelos conhecidos. O regime e o desejo de
emagrecer podem ser um dos componentes do início da anorexia ou
bulimia nervosa, mas nem sempre é assim. Às vezes, estão no seu princípio,
outras não. Às vezes aparecem mais adiante. Na maioria das ocasiões,
dar início a uma dieta não significa contrair um TCA. Por isso, convém
questionar a adequação de alguns dos critérios diagnósticos atualmente
empregados e convém perguntar, também, pelos diversos motivos pelos
quais as mulheres, mais que os homens, seguem uma dieta ou querem
perder peso , além de procurar saber por que, inclusive, algumas
querem ter peso mais baixo daquele que os próprios médicos, amparados
nas tabelas de IMC, recomendam insistentemente como o "peso ideal".

De Volta ao Princípio: reflexões baseadas na cultura


É quando convém, então, compreender o conceito de cultura em
uma dimensão mais ampla e complexa do que aquela abrangida pelas
ciências biomédicas. Quando se vincula o aumento dos transtornos
alimentares à cultura, faz-se referência a um emaranhado complexo de
estruturas sociais. Por que as mulheres acabam consumindo mais um tipo
ou outro de produtos que os homens, fazendo mais dietas ou tomando o
ato alimentar como um meio de expressão e interação social são questões
que só podem ser explicadas compreendendo-se o lugar que elas ocupam
nesse emaranhado e os papéis a ele associados. O "ambiente" significa,
nada mais e nada menos, a organização em si mesma de uma sociedade,
ou seja, as condições econômicas, culturais e políticas, nesse caso
estruturadas por um capitalismo de consumo que afeta a tudo e a todos:
as relações de gênero, os valores que premiam o individualismo, o
consumo e a competição, as estruturas familiares, as formas de entender
a saúde e a doença, a coisificação do corpo etc.
Entre a população das sociedades industrializadas popularizou-se,
cada vez mais, a noção de vigilância individual do peso corporal e a prática
de dietas animadas por dois processos diferentes. Em primeiro lugar, e
desde princípios do século XX, pelo estabelecimento do peso ideal e pelo
reconhecimento, mais adiante, da obesidade como doença "crônica e grave"
vinculada ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis como o
diabetes, a hipertensão, patologias cardiovasculares ou câncer, entre outras.

326
Estar em dieta foi, e continua sendo, recomendado pela classe médica,
inclusive independentemente do fato de se haver demonstrado
cientificamente que o dieting, por exemplo, está na base de não poucas
obesidades. Em segundo lugar, e quase em paralelo, pela construção da
magreza corporal como um atributo ético-moral e de distinção social, de
tal forma que nas sociedades em que se produz uma estabilidade e
abundância alimentar, a magreza deixa de ser um sinal de doença e pobreza
para constituir um lugar de produção de novos significados.
Sabemos que os bens são usados não apenas para satisfazer
necessidades ou desejos, mas também para classificar as pessoas entre si
e estabelecer formas de diferenciação social, tanto por meio da distribuição
diferenciada dos recursos materiais desenvolvidos pelo sistema produtivo
como em função dos recursos simbólicos que mobilizam: das primeiras
décadas do século XX em diante, e mediante o consumo de determinados
bens, os ricos serão mais esquálidos e os pobres, mais corpulentos. No
caso das mulheres, as formas de diferenciação de gênero e entre classes
são estabelecidas, em parte, em função da possibilidade de seguir ou não
as recomendações médicas e nutricionais, as regras da moda ou de adquirir
os produtos dos avanços industriais. Quando o sistema capitalista, a partir
de meados do século, diversifica as mercadorias produzidas e torna seus
custos relativamente mais baixos, as mulheres de diferentes classes podem
usar esses bens e, além disso, os recursos simbólicos por eles gerados. De
toda forma , os processos - o peso ideal e a magreza corporal- contribuíram
para consolidar o regime não apenas como uma atividade, mas como um
estado.
Manter o peso entre os limites mais ou menos normais ou inclusive
mantê-los abaixo do recomendado por meio principalmente da restrição
alimentar e/ou do exercício físico na "sociedade da abundância" implica
atitudes harmônicas, ainda que paradoxais, com o espírito produtivo do
sistema capitalista tardio. Por um lado, supõe a aplicação de esforços,
disciplina e sacrifício ou, como indicamos antes, uma responsabilidade
pelo cuidado de si mesmo para não sair dos limites médica e socialmente
estabelecidos e, por outro, consumir os bens e serviços que, dispostos na
forma de mercadorias, permitirão, pelo menos teoricamente, alcançar
esses "ideais". Somente assim podemos entender por que houve um
incremento paralelo de doenças tão extremas, mas tão próximas como a
obesidade ou a anorexia nervosa e por que tais doenças apresentaram
maior incidência entre as mulheres. Nesse sistema, em que os bens são
criados independentemente das necessidades ou mesmo das demandas
ou desejos dos consumidores, confluíram simultaneamente fenômenos

327
como a profusão alimentar, a estigmatização médico-sanitária da
obesidade, o ideal de magreza e a exaltação do corpo pubertário, a
evolução dos estereótipos de gênero e relacionados aos papéis femininos
e masculinos, a prescrição médica ou facultativa de dietas restritivas ou
exercício físico, a flexibilização das práticas alimentares ou a intensificação
das estratégias de marketing industrial.
Essa tríade lógica (sanitária, ético-econômica e de diferenciação
social) que guia o sistema do capitalismo de consumo significou, em
certos setores da população, uma radicalização da regra dietética, no
sentido de que a realização de dietas e os cuidados corporais acarretaram,
inclusive, um distanciamento dos valores quantitativos que guiam o
estabelecimento do peso ideal segundo os critérios médicos. Entretanto,
deixou-se de lançar no mercado novos produtos alimentícios, cosméticos
pró-emagrecimento, clínicas estéticas, ou evitaram-se as prescrições
médicas para incentivar as dietas restritivas, o exercício físico ou os
medicamentos, quando se pôde imaginar, sem grande dificuldade, sua
relação com o aumento dos transtornos alimentares? Se comer e comer
em excesso é bom para a indústria alimentícia, cosmética ou farmacêutica,
não parece sê-lo para a saúde física ou mental das pessoas. Entretanto,
tudo tem lugar em uma sociedade na qual convivem milhares de produtos
alimentícios e milhares de mensagens para evitá-los, em uma sociedade
que promove o exagero perpétuo juntamente com a magreza mais rigorosa.
O capitalismo pós-fordiano vende o "mal" por meio da abundância,
da promoção, da transformação constante e da diversificação do consumo
e vende "o remédio" (a restrição ou o consumo de substâncias e atividades
emagrecedoras). Mas, mesmo que as margens de lucro do "mal" pareçam
ser, em muitos casos, mínimas pelas características das cadeias de
distribuição, as margens de lucro do "remédio", pelo fato de se apresentar
como "remédio", são infinitamente superiores. Tamanha é a influência
exercida pelos discursos nutricionais e pelo marketing do corpo e tamanho
é seu papel na construção social das identidades, que nas últimas décadas
um número cada vez maior de pessoas, especialmente as mulheres que
foram o principal público-alvo das campanhas institucionais e comerciais,
se reidentifica em relação a suas formas corporais em comparação com
outros corpos (ideais ou reais), negando-se a uma parte importante da
oferta do mercado com a finalidade de melhorar sua avaliação e aceitação
social, ou, pelo contrário, consumindo aqueles produtos que lhe permitam
"incorporar" esses corpos cuidados, trabalhados ou disciplinados.
O ambiente implica, pelo menos em parte, o sentido do regime ou
magreza, mas também, de diferentes maneiras, "comer pouco" ou, pelo

328
contrário, "comer muito" adquire sentido em alguns grupos sociais e em
certos contextos. Mas para se compreender esses sentidos é preciso
continuar abrindo espaço entre o emaranhado de estruturas complexas e
ver como a comida serve para expressar relações sociais, emocionais ou
sofrimentos. Com frequência mulheres que jejuam ou comem
exageradamente e por isso são diagnosticadas com TCA ou TCANE o
fazem pelos mesmos motivos que qualquer um de nós, por todos aqueles
motivos pelos quais o não comer e o exagero ganham sentido em nosso
contexto cultural. Entretanto, os especialistas da saúde, apesar de serem
pessoas 'comedoras' - não apenas biológica, mas também socialmente -,
insistiram demasiadamente em analisar a refeição como forma de
expressão, como veículo para a comunicação. Falam apenas, como indica
Hepworth (1999), dos sabores, do paladar, dos prazeres da comida, ou
ao contrário, da sua falta de sabor. Só se alude à comida mediante o
discurso da saúde e da doença. Só se fala em dieta como meio para a
obtenção de saúde ou como via para se alcançar o corpo magro. Como se
não bastasse, no tratamento nutricional dos transtornos alimentares, a
prática clínica nada faz além de tentar instaurar uma regularidade
alimentar que, por um lado, é difícil de cumprir em um contexto articulado
por numerosos microacontecimentos em que a pluralidade de atividades e
de horários fragiliza a observância das rotinas dietéticas (Contreras & Gracia,
2006). Por outro lado, a prática clínica considera, equivocadamente, a
comida e os alimentos como fonte de sociabilidade ou prazer, inclusive
estigmatizando alguns deles, na busca pela saúde.
Entretanto, é preciso levar em conta a grande série de significados
que agora e sempre tiveram a recusa da comida, o jejum voluntário ou o
exagero, porque neles podem-se encontrar também razões para explicar
os TCAs ou TCANEs. Ao longo da história, e em diferentes culturas,
houve situações que favoreceram que certas pessoas tenham deixado de
comer mais ou menos voluntariamente. Na realidade, é difícil acreditar
na voluntariedade desse ato, pelo menos em um sentido arbitrário, pois
sempre parece haver um motivo para a restrição alimentar, seja a religião,
o bolso, a denúncia, o heroísmo, a solidariedade ou o desejo de aceitação/
exclusão social. Cada um desses motivos para o jejum autoimposto e
também para o exagero é ou foi bem-visto, valorado positivamente por
seus respectivos contextos sociais. É a isto que precisam estar atentos
aqueles que intervêm, que medicam, que curam a anorexia: ao sentido
ou significado que têm a comida, a dieta, a regulação do peso e do
corpo em cada um desses contextos (Gracia, 2003).

329
Como os jejuns autoimpostos foram promovidos durante longos
períodos por uma igreja católica que os utilizava como instrumento para
regular economicamente o sistema nas épocas de menor abundância,
durante séculos mulheres em número não desprezível renunciaram
a comer, pretendendo com isso alcançar a pureza espiritual. Deixar de
comer foi também utilizado como meio para exercer pressões no âmbito
político, com o objetivo de obter certos direitos, condutas denominadas
nesses contextos como "greves de fome". Os exageros foram e continuam
sendo uma prática social aceita e altamente valorizada em muitas
sociedades tribais que ainda sofrem a escassez de alimentos e o temor da
fome, nas quais o tamanho e o peso são sinônimo de força, prosperidade
e poder no caso dos homens, e de fertilidade e atratividade física no
caso das mulheres (Powdermaker, 1997; Pollock, 2000).
Entretanto, a causalidade cultural que se reconhece na base dos
TCAs leva em conta toda essa complexidade, mas sua interpretação é
muito reduzida. Limita-se a reconhecer os fatores como a lipofobia - ou
o medo de ganhar peso - e a distorção da imagem corporal que servem
para fundamentar a própria construção biomédica dos TCAs: esse modelo
foi elaborado em torno de certas ideias de gênero e identidade feminina
historicamente determinada, as quais servem, por sua vez, para manter e
reproduzir suas práticas clínicas. Estabelece-se assim um feedback entre
as categorias nosológicas construídas (os transtornos mentais) e a
aceitação social das doenças, que se reforçam mutuamente. Se, como fez
Hepworth (1999), foram analisados os discursos históricos e sociais sobre
o gênero, por um lado, e as experiências sobre o deixar de comer nas
entrevistas clínicas, por outro se poderia observar claramente como os
homens vão se colocando em uma posição de candidatos improváveis
aos transtornos do comportamento alimentar. Frequentemente, fala-se
da anorexia masculina como muito mais severa, diferente da feminina,
apesar da semelhança na apresentação dos sintomas: nesse caso, a anorexia
se explica como resultado de má nutrição severa associada a depressões
endógenas. Por sua vez, a identidade da mulher anoréxica ou bulímica é
construída como em crise permanente: a crise é a origem do conflito, e
por isso a terapia individual é a que prevalece. Entretanto, a atual
diversidade de pessoas anoréxicas e bulímicas questiona esse modelo
padronizado: nem sempre são brancas, adolescentes, de determinada
classe social, de determinado tipo de família, com uma personalidade
específica ou de um único gênero. E o padecimento nem sempre se inicia
por razões de avaliação estética. O que fazer, então, com aquelas razões
que, sem se encaixarem nos critérios diagnósticos, como é o caso da

330
discriminação social ou laboral, os conflitos familiares ou as perdas
afetivas, são reconhecidas por nossas informantes como as principais
causas de seu mal-estar?
O trabalho que está sendo feito atualmente parte de uma
concepção de cultura muito limitada, pois não considera todos os fatores
estruturais que, associados a uma forma de organização social específica,
favorecem determinados comportamentos alimentares. Enquanto as
variáveis estruturais e as interações subjetivas a elas relacionadas
continuarem na periferia da interpretação desses males e não forem
incorporadas nos programas de atendimento, dificilmente poderão ser
resolvidas de forma satisfatória. Essa definição simples de cultura também
não serve para responder a perguntas que pedem respostas: por que,
apesar da maior atenção que o setor Saúde lhe dedica, os TCAs e
especialmente os TCANEs continuam aumentando na Espanha e em
outros países? Por acaso essa maior apreensão intercultural tem a ver
com a globalização do enfoque biomédico ocidental? Por que começam a
ser detectados também entre grupos étnicos imigrantes, em que
a lipofobia não parece estar presente? Possivelmente, uma visão mais
ampla e contextualizada do "ambiente" (das "culturas") ou um enfoque
holista e comparativo (das práticas alimentares e corporais) mostrará que
certos sintomas, como deixar de comer, restringir a comida ou fazê-lo
até exagerar, não são unicamente condutas próprias das sociedades
industrializadas, nem particularmente das mulheres, tampouco condutas
patológicas, mas comportamentos adaptativos ou simbólicos, segundo as
circunstâncias. E são essas circunstâncias que, vinculadas a mal-estares
específicos, merecem nossa atenção.

331
6
Segurança e Insegurança Alimentar

A espécie humana tem oscilado, no decorrer de sua história (cf.


cap. 2), entre a neofilia (tendência à exploração, necessidade de mudança,
necessidade de novidade e de variação ... ) e a neofobia (prudência, medo
do desconhecido, resistência à inovação ... ). Em todo o caso, enquanto as
condições ecológicas e econômicas não permitiram garantir o abastecimento
alimentar, a tendência foi incrementar os repertórios alimentares mediante
a incorporação e a exploração de novos produtos. Hoje, entretanto,
1. a incorporação de novas tecnologias à inovação alimentar se
acelerou consideravelmente, e, além disso,
2. a saturação dos mercados alimentares e o aumento da concorrência
mundial obrigam as empresas a inovarem constantemente e a criarem
"novos produtos" que permitam aumentar seu "valor agregado".
3. Por outro lado, com o desenvolvimento dos conhecimentos
biológicos, a era da conservação e da transformação dos alimentos
(por secagem, salga, umidificação, esterilização, congelamento,
desidratação ... ) possibilitou a criação de alimentos por extração dos
seus componentes de diferentes fontes e posterior recomposição
(surimis ou montagens diversas) ou por manipulação genética (OGM).
Desses novos produtos, a população conhece apenas os elementos
finais de seu processo de produção, resultantes de uma autêntica "caixa-
preta". Sobre essa "caixa-preta" são projetados os sentimentos e atitudes
de maior ou menor preocupação, ansiedade e insegurança, pois nem os
processos nem os produtos resultantes estão inscritos nas representações
culturais apreendidas pelos diferentes grupos sociais.

333
Por outro lado e entre outros fatores , o aumento da esperança de
vida, a redução das influências religiosas, as inovações tecnológicas e o
aumento da crença de que " tudo pode ser alcançado " possibilita
o desenvolvimento do mito do " risco zero". Ainda assim, o aumento dos
conhecimentos científicos (por exemplo , identificação de novos
componentes patógenos ), as melhorias nas técnicas de controle e o próprio
aumento dos controles permitem detectar melhor os componentes
patógenos. Tudo isso favorece o que poderia ser chamado de 'paradoxo
da segurança alimentar': por um lado, o sistema de produção alimentar
preocupa-se cada vez mais e alcança maior segurança e, consequentemente,
os riscos são cada vez mais raros. Mas, por outro, a mesma escassez de
riscos e seu uso como pretexto protecionista traz um grande aumento da
intervenção e da percepção dos riscos pela população, sobretudo quando
os efeitos das aplicações das novas tecnologias são pouco conhecidos ou
totalmente desconhecidos (hormônios, "vaca louca", transgênicos etc.).
Além disso, quando as pessoas têm medo, as possibilidades de um
comportamento racional diminuem, e diminuem também as possibilidades
de prever seu comportamento. Por todas essas razões, o problema da
segurança alimentar, sua gestão e sua eficácia não pode ser reduzido a
questões técnicas de controle sanitário; há, também, uma questão mais
complexa e ambígua que é a caracterização das culturas alimentares e a
de suas modificações a curto e longo prazos .
...__->~ É interessante abordar o tema da segurança alimentar em uma
perspectiva antropológica? A resposta deve ser afirmativa, levando-se
em conta a atual relevância e a importância polítco-social da questão
nos últimos anos. No atual contexto internacional, as questões relativas
à segurança alimentar ocupam lugar de destaque nas agendas científicas,
políticas, econômicas e sanitárias. Trata-se, entretanto, de um termo
ambíguo, pelo menos semanticamente. No contexto das sociedades
industrializadas, segurança alimentar refere-se, sobretudo, à característica
inofensiva da cadeia alimentar. Entretanto, há muito poucos anos, o
termo era utilizado sempre para se referir à necessidade de garantir
o acesso de determinada população aos recursos alimentares suficientes
para assegurar sua sobrevivência, sua reprodução e seu bem-estar. Nesse
sentido, o conceito de segurança alimentar se equipara ao termo inglês
food security. Em qualquer um dos casos, os conteúdos-chave referem-se
à 'disponibilidade' e ao 'acesso'. Hoje, já no século XXI, a disponibilidade
de alimentos e o acesso a efeS não estão garantidos para vários setores de
população. Em numerosos países da África, América do Sul e Ásia, há ·.!
sérias dificuldades para alimentar boa parte de suas populações, algumas I
del as derivadas ou incrementadas pelos efeitos da monetarização, da

334
mecanização e da industrialização: a fome, a escassez e a má nutrição
por carência de alimentos afetam mais de oitocentos milhões de pessoas.
E essa situação de carência, estreitamente ligada à desigualdade social e
à divisão desigual dos recursos, também afeta numerosas pessoas dos
chamados países ricos (FAO, 2003).

Uma Definição de Segurança Alimentar:


fome e pobreza nas sociedades contemporâneas.
Breves notas
Recursos e Distribuição de Alimentos
De fato, as desigualdades sociais com relação ao acesso, à distribuição
e ao consumo de alimentos são angustiantes (Dupin & Hercberg, 1988;
Atkins & Bowler, 2001). Normalmente, dentro de uma sociedade, tais
diferenças dependem de questões relativas a gênero, classe social, idade,
grupo étnico ou ao lugar geopolítico que essa ocupa no contexto
internacional. Tais variáveis explicam, em boa medida, por que a fome/
escassez ocorre nos países mais pobres e entre as pessoas com menos recursos.
De acordo com as estimativas feitas pela FAO correspondentes ao período
1998-2000, no mundo não industrializado cerca de 799 milhões de pessoas
não têm comida suficiente. Como já dissemos aqui, essa cifra supera a
população total da América do Norte e da Europa juntas. Essa espécie de
"continente" artificial formado pelos que passam fome compreende
homens, mulheres e crianças que provavelmente nunca desenvolveram 100%
sua capacidade física ou psíquica porque não têm comida suficiente, e
muitos morrerão por não terem alcançado o básico direito humano de se
alimentar. Um direito, contudo, praticável apenas nas economias dos países
mais industrializados e, como destacamos antes, apenas parcialmente.
O mesmo informe da FAO apresenta também estimativas totais do número
de pessoas que sofrem de subnutrição nos países industrializados e nos
países em transição.
Desde 1990-1992, período adotado como referência nas Cúpulas
Mundiais sobre Alimentação, essas cifras representam uma diminuição
de apenas 19 milhões de pessoas subnutridas, ou seja, uma variação de
2,1 milhões anuais. Essa taxa é muito inferior à que foi fixada para se
alcançar o objetivo de reduzir o número de pessoas malnutridas à metade
em 2015. Entre 1995 e 2001 o número de pessoas desnutridas aumentou
em 18 milhões, o que significa que seria necessário multiplicar por 12 a
cifra de 2,1 milhões para se alcançar os objetivos estabelecidos para 2015.

335
Gráfico 1 - Pessoas subnutridas em 1999-2001 (milhões)
Países Países
em transição industrializados
34 10
Orie nte Próximo
e África do Norte
41
\ I
América Latina
e Caribe -----
53

África _
Subsaariana
198 --_ China•
135

Ásia e Pacífico
156
* Inclusive Taiwan, província da China.
* * Excluindo-se a China e a Índia.
Fonte: FAO.

Se, como se tem afirmado em diversas instâncias, a produção


alimentar atual é suficiente para alimentar toda a população mundial,
por que a fome persiste? Por que a fome está presente em toda história
de abundância? A FAO elaborou, nos anos 90, um informe que indica
que o mundo, no estágio atual da capacidade de produção agrícola,
poderia alimentar sem problemas mais de 12 bilhões de seres humanos;
hoje já se fala em vinte bilhões (Ziegler, 2000). Agora, uma coisa é
produzir alimentos e outra é fazer que tal produção chegue ao seu destino.
O estacionamento ou a limitação da produção podem ser impostos por
políticas alimentares dos países desenvolvidos por diferentes motivos: é
o caso, por exemplo, da balança entre exportação e importação.
Ainda que a fome e suas derivações tenham acompanhado a história
da humanidade- em diferentes graus, espaços e tempos, têm sido constantes
desde a pré-história-, a crescente insegurança alimentar parece estar ligada
à internacionalização do sistema capitalista. Com efeito, a história da fome
mais regular e global está incorporada na 'sociedade da abundância'. ·
A questão mais paradoxal e que merece reflexão é que, diferentemente de
outras épocas anteriores, hoje, no que diz respeito à produção de grãos,
) seria possível uma nutrição adequada para todo mundo. Se o problema,
. no momento e até que os recursos ambientais o permitam, não é a falta de
disponibilidade nem a produção, podemos nos perguntar, então, qual seria.
Parte da resposta está na forma como são utilizados os alimentos
produzidos, já que nem todo grão cultivado é destinado ao consumo

336
humano direto, pois grande parte serve para "fabricar proteínas animais":
40% são usados para alimentar o gado, que em seguida será convertido
em carne para os habitantes das sociedades industrializadas. São necessários
16 kg de cereais e soja para produzir 1 kg de carne de boi, 6 kg para
produzir 1 kg de ave e 3 kg para produzir 1 kg de ovos (Harris, 1985a).
Alguns vegetarianos argumentam que a adoção de uma dieta vegetal de
forma generalizada poderia reduzir o problema da fome. A verdade é que
ainda que esse tipo de dieta esteja em ascensão, é pouco provável uma
revolução dos hábitos alimentares no tocante a esse aspecto a curt~ prazo.
Para caracterizar a natureza desse fenômeno , instâncias
governamentais e sanitárias elaboraram modelos de consumo alimentar
em escalas regional, nacional e internacional. O objetivo principal é
conhecer o tipo de dietas seguidas nos diferentes países do mundo e
interpretar as causas e as consequências nutricionais da desigualdade na
distribuição dos alimentos. Tais modelos parecem ter sido estabelecidos
com base no volume e na estrutura calórica do regime alimentar adotado
e tratam de identificar o grupo de alimentos e nutrientes que supõem a
maior parte da contribuição energética. Além disso, desde os anos 1970
têm sido criados sofisticados sistemas de avaliação e detecção com o fim
de estabelecer estimativas sobre o número de pessoas famintas e territórios
mais afetados e, com base em tais cálculos, desenhar programas de ajuda
e intervenção. 36 Com esse tipo de ferramentas trabalham economistas,
dietistas, nutricionistas ou antropólogos. Galán e Hercberg (1988) indicam
que, entretanto, esses modelos são construídos com valores médios, os
quais mascaram a heterogeneidade das práticas alimentares dentro de
cada país, destacando, por outro laao,- que nem todos os países que
oferecem informação a essas instituições internacionais garantem o mesmo
grau de confiabilidade. Os modelos resultantes-variam segundo os critérios
priorizados (grupo de alimentos que supõe a maior parte da contribuição
energética, os nutrientes, as ingestões etc.), têm diversas leituras e servem
para explicar diferentes fenômenos. Aqui detal hamos uma tipologia de
modelos segundo suas consequências para a saúde pública:
36 Na década de 1970, a comunidade internacional começa a defender que os períodos
de escassez não deveriam ser tratados apenas em situação de emergências, mas
também deveriam ser ativadas medidas de precaução. Os sistemas de alarme ou
EWS (early warning systems) surgem para alertar as autoridades nacionais e
internacionais com o objetivo de mobilizar estoques alimentares globais que devem
ser transportados para prevenir mortes. Como em muitos desses países não existem
meios técnicos para estabelecer tais sistemas, esses são gerenciados por agências
internacionais e também por organizações não governamentais, tendo esse trabalho
se convertido na atividade principal de muitas delas.

337
Países Industrializados
Grande diversificação dos grupos de alimentos. Consumo elevado de
produtos de origem animal. Consumo elevado de proteínas (mais de 2/3
de origem animal). Consumo elevado de lipídios (ma is de 2/3 de origem
animal). Reduzida participação de carboidratos, com excesso de açúcares
simples à custa da redução do consumo de açúcares complexos. Reduzida
participação de fioras alimentares.

Enfermidades associadas (por excesso)


Sobrepeso, obesidade, enfermidades cardiovasculares, diabetes, hiper ou
hipoprotei nemi as, cárie dental , constipação, trombose venosa, neoplasias,
cólicas ...

Países Não Industrializados µ A .--\

Alimentação monótona, na qual o alimento base proporciona por si só entre


60 e 90% da contribuição energética. Uma parte muito pequena para os
produtos anim ais na composição da porção alimentar. Alta contribuição de
glicídios, essencialmente em forma de açúcares complexos. Contribu ição
proteica mais ou menos discreta, essencialmente de origem vegetal. Porção
significativa de fibras alimentares.

Enfermidades associadas (carência energético-prote ica


e carências específicas de minerais ou vitaminas)
Má nutrição calórico-proteica, anemias nutricionais, carências de vitamina
A, bócio ...

Fonte: Galán & Hercberg, 1988: 21-22.

Mas deixemos de lado as cifras e os modelos alimentares, porque


no momento de se definir quem está subnutrido ou malnutrido, quem é
pobre ou rico, a confusão dos números é notória, a depender dos critérios
e dos indicadores utilizados para medir e avaliar tais níveis. 37 Apenas
uma observação interessante: nas últimas décadas os nutricionistas
variaram seus critérios de adequação das porções diárias recomendadas
(RDA) em função de critérios díspares. Há 25 anos, consumir uma
porcentagem de proteínas de origem animal abaixo de 8% era um
indicador de má nutrição, hoje já não é assim - considera-se, inclusive,
37
Para um a crítica pormenorizada, consultar Mclntosh e Zey (1995).

338
oportuno e mais saudável que essas proteínas sejam de origem vegetal.
Outro critério fundamental é o fornecimento de energia diária necessária
para se manter o metabolismo basal (DES), que oscila, segundo a pessoa
e a idade, entre 1.300 e 1.700 calorias por dia. Em 1950, a FAO sugeriu
que 3.200 Kcal/dia era a cifra mais adequada. Entretanto, isso supunha
reconhecer que 60% da população mundial se encontravam abaixo da
quantidade ótima. Desde então essa cifra sofreu vários reajustes. Em
1996 falava -se em de 2.700 a 2.900 kcal/dia, e atualmente defende-se
que somente a partir de um consumo abaixo de 2.100 Kcal/dia é possível
falar em subnutrição. Essa última cifra também não parece ser muito
definitiva se atentarmos para o fato de que na Catalunha, cuja população
apresenta um estado nutricional ótimo em termos gerais, a média do
consumo energético diário por pessoa gira em torno de 2.000 Kcal
(Generalitat de Catalunya, 2003).
Os problemas desses indicadores são diversos; um deles é que não
foram feitos para incorporar as peculiaridades contextuais, nem pessoais.
Entretanto, sabemos que o estado nutricional das pessoas é afetado por
numerosos fatores econômicos e sociais. Uma pessoa pode ter sobrepeso
ou estar obesa consumindo 1.500 kcal se passar o dia inteiro sentada no
sofá vendo televisão. As estimativas, outras vezes, são feitas no nível
regional, e não nacional, e dependem dos dados disponíveis e dos modelos
estatísticos. E ainda que, por exemplo, a OMS e o Banco Mundial utilizem
as mesmas fontes de dados, os modelos estatísticos são diferentes, o que
se traduz em estimativas diferentes segundo o nível do país/região.

Teorias sobre a Fome


Em qualquer caso, o que está claro é que há muitas pessoas pobres,
sem comida e com graves problemas de saúde por não terem acesso regular
ao consumo de alimentos e que as realidades pessoais e sociais em que
essas situações se sustentam são muito diferentes: trabalhadores imigrantes
e suas famílias, população marginal das zonas urbanas, refugiados
políticos, grupos indígenas e minorias étnicas, famílias e indivíduos com
salários baixos etc.
Nos últimos trinta anos, as ciências sociais ocuparam-se em explicar
as causas da fome e da má nutrição atribuindo-lhes diferentes motivos e
valendo-se de diferentes enfoques teóricos. Algumas teses tratam
prioritariamente das 'causas exógenas' relativas às calamidades naturais
(inundações, secas, desertificação dos solos) , outras dos ' problemas
endógenos ' (regimes políticos, guerras, conflitos étnicos, falta de

339
infraestrutura, desigualdades sociais internas) e outras dos 'fatores
estruturais globais', como a distribuição injusta dos bens disponíveis e do
fato de que, na realidade, há pessoas que carecem de alimentos
necessários porque a produção alimentar é ajustada à denominada
'demanda solvente'. Ou seja, hoje existem pessoas que passam fome, e
até morrem de fome , não porque não haja alimentos para toda a
população mundial atual, mas sim porque não há acesso aos recursos:
aquele que tem dinheiro come e quem não tem morre de fome.
Quanto às principais abordagens explicativas utilizadas pela
economia, destacamos duas delas: a denominada liberal e/ou tecnológica
(também 'otimista') e a economia política. Deixamos de lado as teses mais
conservadoras, por sua simplicidade e radicalismo. Vista dessas perspectivas,
a fome seria útil em um mundo potencialmente superpovoado, ao passo
que os culpados por ela seriam os próprios famintos, sua pobreza e sua
falta de capacidade para gerar riqueza. Outro argumento conservador que
ajudaria a perpetuar a fome e a má nutrição seria derivado da aplicação
de certo relativismo cultural "mal intencionado" (laissez-faire ), em cujos
termos é preciso respeitar os valores das sociedades tradicionais, ainda
que tais valores sejam a base da desnutrição e da fome .

Enfoque Liberal
O argumento liberal é influenciado pela teoria da modernização
difundida a partir dos anos 1950, segundo a qual o desenvolvimento de
todas as sociedades é possível mediante a intervenção econômica, as
aplicações tecnológicas e as conquistas sanitárias. Em seus termos,
as medidas a adotar seriam, por exemplo, aumentar a produção de
alimentos, introduzir a mecanização, a irrigação, os fertilizantes químicos,
as sementes de alto rendimento, os cultivas transgênicos e controlar a
natalidade. Reconhecem-se os benefícios do sistema capitalista, mas,
diferentemente das teses mais conservadoras baseadas na filosofia do
laissez-faire , defendem-se reformas econômicas e políticas para aliviar a
fome. O capitalismo é o melhor modo de produção, e o que se deve
fazer é corrigir as imperfeições a ele associadas com a finalidade de
melhorar a eficiência do sistema mundial.
No âmbito desse enfoque, localiza-se uma das teorias mais influentes,
conhecida pela inicial FAD (food availability decline , ou diminuição da
disponibilidade de alimentos) . Em seus termos, os problemas estariam
situados no sistema alimentar, e a causa principal da fome seria a produção
insuficiente de alimentos. Para evitar as diminuições da disponibilidade
de alimentos deve-se introduzir um modelo de produção baseado nas

340
grandes empresas agrárias porque permitem racionalizar a exploração da
terra, aumentar a produtividade e, consequentemente, reduzir o preço
dos alimentos no mercado. Seguindo esse modelo produtivo, seria superada
a situação atual na qual os países industrializados "alimentam" com sua
ajuda os países máis pobres. Alguns teóricos da FAD enfatizam o efeito
dos desastres ambientais a curto prazo (inundações, secas ou a perda de
cultivas devido a pragas), enquanto outros falam de fatores a médio prazo,
tais como a superpopulação. Esses teóricos defenderiam uma teoria
neomalthusiana, 38 ou seja, baseada no controle do crescimento da
população, especialmente nos países do Terceiro Mundo onde a natalidade
é muito mais alta, para evitar que a fome e a escassez aumentem.
A Índia converteu-se no melhor exemplo da abordagem reformista
liberal para ilustrar como se pode diminuir a fome, uma vez que a aplicação
de mudanças na organização de cultivas e a adoção de inovações
tecnológicas ajudaram a incrementar a produtividade mediante um
processo gradual de intensificação da produção agrícola. A Índia
incorporou as propostas de fazer uma 'agricultura científica' cujo objetivo
principal foi aumentar a produção alimentar. A denominada "revolução
verde", ou aplicação da reprodução genética de variedades de alto
rendimento (HYV), significou a partir de 1965 a duplicação da produção
de grãos. Além dessas aplicações, o programa se concentrou no controle
da natalidade com medidas de esterilização. Para incentivar a população
a seguir essas novas diretrizes, foram distribuídos prêmios e pequenos
eletrodomésticos como o rádio.
É preciso observar, entretanto, que esses grãos de alto rendimento
foram cultivados apenas em regiões específicas (Punjab, Haryana Oeste e
Uttar Pradesh) e que os avanços foram alcançados na produção de trigo
mais do que na de arroz. Por outro lado , fracassou o cultivo
de jowar e bajri, os alimentos mais consumidos entre os pobres. Além disso,
o uso de produtos químicos contribuiu para degradar o meio ambiente.
Na Índia contemporânea continuam persistindo outros problemas. A má
distribuição dos salários e a ausência de um programa nacional de
alimentação fazem com que quase metade da população indiana não tenha
recursos financeiros suficientes para adquirir uma alimentação nutritiva.
Por outro lado, na área onde a denominada revolução verde teve êxito, a
estrutura da propriedade agrária continua evitando que dois terços da
população pobre possam se alimentar adequadamente.
38 No século XVIII, Malthus obseIVava que enquanto a produção de alimentos crescia
aritmeticamente, a população crescia geometricamente, o que deveria ser evitado
mediante o controle de natalidade.

341
É difícil aceitar que a causa da fome seja a produção insuficiente
de alimentos, visto que, como já destacamos, são cultivados mais alimentos
do que seriam necessários para nutrir adequadamente todo o mundo. Se
a atual produção fosse distribuída de forma equitativa, cada pessoa
poderia receber alimentos que significariam 2.500 kcal diárias. Igualmente
difícil é acreditar que as sociedades industrializadas alimentam os países
do Terceiro Mundo com sua ajuda, já que muitos desses países pobres
exportam mais alimentos - proteínas e calorias - do que importam, isto
é, os destinam ao mercado internacional, e não ao autoabastecimento.
Um exemplo ilustrativo: países da América Latina e da Ásia concentram
70% dos produtos vegetais importados pelos EUA e 20% dos produtos
cárneos. Do mesmo modo, em numerosas sociedades a tecnologia na
agricultura nem sempre determinou vantagens significativas para suas
populações , j á que gerou maior concentração da riqueza, maior
dependência dos países industrializados (tecnologia, sementes, carvão),
maior ineficiência energética e, definitivamente, maior ganância por parte
das corporações transnacionais da alimentação. Ao contrário, em muitos
desses países são mais eficazes os pequenos e médios produtores agrícolas,
especialmente na exploração da terra, pois são guiados por suas próprias
decisões e conhecimentos, desenvolvem uma agricultura menos intensiva
e agressiva ao meio ambiente e abastecem o mercado interno.

Abordagem da Economia Política


Um enfoque sensivelmente diferente do anterior em relação a
como caracterizar o problema da fome e abordar suas causas é o que
provém da economia política. Essa abordagem integra enfoques
neomarxistas e foi denominada de várias maneiras: sociologia crítica,
abordagem materialista ou enfoque dialético, entre outras (cf. cap. 3).
Algumas das ideias que a compõem são tomadas da teoria do sistema
mundial e da teoria da dependência ( centro-periferia). 39 Partindo da
análise das políticas macroeconômicas, baseiam-se no desequilíbrio
causado pelas forças do mercado das economias capitalistas e nas relações
39
A teoria do sistema mundial proposta por Wallerstein (1979) questiona a
denominada teoria da modernização, a qual supõe que todas as sociedades, partindo
de distintas situações e distintas velocidades, seguem o mesmo caminho até a
mod e nidade, tomando a soc iedade ocidental como modelo . Wallerstein tenta
explicar que a mode rn a eco nom ia-mundo só pode ser uma eco nomia-mundo
capitalista, apoi ando-se na teoria da dependência que se populariza sobretudo na
Améric a La tina: o desenvolvimento de a lgu ns país es é baseado no
subdesenvo lvimento de outros (relações norte-sul , países ricos/países pobres,
Primeiro Mundo/Terceiro Mundo). Ambas as teorias nega m, entretanto, o valor

342
assimétricas entre países (Primeiro e Terceiro Mundo, norte-sul, centro-
periferia), classes ~ociais , população urbana e rural, entre gêneros e entre
idades para explicar a escassez e outras "patologias sociais". Os conflitos
militares internacionais e os confrontos civis são indicados também como
fatores principais da escassez, especialmente entre os grupos de
desalojados e refugiados.
Nessa perspectiva, entende-se que o sistema econômico é articulado
com base, principalmente, nos modelos de propriedade e tecnologia. No
sistema capitalista, o modelo de propriedade principal está concentrado
nas elites que, com o capital privado em suas mãos, possuem a maior
parte do aparato produtivo do mundo. Segundo esse esquema , os
trabalhadores, incluindo os trabalhadores rurais, vendem sua força de
trabalho de uma ou outra forma a esses capitalistas. O benefício
acumulado nesse processo escoa para as elites dos países industrializados
do "hemisfério norte " e também para as elites dos países em
desenvolvimento do " hemisfério sul ".
Nesse sistema, os países em desenvolvimento são produtores
principalmente de matérias-primas, como o chá na Índia ou o açúcar no
Caribe, que não apenas significam os benefícios mais baixos em toda a
cadeia alimentar, mas também, por outro lado, são enviados a países
desenvolvidos para seu processamento industrial. Essa fase traz benefícios
mais substanciosos que a primeira. Quando nos países em desenvolvimento
também é realizada a atividade de transformação das matérias-primas, os
acionistas estrangeiros geralmente possuem as companhias de
processamento, de forma que os lucros também fluem para fora dos países.
O objetivo final das corporações transnacionais é servir ao mercado
mundial. Este é seu púbHco-alvo: flores para a Europa, café para os EUA. ..
Portanto, as empresas alimentícias implantam os processos de produção,
processamento ou transformação naqueles lugares onde impHquem menos
custos e proporcionem maiores lucros. Mundialmente, os oligopólios
alimentícios foram se consolidando durante o século XX, especialmente
no último quarto de século . Um número reduzido de empresas

das iniciativas locais e as estratégi as de resi stência dos atores dessas sociedades.
Por sua vez, o trabalho de E. Wolf (1982) e a teoria de transição e da reprodução
de Godelier (1991) supõem uma releitura das relações entre o local e global que
permite an alisar os processos de transform açã o soci al e suas concretizações
históricas tal como afetam a cada sociedade e a relação entre elas. Nesse sentido,
o capitalismo não é um sistema homogêneo, e aceitar que o centro é um motor de
transformações não pressupõe que as periferias seja m relíquias do passado e
assumam de forma pass iva as transformações mais recentes.

343
transnacionais - Unilever (multiproduto) na Holanda, Danone
(multiproduto) na França , Cargill (cereais) nos EUA ou Bunge
(agronegócio) na Argentina 40 - controla a produção, o processamento e
a comercialização de bens no mercado e hoje detém e gera a maior parte
do aparato produtivo vinculado à alimentação. Tal aparato inclui terra,
maquinário agrícola , produtos químicos , sementes, conhecimento
científico etc. Além disso, tais oligopólios também dirigem a pesquisa e
as novas aplicações tecnológicas.
Diferentemente do enfoque anterior, na análise dos aspectos
contextuais e conjunturais da macroeconomia examina-se a pobreza e a
fome em uma perspectiva histórica. Trata-se, em primeira instância, de
contextualizar a origem desses problemas atendendo à evolução das
políticas macroeconômicas internacionais e associando-os com os efeitos
nocivos que o neocolonialismo impôs a determinados países e grupos
sociais. É o caso da destruição das economias tradicionais, do
endividamento externo, da introdução em massa de métodos e produtos
novos para a exportação com consequências desastrosas_para os cultivas
alimentares autônomos (monoculturas de café, cereais ou cacau), a
importância de alimentos mais caros (mais prestigiados) ou a expulsão
para as cidades dos trabalhadores rurais sem terras cultiváveis. Segundo
essa abordagem, nas últimas décadas temos assistido ao colapso das
capacidades de muitas populações de se alimentarem a si mesmas. As
novas condições de monetarização e mercantilização econômicas não
apenas não permitiram gerar riqueza nem desenvolvimento econômico,
mas também levaram à proletarização e marginalidade das populações
do Terceiro Mundo e, consequentemente, ao aumento de sua pobreza e
vulnerabilidade. Os camponeses pobres com frequência se veem forçados
a vender suas colheitas de forma apressada a baixo preço, enquanto que
se o preço do grão se mantém os intermediários podem especular mais e
melhor no mercado internacional. Essa situação foi especialmente
negativa para as mulheres, na medida em que as estratégias agrícolas
mercantis aconteceram em detrimento da agricultura com fins alimentares.
De todo modo, a fome surge quando a degradação econômico-ecológica
já está iniciada (Manderson, 1988).

40
São sistemas de produção integrados verticalmente , definidos pela procedência
global de seus produtos, pela centralização das vantagens estratégicas, dos recursos
e da decisão e pela manutenção de operações em vários países para servir a um
mercado global mais unificado. As produções locais são orientadas pelos critérios
internacionais da empresa (Atkins & Bowler, 2001).

344
Por outro lado, é preciso assinalar que o aumento do poder
aquisitivo nem sempre implicou uma melhora na alimentação. Às vezes,
pode significar a oportunidade de satisfazer a outras aspirações em forma
de bens de consumo, que conferem, por exemplo, a patente de cidadania
urbana. É o caso de muitos processos de urbanização explosiva do Terceiro
Mundo e dos milhões de pessoas arrancadas do campo que ocupam os
subúrbios de suas grandes cidades . A maior oferta de produtos
alimentícios na cidade e, não esqueçamos, a influência da publicidade
podem ocasionar uma série de más escolhas de alimentos que não
correspondam à necessidade dos indivíduos, ainda que, isto sim, ofereçam
uma imagem mais cosmopolita. Sob essa ótica também se indica o modo
como a inoportunidade das políticas governamentais pode tornar
a situação mais aguda e/ou provocar terrível escassez. 4 1 Inclusive a
manutenção da pobreza é vista, nos termos desse enfoque, como um
exemplo de mecanismo de dominação política e, nesse sentido, a classe
política elitista dos países pobres, muitos deles sujeitos às ditaduras
militares, mantém a dominação social, porque assim é mais difícil que se
consiga fazer a "revolução".
Na economia política as ajudas financeiras e alimentares
internacionais são consideradas como medidas não apenas insuficientes,
mas também cínicas. 42 É preciso resolver as causas da fome, ou seja, da
pobreza e da desigualdade, e não aliviar seus sintomas. Os lucros obtidos
na produção de riqueza devem reverter em proveito de todos, não das
elites locais ou internacionais. Por isso, as respostas em termos de ajuda
humanitária são paliativas e não substituem as possibilidades de
desenvolvimento e propriedade a longo prazo. Por isso, o papel das ajudas
é ferozmente criticado. Esse enfoque propõe diferentes medidas que
implicam transformações profundas, focalizadas na segurança alimentar
e nos programas de promoção social e garantia de direitos individuais,
ou entitlement, baseados na premissa de que todo mundo deve ter direito
ao acesso aos recursos básicos como água, comida, ar ou moradia.
Segundo Amartya Sen, a inanição deve ser entendida como o fracasso a

41
É o caso da União Soviética entre 1932 e 1934. Então, a coletivização da agricultura
levava a uma queda da produtividade, mas a extração de cotas de grão continuou,
o que significou entre 5 e 7 milhões de mortes por fome.
42
Para Esteva (1988) e Sánchez Parga (1988), os programas internacionais de ajuda
alimentar constituem mecanismos reprodutores e perpetuadores das situações
de miséria, na medida em que colocam os países pobres em posição de dependência
e não favorecem novas formas autóctones de produção, distribuição e consumo
de alimentos .

345
que são forçados certos grupos de pessoas por não terem garantido seu
direito à necessária quantidade de alimentos, seja por produção,
intercâmbio ou comércio. Consequentemente, parece mais que oportuno
incentivar as medidas que tratam de motivar tais capacidades locais, assim
como a gestão e o controle de uma produção sustentável de alimentos.

O Estatuto da Fome: sua construção como 'problema social'


Juntamente com o fenômeno da fome, nas últimas décadas não
deixaram de proliferar organizações internacionais, governamentais e
não governamentais, para as quais aliviar a escassez e a inanição se
converteu em atividades de trabalho específicas. Nesse sentido, pode-se
afirmar que a fome foi institucionalizada. Mas, até que ponto a fome
responde a uma re alidade objetiva, mensurável, avaliável ou é uma
categoria socialmente construída, cujo conteúdo, relevância e significado
variam segundo o contexto e os atores que a definem? A fome em seus
diferentes graus (fome, escassez, inanição) foi um dos primeiros temas
tratados pela antropologia no estudo sociocultural da alimentação humana
(Mclntosh & Zey, 1995; Howard & Millard, 1997, O'Sullivan, 1997; Pottier,
1999). Entretanto, os enfoques adotados também foram diversos.
Em uma perspectiva 'objetivista', tendeu-se a definir a fome a
partir da produção de situações particulares que alcançam um ponto
intolerável , ou seja, quando se detectou um número considerável de
pessoas famintas (Maurer & Soba!, 1995). Assim, esse tipo de análise
tendeu a destacar a prevalência, o modelo e o rigor de um problema
específico e serviu para fundamentar a maior parte das teorias oficiais.
Por exemplo, o enfoque liberal, que acabamos de ver, define a fome
como uma situação em que os alimentos são insuficientes para satisfazer
às necessidades fisiológicas de alguns indivíduos. Os objetivistas definem
a fome como um 'problema social ' no momento em que existe gente
faminta. Nesse caso, em um enfoque desse tipo são documentados padrões
epidemiológicos da fome , determinadas suas causas e propostas soluções
que parecem incluir a engenharia das instituições sociais. Os antropólogos
que trabalham nessa perspectiva analisam e comparam as lógicas sobre o
uso que as populações fazem dos programas alimentícios. Por sua vez, os
nutricionistas adotam normalmente a abordagem positivista, gerando
descrições dos problemas alimentares e nutricionais e desenvolvendo
intervenções para minimizar ou eliminar tais problemas. Por exemplo,
todo o campo da epidemiologia nutricional, tão rapidamente
desenvolvido, está orientado para a compreensão da etiologia, prevalência
e consequências dos riscos nutricionais na população.

346
\ Entretanto, em uma perspectiva 'construcionista' considerou-se,
em primeiro lugar, a definição coletiva do problema, analisando-se as
demandas individuais e grupais dos setores implicados (nesse sentido,
suas próprias percepções da fome) e, sobretudo, os processos: quando e
por que essa situação conflituosa se converteu em um problema social
(Mclntosh & Zey, 1995). Atualmente, a maioria das pessoas costuma 1
reconhecer a situação da fome massiva como um problema social. 1
v
A dificuldade consiste em avaliar o ponto no qual uma situação particular
deve ser entendida como problemática. Sempre há pessoas sem comida
suficiente, mas como, e com base em que, essa circunstância passa a ser
considerada um problema local, nacional ou internacional? Trata-se de
ver a evolução e a flutuação do problema. As teorias oficiais sobre as
causas da fome no mundo contemporâneo a apresentam como um
problema técnico , esquecendo outras implicações sociais ou de \
redistribuição e, portanto, tecnicamente solucionável: falta de alimentos,
superpopulação, abandono das terras pelos trabalhadores rurais,
catástrofes naturais, atraso tecnológico no Terceiro Mundo.
Por sua vez, as teorias construcionistas adotadas no estudo das \
causas da fome a abordam como um problema relacionado com a pobreza
e, portanto, como decorrente da distribuição não equitativa de poder.
Algumas dessas teorias apresentam as desigualdades estruturais como a
causa última da fome, destacando por um lado a óbvia disparidade entre
países ricos e pobres e, por outro, a persistência e aumento das
desigualdades internas entre as classes sociais, desigualdades entre a
população rural e urbana e desigualdades de gênero. Se as pessoas sofrem
por falta de alimentos, poderia parecer natural pensar que isso se deve à
escassez deles. Entretanto, a fome é uma característica de pessoas que
não têm comida suficiente, não de uma situação na qual não há alimentos
suficientes. Ao se centrar a discussão sobre a crise da alimentação no
problema da disponibilidade de alimentos, da produção e do comércio,
1
corre-se o risco de ignorar outras variáveis importantes. Se, ao contrário,
se aceita o enfoque construcionista, destaca-se a combinação das
condições econômicas, políticas, sociais e, em último caso, legais.
Em sua análise sobre o estatuto da fome, Mclntosh e Zey (1995) ~
não inscrevem inteiramente nenhum desses dois pontos de vista e propõem
uma abordagem intermediária entre o objetivismo e o construcionismo
que leve em conta as relações etic-emic. Segundo esses antropólogos, a
fome é, de fato, um problema com uma realidade objetiva,
independentemente do consenso que se desenvolveu sobre seu status
como "problema social". Entretanto, sua conceituação varia em conteúdo

347
dependendo do tempo e do lugar em que esse fenômeno se produz. Sua
definição e importância se dão em função do grau de poder político que
têm seus definidores e da adequação dos recursos empregados para
promover sua causa. Assim, enquanto as condições de falta de comida
têm uma base objetiva comum e a escassez e as circunstâncias relacionadas
1
recebem uma definição específica a depender dos agentes implicados, as
vítimas vivem e reagem à fome, à iná nutrição e à escassez de formas nem
sempre compreendidas nem pela perspectiva objetivista, nem pela l
perspectiva construcionista. Entretanto, tais pontos de vista devem ter
também lugar na literatura antropológica.
Normalmente, aqueles que fazem os informes objetivistas da fome
impõem critérios extraídos das perspectivas de sua profissão. Em outras
palavras, eles preparam explicações etic. Como DeWaal (1989a) indica, a
fome é definida por diferentes observadores de um ponto de vista externo:
aqueles que estão no negócio das ajudas e do desenvolvimento a veem
como crise moral em que as situações das vítimas exigem uma intervenção;
e aqueles cujos mundos estão estruturados pela tecnologia definem as
crises alimentares em termos tecnológicos, seja considerando os
dispositivos de alarme, vigilância nutricional, sistema de segurança
alimentar ou logística e, finalmente, os acadêmicos conceituam a fome
do ponto de v ista de suas respectivas perspectivas disciplinares. Assim,
os economistas do desenvolvimento defendem que a fome só ocorre em
sociedades subdesenvolvidas e que sua erradicação só poderá advir do
desenvolvimento. Outros economistas discutem as consequências da fome
e da má nutrição crônica em termos da perda de capital humano,
enquanto outros argumentam que a fome pode resultar, precisamente,
da inadequação das inversões econômicas em determinadas zonas. Por
sua vez, os antropólogos e os sociólogos afirmam que a fome reflete um
desenvolvimento distorcido e uma dependência da economia do mundo
capitalista ou do mundo socialista.
A diferença entre uma abordagem construtivista e uma abordagem
emic reside no papel que ambas outorgam às pessoas famintas. O primeiro
ponto de vista enfatiza aquilo que os demandantes - agentes - falam e
fazem, mesmo que normalmente sejam observadores distantes (meios de
comunicação, organizações não governamentais, agências
governamentais), até o ponto em que, se estes forem científicos, essas
descrições serão, por natureza, etic . Por sua vez, as descrições emic são
produzidas quando as valorações são feitas pelas pessoas famintas. Mas
no caso da fome, tal como indicam Mclntosh e Zey (1995), os sobreviventes
não estão em posição nem cultural, nem política de formar associações

348
de vítimas anônimas da fome, escrever livros ou aparecer em programas de
entrevistas. Enquanto os construcionistas tendem a não privilegiar
nenhum dos pedidos dos distintos agentes ou demandantes, a abordagem
emic enfatizaria os relatos dos participantes com relação à adequação
das análises e descrições dos observadores. 43 Diferentemente de Harris,
Mclntosh sustenta que qualquer dos pontos de vista - emic ou etic - é
cientificamente válido. Assim, depois que tiverem coletado
cuidadosamente os relatos nativos, os pesquisadores poderão reunir o
conjunto de experiências e significados sobre a fome e, a partir daí,
interpretar e desenvolver ferramentas intelectuais para compreender a
natureza do problema social.
Entretanto, segundo esse autor, a literatura acadêmica contém
poucos relatos emic da fome, e a antropologia social é o campo em que
há mais estudos disponíveis. Tais estudos indicam que aqueles que sofrem
situações de fome, inanição, apresentam experiências diferentes, social
e culturalmente condicionadas. A definição da fome varia de uma cultura
para outra, assim como o tipo de explicações sobre suas origens e
expectativas. Para os Hauçá (Nigéria) e os Kalauna (Melanésia), a fome
é considerada, respectivamente, como um estado normal ou como um
sinal de que tudo é deficiente e vai mal. Por outro lado, para algumas
culturas, a ameaça da fome pode significar a destruição de uma forma de
vida, não o aumento da taxa de mortalidade.
A análise de De Waal (1989b) sobre o significadoemic dos conceitos
fome e escassez no Sudão é interessante. Indica que o termo utilizado
para designar o ato de comer significa diferentes prazeres, tais como ter
dinheiro, poder ou sexo. Igualmente, fome significa quase todos os tipos
de sofrimento. O conceito de escassez é mais complexo, já que recebe
distintos nomes segundo as circunstâncias particulares do evento. Assim,
os episódios de escassez menos críticos receberam nomes que indicam
escassez de grão, enquanto outros mais sérios são denominadas por termos
que se referem a alimentos silvestres consumidos durante a penúria.
Finalmente, as situações de escassez que deixam as pessoas indigentes
são consideradas piores e para os sudaneses significam uma perda
permanente de status na comunidade. As situações de fome que implicam
a perda da vida não entram nesse continuum construído. De Waal defende
que as situações de escassez que "assassinam" refletem um fenômeno
43 O teste de adequação das análises emic é sua habilidade para gerar avaliações que
os nativos aceitem como reais, com significado ou apropriadas, ainda que, como
mencionávamos antes, o informante possa compreender ou estar de acordo com
a proposta feita inicialmente (Harris, 1985b ).

349
qualitativamente diferente que vai além da classificação, ainda que
também indique que os sudaneses percebem principalmente a ameaça
de indigência, e não a ameaça da morte. Por sua vez, Devereux (1955)
fornece alguns exemplos sobre o que significa a fome localmente, segundo
diferentes populações, e indica com bastante acerto as dificuldades que
essas definições representam para aqueles que tentam fornecer uma
definição da fome eficiente, descobrindo um problema adicional: se a
fome não pode ser definida, quando saberemos que está sendo produzida
para que se possa intervir? E mais, o que acontece quando uma população
não reconhece a fome como a causa de certas doenças e certos males?
A abordagem teórico-metodológica de Nancy Scheper-Hughes
(1992) na interpretação da fome no nordeste do Brasil é muito
interessante. Sua abordagem, ao estudar a fome , é fenomenológica.
A autora parte das epistemologias críticas contemporâneas cuja principal
tarefa é despir as formas superficiais da realidade para esclarecer as
verdades escondidas e enterradas. Seu objetivo é, portanto, dizer "a
verdade" do poder e a dominação dos grupos sociais e classes subalternas.
Trata-se de uma abordagem mais reflexiva do que objetivista, e sua postura
está comprometida com o feminismo, com a economia política, com a
teoria crítica católica e com a participação-ação.
Scheper-Hughes trabalha para fazer uma crítica do poder e das
ideologias. Segundo essa antropóloga, as ideologias podem deturpar a
realidade (sejam políticas, sociais, econômicas), obscurecer as relações
de poder e dominação e impedir que as pessoas compreendam qual é
sua situação no mundo. As ideologias são certas formas de consciência
que servem para fundamentar, legitimar ou estabilizar determinadas
instituições e práticas sociais. Quando essas relações e práticas
institucionais reproduzem a desigualdade, a dominação e a fome, os
objetivos da teoria crítica são, segundo a autora, emancipatórios.
O processo de " liberação " se vê obstaculizado, não obstante, pela
dificuldade irrefletida e pela identificação psicológica das pessoas com
as mesmas ideologias responsáveis por sua dominação. Nos termos dessa
interpretação, é pertinente o conceito de "hegemonia" de Gramsci: a
ideologia hegemônica funciona também mediante o uso que fazem as
classes dominantes não somente por intermédio do Estado, mas também
por meio de misturas com a sociedade civil e da identificação de seus
interesses com ideias e valores culturais e gerais.
Para a autora, a fome é algo mais que "má nutrição" e tem causas
políticas e econômicas. Seu estudo, centrado no nordeste do Brasil, na
cidade agrícola de Bom Jesus da Mata, em Pernambuco, situa a origem

350
desse fenômeno nos primeiros dias de colonização, no complexo que se
estabelece entre latifúndios, monocultura (café, algodão, açúcar) em
detrimento de uma agricultura de subsistência e diversificada, e
paternalismo (dependência socioeconômica do patrão). Em particular, faz
referência às consequências da implantação da indústria açucareira para
essa população. Nas relações de produção e consumo próprias do
capitalismo, o açúcar se converteu inicialmente em um artigo de luxo,
para depois ser comum em todas as classes sociais. Trata-se, entretanto, de
um cultivo "depreciador" que acaba com as pequenas áreas de subsistência
dos agricultores; também engole os bosques e, consequentemente, a lenha
para a cozinha; além disso, a monocultura, em geral, empobrece a terra.
Sem outras formas de autossubsistência, os trabalhadores passam a depender
do salário. Quando não há trabalho no campo, são obrigados a migrar
para as zonas urbanas, sem nenhuma garantia de que o encontrarão.
A consequência de tudo isso foi o aumento da pobreza, e seus
efeitos mais imediatos, a falta de comida e de saúde. Nancy Scheper-
Hughes (1992) revela a relação que existe entre o conceito popular
"nervos" (diagnóstico que remete a uma ampla gama de doenças) e seus
sintomas (fraqueza, tonteiras, desorientação, cansaço, confusão, tristeza,
depressão, estados de euforia) e os efeitos fisiológicos da fome, apesar
de os habitantes do Alto do Cruzeiro fazerem distinção entre o mal
denominado "nervos" e a fome. Como em outros lugares do mundo,
"nervos" converteu-se em um termo imprescindível para expressar tanto
a fome como a ansiedade da fome, além de outros males e afecções.
Intimamente ligado a esse termo aparece a expressão "fraqueza "
(debilidade física, moral, social).
Houve um tempo em que esses habitantes falavam mais de fome
do que de nervos, que entendiam o nervosismo como o primeiro sintoma
da fome (o delírio da fome). Hoje a fome é um discurso não autorizado
nos arredores de Bom Jesus da Mata, e a raiva e a loucura perigosa da
fome foram metaforizadas. Os nervos são uma doença presumidamente
individual, a fome não. A transição do discurso popular sobre a fome ao
discurso popular sobre a enfermidade é sutil, mas essencial na percepção
do corpo e suas necessidades. Um corpo faminto precisa de comida. Um
corpo doente e nervoso precisa de medicamento. Um corpo faminto
recebe uma crítica enérgica da sociedade; um corpo doente, não. Este é
o privilégio espacial da enfermidade, que desempenha um papel neutro
e constitui uma condição para eximir as culpas: não há nem
responsabilidade, nem culpados.

351
Seja em uma ou em outra perspectiva, sejam indicadas estas ou
aquelas causas e sendo definidos desta ou daquela maneira, a maioria dos
enfoques concorda que a 'insegurança alimentar' causada pela falta de
acesso de determinada população ou grupo social aos recursos alimentares
suficientes para garantir sua sobrevivência, sua reprodução e bem-estar
continua sendo, hoje, um problema muito grave em escala mundial.

Outra Definição da Segurança Alimentar:


pensando sobre o risco e sua aceitação
Retomemos agora algumas das ideias expostas no início deste
capítulo. Nos últimos anos o termo 'segurança alimentar' adquiriu um
significado diferente desse que acabamos de ver. De fato, nos países
mais industrializados, esse termo designa o consumo de alimentos livres
de riscos para a saúde. Em inglês, essa ideia é construída por meio do
conceito de food safety. Esse segundo significado explica-se, talvez, pelo
fato de que , cada vez mais, as sociedades tomam precauções para
minimizar os riscos associados aos alimentos, tais como a intoxicação ou
a contaminação. Para isso são recomendadas medidas de prevenção e
pesquisadas e aplicadas técnicas específicas de manipulação , de
conservação etc. Assim, empregar o termo "segurança alimentar" ou
"insegurança alimentar" com esse segundo sentido resulta relativamente
impreciso e confuso. Por essa razão, há quem prefira empregar o termo
'segurança sanitária' dos alimentos ou da cadeia alimentar (Fischler, 1998b;
Apfelbaum, 1998; Hubert, 2002).
De acordo com esse segundo significado, e em particular com as
representações sociais associadas ao risco alimentar, nos últimos dez anos
foram realizados numerosos trabalhos com o objetivo de analisar 'a
percepção social da segurança alimentar' (Apfelbaum, 1998; Bredahl, 1999;
Chateauraynaud & Torny, 1999; Latouche, Rainelli & Vermesch, 1999).
A maioria desses estudos procura entender por que aumentou a percepção
negativa da população sobre determinadas aplicações tecnológicas na
produção dos alimentos e, em geral, sobre a alimentação industrial. Essa
percepção negativa resulta, a priori, surpreendente, posto que os alimentos
nunca foram tão abundantes como agora, os controles de qualidade
dentro da cadeia alimentar nunca foram tão numerosos e eficientes, e,
também, a esperança de vida das pessoas nunca alcançou níveis tão altos.
De fato, os dados mais recentes, hoje disponíveis, sobre produção
e armazenamento de alimentos ressaltam que nunca, na história do mundo

352
ocidental, uma população teve tanto o que comer nem esteve tão livre
dos períodos de escassez como agora. Ou seja, nunca houve tanta
'segurança alimentar'. Entretanto, a "insegurança" não desaparece e,
inclusive, aumentam as incertezas' e as dúvidas sobre o que comemos e os
'riscos', ou seja, os danos potenciais/prováveis para nossa saúde, que
nossa comida pode conter. Segundo o Crédoc (2001), se em 1997 35%
dos franceses opinavam que os produtos alimentícios apresentam algum
risco para a saúde e 20% diziam que apresentavam riscos importantes,
três anos mais tarde, em 2000, esses resultados aumentaram para 40% e
30%, respectivamente. Definitivamente, parece que, cada vez mais, maior
número de pessoas tem mais dúvidas acerca da inocuidade alimentar.

A Construção Social do Risco ou


a Emergência de uma Nova Sociedade
Para abordar as dimensões e significados das incertezas geradas
em relação ao consumo alimentar, é oportuno recorrer aos enfoques
teóricos desenvolvidos nas duas últimas décadas do século XX sobre o
conceito de risco, 44 no âmbito da sociologia e da antropologia. Esses
enfoques podem ser sintetizados em duas diferentes abordagens: por um
lado, a da 'sociedade do risco', desenvolvida sobretudo por Beck (1996,
2002), Giddens (1994, 1999) e Bauman (1998, 2001); por outro, a da
'teoria cultural', de Douglas e Wildavsky (1983), Bellaby (1990), Boltanski
e Thévenot (1991).

As Sociedades Modernas e o Risco


Os teóricos que adotaram a abordagem da 'sociedade do risco'
tenderam, geralmente, a se concentrar nos aspectos macroestruturais da
organização econômica e política das sociedades modernas recentes e
em suas implicações nas condutas das pessoas em sua vida cotidiana.
44
Dependendo do enfoque disciplinar, o risco foi considerado em diferentes sentidos:
há quem o diferencie de perigo (exposição física a uma ameaça), outros se referem
a uma ameaça provável (mas que pode não significar nenhum dano), outros incluem
um matiz relacionado ao acaso Uogo ... ). Em qualquer enfoque, o sentido que
damos aqui é o de dano potencial referente, em princípio, a uma realidade possível,
ainda que não necessarimente objetiva. Por outro lado, em sua obra Social Theories
of Risk, Krimsky e Golding (1992) classificam e explicam diferentes abordagens
sociológicas e antropológicas do risco em vigor entre os anos 70 e finais dos 80.
Tais abordagens giram em torno do conceito de ator raciona l, da teoria da
mobilizaçao social, da teoria organizacional, da teoria de sistemas, da teoria crítica
e neomarxista, do construtivismo social e da teoria cultural.

353
Para eles, a causa principal da crescente intensificação da ansiedade em
torno da saúde ou do meio ambiente se relaciona com alguns dos efeitos
negativos da modernização e da industrialização intensiva. Nessa
perspectiva, a preocupação com o risco é uma resposta racional às
percepções que os indivíduos têm sobre as novas incertezas e perigos. De
fato, a sociedade moderna não se caracterizaria apenas por sua
capacidade de produzir riqueza, mas, também, pelas possibilidades de
'criar/fabricar riscos' (manufactured risks) através de seu sistema produtivo.
Riscos que, por outro lado, à margem de toda lógica probabilística e
matemática, seriam difíceis de prever e calcular.
Em relação ao consumo de alimentos, na denominada 'sociedade
do risco', o que poderia ter sido considerado como vantagens derivadas
da industrialização agora tem sido avaliado conforme os perigos aos quais
estão submetidos a produção e o processamento de alimentos em larga
escala (Lupton, 2000; Beardsworth & Keil, 1997). Nessa perspectiva, os
riscos relacionados aos alimentos são da mesma ordem de outras
ansiedades próprias das sociedades contemporâneas. Assim, os temores
ou a preocupação com os riscos devem ser considerados como respostas
relativamente lógicas a algumas das consequências da organização da
produção e das aplicações tecnológicas, na medida em que podem ter
dado lugar à degradação ambiental como consequência de uma aplicação
sistemática e generalizada de pesticidas, fertilizantes ou mesmo da
manipulação genética, por exemplo. Assim, em alguns casos, os alimentos
processados foram apresentados como produtos perigosos para a saúde
na medida em que seu "processamento" pode ter significado a perda de
fibra ou de vitaminas ou aumentado seu conteúdo de gorduras, açúcar
ou sal ; também, simplesmente, pelo aumento de alguns componentes
"químicos" cujos efeitos sobre a saúde podem ser pouco conhecidos: o
emprego mais ou menos generalizado dos chamados 'aditivos'.
Do mesmo modo, e de forma paralela, a indústria alimentícia é
percebida e apresentada, sobretudo, como um agronegócio, destacando,
sobretudo, sua dimensão empresarial, para a qual o que mais importa é
o lucro, ainda que em detrimento da qualidade do que se produz ou do
bem-estar dos animais. Por sua vez, os governos são vistos mais como os
protetores desse negócio, resistentes a introd uzir ou fazer cumprir as
necessárias regulamentações destinadas a garantir a segurança dos
alimentos produzidos.
Nessas sociedades modernas, os experts (cientistas, especialistas,
técnicos, responsáveis etc.) identificam as causas e o alcance dos riscos e
propõem soluções para sua gestão. Porém, devido às situações de risco, a

354
discrepância entre eles é mais frequente do que o acordo. Essa falta de
acordo é, frequentemente, percebida como a "demonstração" de que os
experts opinam em função dos seus interesses, não necessariamente
científicos, e dos interesses daqueles que representam, o que coloca em
dúvida sua credibilidade. Assim se apresentam a controvérsia e o debate,
e também a reflexão: nas sociedades modernas as pessoas pensam sobre
os riscos, refletem até que ponto são evitáveis ou até que ponto se deve,
pode ou quer viver com eles.
Os indivíduos, por sua vez, como sempre, gerem os riscos de
maneira coletiva ou individual e tentam responder a eles de modo
racional. Assim, por exemplo, diante da possibilidade de que certos
alimentos estejam contaminados, as pessoas podem deixar de consumi-
los, total ou parcialmente, temporal ou definitivamente. Podem ser
modificados os conteúdos das classificações existentes sobre os alimentos,
por exemplo, sobre os alimentos considerados "bons" e "maus". Podem
introduzir categorias novas, como "artesanal", " puro", "natural", "de
confiança" etc. Por outro lado, na medida em que as empresas, as
administrações, os cientistas ... podem perder credibilidade, os indivíduos
reagem criando novas instâncias que possam contribuir para o aumento
da segurança: movimentos ou organizações mais ou menos informais ou
"não governamentais", associações ecológicas, organizações para a defesa
dos "consumidores" etc.
Essa abordagem, representada por autores como Giddens e Beck,
centrou-se, sobretudo, nas respostas sociais ou individuais adotadas
quando se conceitua e analisa o risco derivado da industrialização. Esse
tipo de enfoque corre paralelamente a certa 'ecologização' dos discursos
políticos, na medida em que destaca os novos riscos que as constantes
inovações tecnológicas de caráter produtivista podem significar para o
meio ambiente. Nessa mesma medida, o desenvolvimento da percepção
do risco, ou dos riscos, dá lugar a manifestações diversas de caráter
reivindicativo por parte de diferentes âmbitos sociais e trabalhistas (Theys,
1991). Partindo desse enfoque, entretanto, levam-se em conta apenas os
processos e os conteúdos que os próprios indivíduos desenvolvem na
construção e representação do risco e os modos como a própria cultura
os influencia. E, precisamente, disso que trata a teoria cultural que
veremos a seguir.

Representações Sociais do Risco: o prisma das culturas


A 'teoria cultural' de Douglas e Wildavsky (1983) e suas posteriores
reformulações concentraram seu interesse em conhecer e explicar como e

355
por que determinados fenômenos são suscetíveis de 'se converter em
problemas', e outros não. Todos os conceitos socioantropológicos sobre o
risco desenvolvidos nas duas últimas décadas compartilham uma mesma e
principal ideia: 'o risco é uma construção social'. O que determinadas
sociedades consideram como objeto de temor e incerteza não
necessariamente o é para outras. Os seres humanos não percebem o mundo
através de olhos cristalinos, mas sim de "lentes de percepção", filtradas
por significados culturais e sociais: "Nada é verdade, nem mentira .. .".
Para ilustrar essa ideia utilizaremos um exemplo mencionado por
Hubert (2002). Quando há pouco ou nada para comer, a percepção do
risco é muito relativa. Entre aqueles que passam fome, a garantia de que
o que comem não é potencialmente danoso não é sua primeira ou
principal preocupação. Os trabalhadores rurais sem terra do sul do Brasil,
assim como de outros lugares do mundo, sugeriram às autoridades
europeias que poderiam lhes enviar os " bois loucos" que estavam
sacrificando aos milhares porque havia o risco, mais ou menos remoto,
de que a nova variante da doença de Creuzfeldt-Jacob afetaria os
humanos. Assim, não parecia que esses trabalhadores rurais pobres
temessem muito a possibilidade dessa doença. De qualquer modo, uma
doença que poderia se manifestar em vinte anos era algo que, para eles,
com uma esperança de vida menor que a dos europeus, preocupava pouco
ou menos do que a recorrente falta de alimentos. Por outro lado, também
não parece que o risco do príon exista para aquelas pessoas que confiam
plenamente nas autoridades sanitárias, nos produtores e nos distribuidores
da carne bovina.
Assim, seria possível dizer que, nessa perspectiva teórica, mantém-
se a ideia de que 'para cada cultura, seus riscos' ou 'para cada um, seus
riscos'. De aco rdo com Peretti-Watel (2000), os dois aspectos mais
importantes da teoria cultural do risco podem ser assim resumidos:
1) Apreendemos o risco dependendo de nosso 'sistema de valores e
crenças' e de nossa 'posição social e pessoal'. Esses valores -variáveis
no tempo - estão organizados em sistemas complexos adquiridos pela
socialização ou pela aculturação, e determinam se finalmente um
comportamento ou um objeto é preferido ou não em relação a outro.
2) Consequentemente, cada cultura "estabelece" determinados "riscos
assuntíveis", porque podem comportar um importante "benefício"
(lembremo-nos do refrão: "E/ que quiera peces que se moje e/ cu/o"
[Quem quiser peixes, que molhe a bunda]), e "riscos ruins", que devem
ser evitados.

356
Com relação à dicotomia riscos assuntíveis, ou bons, e ruins, é
oportuno insistir em outra ideia. Com frequência, os valores associados
a determinados riscos representam julgamentos morais implícitos, ainda
que mascarados pelo discurso do objetivo e dos dados quantitativos: por
exemplo, fumar, beber, ter relações sexuais ou dirigir carros podem ser
condutas arriscadas dependendo de nosso próprio comportamento ("bom"
ou "ruim"). É assim que parte da responsabilidácte e da culpa de um
possível dano se desloca para o terreno inâfvi dual. Isso se percebe
constantemente nos discursos médicos e da saúde pública que persuadem
as pessoas a conformarem "dietas" que evitem riscos/enfermidades para
a saúde, a controlarem a si mesmas, a serem responsáveis consigo mesmas ...
Em outro sentido, as ideias sobre segurança/insegurança alimentar
não são representadas do mesmo modo pelos membros de um mesmo
grupo social. Podem variar em função do gênero, da idade, da classe
social, da profissão etc. Tampouco todas essas ideias têm a ver apenas
com a saúde e com a doença. Pode haver pessoas para as quais o risco de
engordar não consista em contrair obesidade mórbida, mas sim em deixar
de ter um corpo socialmente aceitável. O dano, para elas, consistiria em
deixar de ser magras.
Assim, a aceitação do risco 'não depende do nível de competência
técnica' que tenham as pessoas, pois há diferentes pontos de vista para se
identificar e avaliar o que é ou não objeto de risco e o diferente significado
ou incidência para cada uma delas. Nesse sentido, Douglas (1992, 1996)
critica, por exemplo, a frequente dicotomia que se apresenta entre riscos
objetivos e subjetivos. Os objetivos estariam baseados em uma probabilidade
matemática e seriam avaliados pelos especialistas (são os ' saberes
especializados'). Os subjetivos estariam baseados na percepção social/
psicológica da população e poderiam apresentar maior debilidade cognitiva
(são os 'saberes leigos'). O estudo de Slovic (2000) é uma boa ilustração a
esse respeito. Slovic considerou as diferenças na percepção social do risco
para trinta atividades tecnológicas (energia nuclear, raios X, pesticidas etc.)
segundo quatro diferentes grupos de indivíduos (associação de mulheres,
clube de esportistas, estudantes e especialistas). Para a maior parte das
atividades consideradas, o risco percebido foi diferente entre os especialistas,
por um lado, e o resto dos grupos, por outro. O caso da energia nuclear, por
exemplo, é muito ilustrativo. Seguindo uma ordem decrescente de risco,
para o grupo de mulheres tal atividade estava no primeiro posto do ranking,
enquanto os especialistas a posicionaram no vigésimo lugar de sua lista.
Partindo das diferentes avaliações que este ou aquele grupo fazia
de uma mesma atividade, os especialistas parecem desaprovar a

357
irracionalidade da população que percebe "mal" os riscos: o cidadão
comum se preocupa com a energia nuclear, olha atravessado para seu
bife no prato, experimenta o milho híbrido fazendo careta ... mas nada
disso o impede de acender um cigarro bebendo uma taça de vinho, de
dirigir em alta velocidade, inclusive bêbado. Em sua perspectiva, a
probabilidade de morrer na estrada ou de cirrose é muito mais alta que
a de contrair a nova variação da doença de Creuzfeldt-Jacob. Isso significa
que os especialistas são mais racionais do que os não especialistas?

Saberes Especializados, Saberes Leigos


Foi apresentada a separação entre 'saberes especializados' e 'saberes
leigos'. Os primeiros avaliam e medem o risco; os segundos, se for o caso,
o percebem ou "representam". Ainda que apenas os especialistas (técnicos,
cientistas, experts) disponham dos instrumentos que permitem quantificar
os riscos e, consequentemente, definir sua existência - a estatística, o
cálculo de probabilidades etc. -, nem mesmo eles estão sempre providos
de razões objetivas para dar conta de todos os danos potenciais. Podemos
nos perguntar por quê. A resposta está relacionada com o fato de que
nem todos os riscos são tão bem conhecidos como os acidentes nas
estradas,45 por exemplo. E, além disso, acontece que diante de um mesmo
problema suas avaliações podem ser díspares e, inclusive, contraditórias.
Certas 'crises' alimentares, como foi o caso da "vaca louca", ou
polêmicas, como a relativa aos "alimentos transgênicos", destacaram a
dificuldade de se avaliar o risco segundo uma lógica probabilística em
função das numerosas dúvidas que se apresentam conforme as diferentes
visões e setores de interesse ou preocupação. Além disso, os "saberes
especializados", em ambos os casos, não são suficientemente "definitivos"
para resolver as crises ou iniciar as polêmicas. No caso da encefalopatia
espongiforme bovina (EEB) e seus mecanismos de transmissão, há muitas
perguntas a responder e os diferentes experimentos científicos, por
exemplo , não foram conclusivos nem no sentido de confirmar sua
transmissão aos humanos nem de descartá-la por completo. O mesmo
acontece com relação às possíveis consequências negativas sobre o meio
ambiente que possam ocasionar o uso indiscriminado e generalizado de
organismos geneticamente modificados (OGMs) (Duelos, 1996).
Assim, os especialistas se veem obrigados a aplicar o 'princípio de
precaução' (Ewald, 1996) em diversas ocasiões. Tal princípio de ação

45
Sua probabi lidade é calculada mediante uma análise causal das regularidades
observadas no passa do .

358
incita, diante de perigos potenciais graves ou muito graves, e em um
contexto de incerteza científica, a prevenir o perigo sem esperar as provas
das possíveis consequências negativas.
Contudo, uma vez admitido que existem diferentes formas de
apreender o risco, inclusive de defini-lo, seria pertinente não apelar para
a falta de racionalidade dos 'leigos', ou seja, da população em geral, atitude
relativamente frequente por parte dos "especialistas". As avaliações dos
leigos, ainda que distintas, são não apenas legítimas,46 mas também, quase
sempre, racionais de acordo com suas percepções e com as alternativas de
que eles dispõem para avaliar em cada contexto de tomada de decisão. No
caso de os especialistas considerarem que as percepções dos leigos e suas
atitudes não são lógicas ou racionais, eles deveriam se perguntar qual é
sua natureza e quais suas razões de ser, assim como quais as possibilidades
de que seus argumentos "científicos" sejam nem tão compreensíveis mas
sim, e sobretudo, críveis, dignos de confiança. É muito simples apresentar
o conjunto da população como incapaz de compreender os argumentos
científicos e facilmente manipulável pelos meios de comunicação ou por
algumas organizações que, frequentemente, são tachadas de demagógicas.
Frequentemente, as percepções e as avaliações delas derivadas por
parte dos leigos são fruto de conhecimentos empíricos, de experiências
vividas. Suas avaliações são, inclusive, previsíveis. De fato, os riscos novos
são menos aceitos que os riscos conhecidos (familiaridade). Mais uma
vez, um refrão pode ser um bom exemplo: "Más vale maio conocido que
bueno por conocer" [Mais vale mal conhecido do que bem por conhecer].
Ainda assim, os riscos naturais suscitam menos indignação que os
derivados da atividade humana (causalidade). Também é melhor tolerado
um risco deliberadamente assumido (escolha) do que aquele que parece
transgredir a ordem natural das coisas (manipulação): por exemplo, os
bois que se tornam carnívoros (Fischler, 1998a). Assim, são as experiências
e as ideias que as pessoas vão gerando sobre uma técnica ou aplicação
que determinam finalmente suas percepções ou, melhor dizendo, as
representações sociais do risco, entendidas como aqueles conceitos
relativos a objetos cujo sentido é construído e compartilhado de forma
46
Chateauraynaud e Torny (1999), com base em três informes (sobre o amianto, a
vaca louca e as fontes de radioatividade), explicam como os leigos atentos podem
se converter em " lançadores de alerta", substit uindo especi alistas deficientes,
incapazes ou pouco desejosos de alerta r a opinião pública, e adquirindo por
iniciativa própria uma experiência e uma competência técnica e científica. O caso
do mal da vaca louca é muito significativo: leigos e especialistas podem defender
duas concepções distintas de conhecimento e ação.

359
coletiva. 47 Assim, por exemplo, hoje, a maioria da população aceita
positivamente o congelamento dos alimentos, algo que não acontecia
da mesma forma há cerca de trinta anos.

A Construção Social das Incertezas Alimentares


A Insegurança Alimentar: medo de que e por quê?
Nas sociedades industrializadas, uma vez resolvido o primeiro
problema alimentar, o da garantia do nível de subsistência, o interesse se
concentra em saber se sua alimentação, escolhida mais ou menos
livremente e entre diversas opções, resulta confiável em termos de
qualidade e inocuidade. As inovações em matéria de produção,
processamento, conservação e distribuição (maior disponibilidade, mais
higiene, maior quantidade de comida, mais barata ... ) incluíram tantos
aspectos positivos que, para a população, torna-se difícil aceitar que as
melhoras na produtividade tenham que ser obtidas à custa da qualidade
e da segurança dos alimentos.
Por outro lado, a "industrialização" da alimentação deu lugar a
uma ideia cada vez mais persistente e, também, mais correta, de que
'sabemos cada vez menos sobre o que comemos'. Essa ideia ou percepção
torna-se facilmente aceitável quando se considera que os alimentos são
cada vez mais "processados", mais transformados, de maneira que a 'cadeia
alimentar' é cada vez mais complexa e, também, mais distante ou afastada
do cidadão. Mas, também, e em um sentido muito diferente, a sucessão
e a relativa frequência de "crises alimentares" contribuem para "revelar"
aspectos não conhecidos, não imaginados e "não aceitáveis" da
manipulação dos alimentos, pois pode se tratar de aplicações tecnológicas
cuja existência e alcance eram previamente desconhecidos: por exemplo,
as vacas comendo farinhas de carne elaboradas com os resíduos dos
próprios animais ou com restos de ovelhas doentes.
Para os especialistas, muitas dessas crises foram apenas "sustos"
mais ou menos irrelevantes (casos do "azeite de bagaço", da "vaca louca",
47
A diversidade das percepções do risco esbarra no sentido habitual do termo
'percepção', por isso alguns estudiosos preferem utilizar o conceito de
representação. Perceber é provar uma sensação, tocar uma realidade tangível.
Entretanto, os riscos a que aludimos não são necessariamente percebidos ,
frequentemente são imperceptíveis: o príon da vaca louca e o gen transmutado
escapam completamente aos nossos cinco sentidos. Por essa razão, considera-se
mais oportuno recorrer ao termo 'representações sociais', entendidas como
conceitos relativos cujo sentido é gerado na conveniência social (Lahlou, 1998).

360
dos "alimentos transgênicos", dos "frangos com dioxinas", dos
"hormônios de engorda para o rebanho" ... ), já que o número de pessoas
afetadas e a probabilidade de contrair alguma doença grave, ou mesmo
de morrer, foi muito baixa. Entretanto, para a população comum, esses
problemas costumam ter outro significado. Põem a descoberto
determinados aspectos "invisíveis" da cadeia alimentar. Revelam também
que, apesar de a produção de alimentos estar, jurídica e cientificamente,
mais controlada do que nunca, há falhas importantes em diferentes etapas
da cadeia. A população é sensível a todas as experiências desse tipo, as
quais, por sua vez, comformam as representações sociais.
O ' reconhecimento fortuito e inesperado' do risco e sua
concrétização como algo tão cotidiano, frequente e inevitável quanto a
própria comida, especialmente quando se trata dos alimentos básicos, os
mais consumidos e os mais valorizados (carnes, cereais, peixes), foram
traduzidos de diversas maneiras:
1. Desconfiança cada vez maior em relação à cadeia alimentar. Em
matéria de alimentação, a população não parece querer aceitar riscos
que não são 'necessários' e considera 'pouco úteis' ou 'pouco vantajosas'
algumas das aplicações das inovações científicas e tecnológicas no
âmbito da comida: alimentar as vacas com farinhas de carne infectadas,
aplicações tecnológicas orientadas nem tanto para melhorar a qualidade
organoléptica dos alimentos ou seu valor para a saúde, mas sim para
facilitar sua conservação, transporte, acelerar sua maturação ou
crescimento etc.
2. Ceticismo generalizado diante da maneira de gerir e resolver
politicamente os problemas que afetam mais diretamente o cidadão,
seja em termos de saúde, economia ou meio ambiente. A desconfiança
e o ceticismo social implicam um questionamento do modelo científico
e dos objetivos das ciências, mas sobretudo do 'modelo de gestão
política'. Cada controvérsia alimentar revela as mesmas questões -
incerteza, ocultamento de informação , medidas insuficientes,
avaliações científicas contraditórias. Além disso, os consumidores não
detectam mudanças significativas nas maneiras de atuar e de dar
respostas aos problemas que vão surgindo nem no modo de informá-
los ou de levar em consideração suas opiniões.
Nesse contexto, os OGMs e, em particular, os alimentos transgênicos
(AGMs) constituem um caso paradigmático para ilustrar as diferentes
questões que foram tratadas nas seções anteriores. Desde o início dos
anos 90 do século passado, passou-se de uma situação na qual os AG~s
eram considerados artigos como qualquer outro, sem restrições em sua

361
produção e comercialização - e validados, além disso, por diversos
argumentos positivos (possibilidade de acabar com a fome mundial, de
reduzir custos de produção, de elaborar 'superalimentas' ...) -, a outra
na qual foi preciso aplicar 'o princípio de precaução' e moratórias de
facto diante do reconhecimento da incerteza científica e dos danos
potenciais que esses organismos poderiam representar para a saúde e
para o meio ambiente.

O 'Caso' dos Alimentos


Geneticamente Modificados (AGMs)
Em primeiro lugar, deve-se destacar que os OGMs e, mais
especificamente, os AGMs, são o resultado de aplicações biotecnológicas.
A biotecnologia, por sua vez, tem como objeto o estudo científico dos
métodos e aplicações cujo suporte são os seres ou organismos vivos para
a obtenção e melhora de produtos, tais como alimentos ou medicamentos.
Os OGMs são organismos cujo material genético (ADN) recebeu
intervenções e foi modificado, ou aqueles em que os microrganismos
causadores da fermentação foram geneticamente modificados, ou ainda
os alimentos que têm uma substância ou aditivo alimentar obtido pela
engenharia genética (amidos, enzimas, lecitinas etc.).
No âmbito alimentar, tais aplicações afetam principalmente os
vegetais, animais e produtos fermentados , ainda que o campo das
aplicações agrícolas seja o que experimentou maior crescimento. De
acordo com os dados elaborados pelo Serviço Internacional sobre a
Incorporação da Biotecnologia na Agricultura (ISAA) , a superfície
cultivada com vegetais transgênicos passou de apenas duzentos mil
hectares cultivados, em 1995, para mais de 52 milhões em todo o mundo,
em 2002. A superfície cultivada destinada a sua comercialização se divide,
entretanto, entre 13 países, dos quais apenas quatro monopolizam 99%
da produção: Estados Unidos, Argentina, Canadá e China. O 1% restante
se divide entre Austrália, África do Sul, Romênia, Bulgária, Ucrânia e
México. Na União Europeia, os principais produtores são Espanha,
Portugal e França. Entre tais cultivos, destacam-se a soja, o milho, os
tomates ou a chicória. No ano de 2004, mais de trezentos alimentos
permaneceram à espera, ou em fase final de experimentação ou em fase
de aprovação para comercialização.
A princípio, todos os setores deveriam se beneficiar dos OGMs:
produtores, agricultores, pecuaristas, piscicultores, distribuidores ,
consumidores ... , uns vendendo sementes e produtos agroquímicos, outros

362
obtendo maiores lucros de suas plantações, animais ou peixes, outros
podendo armazenar os produtos por mais tempo. Os consumidores, por
sua vez, poderiam comer alimentos com melhor sabor, mais nutritivos ou
mais baratos. Eram-lhe atribuídos tantos benefícios em potencial que,
em um primeiro momento, chegou-se a se sugerir, inclusive, que os AGMs
poderiam acabar com a fome mundial e, consequentemente, garantir a
segurança alimentar mundial. Entretanto, a maior parte das aplicações
biotecnológicas teve como objetivo responder aos interesses econômicos
ou biomédicos originados nos países denominados do Primeiro Mundo.
Com efeito, até o momento, suas principais aplicações estiveram
concentradas em:
• Produzir plantas livres de doenças, de pragas e resistentes a herbicidas.
• Reduzir tempos de maturação em queijos ou conseguir vinhos com um
incremento do aroma de fruta.
• Modificar genes para retardar a maturação sexual e aumentar seu
tamanho.
• Criar animais transgênicos para melhorar sua eficiência alimentar.
• Descobrir e melhorar novas vacinas e diagnóstico de doenças.
• Desativar proteínas causadoras de intolerâncias.
• Produzir, conservar e armazenar in vitro bancos de sementes.
Definitivamente, e salvo exceções, como no caso dos cultivos que
estão sendo realizados na Nicarágua e na Costa Rica ou em outros países
tropicais, com a mandioca e a batata sendo produzidas com maior
conteúdo de aminoácidos ou com a inclusão de ferro ou substâncias
precursoras de vitamina A (Simon, 1998; Gura , 1999), as aplicações
biotecnológicas agroalimentares estiveram orientadas quase exclusivamente
para beneficiar determinados setores da indústria agropecuária alimentar
e grupos muito específicos da população das sociedades industrializadas.
Mesmo que, como indicam Ramón e Calvo (2001) , não seja difícil
construir variedades de mamão capazes de crescer em solos ácidos,
desenhar alimentos que atuem como vacinas e, inclusive, conseguir
variedades de arroz transgênico com alto conteúdo de provitamina A e
ferro capazes de solucionar os problemas de avitaminose nas sociedades
em desenvolvimento em que esse cereal é a base da dieta.

A Construção Social do Risco em torno dos AGMs


Nesta parte, a questão que interessa abordar é quando e por que
os AGMs foram convertidos em objeto de debate público. No decorrer

363
da década de 90 do século XX, a sucessão de vários "sustos" alimentares
colocou gravemente em xeque a inocuidade e a falta de controle na
cadeia alimentar. O dia 20 de março de 1996 será, provavelmente, fixado
como a data que marca a entrada das sociedades industrializadas naquilo
que se denominou a era do risco alimentar ou, em sua segunda definição,
da 'segurança alimentar' (Sciences Humaines, 124, 2002: 32-33). Nesse
dia, o ministro britânico da Saúde, Stephen Dorrell, anunciou na Câmara
dos Comuns a alta probabilidade do vínculo entre a nova forma da doença
de Creuzfeldt-Jakob, contraída por alguns indivíduos, e a exposição ao
agente patógeno da encefalopatia espongiforme bovina (EEB) , mais
conhecida como doença da vaca louca.
A partir daquele momento, as notícias na televisão, no rádio ou na
imprensa diária informaram regularmente que o conteúdo de nossos pratos
era suscetível de abrigar 'perigos' mais ou menos prováveis, ainda que em
uma escala infinitamente pequena. Desde então, a alimentação parece
repleta de salmonelas, príons, dioxinas e outros germes contaminadores
mais ou menos escondidos no interior de nossas comidas habituais e que,
supostamente, ameaçam nossa saúde. Nesse contexto de alertas alimentares,
o cidadão consumidor europeu descobre outro acontecimento do sistema
agropecuário que também gera dúvidas e espalha temores: os organismos
geneticamente modificados. Ao lado das farinhas animais, os AGMs se
converteram, mediante as ações e tomadas de posição de diferentes
assoCiações ecológicas (Greenpeace, Os Amigos da Terra, Ecoropa etc.)
ou de agentes e grupos de pressão (políticos, sindicalistas, agricultores,
científicos), em novos sintomas de riscos derivados de uma agricultura
industrial que privilegia a quantidade e o lucro em detrimento da qualidade,
da preservação da saúde pública e do meio ambiente (Roy, 2001).
Nosso interesse aqui não é discutir o alcance real desses riscos.
Partindo da antropologia, o que interessa é poder explicar por que os
AGMs são percebidos como objeto de risco e, consequentemente,
suscetíveis de se converterem em um problema social. Antes da referida
data, as comissões de engenharia biomolecular de alguns países europeus
haviam elaborado informes com opiniões favoráveis à comercialização
do milho transgênico (da empresa Ciba-Geigy, depois convertida em
Novartis). Consideravam os riscos de transferência dos genes resistentes
aos microrganismos presentes no solo extremamente débeis. Entretanto,
em 1995, começou-se a falar na mudança climática e, em alguns países -
sobretudo Dinamarca e Áustria - , as associações de consumidores
protestaram até o ponto de seus governos proibirem o cultivo e os
agricultores culparem os laboratórios de testes.

364
Na primavera de 1996, no auge da crise alimentar da "vaca louca",
os AGMs ainda não eram levados em conta. Entretanto, as sensações de
inquietação em torno dos riscos alimentares começavam a crescer e as
plantas transgênicas começaram a ser questionadas. No âmbito alimentar,
surgiram muitas vozes discordantes que questionaram abertamente sua
utilização, apesar da inocuidade sustentada pelos EUA - por outro lado,
considerado o "paraíso" da liberdade dos organismos geneticamente
modificados, tanto em seu cultivo como em sua comercialização. Alguns
pesquisadores exigiram dos cientistas o estabelecimento de certo controle
da engenharia genética, argumentando com as incertezas em relação aos
possíveis efeitos da disseminação dos OGM sobre os ecossistemas e a saúde
humana ou com suas implicações para os países em desenvolvimento.
Invocaram, então, a aplicação do 'princípio de precaução'. Diante da
iminência da comercialização dos primeiros alimentos transgênicos suíços
e norte-americanos, alguns cientistas europeus recomendaram a aplicação
de uma moratória sobre as disseminações.
A partir dessas datas, as divergências dentro da própria comunidade
científica começam a ecoar nos meios de comunicação de massa. Em 1996,
os jornais diários reproduzem o conteúdo de artigos publicados em revistas
como Nature sobre os riscos da disseminação da colza transgênica.
Paralelamente, junto com a ampliação da crise da "vaca louca", ativa-se a
discussão em tomo dos AGMs. Em sua edição de 1 de novembro de 1996,
o diário francês Libération coloca o título, na primeira página, ''Alerta
contra a soja louca". Em fevereiro de 1997, a revista espanhola Integral
utiliza o título "Frankenstein na tua mesa: a manipulação genética dos
alimentos" para introduzir um artigo de cinco páginas sobre o tema.
Em diferentes países da Europa, iniciam-se mobilizações por parte
das associações de consumidores e grupos ecologistas diante da chegada
da soja transgênica da firma Monsanto. As primeiras exigem a 'descrição'
das substâncias transgênicas que entram na composição dos produtos
alimentares e recomendam que recebam marcações nas etiquetas e rótulos
de todos os artigos que as contenham. Os grupos ecologistas, por sua
vez, impedem o desembarque dos carregamentos de soja transgênica nos
principais portos de alguns países europeus. Os poderes públicos intervêm
com o objetivo de regular as discussões, por intermédio dos comitês de
prevenção e de precaução formados por especialistas, e de estabelecer as
linhas de atuação para a autorização ou a proibição do cultivo e
comercialização das substâncias transgênicas que sejam confirmadas como
inócuas e, portanto, livres para cultivo e comercialização. Esses comitês
recomendam moratória até que haja provas mais conclusivas.

365
Assim, independentemente do conhecimento dos resultados de
diversos experimentos e de alguns efeitos que os AGMs estavam
apresentando ou poderiam apresentar para o meio ambiente, para a
saúde e para a sociedade, a polêmica não deixou de crescer a partir de
meados da década de 90, tendo alcançado seu ápice entre 1999 e 2001.
Nesses anos foi publicado o trabalho da equipe britânica de Putzai sobre
os supostos efeitos negativos das batatas transgênicas consumidas por
ratos, e outros estudos sobre as alergias detectadas pelo consumo de
certa soja transgênica, a morte de larvas da borboleta monarca, a
contaminação genética de plantas silvestres ou os efeitos secund ários da
aplicação dos hormônios de crescimento em animais - malformações,
transtornos reprodutivos, mastite etc. - , entre outros. Com frequência,
os resultados desses trabalhos foram criticados dentro da mesma
comunidade científica, que lhes atribuiu erros de ordem metodológica.
Ao longo desse período, foram destacados numerosos riscos
associados aos organismos geneticamente modificados, e não apenas
relativos à saúde humana ou ao meio ambiente, mas também aos
potenciais danos sociopolíticos, dos quais alguns dos mais relevantes estão
no quadro a seguir.
A controvérsia alcança não somente os poderes públicos dos
governos de cada país, mas também a União Europeia como instituição.
Desde 1990, a União Europeia tem elaborado distintos textos para gerar
um dispositivo de controle sobre os OGMs com relação à sua utilização e
disseminação. Tais textos foram motivados pela necessidade de se adotar
um marco regulador capaz de harmonizar as diferentes abordagens
nacionais em matéria de ava liação da segurança dos OGMs e com o
objetivo de garantir a livre circulação dos produtos dentro do espaço
comunitário. As diretrizes estabelecidas desde então, e que geraram
centenas de informes técnicos, ambém não estiveram livres de
questionamentos. Hoje, no panorama europeu, as atuações dos diferentes
governos, ainda tentando evitar o confronto com o governo comunitário
de Bruxelas, são diferentes em função das diferentes interpretações que
cada um deles fez do conceito de 'efeito adverso' em relação ao possível
dano ambiental e à saúde. De qualquer forma , as discrepâncias foram
aumentando com o tempo e deram lugar a sucessivas moratórias para a
regulação do cultivo dos OGMs no solo europeu (Cuerda et ai. , 2000).
A diretriz europeia sobre vegetais transgênicos aprovada em 2001,
e adotada na Espanha no início de 2003, deve ser interpretada como o
passo para o levantamento da moratória de facto imposta pelo Parlamento
Europeu em 1999, na medida em que representa as regras do jogo sobre

366
as quais são estabelecidos os mecanismos de controle e é definido o
marco no qual podem se movimentar as empresas produtoras de sementes
transgênicas. Especulou-se, então, que isso aconteceria no fim do mesmo
ano ou, na pior das hipóteses, na primavera de 2002. Ao fin al, e depois
de numerosas pressões internacionais, no último trimestre de 2003 a
referida regulamentação passou a vigorar em sua totalidade, uma vez
publicadas as normas específicas sobre rotulagem e rastreabilidade e sobre
responsabilidade ambiental nela não contempladas.

Quadro 15 - Riscos possíveis


Para a saúde
Reações alérgicas imprevisíveis. Transferência da resisrência a amibió à cos.
Ourras reações similares às reações de animais de labo raró rio ...
Ambientais
Dispersão de OGMs em populações silvesrres. Susceribilidade de inseros
benéficos (que não são pragas) . Redução do especrro vegera l e animal.
Maior uso de subsrâncias qu ími cas na agriculrura ...
Sociopolíticos
Comro le do mercado de se memes generi cam em e mod ificadas po r po ucas companhias
quími cas. Aum enro de desigualdades emre o norre e o sul : rrabalhado res rurais pobres
dependem es dos preços das sememes G M e a vo lra dos agroquímicos ao mercado
(genes rerminaror). Merca milização das novas fo rm as de vida (parem es) .
Bio pirarari a: apropriação por parre das empresas rransnacio nais e dos govern os
dos países indusrrializados de recursos ge néricos em benefício pró prio e em
derrimenro dos produrores aurócton es : variedade indiana do arroz Bas ram i etc.

Evolução da Aceitação ou da Recusa


dos AGMs: uma abordagem transcultural
A pesquisa sobre a inocuidade sanitária e ambiental dos alimentos
transgênicos - financiada freq uentemente pelo investimento privado de
alguns laboratórios multinacionais - e os resultados contraditórios
de boa parte desses estudos serviram como base para a desconfiança
pública e para ace lerar mobilizações sociais contra sua produção e
comercialização. A sensação de incerteza aumentou, por sua vez, com a
urgência com a qual vários estados da União Europeia e de outros lugares
do mundo foram firmando diferentes Protocolos de Biossegurança
(Cartagena, Montreal etc.) para se dotar de medidas legislativas que
contemplem princípios básicos na an ~ li se dos possíveis riscos desses
produtos para a saúde humana e para o meio ambiente.

367
Se determinadas atitudes diante de affaires ·ou crises alimentares
foram parecidas entre as populações dos diferentes países nos quais foram
produzidas, as reações sociais aos AGMs variaram em tipo e em
intensidade de acordo com os países (Gaskell & Bauer, 2001; Cáceres et
a!., 2001; Cheveigné, Boy & Galloux, 2002). A Espanha, por exemplo,
parte de uma posição peculiar em relação ao debate sobre os alimentos
transgênicos. As diferentes pesquisas europeias (Eurobarômetro, 1996,
1999) e espanholas (CIS, 1996, 1997a, 1997b) realizadas nos últimos anos
mostram que a opinião da população espanhola foi se modificando de
forma significativa. De fato, os espanhóis se mostravam, inicialmente,
menos reativos que outros países às aplicações biotecnológicas orientadas
para a melhora do sabor ou da qualidade de certos alimentos ou à
resistência aos insetos. Em 1997, a taxa de aceitação era de 53%, enquanto
que em países como Áustria ou Dinamarca essa mesma taxa era de 18%
e 30%, respectivamente. Em sondagens mais recentes, a população
espanhola se mostra mais resistente, e apenas 35% da população estariam
de acordo com a aplicação dessas técnicas para, hipoteticamente,
melhorar algumas características dos alimentos. Apesar disso, no contexto
europeu, Espanha, junto com Portugal, Finlândia e Irlanda, continua
mostrando maior aceitação 48 em relação à média de outros países,
especialmente no tocante ao uso de sementes transgênicas. Essa evolução
em direção à maior recusa demanda certa reflexão.
A análise das atitudes do público em relação às aplicações da
biotecnologia, e em particular em relação aos OGMs, constitui uma área
de pesquisa desenvolvida há uma década. Tal linha de pesquisa foi
promovida, fundamentalmente, ainda que não somente, pelos políticos
e pelos gestores da atividade científica e tecnológica. Em geral, a
aceitação pública da ciência é positiva, ainda que possa ser discrepante
em questões específicas. Quanto às aplicações biotecnológicas, elas são
muito mais bem aceitas no campo da medicina do que no campo da
alimentação. De fato, o Eurobarômetro de 2002, tendo feito consultas
sobre cerca de seis aplicações específicas da biotecnologia - por exemplo,
48
Em qualquer caso, essas cifras devem sempre ser tomadas com certa precaução,
pois é muito significat ivo que 70 % das respostas espontâneas relativas ao que se
acredita entender por AGMs sejam, precisamente, "não sabe ou não respondeu".
Em enquete realizada por ocasião do IV Forum Internacion al da Alimentação
(2002) - Para onde vai a alimentação?, a pergunta que aferiu o grau de conhecimento
espontâneo dos AGMs obteve as seguintes respostas, em perce ntuais: Produtos
geneticamente modificados, 15 % ; Produto manipulado em laborató rios, 6% ;
Manipulação de produtos, 4%; Produto artificial, 3%; Outras respostas, 2%; Não
sabe ou não respondeu , 70 %.

368
alguns avanços biomédicos (bastante debatidos pela opinião pública)
como o emprego de testes genéticos para comprovar a existência de
doenças hereditárias ou a clonagem de células e tecidos humanos com
fins terapêuticos - , destacava que tais aplicações eram consideradas
moralmente aceitáveis, apesar das dúvidas de natureza ética que encerram.
Ajnda assim, esse tipo de pesquisa recebia apoio público. Entretanto, as
avaliações são muito distintas quando se pergunta sobre os alimentos
transgênicos. Em geral, considera-se que não são alimentos úteis e que,
ao contrário, geram um risco excessivo para a sociedade. Ajnda que haja
uma opinião ligeiramente mais favorável sobre as sementes transgênicas,
o saldo, no conjunto europeu, continua sendo negativo.

Gráfico 2 - Melhorar a resistência de certas plantas. Áustria, Noruega,


Luxemburgo , Dinamarca, Alemanh a, Irlanda , Suécia,
Europa, Espanha, França, Grã-Bretanha, Grécia, Bélgica,
Holanda, Itália, Finlândia, Portugal

'- '--- '--- '- '- '--- ' - '- 1- ~

..._ ..._ .__ .__ .__


'--- - 1- '- ~
- 1- - ..._ >----

.__ .__ .__ .__ ..._


.__ 1- .__ 1- .__ 1- .__ .__ ..._
..._ 1- ..._ 1- .__ .__ .__ 1- .__ 1- .__ 1- .__ ..._ ...__

01 996 • 1999

Fonte: Cheveigné, Boy & Galloux, 2002: 142-146.

Ajnda que o tipo de perguntas incluídas nas sondagens e inquéritos


requeira por si só uma aná lise crítica e, do mesmo modo, a leitura das
cifras deva ser feita com extremo cuidado e certo distanciamento, uma
aná li se comparada entre períodos poderia contribuir com dados
significativos sobre as tendências de aceitação ou recusa dos alimentos
transgênicos, assim como sobre certas especificidades culturais. Para
ilustrar tais tendências, Cheveigné, Boy e Galloux compararam os
resultados extraídos dos E urobarômetro de 1996 e 1999. A comparação
está centrada na pergunta que suscitou maior rejeição e na que registrou
maior tolerância , 'me lh orar o sabor' e ' melhorar a resistência',
respectivamente. Os países estão ordenados segundo a porcentagem

369
crescente de aceitação a partir da pesquisa de 1996. Os primeiros
resultados expressam uma notória variação cultural.

Gráfico 3 - Melhorar o sabor - Áustria, Dinamarca, Noruega, Suécia,


Luxemburgo, França, Alemanha, Europa, Grã-Bretanha,
Irlanda, Bélgica, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e
Finlândia

- ~ - - - - - ~ - - ~ - - - ~ -

01 996 • 1999

Fonte: Cheveigné, Boy & Galloux, 2002: 142-146.

As interpretações dessas diferenças têm sido variadas: idiossincrasia


cultural, grau de industrialização, ignorância científica ... A proposta de
Cheveigné, Boy e Galloux é interessante. Eles procuram explicar as
diferentes atitudes perguntando-se sobre a dinâmica das políticas
tecnológicas e sobre a intensidade dos debates que estas suscitaram. Com
base nos dados registrados nos gráficos anteriores, os diferentes países
são agrupados e contrapostos da seguinte maneira:
a) Aceitação superior à média europeia. Inclui países do sul da Europa,
tais como Espanha, Portugal, Itália e Grécia, mas, também, Finlândia,
Bélgica e Holanda. No caso dos quatro primeiros, as atitudes
favoráveis foram explicadas pela maior aceitação de novidades
científicas e tecnológicas devido a uma situação de menor
industrialização e ausência de debate público. Em contrapartida, o
caso da Holanda se explica pelo contrário, ou seja, por sua maior
"maturidade" institucional.
b) Hostilidade superior à média europeia. Os países do norte
(Noruega, Dinamarca, Suécia) e do leste europeu (Áustria e
Alemanha) mostram-se mais reticentes diante dos avanços técnicos
e mais preocupados com suas consequências perversas, sobretudo com

370
relação ao meio ambiente e à saúde. Em qualquer caso, trata-se de
sociedades nas quais o debate sobre as aplicações biotecnológicas se
desenvolveu cedo e nas quais existe uma tradição crítica de
desenvolvimento científico e técnico que se traduz em um ativismo
ambiental elevado, uma predisposição das assembleias nacionais às
discussões sobre essas questões e uma mobilização importante da
opinião pública e, o que é também muito relevante, um marco
legislativo avançado e prudente.
c) Em uma posição mais ou menos intermediária e oscilante aparecem
Grã-Bretanha e França.
Entretanto, como se pôde observar, a presença ou ausência de um
debate público prévio serve, indistintamente, para explicar tendências
opostas: em países nos quais houve debate prévio continuou-se mantendo
uma atitude mais positiva (Holanda, com regulamentações que
anteciparam inclusive a legislação europeia e com numerosos debates
públicos) e em outros, mais negativa (Áustria).
Com relação à evolução da aceitação, os Eurobarômetros citados
mostram que é nega tiva para todos os países, exceto para a Áustria.
Novamente, no conjunto da União Europeia, podem-se observar os
grupos diferenciados: aquele no qual o retrocesso foi mais pronunciado,
quase mais de 20 pontos de média, que inclui Espanha, Portugal, Grécia
e Irlanda, enquanto o grupo que, a priori, se posicionou de forma hostil
apresenta uma evolução mais moderada. É o caso de Suécia, Noruega,
Dinamarca ou Áustria. Em qualquer caso , apesar dos diferentes
posicionamentos, destaca-se uma tendência à homogeneização diante
da recusa dessas aplicações.
Como se indicou , os resultados do Eurobarômetro de 1992
apresentam a Espanha como um dos países que mostram de forma mais
clara a aceitação do uso de sementes geneticamente modificadas e de
alimentos transgênicos. Entretanto, as porcentagens globais não parecem
refletir muito bem as avaliações da população. Na Espanha, estudos
realizados pelo Centro de lnvestigaciones Sociológicas (CIS) mostravam,
já em 1997, que a metade dos espanhóis (48%) não estava disposta a
consumir alimentos transgênicos. Essa resposta está em maior concordância
com a atitude reativa às aplicações biotecnológicas manifestada
posteriormente e que, segundo os dados da última pesquisa realizada pelo
CIS (2001a), suscitam um grau de recusa considerável, questionando-se os
hipotéticos benefícios e sua necessidade. Os espanhóis dizem preferir
alimentos não transgênicos aos geneticamente modificados e mostram-se

371
dispostos a aceitá-los caso se demonstre cientificamente que significam
um benefício claro para a saúde, que implicam uma redução da aplicação
de pesticidas ou insumos químicos e que não são prejudiciais para o meio
ambiente nem para a biodiversidade agrícola. Ou seja, a maior aceitação
ocorre em função de se demonstrar, simultaneamente, sua utilidade e seu
baixo risco, questões ainda não resolvidas.

As Representações Sociais diante dos Alimentos Transgénicos


Estudos realizados em uma perspectiva socioantropológica trazem
matizes diferentes sobre o porquê da aceitação ou da recusa desses
produtos entre a população europeia e, em particular, a espanhola.
Recorremos a três pesquisas principais: a primeira refere-se ao trabalho
realizado em cinco países pelo grupo PABE (Public Perception of
Agricultura! Biotechnologies in Europe, 2001), 49 cujos resultados dão
conta dos fatores complexos que conformam a diversidade dos pontos
de vista sobre as aplicações biotecnológicas agrícolas, tanto dos cidadãos
como dos principais agentes implicados na controvérsia. Em uma linha
semelh ante, o segundo trabalho, coordenado pelo Observatorio de
la Alimentación da Universidad de Barcelona ("El impacto de la
biotecnología em Espaiia: la percepción de la s aplicaciones
alimentarias"), 50 procura identificar que tipo de aplicações gera maior
recusa ou aceitação e as causas da diversidade de atitudes diante
dos alimentos transgênicos. Por outro lado, analisa os canais pelos quais
é difundida a informação sobre as biotecnologias e os efeitos que ela
exerce sobre a percepção social. Finalmente, o terceiro trabalho
"Representaciones mediáticas dei riesgo alimentaria: el caso de los
alimentos transgénicos'', 51 estreitamente vinculado aos objetivos do
projeto anterior, aborda o tipo de relações que se produzem entre as
representações midiáticas do risco alimentar e as representações sociais
49
Estudo financiado pela Commision of the European Communities, FAIR-CT98-
3844 (DG-12-SSM I) e realizado na Espanha, Grã-Bretanha, França , Itália e
Alemanha (www.inra.fr/sed/science-gouvernance, dez. 2001).
50
Projeto de pesquisa financiado pelo Programa Nacional de Biotecnologia, BI02000-
0947 (2000-2003), cujo relatório fina l acaba de ser reescrito pela equipe pesquisadora.
O trabalho de campo de base etnográfica foi realizado em Madri, Astúrias, Aragão
e Catalunha em diferentes fases no decorrer do biênio 2000-2003.
51
Pesquisa financiada pelo Ministério de Educação e Ciência (Espanha) por meio
de uma bolsa de pós-doutorado concedida a M. Gracia no Centre d'Études
Transdiciplinaires de Sociologie, Anthropologie et Histoire (École des Hautes
Études en Sciences Sociais et Centre Nacional de la Recherche Scientifique, Paris).
O trabalho etnográfico de campo fo i realizado principalmente na Catalunha.

372
da população, analisando se ambos os tipos de representação circulam
necessariamente ao mesmo tempo e no mesmo sentido.
Os três estudos têm em comum a utilização de técnicas qualitativas
na coleta da informação. É o caso dos grupos focais, da observação
participante, das entrevistas em profundidade e sernidirigidas e, quando
foi necessário, da análise dos conteúdos dos suportes midiáticos. Tais
estudos optaram por esse tipo de técnicas deliberadamente, justificando
as vantagens ou limitações de cada uma delas. 52 Nos dois últimos trabalhos,
a abordagem etnográfica mostra-se como uma via eficaz para se analisar as
representações sociais alimentares, por priorizar a combinação de todos
os instrumentos analíticos que favorecem a observação, a descrição e a
análise dos conhecimentos e habilidades dos membros de determinada
população. As representações sociais alimentares aglutinam diversos
aspectos, algumas vezes relacionados com valores morais ou materiais, com
a desigualdade social, com o grau de satisfação individual ou social,
com o sentimento de identidade coletiva ou, por fim, com a adaptação e
a sobrevivência. Esses aspectos múltiplos, participando da esfera tanto
íntima como pública das pessoas, são frequentemente transformados pela
oralidade e pelos discursos que os informantes constroem (Grada, 2002a),
de modo que se faz necessário recolher a informação por meio de recursos
analíticos que permitam o contraste. Por isso, é vital combinar técnicas
que favoreçam a coleta de informação por meio da observação direta ou
participante das práticas alimentares e por meio das entrevistas abertas
ou focalizadas.
Enquanto os grupos focais , utilizados primeiramente no âmbito
dos estudos de mercado e em seguida incorporados como técnica de
análise sociológica, favorecem a troca de opiniões ou debates e a
formulação de perguntas entre os diversos participantes, por mostrarem
os graus de variação dos diferentes pontos de vista sobre o mesmo tema
(Krueger, 1991; Morgan, 1995; Kitzinger & Barbour, 1999), as entrevistas
em profundidade, aplicadas individualmente, permitem conhecer de
forma extensa as avaliações pessoais que os informantes fazem sobre um
tema específico, levando em conta que, quando se recorre às perguntas
abertas ou focalizadas, toma-se possível perceber os matizes significativos
que a maioria dos questionários fechados não considera. Por sua vez, a
52
Para o primeiro trabalho, a justificativa metodológica é exaustivamente especificada
nas primeiras 36 páginas do documento citado e pode ser consultada em
www.inra.fr/sed/science-gouvernance, enquanto no segundo e terceiro estudos os
recursos técnicos são justificados nas primeiras vinte páginas dos respectivos
relatórios de pesquisa.

373
observação direta foi incorporada para abordar o descompasso que pode
haver entre a visão que as pessoas têm de suas representações alimentares,
nesse caso sobre os alimentos transgênicos, e o que realmente fazem (evitam
seu consumo ou.não, e por quê): uma diferença que, como indicamos no
capítulo 4, nem sempre é fácil reconhecer e avaliar quando o contato
produzido entre interlocutor e observador se reduz a escassos minutos de
diálogo. Insistimos novamente na observação de que numerosos
questionários fechados que não foram feitos com base em uma abordagem
qualitativa prévia encerram um risco metodológico importante que consiste
em estabelecer generalizações baseadas em respostas a questões que apenas
respondem ao discurso gerado pelo próprio desenho das perguntas. Esse
tipo de pesquisa parece ser insuficiente, sobretudo se não for contrastado
nem construído levando-se em consideração a dimensão qualitativa.
As variações entre o comportamento alimentar real e a visão que os
entrevistados apresentam e constroem são plenas de significação sobre a
lógica alimentar e escapam facilmente aos valores "médios" resultantes
das análises exclusivamente quantitativas.
Os resultados dessas pesquisas expõem duas questões principais
com relação à aceitação ou recusa dos AGMs. A primeira diz respeito ao
fato de que as atitudes da população diante da aplicação das
biotecnologias não dependem apenas de que estejam associadas a
potenciais riscos. Tais trabalhos indicam que o balanço entre utilidade e
risco não é simétrico, como se imagina frequentemente. Uma aplicação
considerada inútil é recusada inclusive antes que seja avaliado seu risco.
'Melhorar o sabor e/ou a durabilidade' é considerado "inútil e arriscado"
por mais da metade dos europeus, enquanto os espanhóis seguem uma
linha similar, considerando incerto que os alimentos transgênicos sejam
benéficos e de baixo risco. Devemos, então, nos perguntar se a recusa ao
desenvolvimento de alimentos transgênicos é motivada pela percepção
de um risco potencial ou pelo fato de não se perceber claramente a sua
utilidade. Um exemplo contrário se dá no caso do telefone celular: diante
da utilidade percebida desse novo meio de comunicação, as dúvidas sobre
os riscos eventuais das ondas eletromagnéticas não desestimularam a
população a continuar utilizando-o.
No caso dos alimentos transgênicos, a população não percebe
nenhuma utilidade para si mesma. Os alimentos desse tipo introduzidos
no mercado não trouxeram nenhum benefício direto para a maioria das
pessoas. Não são mais econômicos, não tiveram sua validade ampliada,
não têm mais sabor. Não é de se estranhar, então, que se instaure certo
ceticismo e descrença para com tais produtos e seus potenciais atributos.

374
Os comentários extraídos de grupos de discussão são, nesse sentido, muito
significa tivas:
• "Aumentar o conteúdo em proteínas pode ser útil. Mudar o sabor,
duvido; a não ser que seja para pior. Está na cara."
• "Pode ser que haja vantagens para aqueles que compram, trazem e
vendem, que as frutas e verduras durem mais, mas não para nós. Elas
duram o necessário, ou nem isso. Apodrecem ao fim de dois dias depois
de compradas. São todas iguais, muito bonitas, mas caríssimas e, ainda,
o pior de tudo é que não têm sabor."
• "Por que se gasta tempo e dinheiro fazendo esse tipo de alimentos?
Têm menos sabor, são piores. A comida está cada vez mais cara. Alguém
terá que sair ganhando: o comércio, as indústrias?"
Por outro lado, o tipo de questão que os informantes expressam
em seus relatos evidencia que as ideias que suas representações sociais
do risco alimentar articulam não são tão irracionais como sugerem os
especialistas, mas se referem a dúvidas lógicas:
• Que necessidade temos de alimentos transgênicos? Quais são seus
benefícios imediatos?
• Quem decidiu desenvolvê-los, e por que foi tomada essa decisão?
• Por que não estivemos mais bem informados sobre sua utilização em
nossa alimentação diária antes que eles chegassem ao mercado?
• Podemos decidir se queremos ou não consumir esses produtos?
• As leis que estão sendo aprovadas estão dirigidas a que interesses: da
população, das empresas, dos agricultores ... ?
Nesse contexto, o termo " útil" tem um sentido não precisamente
referente ao benefício altruísta, mas sim ao benefício empresarial ou
comercial. Esses estudos qualitativos mostram, além disso, que ainda
que a população tenha conhecimentos limitados sobre a transgênese e
a evolução da pesquisa biotecnológica ou sobre a regulamentação e a
comercialização desses produtos, não é essa falta de conhecimento que
explica suas reações negativas ou a baixa aceitação das biotecnologias
agroalimentares. Isso é o que acham os agentes envolvidos, especialmente
os políticos e os especialistas, mas o processo não é tão simples. Em
geral, as preocupações expressas pelos participa ntes não estão
fundamentadas em crenças incorretas sobre os alimentos transgênicos.
Trata-se de avaliações baseadas em outro tipo de conhecimento, como
indica o resumo do informe do grupo PABE (2001: 5):

375
• Conhecimentos não especializados sobre o comportamento dos insetos,
plantas e animais (as abelhas voam de um campo a outro, as sementes
são transportadas pelo ar...).
• Conhecimentos cotidianos sobre a falibilidade, que ensinam à
população que as regulamentações oficiais, mesmo que bem
intencionadas, nem sempre são estritamente aplicadas.
• Conhecimentos sobre o comportamento das instituições responsáveis
pelo desenvolvimento e pela gestão das inovações tecnológicas e dos
riscos em episódios anteriores.
• Conhecimentos das práticas capitalistas, em que as grandes empresas
perseguem o lucro, apesar dos· riscos potenciais que suas atividades
podem envolver, e têm poder suficiente para pressionar o mercado e as
instituições em prol de seus interesses etc.
As representações sociais construídas pelos espanhóis em torno
dos alimentos transgênicos são, em geral, ambivalentes. Ainda que na
primeira instância prevaleça uma ideia negativa, os informantes também
expressam acordo e aceitam melhor esses alimentos se seus atributos
vierem a resolver problemas específicos: intolerância à lactose, ao glúteo,
menor uso de inseticidas, por exemplo, e sempre e quando "o remédio
não seja pior que a doença". Os espanhóis não negam as potencialidades
da ciência nem que essas possam ser traduzidas positivamente em produtos
ou processos benéficos para a saúde ou para o meio ambiente. Entretanto,
desconfiam das políticas que dirigem tais aplicações porque creem que
estão orientadas principalmente para a obtenção de lucro pelas indústrias
agroalimentares. Desse modo, não é de se estranhar que quando as
perguntas formuladas nas sondagens precisem tais expectativas, os
resultados melhorem e a população pareça mais disposta a aceitar certas
aplicações biotecnológicas agrícolas, tal como mostra o último Barômetro
realizado em 2002.
A segunda questão destacada por esses estudos está relacionada
com o fato de que as incertezas suscitadas pelas biotecnologias alimentares
não se reduzem a suas consequências materiais . Os organismos
geneticamente modificados são recusados não apenas porque podem ser
pouco úteis e potencialmente perigosos para a saúde ou para o meio
ambiente, mas também porque são concebidos como o primeiro passo
para a estandardização humana e animal. O uso experimental que em
épocas históricas foi feito da genética com grupos étnicos ou religiosos,
por exemplo, é mencionado com frequência. Então, por que qualificar
como irracionais ou incorretos tais temores? Por sua vez, as referências

376
étnicas têm um papel notório. Frequentemente invoca-se a natureza.
A natureza é "outro" ser, possui valores, integridade, um poder próprio
que exige respeito e deferência. A natureza é percebida como infinita
em sua complexidade e, por fim, ainda desconhecida para o ser humano.
É assim que se faz um "apelo à ética" de conteúdo algo indefinido, mas,
em qualquer caso, colocando-se contra o engodo empresarial e político
e contra a manipulação do mundo vivo, para sabe-se lá que finalidades:
• "Quem somos nós para alterar os mecanismos da natureza? A natureza
tem suas próprias leis, e não devemos alterá-las sem saber que
consequências podem surgir..."
• "Chegará um momento em que nada será como deveria ser. Nem os
animais, nem as plantas, nem sequer nós. Nós teremos mudado tudo
por nosso interesse, ou melhor, pelo interesse de poucos. De quem?
Das pessoas comuns, não. São uns poucos os que estão por trás. Sempre
são os mesmos, os que mandam, os que dirigem o mundo. Os que se
beneficiam economicamente de todos esses experimentos ... O dinheiro
sempre está por trás, não é?"
Reflexões desse tipo sobre o alcance das aplicações biotecnológicas
são muito parecidas entre os cidadãos de diferentes países europeus, ainda
que tenham gerado diferentes atitudes culturais. Em lugares como
Dinamarca, Suíça ou França, produziu-se uma demanda por debates
públicos, de forma que, diante da falta de respostas definitivas e consistentes
pelos especialistas e políticos, a população exigiu o reconhecimento de
seu direito de estar mais perto dos especialistas na produção do
conhecimento e das técnicas aplicadas que lhes permitiriam responder a
suas dúvidas: dar acesso às pesquisas, escutar as ideias dos cidadãos, trocar
ideias etc. Também pedem mais proximidade dos políticos para que colham
suas opiniões e criem leis nelas baseadas. Trata-se, do ponto de vista da
cidadania, de intercambiar dossiês que incluam a pluralidade de interesses
e posições e, de certa maneira, "democratizar" a ciência.
Entretanto, na Espanha a produção e comercialização dos OGMs
não significou, excetuando-se as manifestações dos setores mais críticos,
uma mobilização importante da população, nem foram criadas instituições
de iniciativa cidadã com o objetivo de canalizar o debate. A situação do
país é peculiar em relação ao conjunto europeu. A Espanha é o estado
da União Europeia com a maior superfície cultivada de plantas
transgênicas (duas variedades de milho em mais de vinte mil hectares) e
o principal importador de milho GM. Entretanto, essa maior ocupação
territorial não mostrou correspondência, como se poderia imaginar, com

377
uma reação social maior, ainda que nos últimos anos tenha aumentado a
percepção negativa.
Foram formuladas diferentes hipóteses a esse respeito. Algumas
defendem que a opinião da população espanhola teria variado em função
da controvérsia pública surgida no período 1999-2000, momento em que
os meios de comunicação começam a dar maior cobertura ao tema,
coincidindo com a intensificação do debate legislativo no âmbito da
União Europeia. Nessa linha, uma ideia amplamente aceita entre políticos
e especialistas postula que a percepção social do risco é formada
previamente pela informação de " má" qualidade ou pela excessiva
informação de que o público dispõe, procedente em sua maioria dos
meios de comunicação, os quais difundem sistematicamente notícias de
origem duvidosa e sem compará-las. Suas informações não podem
descrever corretamente as realidades evolutivas e complexas. Não podem,
portanto , evitar a participação em manipulações como as que têm
acontecido durante as diferentes crises alimentares. Os meios de
comunicação desempenham nesse tipo de crise um papel essencial: devido
a seu poder de influência, participam, querendo ou não, de sua evolução.
Nesse sentido, os consumidores se apresentam como uma espécie de
conglomerado arremessado pela maré midiática e moldável a favor ou
contra os organismos geneticamente modificados no compasso que marca
a pressão informativa. Meios que, seguindo a teoria da agenda setting,
condicionam por sua vez a ação política e acabam colocando na ordem
do dia, nas agendas, os temas a tratar e resolver pelos poderes públicos.
Não há dúvida de que os meios de comunicação constituem uma
das principais fontes de informação e de que a televisão, seguida do
rádio e dos jornais, são os preferidos pelos espanhóis para obter
informação sobre temas relacionados com a segurança ou insegurança
alimentar (CIS, 2000b). De fato, os programas televisivos diários e os
noticiários são os mais vistos e ouvidos por nossos informantes. Essa
preferência, entretanto, depende do fato de os entrevistados serem ou
não leitores de jornais diários e revistas científicas divulgadoras, porque
quando essa situação ocorre, os meios impressos são considerados fontes
mais confiáveis e mais didáticas do que a televisão ou o rádio. Lê-se,
entretanto, pouco jornalismo diário (26% dos espanhóis o leem diariamente
e 39% não o fazem quase nunca). Tanto que muitas pessoas reconhecem
que, quando consideram que um tema é importante, mesmo que não sejam
leitores habituais, compram jornal para obter "mais e melhor" informação.
Além disso, é raro que o público faça uma avaliação positiva da
informação midiática nos períodos de crise alimentar. Cerca da metade

378
dos informantes entrevistados diz que os meios parecem tratar esses temas
enfatizando seus aspectos negativos ou polêmicos, e não os positivos,
recorrendo com excessiva facilidade a títulos sensacionalistas para ganhar
audiência. Em relação ao jornalismo impresso, essa avaliação se estende
aos diários não comprados com frequência, os quais os leitores posicionam
como próximos ou em oposição às posições do governo. Por outro lado,
os informantes reconhecem ter ouvido falar pela primeira vez de alimentos
transgênicos na televisão ou na imprensa e apenas uma porcentagem
muito baixa diz ter consultado outras fontes de informação especializada
para se informar melhor. Se os meios de comunicação de massa, ainda
que "lidos" de forma crítica, são uma fonte de informação básica,
perguntamo-nos de que maneira puderam influenciar nas representações
sociais sobre os AGMs. De forma sintética, os resultados de nosso estudo
apontam as seguintes direções: 53
• Os meios de comunicação social atuam como agentes na discussão
pública que acompanha as situações de crise alimentar, podendo
contribuir, ainda que apenas parcialmente, para a configuração das
representações sociais sobre segurança alimentar. No caso dos OGMs,
discussão pública não tem sido sinônimo de debate social.

53
O trabalho , coordenado pelo Odeia (Observatorio de la Alimentación) da
Universidad de Barcelona, consistiu em uma busca exaustiva de materiais de mídia
entre os anos 1996 e 2001 em diversos suportes representativos do jornalismo
diário de âmbito estatal, revistas de divulgação científica, publicações de associações
ecológicas e entidades agrárias, revistas de consumidores e de caráter naturista e
ecológico. Em geral, o conteúdo e a forma de tratar os OGMs têm sido diferentes
entre os jornais diários, as revistas científicas, os boletins e publicações de associações
ecológicas, sindicatos agrários ou as revistas de consumidores. Entre os suportes
dos diferentes meios também foram registradas certas diferenças no que se refere
à avaliação dos OGMs. Assim, por exemplo, entre os jornais diários as posições mais
diferentes são mantidas por El Mundo e El País , o primeiro com uma posição
mais favorável aos discursos ecologistas e o segundo recorrendo ao critério dos
especialistas em biotecnologia com mais frequência. No caso dos veículos dos
sindicatos agrários, também são observadas dive rgências entre as publicações da
Associação de Jovens Agricultores (Asaja) e as revistas Vida Rural e Agricultura -
do lado da ciência , do progresso econômico - e as publicações da União de
Produtores Agrários (UPA) ou da Coordenação de Organizações de Agricultores
(Coag) - temor diante do alcance da engenharia genética, da alteração da ordem
natural, de interesses alheios ao agricultor. Por sua vez, as revistas ecológicas e das
associações de consumidores coincidem em diferentes pontos, ainda que as
diferenças sejam de fundo e de forma (maneiras de atuar pró ou contra a produção
de OGMs no caso dos primeiros, e medidas a aplicar para sua comercialização,
especialmente relativas à rotulagem, no caso das segundas).

379
• Os argumentos a favor ou contra os OGMs aparecem mais nas
manifestações de determinados agentes diretamente implicados
(políticos, cientistas e associações ecologistas ou de consumidores) e
nos argumentos da mídia do que nos discursos da população.
• O tratamento dado pela imprensa e pelas revistas espanholas à questão
dos OGMs não tem sido homogêneo, e seu conteúdo expressa questões
muito variadas, que abarcam informações sobre as atuações e medidas
políticas relativas aos OGMs, ações e pronunciamentos dos agentes
sociais, estudos e resultados sobre as aplicações, notícias sobre a
produção, distribuição e comercialização dos produtos transgénicos,
entre os temas mais relevantes.
O tratamento que a mídia espanhola tem dado aos OGMs tem
sido, em uma perspectiva diacrônica, bastante cíclico, e a cobertura de
notícias dependeu principalmente dos acontecimentos internacionais e
especialmente das diretrizes da legislação europeia. Contudo, coincidem
no tempo com as ideias que a população foi construindo sobre esse tema,
havendo pontos de ancoragem relativos à ambivalência que impregna
uma parte das representações sociais. Isso não significa, entretanto, que
essas tenham influenciado em seu comportamento real, como foi indicado
antes. Para além de evidenciar com maior ou menor ênfase os discursos
dos respectivos agentes, a mídia só deu conta das atitudes ou opiniões
da população sobre os AMGs, limitando-se a informar sobre as múltiplas
medidas legisla tivas e políticas adotadas ou sobre as ações e
pronunciamentos a favor ou contra os principais grupos de pressão
implicados, quando considerou que tais notícias eram de interesse público.
Isso evidencia, por sua vez, que a intensidade e a amplitude das crises
alimentares não dependem apenas de que tenha sido difundida excessiva
ou insuficiente informação sobre os riscos potenciais associados a um
tema concreto ou que esse tenha se convertido em objeto de discussão
pública por parte de especialistas ou políticos, mas também das imagens
construídas pela população sobre o fenôme no e do fato de essas terem
ou não afetado seus comportamentos cotidianos.
Também é verdade que quando os meios de comunicação de massa
cobrem um determinado fato, as pessoas o assumem como importante, o
que gera uma espécie de cadeia. Há muitas incertezas, mas algumas se
tornam socialmente preocupantes, e outras não. Os líderes políticos
tendem a responder com base em probabilidades, uma vez que a incerteza
se reflete na mídia, pois esta confere credibilidade e legitimidade a uma
parte da controvérsia. Dispondo de um fórum para se expressar, certos
grupos podem influenciar nas políticas públicas e nas percepções sociais

380
por intermédio da mídia, e para esta é crucial compreendê-los (Hoban,
1995). Contudo, o público não é passivo, nem a mídia impressa escreve
para leitores amorfos. Conhecem sua audiência e sabem que existem
processos individuais e sociais da interpretação das notícias em função
dos próprios papéis individuais e dos grupos sociais a que se pertence
(Cheveigné, Boy & Galloux, 2002). Assim, as formas de construir a
informação, assim como de lê-la, são múltiplas. Também as respostas
podem ser várias. A cobertura midiática pode estimular a mobilização
social e vice-versa, mas essa relação nem sempre é sistemática.
Segundo o que revelam esses estudos, a explicação das atitudes da
população espanhola deve ser feita mediante processos que vão além
da ação rnidiática. Em parte, tais atitudes estão relacionadas com o tipo
de ambivalência mostrada diante dos AGMs. Se por um lado a maioria dos
informantes expressou uma opinião negativa sobre a aplicação dessas
tecnologias nos alimentos, por outro tais imagens não foram materializadas
em atitudes de recusa sistemática ou de preocupação explícita no momento
de compra dos AGMs. Compreender o porquê dessa dualidade é importante
na consideração das diferentes atitudes: no caso espanhol, coexiste uma
construção social dos AGMs que enfatiza seus aspectos negativos
(inutilidade, incerteza, ceticismo, perigo ... ) com uma aceitação pragmática
dos produtos que estão nas prateleiras dos estabelecimentos que
comercializam alimentos. A atenção dispensada ao rótulo dos alimentos
se concentra em seu valor calórico, no tipo de gorduras utilizadas ou na
presença ou não de certos aditivos. Uma porcentagem muito pequena dos
informantes (15%) afirma evitar os alimentos que incluem a classificação
"modificado". Dito de outra maneira, como acontece em outros aspectos
relativos ao comportamento alimentar, evidencia-se um descompasso entre
o que as pessoas afirmam ou pensam sobre os alimentos transgênicos e
aquilo que realmente consomem, ou seja, entre as representações sociais
e as práticas alimentares.
Por outro lado, tais atitudes diferentes estão relacionadas, na
Espanha, com o fato de a discussão pública não ter significado um
"problema" de transcendência social. Assim, enquanto nesse país políticos,
biotecnólogos ou ativistas protagonizaram uma discussão pública baseados
em interesses muito particulares, não se registrou, paralelamente, um debate
social amplo e a exigência, como aconteceu na Áustria ou na França, de
melhor informação ou maior participação nas decisões científicas, políticas
e legislativas a serem adotadas. Portanto, as reações diante de temas
potencialmente conflitantes nem sempre são da mesma ordem. Em torno
da EEB, ou doença da vaca louca, a população espanhola deu uma

381
resposta social imediata que se traduziu em uma brusca queda do consumo
de carne bovina. Entretanto, no caso dos alimentos transgênicos não se
exigiu de forma massiva que se encerrem os cultivas de plantas transgênicas,
que não sejam introduzidos na cadeia alimentar ou que os produtos que
contêm essas substâncias sejam retirados do mercado. A explicação dessas
diferenças encontra-se na avaliação diferente que a população tem feito
de ambos os temas; consequentemente, tanto da percepção da proximidade
e do alcance do risco (consequências) e das razões para aceitá-lo ou recusá-
lo como da gestão política e do tratamento midiático que lhes foi
dispensado. Na esfera política ou midiática, os consumidores e seus
interesses potenciais ocuparam um lugar mais que secundário.
Assim, pode-se concluir que a incerteza que a população associa
aos AGMs tem , em qualquer caso , uma origem empírica e está
fundamentada, em boa medida, no comportamento precedente das
instituições responsáveis pelo desenvolvimento e regulamentação
das inovações tecnológicas e pelo controle dos riscos da cadeia alimentar.
Assim, enquanto vários políticos e especialistas consideraram que os riscos
ligados aos alimentos transgênicos são pequenos e que a população não
fundamenta suas respostas com base em conhecimentos científicos, as
imagens sociais que têm sido geradas indicam outras direções: hoje,
caminha-se para um questionamento relativo da utilidade de tais
alimentos, uma desconfiança quanto à neutralidade política das avaliações
de seus possíveis riscos e um ceticismo quanto à aplicação dos seus
aspectos potencialmente mais positivos. O conteúdo desses três eixos
indica diferenças significativas entre as representações sobre as reações
do público construídas por aqueles que gerem, regulam e decidem esses
temas, normalmente formuladas em termos de falta de conhecimentos
suficientes ou de preocupações não científicas, e aquelas construídas
pelo conjunto da população, formuladas com base em lógicas leigas e
outras experiências prévias e, inclusive, previsíveis. Indica-nos, além disso,
que esses especialistas, assim como os próprios meios de comunicação,
têm dificuldades em captar ou refletir sobre a essência das incertezas
coletivas e em reconhecer os fatores socioculturais que as determinam.
Não é de se estranhar, consequentemente, que quando surge um alarme
alimentar os mecanismos institucionais utilizados para gerir e resolver a
crise sejam pouco eficazes e acabem tendo como resultado efeitos
contrários aos desejáveis, isto é, o aumento das incertezas e o incremento
da desconfiança entre a população. Se no futuro fosse produzido algum
fenômeno que questionasse decididamente a inocuidade dos alimentos
transgênicos e se o risco fosse percebido como uma ameaça tangível,

382
seriam reafirmados os atributos negativos das representações sociais já
existentes, e isso poderia afetar de forma direta as práticas alimentares e
a evitação de seu consumo, ainda que temporariamente.

O Caso da 'Vaca Louca'


Como já dito aqui, em março de 1996 deflagrou-se a chamada
crise da "vaca louca", que teve extraordinária cobertura por parte dos
meios de comunicação de diversos países, a qual foi retomada na "segunda
edição" da crise, a de 2000-2001. Em boa medida, a crise da "vaca louca"
contribuiu para reforçar a desconfiança e a confusão dos cidadãos com
relação aos produtos de carne em particular e à cadeia alimentar, em
geral. Pode-se dizer que a chamada crise da "vaca louca " permitiu
descobrir alguns aspectos da 'caixa-preta' (os aspectos desconhecidos da
manipulação) relativos à cadeia de produção de carne de boi. Uma cadeia
muito fechada na qual se aproveitava praticamente tudo. De fato , o
problema estava na fabricação de carnes separadas mecanicamente, a
carne que era retirada dos ossos (carcaça) depois de separados os pedaços
de carne nobre e as vísceras no processo de limpeza. Para fabricar essas
carnes, são utilizadas colunas vertebrais das quais são extraídos os resíduos
de carne, de maneira que o processo de recuperação comporta, também,
os outros tecidos que podem estar grudados, como o sistema nervoso
central. Essas partes eram destinadas a certos preparas à base de carne
(raviólis, hachis, parmentier, hambúrgueres etc.). Os ingleses proibiram
essa prática em dezembro de 2005. Anteriormente, em 1989, haviam
proibido o consumo humano de certos miúdos: o cérebro, a medula
espinhal, o intestino, o baço etc. Por outro lado, o que se proibiu não
foram tanto as farinhas enriquecidas com proteína animal (em nenhum
caso foi proibida sua exportação), mas sim as proteínas de ruminantes na
alimentação de ruminantes. Assim, surgia o problema da definição da
carne, de tal maneira que essa palavra já não abrangia o mesmo conjunto
de significados para o consumidor e para os empresários (Savey, 1997).
As reações diante da "vaca louca" estão inscritas no conjunto das
tendências de mudanças observadas depois dos anos 80, algumas das quais
comentamos anteriormente. As estatísticas de consumo de carnes
posteriores à crise da "vaca louca" mostraram uma queda no consumo
de carne bovina, ainda que compensada pelo consumo de outras carnes
e de peixes. Essas mudanças de comportamento tiveram seu ponto
culminante nos momentos de auge da cobertura pelos meios de
comunicação e, em seguida, diminuíram. Essas mesmas reações se

383
repetiram na "crise" de 2000-2001. De qualquer forma, parece, também,
que um bom número de pessoas modificou profundamente suas atitudes.
A amplitude e o potencial virai das reações estão, sem dúvida, ligados ao
acúmulo de elementos da situação:
• O desconhecimento do "príon", reconhecido pelos cientistas, tem sido
fonte de ansiedade, como o são todos os fenômenos desconhecidos.
A ideia de que esse "agente" possa penetrar no cérebro e fazer com
que ele perca suas capacidades não poderia ser mais perturbadora,
sobretudo levando-se em consideração que seus efeitos não são
imediatos, mas sim em um prazo desconhecido.
• A transgressão das leis da natureza (transformar um herbívoro em
carnívoro) dificilmente se integra na cultura da maioria dos indivíduos
e pode colocar em risco a integração de sua carne ao universo do
comestível (Lambert, 1997a).
• O lugar central que a carne ainda tem na maioria dos lares populares
dos países europeus (Cazes-Valette, 1997).
• O papel desempenhado pelos meios de comunicação de massa contribui
para o aumento dos medos, ao invés de diminuí-los. 54
Definitivamente, como indicou Rémond-Gouilloud (1997), a crise
da vaca louca, ao revelar a "coisificação" do mundo atual, gera uma
repulsa à racionalidade produtivista aplicada ao mundo animal. Carneiro,
salmão, príon ... pelo menos as hierarquias se impõem. A relação íntima
que une os seres vivos, mais do que nunca patente, indiscutível, convida
a aprofundar a relação entre o homem e seu contexto natural e, pelo
menos no plano jurídico, a rever o tratamento; a mídia, rito de passagem
até essa ordem refundada, cumpriu bem seu papel, na vanguarda dos
questionadores do nosso tempo. Entretanto, no momento de traduzir a
constatação em ação - ou seja, em termos de direitos e deveres-, a vida
social surpreende. Enquanto em outros lugares ou outrora, os animais
sagrados ou divinizados expressavam, cada um deles, um valor utilitário
54
Em 1996, Lancet publicou um arquivo, de origem francesa, afirmando que os
macacos alimentados com farinhas de carne apresentavam uma encefalopatia
parecida com a enfermidade de Creutzfeldt-Jacob. Esse artigo teve enorme
repercusão midiática. No mesmo momento , na Grã-Bretanha , Mme Baker,
especialista nessas doenças, dispõe de uma colônia de macacos ouistitis alimentada
com farinha de carne há 15 anos e declara não ter encontrado nenhum caso em
uma centena de indivíduos. Publicou-o, e uma discussão veiculada na Lancei
questionava as conclusões do primeiro artigo francês, mas nenhum meio de
comunicação incentivou o debate.

384
ou simbólico, a racionalidade judaico-cristã, obscurecendo esse paralelo
sutil, relegou-os todos à categoria informe das coisas. De repente, parece
incongruente que o tigre mais bonito do mundo e o cachorro mais fiel
não sejam mais que uma pedra; a única diferenciação parece se apoiar
na sentimentalidade e nos caprichos humanos e oscilar entre as categorias
'prejudicial' e 'espécies protegidas'. O pensamento legislativo se reforma
e reconhece o animal como um ser sensível e ditado de direitos. Assim,
para Remond-Gouilloud, a monstruosidade não é que a vaca seja louca,
mas sim que seja o homem quem a tenha enlouquecido.
Todas essas circunstâncias fazem com que o setor de produção de
carnes esteja dominado por um estado de considerável incerteza. Muitos
produtores veem a si mesmos como submetidos a um estado de assédio
se forem levadas em conta as rápidas transformações das preferências de
certos grupos da população. Em muitos países europeus, as vendas
de carnes vermelhas chegaram a diminuir mais de 50% em consequencia
da "epidemia" da "vaca louca". Além disso, as mensagens dos cientistas,
dos empresários, das autoridades sanitárias, das autoridades políticas e
das organizações de consumidores nem sempre são congruentes entre si.

As Dimensões Culturais da 'Crise da Vaca Louca '


Algumas reações "nacionais" e/ou "nacionalistas" à crise da "vaca
louca " podem nos proporcionar algumas chaves para avaliar a dimensão
cultural do consumo de carne na atualidade, assim como para constatar
o modo como as representações culturais midiatizam as percepções da
segurança/insegurança alimentar. Cazes-Valette (1997), evocando as
noções de 'etnocentrismo' e de 'xenofobia' de Lévi-Strauss, e mais
especificamente a atitude de repúdio para com as formas culturais
distantes daquelas com as quais nos identificamos, e que estão inscritas
nas fronteiras da tribo ou do grupo linguístico, afirma ser compreensível
que alguns franceses , desdenhando do necessário distanciamento
científico, tenham se contentado com a menção VF (viande française)
para se tranquilizarem diante da ameaça da "vaca louca ". O inimigo
estava no exterior (nesse caso, na Inglaterra).
Por sua vez, na Espanha , poucos meses depois da primeira
"irrupção" da "vaca louca", em dezembro de 1996, foi aprovada uma
nova Indicação Geográfica Protegida, a da Vaca Gallega, cujos folhetos
de propaganda diziam assim:

Vaca Gallega: a vaca com carne. A 1ª de boi com Controle Integral e


Certificado de Garantia. O Conselho Regulador de Vaca Gallega ampara

385
exclusivamente animais nascidos, criados e sacrificados na Galícia. Nossas
raças, nosso clima que propicia excelentes pastos secos e o peculiar manejo
dos animais pelos trabalhadores galegos tomam essa carne única e apreciada
em toda a Europa. Com data de 17 de dezembro de 1996 e por meio do
Regulamento (CE) nº 2400/96, a Comissão declara que a Vaca Gallega
merece ser inscrita no Registro de Indicações Geográficas Protegidas e,
portanto, protegida em escala comunitária como tal. Vaca Gallega, um
produto com história.

Poderíamos considerar os conteúdos desse folheto como outra


manifestação do etnocentrismo alimentar. O próprio gallego, neste caso
(que poderia equivaler a "espanhol") é um produto conhecido, "tem
história " e "carteira" (ou seja, " identidade") e, nessa medida, está
"controlado" e não sofre perigo. A industrialização, veremos no próximo
capítulo, provocou a perda de "referências" dos produtos alimentares,
mas os consumidores continuam precisando delas. Na falta de outras
referências relativas ao lugar de produção, às matérias-primas, às técnicas
de manipulação ou à compreensão precisa das informações que os
produtores fornecem com relação a tudo isso, a "marca" aparece como
um novo e possível "sinal de identidade" que pretende conferir segurança,
confiança . Entretanto , no caso das carnes, na falta de "marcas"
produtoras, proliferam as "Certificações de Origem" ou as "Indicações
Geográficas Protegidas" ou as "marcas brancas" dos estabelecimentos
expedidores, as das Grandes Cadeias de Distribuição. Ainda assim, marcas
coletivas do tipo "Etiqueta Vermelha de Qualidade" ou "Agricultura
Biológica" permitem sair da massa indiferenciada das carnes anônimas
para o patamar dos produtos cuja qualidade uma entidade se compromete
a atestar, apoiando-se em critérios transparentes, dos quais um dos mais
importantes é a 'origem' ou a 'identidade'. Tudo isso poderia explicar,
segundo Cazes-Valette (1997), que esse tipo de marcas ou rótulos tivesse
suas vendas de carnes menos reduzidas em razão da "crise da vaca louca"
do que as que não tinham a "marca", pois além de seu papel jurídico de
proteção, a marca 'marca o produto', o indica, identifica, constitui um
compromisso por parte de "seu autor" e garante uma constância, uma
melhora da oferta, promovida como diferenciada e diferençável daquelas
oferecidas pelos concorrentes. Uma marca reconhecida inspira mais
confiança. Ocorre, entretanto, que praticamente não existem marcas de
carne bovina.
Assim, a chamada "crise da vaca louca" constitui outro exemplo
paradigmático do modo como os "aspectos culturais" desempenharam e

386
desempenham importante papel em relação ao consumo deste ou daquele
tipo de alimento e, também, na percepção do "aceitável" e do "assuntível"
em matéria de segurança alimentar.

387
!
'
7
Síntese:
a modernidade alimentar,
entre a globalização e os
particularismos

Globalização é um termo relativamente novo, mas seus conteúdos,


ainda que variados, nem tanto. O conceito de globalização poderia ser
relacionado com a expansão ocidental iniciada desde 1500 e inclui tanto
o termo "sistema econômico mundial" de Inmmanuel Wallerstein como
"processo de civilização" de Norbert Elias. Globalização tornou-se um
termo comum, ainda que possa ter significados distintos para diferentes
pessoas. De qualquer forma, por globalização pode-se entender o amplo
processo de transformações sociais, incluindo o crescimento do comércio,
investimentos, viagens e redes informáticas, no qual numerosas forças
entrelaçadas estão fazendo com que as fronteiras de todo tipo e em
todos os níveis sejam mais permeáveis do que nunca. Como decorrência
dessa progressiva e multidimensional permeabilidade, pode-se afirmar
que uma das consequências do processo de globalização é um processo,
também progressivo, de homogeneização e de perda da diversidade, nos
âmbitos econômico, ecológico e cultural. Assim, pode-se pensar, também,
que a globalização e a consequente homogeneização são manifestações
do presente, enquanto as particularidades e a diversidade seriam
manifestações do passado, a "tradição", e, nessa medida, o "patrimônio"
que, hoje, deveria ser preservado e/ou recuperado.
Os processos de globalização significaram o desaparecimento de ,
grande quantidade de manifestações ou produções de caráter local: desde
espécies vegetais e animais até línguas, tecnologias e qualquer outro
tipo de costumes e instituições socioculturais. Algumas desaparecem,
mas outras se expandem. Por outro lado, nossa sociedade "atual" é mais

389
industrializada e assalariada e menos agrícola e autônoma, mais laica
que religiosa, concentrada em núcleos urbanos cada vez maiores.
O calendário das restrições ecológico-climáticas não continua como
"antes" (tempo de lavrar, de plantar, de colher, de deslocar o gado etc.),
nem o das comemorações religiosas (por exemplo, Carnaval, Quaresma,
Páscoa, Corpus Christi, Todos os Santos, Natal...). A sociedade "urbano-
industrial" "secularizou" e "desnaturalizou " ou "desecologizou" cada
vez mais as manifestações da vida coletiva. Os ritmos temporais, com o
enrijecimento dos horários de trabalho, foram consideravelmente
homogeneizados. Os "modos de vida", até certo ponto, também. Hoje,
os horários e calendários de trabalho são consideravelmente uniformes
e, além disso, a eles estão subordinadas outras atividades sociais e
culturais. Os dias "de trabalho" e os "feriados", regulados uniformemente
para a população em sua totalidade, os "fins de semana" e os "feriados
emendados", os períodos de férias escolares e os períodos de férias no
trabalho são os que organizam a vida cotidiana tanto em seus aspectos
mais simples - os de " atividade " - como em seus aspectos mais
extraordinários - os do ócio e da festa.

As Culturas Alimentares:
continuidades e mudanças
Como se pode deduzir dos capítulos anteriores deste livro, os
comportamentos e as tradições alimentares, assim com as culturas, não
são algo estático e imutável. A história da alimentação humana apresenta,
paradoxalmente, conservadorismos duráveis e transformações profundas.
Com mais ou menos intensidade, as transformações aconteceram em todos
os tempos e lugares.
Mudanças dos modos de vida , movimentos demográficos,
transformações das condições sociais e econômicas, inovações tecnológicas
de significado e alcance muito variados ... Tudo contribuiu, com o decorrer
do tempo, e continua contribuindo, para modificar a gama dos alimentos,
os modos de prepará-los e as maneiras de consumi-los, assim como as
razões pelas quais uns ou outros são feitos. E no que se refere às técnicas
de cozinha, quem pode pretender, hoje em dia e em uma zona urbana,
praticar uma cozinha a fogo lento usando lenha ou o carvão como
combustível, sendo que alguns anos atrás essa era a forma habitual de
cozinhar? Esse modo de cozinhar dependia da própria natureza da fonte
de calor. O instrumento para cozinhar era , simultaneamente, o
instrumento de calefação do lar, o que exigia sua presença permanente.

390
Essa circunstância por si só poderia explicar, por exemplo, a tendência a
abandonar as carnes refogadas, que exigiam muito tempo para sua cocção
(ainda que as "panelas express" tenham reduzido a importância desse
fator), da mesma maneira que, pouco a pouco, foi se renunciando às
sopas, aos caldos e aos chamados refogados "caseiros". E tudo isso
aconteceu quase simultaneamente ao surgimento e extraordinário
crescimento de novas formas de distribuição, como os supermercados e
hipermercados que oferecem a seus clientes uma imensa gama não só de
alimentos, mas, também, de pratos ou refogados conservados, congelados,
cozidos, pré-cozidos, pré-preparados etc.
Citar essas importantes transformações relativamente recentes não
deve, entretanto, induzir ao pensamento de que as mudanças mais
importantes nos comportamentos e tradições alimentares ocorreram
apenas como consequência da revolução industrial e tecnológica do
último século. Assim, por exemplo, no que se refere à Europa, um
período-chave das importantes metamorfoses no campo da alimentação
situa-se entre os séculos XIV e XVII. No decorrer desse período,
acontecem as viagens de Marco Polo ao Extremo Oriente, assim como a
série de expedições geográficas e organizações coloniais iniciadas pelos
navegantes portugueses e que prosseguiram com as viagens à América
que Cristóvão Colombo iniciou em 1492. Além disso, ocorreu a expansão
da cultura aristocrática italiana a partir do Renascimento. Os relatos do
comerciante e viajante veneziano abriram os olhos dos europeus não
somente para os recursos orientais, mas também para os costumes asiáticos,
particularmente para as maneiras como acontecia a alimentação naqueles
países distantes. A busca das fontes das quais vinham as especiarias, que
a Europa recebia até então através das rotas do comércio, foi o motor de
grandes expedições de exploração e de conquista protagonizadas pelo
Ocidente, as quais foram o prelúdio das grandes organizações coloniais
europeias cujos efeitos, positivos ou negativos, se fazem sentir até hoje.
As mudanças nas cozinhas locais podem acontecer por evolução
das condições internas, mas também, como vimos, como consequência
da adoção de ingredientes e/ou técnicas provenientes do exterior. Se o
domínio da cozinha é, em muitos aspectos, extremamente conservador,
geralmente porque cada cultura transmite, a cada geração, uma definição
sobre que alimentos são considerados comestíveis, isso não impede,
entretanto, que ocorram mudanças surpreendentes. A introdução da
batata na alimentação dos irlandeses, a chegada do tomate aos Estados
Unidos, "pátria do ketchup", ou do milho e da mandioca na África, são
todos fenômenos relativamente recentes. Depois do século XVI, os

391
sistemas alimentares africanos e europeus foram transformados em
decorrência da introdução de várias plantas importadas da América.
É difícil, por exemplo, imaginar a cozinha italiana sem as massas
(procedentes da China, passando pela Alemanha, até o século XV) e sem
o molho de tomate, procedente da América. De todo modo, as diferentes
paisagens agrárias foram e são o resultado de diversos e continuados
contatos entre civilizações. No decorrer da história, os empréstimos e as
adaptações ocorreram frequentemente. De e para Ásia, África, América.
Os produtos não somente circularam, mas também, e em muitas ocasiões,
fixaram-se nas paisagens, transformando-as. Por exemplo, na Espanha,
melancias, grão-de-bico, arroz, pepinos, berinjelas, laranjas, mexericas,
limões, maçãs, peras, cerejas, pêssegos, avelãs, cebolas, alhos, cenouras,
ameixas, milho, batata, feijão, tomates, pimentões, abóboras, abobrinhas,
pato, cacau, abacate, abacaxi americano etc. são produtos com origem em
diversos lugares e, ao mesmo tempo, desconhecidos até que o intercâmbio
tomou possível seu conhecimento e os mercados os consolidaram nas
próprias paisagens, transformando-as uma vez mais.
Das muitas histórias da alimentação 55 podem ser extraídos
numerosos exemplos de mudanças importantes na relação com os
alimentos, com o modo de prepará-los, com os usos, as técnicas, as normas
de etiqueta à mesa etc., assim como de mudanças relativas às diferentes
formas e circunstâncias que determinaram sua adoção . Assim, por
exemplo, o traslado da corte papal a Avignon, no século XIV, introduziu
na Provença camponesa a técnica do cozimento das frutas em calda com
uso do açúcar, que, por sua vez, reflete influências orientais. As frutas
em calda, assim como o açúcar que intervém tão fundamentalmente em
sua elaboração, foram classificadas durante muito tempo pelos europeus
entre as espécies cujo comércio e uso foi desenvolvido consideravelmente
graças às Cruzadas na "Terra Santa". A chegada de Catarina de Médicis
à França, em 1533, para se casar com o delfim, significou a chegada,
também dentro de seu cortejo, de cozinheiros e confeiteiros que
introduziram no país novas formas de cozinha, assim como alguns novos
e mais requintados padrões de etiqueta. Mais tarde, Maria de Médicis,
que se casou com Henrique IV, prosseguiu essa obra de aculturação
culinária, introduzindo na França, por exemplo, a alcachofra e o brócolis.
A linguagem da alimentação é, muitas vezes, um reflexo da
aculturação produzida nos usos alimentares. As palavras inglesas ox (boi),
cow (vaca), pig (porco), sheep (ovelha), boar Uavali) e deer (cervo) são
55
Algumas delas são: Barrau (1983), Carson & Ritchie (1986), Mennell (1985), TannahilJ
(1973) e, a mais recente e talvez mais completa, Flandrin & Montanari (1996).

392
usadas para se referir aos animais vivos, mas quando esses animais são
cozidos e servidos à mesa, eles assumem os nomes de origem francesa
beef, veal, pork e bacon, mutton, brawn e venison. Essa diferença é
atribuída, por um lado, ao fato de que, nos tempos da Idade Média, as
classes baixas eram as responsáveis pela criação dos animais, mas somente
a classe alta os comia. Por outro lado, a influência da conquista normanda
significou, na Inglaterra, a adoção de modos e costumes franceses ,
sobretudo nas classes aristocráticas e, principalmente, o uso dos nomes
franceses à mesa. Na realidade, a partir da Idade Média e até o
Renascimento, acontece uma importante evolução dos modos de
convivência e à mesa. Essas mudanças, por sua vez, refletem as
transformações fundamentais que acontecem no conjunto das relações
humanas. Foi no início do século XVI que as maneiras à mesa começam
a evoluir para se tornarem as que hoje conhecemos.
O desenvolvimento do comércio colonial posterior às expedições
europeias na América, África e Ásia aumentou o fluxo de alimentos e
condimentos exóticos para o Velho Mundo. Assim chegaram, entre outros
produtos, o milho, a batata, a batata-doce, o feijão, o tomate, o pimentão,
o girassol, o pato, o tupinamborNT etc., de tal modo que a alimentação
mudou profundamente e continuou se transformando à medida que
aumentavam os espaços conquistados e eram asseguradas e melhoradas
as comunicações entre as colônias e as metrópoles. Essas circunstâncias
podem ser consideradas, sem dúvida alguma, como a etapa inicial de
uma progressiva diminuição dos particularismos gustativos. Não se pode
esquecer que os produtos americanos, assim como alguns asiáticos, eram
denominados, de modo genérico, ultramarinos e/ou coloniais.
O século XVII conheceu uma revolução científica que constituiu
um precedente do humanismo e do racionalismo do século posterior.
O século XVIII foi palco de progressos tecnológicos cujas repercussões
no campo da alimentação foram importantes, apesar da miséria na qual
ainda se encontravam as classes desfavorecidas. Os fisiocratas viam, então,
na terra, no seu cultivo e na sua produção, a fonte potencial de uma
riqueza adicional, senão de toda a riqueza. Nessa época, as condições de
armazenamento dos mercados urbanos melhoraram, favorecendo, por
exemplo, o consumo de carne fresca e provocando, ao mesn;io tempo,
uma queda relativa no consumo das especiarias. Em 1747, um químico
alemão, Andreas Marggraf, descobriu que a beterraba, Beta vulgaris,
continha açúcar, e em 1786 um aluno dele iniciou o seu cultivo e
aperfeiçoamento, rompendo, assim, de algum modo, com o monopólio
NT Espécie de tubércu lo muito semelhante à batata.

393
que até então representava a cana-de-açúcar, cujo cultivo, por outro
lado, foi uma das maiores causas da prática da escravidão colonial. Mintz
(1985) destacou, principalmente, os fatores políticos e econômicos que
determinavam as quantidades de açúcar disponíveis, a importância
crescente do sabor açucarado na alimentação dos europeus e sua relação
com a escravidão, a contratação de mão de obra e a produção de base no
Terceiro Mundo.
Conquista, tecnologia, comércio e diferenciação social poderiam
ser considerados quatro fatores básicos das mudanças alimentares (Barrau,
1983). Um exemplo é o pato, animal importado da América, que foi um
produto exótico fundamental nas mesas das cortes europeias, assim como
nos jantares festivos da burguesia. Entretanto, desde o primeiro quarto
do século XIX , o pato começou a "se popularizar". Quando os
camponeses franceses queriam se aquecer nas longas noites de inverno,
era assado um pato. Na Catalunha, o pato -gall d 'indi, galo das Índias -
foi até poucas décadas atrás o saboroso prato com o qual as classes médias
celebravam o banquete extraordinário do Dia de Natal. Dias antes dessa
data, em uma de suas ruas mais importantes, a Rambla de Catalufia,
acontecia uma feira especializada na venda de patos e galos "castrados".
Assim, durante muito tempo alimento de festa , hoje, o pato - também o
frango - perdeu seu caráter sagrado e se converteu em uma carne
relativamente barata, que é vendida adornada, assada, em escalope, em
"coxas" e tem substituído, por seu melhor preço, a vaca e o cordeiro.
O que aconteceu? Por um lado , essa ave sofreu transformações
extraordinárias em decorrência das pesquisas científicas, que tiveram como
uma das primeiras realizações o famoso pato de Beltsville, "fabricado"
pelos geneticistas do Ministério da Agricultura dos Estados Unidos, na
Universidade de Cornell (Ithaca). Por outro lado, a avicultura industrial
baseia-se nesses patos de " raça artificial", aves " monstruosas" que
produzem grande quantidade de carne, para conseguir uma produção
em massa. Pode-se dizer que a agricultura e a pecuária se distanciam,
cada vez mais, da "natureza" para se aproximarem, também cada vez
mais, do laboratório e da indústria. E o mesmo acontece com os
"pescados", até semanticamente: a palavra deriva de "pesca", mais do
que de "peixe". De fato, espécies como a truta, o salmão, o robalo e o
linguado já podem ser não "pescadas", mas sim "cultivadas". A essas
espécies foram adicionadas outras como, por exemplo, o atum, pois
pesquisadores japoneses conseguiram sua reprodução em cativeiro
mediante técnicas de laboratório. Esses atuns pesam um pouco menos
que os "normais", mas, por outro lado, são mais ricos em gorduras, o
que aumenta seu valor no mercado internacional.

394
Conquista, comércio , tecnologia, crescimento demográfico ,
urbanização e imitação social, por sua vez, podem ser considerados os
fatores básicos da produção em massa e da progressiva tendência da
alimentação contemporânea à hiper-homogeneização, que consiste em
uma redução progressiva das variedades vegetais e animais, tão estimulada
pela indústria agroalimentar. Como indica Fischler (1979: 200),

Os antigos ecossistemas domésticos diversificados deram lugar a outros,


hiperespecializados ou 'hiper-homogeneizados'. Inclusive, poderíamos dizer,
de forma extrema, que os ecossistemas domésticos, como tais, praticamente
desapareceram; as paisagens agrícolas modernas estão constituídas por vastos
campos monotemáticos que são, em alguma medida, o último resultado do
processo de especialização iniciado no Neolítico. Assim, então, os terrenos
se inscrevem, cada vez mais, no marco dos vastos sistemas de produção
agroalimentar, de escala internacional, e já não mais naquele de subsistemas
locais ou regionais. Isso significa que a situação anterior, no plano alimentar,
se inverteu completamente: agora, o essencial da alimentação provém, como
antes acontecia com as especiarias, do exterior, no quadro de um sistema de
produção e distribuição muito mais amplo.

Poderíamos extrair outro exemplo ilustrativo da combinação dos


fatores citados do auge alcançado pelo steak na dieta dos Estados Unidos.
Eric Ross (1980) destacou que a carne bovina nem sempre foi a preferida
dos norte-americanos. O atual status glorioso do bife teria sido resultado
de um longo processo. De fato, no decorrer da maior parte do século
XIX, consumia-se mais carne de porco do que de boi, e era o presunto,
e não o bife, que gozava do status de carne preferida, status que a carne
bovina só veio a adquirir com a invenção do vagão de trem refrigerado,
na década de 1870. Essa mudança culminou em um longo processo
demográfico, tecnológico, econômico e ambiental. A carne de porco
prevaleceu enquanto a maioria da população permaneceu dispersa, em
bosques extensos, o Com Belt, ou Cinturão do Milho, estava próximo à
costa e a carne bovina deveria ser salgada ao invés de consumida fresca.
Quando os trens começaram a cruzar as Grandes Planícies dos Estados
Unidos, os grandes produtores de conservantes de Chicago tiveram a
possibilidade de abastecer os mercados de Boston e Nova York com carne
bovina refrigerada e barata, procedente do rebanho criado em pastos.
Essa carne adquiriu, então, um status preferencial porque era o foco
principal de um novo método de agricultura intensiva capitalizada para
a produção em massa de carne fresca. E o fato de o capital investido na
carne bovina ser maior do que o investido na carne de porco não estava

395
relacionado ao fato de que o rebanho bovino fosse símbolo de virilidade,
como sugere Sahlins (1980), 56 mas sim ao fato de que os porcos não
podiam comer o capim gratuito disponível nos imensos pastos do oeste
americano. Assim, pois, o status de honra alcançado pelo bife deve-se ao
fato de que a criação de gado bovino maximizava a tentativa de produzir
em massa uma carne macia e mastigável, além de fresca. Além disso,
acrescenta Ross, a preferência pela maciez própria da carne bovina não
foi arbitrária, mas sim influenciada pela abundância de dentições em
mau estado entre os consumidores das cidades.
Outros fatores também tiveram sua influência sobre os hábitos
alimentares, e estão conectados com algum as das características da
produção industrial de alimentos. Assim, por exemplo, Tannahill (1973)
destaca que, depois da 1 Guerra Mundial, experimentou-se um
incremento por parte dos fregueses de produtos de qualidade uniforme
e com preços estáveis. Essa demanda estava estreitamente relacionada
com a expansão da manufatura e da distribuição de produtos "de marca"
e com a forte publicidade de determinadas "marcas". Até o século XX,
as imagens de "marca", assim como as fraudes, haviam sido prerrogativa
tanto dos comerciantes como dos produtores. Mas a economia da
produção de massa, particularmente no campo dos produtos em conserva,
conduziu mais e mais produtores ao negócio dos produtos de marca. Os
Estados Unidos, sempre com uma preocupação muito grande com a
higiene (talvez porque muitos dos primeiros colonos pertenciam a igrejas
que acreditavam que limpeza era sinônimo de santidade), também
adotaram rapidamente embalagens de marca elega9temente empacotadas
para outros tipos de alimentos. Entretanto, na Inglaterra, em um passado
muito recente (nos anos 40 do século XX), os donos de lojas locais ainda
mantinham conversas particulares com cada um de seus clientes e
manuseavam o açúcar para introduzi-lo em sacos grossos de papel azul.
Na Espanha, essas mesmas práticas podiam ser observadas ainda nos anos
60. Mas, definitivamente, a qualidade uniform e e o preço estável,
recomendados pelos produtores de marca aos compradores, também
levaram a uma padronização de quase todos os produtos alimentícios.
Assim, por exemplo, a espécie de tomate não foi cultivada por seu sabor,
mas sim por seu peso uniforme, divisível de forma precisa: 18 unidades
por quilo ou oito unidades por libra.
56
As explicações de Eric Ross significam uma crítica bastante substantiva às teses de
Sahlins que foram apresentadas nos capítulo 2 como um expoente das teorias
culturalistas aplicadas à explicação dos tabus e preferências alimentares próprias
dos Estados Unidos.

396
Alguns progressos tecnológicos foram bastante decisivos para uma
progressiva homogeneização das dietas alimentares. A rapidez dos
transportes modernos contribuiu para isso, por exemplo, em um duplo
sentido: o espaço geográfico por um lado, na medida em que alimentos
ou produtos de âmbito local podem ser transportados rapidamente de
qualquer lugar para qualquer outro; e sazonal, por outro, na medida em
que as diferenças climáticas entre países permitem, por exemplo, consumir
durante o ano inteiro morangos, procedentes, segundos os diferentes
momentos do calendário anual, da Catalunha, de Huelva, de Israel ou
da Califórnia, por exemplo. Também as novas tecnologias aplicadas ao
lar (geladeiras e congeladores, sobretudo) contribuíram para diminuir a
importância dos ritmos sazonais, inclusive nas áreas rurais. Hoje, já é
quase um mito a ideia de que os próprios camponeses produzam a maior
parte dos alimentos que consomem. Existem apenas pautas diferentes
entre eles e o resto da população. Os supermercados e os hipermercados
também estão presentes nas áreas rurais e foram se deslocando para os
pequenos estabelecimentos de "comestíveis", de modo que a tarefa da
"compra" de alimentos adquiriu o grau de responsabilidade
anteriormente atribuído à "conservação".
Além das tecnológicas, existem outras razões para explicar as
transformações alimentares e culinárias: o esnobismo. A literatura
chamada "gastronômica" contribuiu, possivelmente em grande medida,
para cultivar esse esnobismo e para "erodir", como disse Barrau (1983),
os patrimônios culinários, impondo um modelo de cozinha "distinta", e
consagrada por alguns guias gastronômicos e pelas modernas escolas de
cozinha para bares, restaurantes e hotéis. Tudo isso contribuiu, pelo
menos parcialmente, para "desestabilizar" as cozinhas regionais. Nas zonas
rurais dos países mais industrializados e urbanizados, vê-se o abandono
de alimentos tradicionais, sobretudo entre os jovens, porque querem
comer "como na cidade" e, assim, diferenciar-se de seus pais, os quais
consideram excessivamente tradicionais ou atrasados. Curiosamente,
entretanto, os habitantes da cidade, de férias no campo, buscam esses
mesmos alimentos dos quais os jovens parecem ter vergonha.
Os filhos são hoje, sem dúvida alguma, também, um importante
mecanismo de mudança na alimentação, na medida em que são receptores
de um complexo código de regulamentos alimentares que provém de
diversos agentes - a escola e a televisão, por exemplo, e para citar apenas
dois dos mais importantes. E, por intermédio das crianças, essas mudanças
são introduzidas nas respectivas famílias. Além disso, aos filhos é
permitido, normalmente, um maior grau de desvio no momento de aceitar

397
hábitos alimentares novos ou raros. Já que citamos dois agentes de
mudança, mencionaremos um exemplo de cada um deles. O café da manhã
que as crianças tomam na escola é cada vez menos composto pelo lanche
preparado em casa, mas sim por uma enorme variedade de "salgados" e
"doces" que são profusamente anunciados na televisão (as crianças
"passam" horas do dia diante da televisão e, de acordo com os dados
publicados em diferentes países, o número dessas horas aumenta a cada
década) e, geralmente, comprados no trajeto para a escola. Por outro
lado, determinadas práticas que se espalham cada vez mais nas escolas
das cidades - nas quais, por sua vez, mais facilmente podem conviver
pessoas procedentes de diversos lugares, regiões e países -, como os
restaurantes coletivos e os convites, recíprocos, das crianças para irem à
casa de seus colegas, colocam as crianças em relação com tradições e
práticas culinárias diferentes daquelas de sua própria família, sobretudo
se levarmos em consideração a enorme diversidade de procedências
geográficas que podem conviver em uma cidade.
Por outro lado, parece que, cada vez mais, o aprendizado do gosto
não está, necessariamente, no meio familiar. Em épocas anteriores, os
pais sempre mantinham uma postura firme diante da resistência dos filhos
a determinados alimentos. A regra exigia que insistissem não tanto para
contrariar os pequenos, mas sim para acostumá-los a comer de tudo. Em
uma sociedade cada vez mais individualista e mais tolerante com as crianças
e adolescentes, esse é um fator que não deve ser depreciado. Poderíamos
dizer que passamos do "coma, gostando ou não" para "o que você quer
comer hoje?". Hoje, nas sociedades mais industrializadas, a maioria das
mulheres declara estar mais preocupada com o que sua família comerá
do que pensando no que é melhor para eles do ponto de vista nutricional.
Essas mães se sentem vítimas da contradição moral que significa obrigar
seus filhos a comer o que recusam em um momento em que "se poderia
permitir" escolher o que poderiam comer. Hoje, além disso, as crianças
acompanham seus pais e influenciam fortemente nas compras familiares;
escolhem, elas mesmas, por exemplo, as marcas de iogurte e de biscoitos
para o lar. Os adultos já não consideram um dever orientar o gosto das
crianças, mas, ao contrário, reconhecem ceder às pressões de seus filhos.
Pressões que, cada vez mais, ocorrem com menor idade, precisamente
porque vários produtos foram concebidos para seduzi-los, tanto por seu
sabor como por sua apresentação. As crianças do século XXI já não
aprendem a "gravar" seus alimentos, mas apenas a identificá-los
comercialmente. A cozinha industrial não evoca necessariamente um
produto específico com um significado concreto. Quando as crianças

398
comem filés de peixe empanados, o que elas pensam que estão comendo?
A "psicologização" da alimentação proporciona certa infantilização do
comensal. Essa "regressão" repousa em um culto, pelo menos aparente,
à criança. E desemboca na afirmação de um modelo de comportamento
adolescente como norma universal. O mundo infantil é um reino
encantado da indústria agroalimentar. As crianças são, hoje, um dos
principais demandantes alimentares, por determinarem boa parte das
compras de toda a família. Por outro lado, as crianças menores, de 6 e 7
anos, identificam o "melhor", o que mais lhes apetece comer, o que é
"mais fácil de comer" (massas, croquetes, almôndegas, batatas fritas , sopa
de macarrão etc.): refeições que não exigem o uso de faca e garfo, que
não são difíceis de mastigar e não exigem uma atenção ou vigilância em
especial. E, entre os alimentos de que eles não gostam, destacam-se o
pescado, ainda que não tenha espinhas, as verduras e o bife (pela
dificuldade de mastigá-lo). Ainda assim, os pais delegam às escolas a
responsabilidade de educar os gostos de seus filhos , ensinar-lhes a "comer
bem " (de tudo). E nas escolas são preparados cardápios variados e
equilibrados, mas evitados os alimentos difíceis (os mais recusados pelas
crianças, pelo sabor, são algumas verduras, ou pelas espinhas, alguns
peixes). Todas essas circunstâncias contribuem para o desenvolvimento
de um campo completamente aberto à inovação alimentar.
Poderíamos continuar mencionando as circunstâncias que podem
provocar mudanças nos hábitos alimentares e/ou conduzir à sua
homogeneização, mas acabaremos esta parte mencionando o paradoxo
de que, precisamente, essa progressiva homogeneização da qual estamos
falando provoca, ao mesmo tempo, certa "nostalgia" relativa aos modos
de comer e aos pratos que foram desaparecendo, o que suscita um interesse
por regressar às fontes dos "patrimônios culinários", tal como veremos
adiante.
Agora, apesar de todas as mudanças que temos considerado em
direção a uma progressiva homogeneização, é certo também que,
atualmente, continuam muito fortes , todavia, tradições culinárias
específicas, distribuídas no decorrer e ao largo da geografia mundial. De
fato, os comportamentos alimentares das castas hindus (Dumont, 1970),
dos Yanomami da selva amazônica da Venezuela (Lizot, 1978), das tribos
Lodagaa e Gonja do norte de Gana (Goody, 1984), dos camponeses
Quéchua do planalto andino (Orlove, 1987) são muito diferentes entre
si e, por sua vez, muito diferentes dos comportamentos dos europeus
(Elton, 1978) ou dos norte-americanos (Jerome, 1979, 1975). Mas a
direção indicada é a de que a alimentação, em geral, se homogeneíza

399
progressivamente, pelo menos quanto à generalização do consumo de
uma série de produtos industrializados, assim como do emprego de
determinadas ferramentas e técnicas de conservação e preparação dos
alimentos. Emprego esse que, por sua vez, é determinado por um fato
capital: o alargamento quase generalizado, nas sociedades
industrializadas, do tempo que a mulher dedica ao trabalho assalariado
e fora do lar (cf. capítulo 6). Essa circunstância já não permite a presença
contínua da mulher na cozinha e no lar. Já faz bastantes anos, Betty
Friedan (1974) indicava que, inclusive, a "dona de casa" das classes médias,
apesar de uma resistência inicial, acabou aceitando o café concentrado,
os alimentos congelados ou já preparados e enlatados, assim como outros
artigos destinados a "economizar tempo". Necessitava, entretanto, de
uma "justificativa", e essa lhe foi proporcionada pela publicidade, que
lhe afirmou que, ao usar os alimentos preparados ou congelados, ela
economizava o tempo necessário para poder realizar outras tarefas
importantes como as de "mãe" e "esposa" "moderna". E, assim, de fato,
não parece que as novas e numerosas tecnologias aplicadas ao lar tenham
contribuído para reduzir o tempo dedicado às tarefas domésticas em sua
globalidade, o qual, inclusive, poderia ter aumentado em alguns minutos
semanais; ao contrário, tais tecnologias parecem ter contribuído para
diminuir em cerca de três horas semanais o tempo dedicado à cozinha
(Dumazedier, 1988).
Mas não apenas os horários da mulher se modificaram. Antes, os
ritmos da jornada de trabalho estavam subordinados, em boa medida,
aos rituais da alimentação coletiva: aperitivo e almoço e jantar em casa.
Hoje, ao contrário, é a alimentação que se subordina aos ritmos das
jornadas de trabalho dos diferentes componentes do grupo doméstico,
assim como seus tempos de ócio. Hoje, com os "horários intensivos" e os
descansos cronometrados, difunde-se, desde a fábrica até o escritório,
uma espécie de "taylorismo alimentar" (Fischler, 1979: 203).
As características dos comportamentos alimentares derivados da
grande importância da agroindústria e de outros tipos de empresas
multinacionais da alimentação, assifn como das estratégias de marketing
por elas desenvolvidas para favorecer seus interesses, foram observadas
de modo paradigmático nos Estados Unidos, ainda que não
exclusivamente. Brewster e Jacobson (1978) realizaram um estudo sobre
mudanças ocorridas na dieta dos norte-americanos. De acordo com esse
estudo, e do ponto de vista nutricional, as mudanças mais significativas
nos 65 anos anteriores à sua pesquisa teriam sido os seguintes:

400
• Incremento no consumo de alimentos gordurosos. Em 1976, tais
alimentos proporcionavam 42% das calorias ingeridas, enquanto que,
em 1910, proporcionavam apenas 32%.
• Redução do consumo de carboidratos complexos, especialmente féculas:
21 % das calorias ingeridas em 1976, 37% entre 1909 e 1913.
_• Incremento do consumo de produtos açucarados. O açúcar refinado,
caldas e outros produtos significavam 18% das calorias em 1976, 12%
em 1910.
Vários foram os fatores, alguns deles sem precedentes, que
contribuíram para provocar essas mudanças nas pautas nutricionais dos
norte-americanos:
• A disponibilidade de novas tecnologias: desidratação, congelamento,
pasteurização, sublimação, aditivos químicos etc. teriam tornado
possível, por exemplo, produzir suco de laranja congelado, sopas em
pó, imitação de ovos etc., a preços acessíveis para os consumidores.
• O aumento da riqueza, que fez com que as pessoas incluíssem doces e
gordura em sua dieta, abandonando o pão e as batatas e substituindo-
as por carne, frango e doces.
• A implementação de diversos programas governamentais: por exemplo,
mais de sete bilhões de dólares por ano de subvenção em produtos
alimentícios para cafés da manhã e a lmoços escolares, assim como outros
programas dirigidos a famílias de baixos salários.
• O trabalho dos membros do par conjugal: em cada vez em mais e mais
famílias, tanto o marido como a esposa tinham emprego fora do lar.
Nesses casos, era menos possível preparar os ovos com bacon para o
café da manhã e mais fácil servir um almoço elaborado à base de produtos
já preparados.
• O fim do baby boom: os alimentos que eram mais populares entre as
crianças do que entre os adultos - alimentos infantis, doces e leite -
começaram a declinar ou a mostrar crescimento muito lento com o
aumento da idade média da população. Por outro lado, os alimentos
"adultos" (bebidas alcoólicas, brócolis, pescado ... ) aumentaram sua
participação na dieta.
• A disseminação das recomendações nutricionais como parte de
programas de saúde: cerca de uma de cada quatro das 1.400 pessoas
que responderam a uma pesquisa do Departamento da Agricultura
informou , em 1976, que algum membro de sua família mudava sua

401
dieta em consequência de algum problema de saúde (obesidade,
hipertensão etc.). Outra quarta parte dos entrevistados respondeu que
algum membro de sua família estava adotando novos alimentos e bebidas
para prevenir esses mesmos problemas de saúde.
Por outro lado, os restaurantes fast-food ou de "comida rápida"
tiveram, também, grande influência nessa mudança de pautas alimentares.
Esses restaurantes se caracterizam por oferecer uma gama muito reduzida
de alimentos: hambúrgueres, ketchup , french fries (batatas fritas), frango,
filés de peixe e sorvetes, fundamentalmente. Levando-se em conta que
existem cerca de 150.000 restaurantes desse tipo nos Estados Unidos, torna-
se facilmente compreensível sua influência nas pautas alimentares, até o
ponto em que, em alguns lugares, quase chegaram a superar as pautas
tradicionais. Essa redução na variedade dos hábitos alimentares
proporcionou grandes benefícios a algumas companhias, de tal modo que
as cadeias mais importantes desse tipo de comida aumentam a cada ano
suas vendas. E essas mesmas cadeias aumentam a cada ano seus gastos em
publicidade direta e indireta. Isso nos remete a uma questão já anunciada:
os novos hábitos alimentares desenvolvidos nos países industrializados estão
cada vez mais baseados nas estratégias de marketing do que nas práticas
alimentares tradicionais ou em uma racionalidade apoiada exclusivamente
em critérios dietéticos ou nutricionais. A indústria alimentar gasta bilhões
de euros em publicidade. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, mais
de 3% da fatura da indústria alimentar são empregados na publicidade ou
em outras formas de promoção comercial para estimular a compra de certos
produtos. Por outro lado, o gasto em embalagem, na maioria das vezes
outra forma de publicidade, supera 13% de tal fatura.

O Caso Espanhol:
transfarmações sociais e transfarmações
alimentares na segunda metade do século XX.57
De acordo com os dados que a tabela a seguir nos oferece sobre a
estrutura do gasto dos lares entre 1958 e 1997, os últimos quarenta anos
revelaram grandes transformações nos consumos alimentares dos espanhóis.
Os dados desta tabela, além de destacar importantes transformações
quantitativas nos consumos dos produtos , expressam, também,
transformações significativas nas atitudes e nos comportamentos

57
Algumas das considerações contidas neste item , particularmente os pontos 3 e 8,
foram tratados, também, ai nda que com outra orientação e finalidade no capítulo
4 (seção "Alimentação e gênero") e no capítulo 5 ("Corpos, dietas, culturas").

402
al imentares? Independentemente das limitações de uso, próprias das
estatísticas alimentares, sobretudo porque delas não podem deduzir
"significações culturais" precisas em termos dos comportamentos e das
atitudes dos indivíduos, o certo é que as transformações informadas pelas
estatísticas permitem que nos perguntemos sobre as transformações
ocorridas no terreno dos comportamentos e das atitudes. Até certo ponto,
poderíamos dizer que as mudanças de comportamento foram tão
importantes quanto as dos produtos. De fato, os últimos anos da década
de 50 e toda a década de 60 do último século constituem um período-
chave para a compreensão das grandes mudanças nos comportamentos
alimentares dos espanhóis ou das espanholas. Nesses anos observou-se
também uma grande transformação na sociedade espanhola em seu
conjunto. As importantes transformações econômicas, demográficas, sociais
e culturais têm relação direta com as transformações nos comportamentos
alimentares. Em seguida, nos limitaremos a citar brevemente algumas dessas
transformações iniciadas em fins dos anos 50 e que se consolidaram nos
anos seguintes. Nossa intenção ao citá-las não é tanto explicar cada uma
delas e especificar suas características, mas apenas indicar sua incidência
mais direta sobre os comportamentos alimentares para que o consumo
al imentar adquira seu sentido em relação estrutural com os demais
comportamentos sociais.

Tabela 10 - Estrutura do gasto em lares (%)


Alimentos 1958 1968 198'1 1991 1994 1997
Pão, massas, ce reais 18,5 12,7 10,8 7,5 8,6 9,1
Ba ta tas, ho rta liças frescas e tra nsfo rm adas 13,1 11 ,9 8,6 9,9 9,4 9,8
F rutas frescas e tra nsformad as 5,3 6,3 8,6 10,3 8,8 8,6
Carnes 17,6 26,2 28,7 27,7 26, 1 26,6

Pescados 8,3 7,8 10,6 12,2 13,1 11,9


Ovos 6,8 5,4 2,9 2,0 1,5 1,6

Leite, qu e ijo e ma nte iga 8,7 9,8 11 ,8 11 ,5 13,2 12,3

Aze ites e gorduras comestíve is 8,5 7,6 4,9 3,2 3,3 3,6
Açúca r e doces 4,2 4,4 3,2 6,2 5,9 5,5
Ca fé, ma lte e outros 2,1 1,9 2,6 1,0 1,3 1,4

Vinh os, ce rvejas e Jjco res 4,4 4,2 4,6 3,6 3,7 4,1

Be bid as não alcoólicas 0,3 0,9 1,5 1,9 2,5 2,6

Ou tros 2,2 0,9 1,2 3,0 2,6 3,0


Fo nte : La Alimentación en Espana. Ministeri o d e A g ric ultura P esca y Alim e ntación ,
2002.
403
1) Os 'processos de urbanização, de industrialização e o advento dos
salários' significaram o deslocamento de importantes volumes de
população de uma região para outra, de um habitat rural para outro
urbano e de um setor de atividade para outros, fundamentalmente
do setor primário para os setores industrial e de serviços. Esses
processos de urbanização e industrialização provocam alterações
importantes em relação aos comportamentos alimentares e às suas
razões. Por um lado, os deslocamentos de população significaram o
"encontro" entre costumes alimentares relativamente diferentes
segundo as regiões de origem e as de recepção; por outro, pode falar-
se em maior "sedentarização dos trabalhadores", menor desgaste físico
e, consequentemente, queda das necessidades energéticas. Significam,
ao mesmo tempo, um grande desenvolvimento da restauração coletiva
(refeitórios nas fábricas, casas de comida, self-service etc.) e do
fenômeno de "comer fora de casa".
2) ' Modificações nos tempos de trabalho e nos ritmos sociais'
(Observatorio de la Alimentación, 2004) O trabalho assalariado na
indústria e nos serviços, assim como uma melhora paulatina nas
condições de trabalho, significa uma reestruturação dos ritmos da
vida cotidiana: são regularizados os horários de trabalho, diminuem
as "horas extras" e aumentam os dias livres ou de ócio (descanso nos
fins de semana, período de féri as etc.). Isso é traduzido no surgimento
do fenômeno do fim de semana, juntamente com a disseminação do
automóvel e da segunda residência. Assim, se antes os ritmos da
jornada de trabalho estavam subordinados, em boa medida, aos rituais
da alimentação coletiva - café da manhã, almoço e jantar em casa - ,
paulatinamente, pelo contrário, é a alimentação que vai se tornando
subordinada aos ritmos das jornadas de trabalho dos diferentes
componentes do grupo doméstico, assim como aos seus respectivos
tempos de ócio. E, assim, de fato, pode-se falar, também, em uma
progressiva subordinação da alimentação familiar aos horários dos
diferentes membros dos grupos domésticos: horários de trabalho,
escolares, atividades extralaborais e extraescolares, de lazer etc. De
acordo com tudo isso, constata-se o desenvolvimento de certa
'individualização e simplificação das comidas', em um sentido triplo:
a) aumenta o número de refeições feitas solitariamente; b) ampliam-
se consideravelmente as faixas horárias de todas e de cada uma das
refeições e c) ampliam-se e diversificam-se os lugares onde são
realizadas as refeições, tanto no lar como fora dele. Assim, a
alimentação , inclusive a "fa miliar ", se ' individualiza '. -Essa

404
"individualização" ou "desestruturação" do sistema de refeições
proporciona "novas formas" de comer, como por exemplo e de acordo
com os termos propostos por Herpin (1988):
a. A 'desconcentração' ["iAntes hacíamos cena; ahora, una fruta
y un yogur!'', ou seja, ':Antes jantávamos; agora, uma fruta e um
iogurte! "] consiste na transferência das refeições sólidas
(relativamente concentradas no almoço e no jantar) em
benefício das "pequenas" refeições (o café da manhã, o
"sanduíche" ou os " lanches " da manhã, a merenda e o
"sanduíche" da noite são as mais frequentes e mais abundantes).
Inversamente, o cardápio das refeições principais se simplifica:
a refeição principal ao "novo estilo" se organiza em torno de
um único prato.
b. A 'desimplantação' ["iNosotros somos cuatro y comemos cada
uno a una hora diferente!", ou seja, "Somos quatro e cada um
come em um horário diferente! "]: as "novas" comidas não
ocupam lugar e horários fixos. Nem o princípio, nem o fim das
diversas refeições estão situados dentro de faixas horárias
estreitas, tal como evidencia o gráfico a seguir. Essa imprecisão
das fronteiras horárias faz com que apareçam formas híbridas
como a "merenda-jantar" ou o "aperitivo-comida".

70,0

61,2
60,0 58,0

50,0

40,0

30,0

20,0

10,0

O,O O
L . . . - - - -3- -4 o::::;;._.a:;=;....--..-ioi..

CJ Café da manhã Lanche da manhã • Almoço • Mere nda • Jantar

405
c. A 'dessincronizaÇão' ["iLa cena? iCada uno viene a su hora!",
ou seja, "O jantar? Cada um chega em seu horário!" ]: nas "novas
formas" de alimentação, os tem pos destin ados à preparação
das refeições estão cada vez menos coordenados no sentido de
fazer da refeição uma a tividade comum. Outras atividades
substituem a refeição como marcos de encontro e intercâmbio.
d. A 'deslocalização' ["i Comerenelsofá? ilamás! Bueno, sí, sábados
y domingos poria noche. ",ou seja, "Comer no sofá? Nunca! Bom,
sim, sábados e domingos à noite."]: a "comida tradicional" ocorria
na cozinha o u na copa. As "novas formas" não es tão tão
precisamente localizadas dentro dos diferentes espaços do lar,
nem em seu exterior. No lar, aos tradicionais espaços da cozinha
e da copa se adicionam a sala e o sofá. No exterior, ao café e ao
refeitório de empresa se adicionam a rua e os parques e jardins e
espaços relativamente indeterminados dentro dos lugares de
trabalho.
A simplificação e individualização das refeições do meio-dia é
um fenômeno próprio, sobretudo, das cidades das grandes áreas
metropolitanas e qu e se intensifica na medida em que a distância
entre o domicílio e o centro de trabalho aum enta. Afeta mais as
mulheres e as categorias sociais de empregados e quadros dos setores
de serviços. Por outro lado, nem a idade, nem a capacidade aquisitiva
têm influência sobre esse processo. As ' novas maneiras de comer'
significam certa modificação na estrutura tradicional de cada uma
das refeições, com a sua progressiva simplificação e um aumento do
snacking. Isso não impede que a população co ntinue, em sua maioria,
declarando que segue um modelo ternário para as refeições principais
(primeiro prato, segu ndo prato mais so bremesas) e um modelo
tripartido (38% café da manh ã, almoço e jantar; 38,5% café da manhã,
almoço e jantar + um café da manh ã na metade da manhã o u urna
merenda no meio da tarde) para a jornada alimentar.
3) 'Ampliação do período ded icado ao trabalho remunerado e fora
do lar por parte das mulheres'. As mulheres das classes trabalhadoras
sempre desempenharam, em geral, um trabalho rem unerado fora do
lar, mas esse trab alho costumava se interromper em razão de seu
casamento ou do nascim e nto do primeiro filho. O pe ríodo de
crescimento econômico iniciado em fins dos anos 50 significa maior
demanda por mão de obra feminina , de modo que, como vimos no
capítulo 4, a taxa de atividade das mulheres maiores de 16 anos
aum ento u de modo quase constante desde 1965 até a atualid ade.

406
Assim, o importante aumento do consumo de bens materiais e de
serviços a partir dessas datas faz com que o salário da mulher seja
imprescindível no lar. Tudo isso contribui para certa redefinição dos
papéis femininos na divisão sexual do trabalho, ainda que, em boa
medida, as tarefas domésticas continuem sendo desempenhadas pelas
mulheres e com quase nul a particip ação do s hom e ns. Essa
circunstância é aparentemente58 aliviada por um a extraordinári a
tecnificação do lar em geral e da cozinha em particular: proliferação
de eletrodomésticos diversos e aumento do consumo de alimentos-
serviço produzidos pela indústria. Assim, pois, as mulheres buscam
aqueles alimentos qu e exigem menor tempo de preparação e de
limpeza. As mulheres procuram, defi nitiva mente, produtos e bens
que economizem tempo na preparação dos pratos e na limpeza da
cozinha. 59 E essas são, precisamente, as grandes vantage ns dos
alimentos processa dos . As tarefas de " limp ar", " depenar" ,
"destrinchar", "ferver" e outras muitas foram deslocadas da cozinha
para a fábrica. As comidas "pront as para se rvir" não apenas
economizam tempo na preparação . Evitam, também, os aspectos
"sujos" do tratamento das maté rias- prim as. O uso crescente de
alimentos congelados e pré-cozidos é um a das características da
chamada " nova don a de casa". As empresas alimentícias pedem
numerosos estudos sobre as atitudes das mulheres com relação ao
trabalho doméstico, ao emprego, à vida familiar, às valorações dos
diversos tipos de alimentação etc. Trata-se de elaborar o "perfil" da
"mulher de amanhã". E essa "mulher de amanhã" parece se caracterizar
por comprar mais alimentos e pratos preparados com os objetivos de
. 58
Dizemos aparente porque, a julgar pelos dados fornec idos pelo Instituto de la
Mujer (El País, 14 fev. 1993, p. 11), a jornada semanal média de uma dona de casa
espanhola seria de 43 horas e 24 minutos, o que significaria uma tarefa diária de 6
horas e 12 minutos. E m qualquer caso, segundo o instituto mencionado, 20,3% das
mulheres dedicariam entre 6 e 10 horas diárias a seus lares e 15,4% mais de 10 horas.
59
É uma crença basta nte comum que os alimentos congelados são comprados por
serem mais baratos que os frescos . Isso pode ser verdade agora, mas não há vinte
anos. Segundo Wardle (1977), em 1973 , na Inglaterra, os alimentos congelados
eram mai s caros qu e os frescos e, apesar disso, se u co nsum o foi crescend o
exatamente porque eles permitem a economia de trabalho e contribuem para o
lazer. Por out ro lado, a indústria ali mentícia colocou recentemente em circulação
produtos "frescos" tais como legumes e verd uras (o chamado quarto raio gama)
que, apesar de seu alto custo, têm a vantagem de ser frescos sem os inconvenientes
dos preparativos cansativos. Na França, por exemplo, esses produtos do chamado
o qu arto ra io ga ma permiti ra m um a recuperação no consumo de legum es e
verdu ras que havia diminuído dez anos antes (Pynson, 1989).

407
diminuir o tempo dedicado à cozinha e de comprar com menos
frequência (Contreras, 1993b; Fischler, 1995a, 1995b; Gracia, 1996a,
1996b; Harrisson, 1986; Kõch, 1988; Lewis, 1979; Wardle, 1977). Entre
1985 e 1989, a Espanha experimentou uma das maiores taxas de
crescimento em termos reais entre os países da UE, com um
incremento, para 1985, de 77%. Por outro lado, o índice de penetração
dos pratos preparados supercongelados nos lares espanhóis superava
36% em 1991, representando 1,5% do orçamento doméstico destinado
à alimentação. Para o ano de 1991, o consumo de pratos preparados
supercongelados significava 3,5 kg por pessoa e ano (El País, 18 out.
1992, Negócios).
4) Y\umento da escolarização' no que se refere tanto ao volume de
crianças escolarizadas como à duração em anos de sua escolarização.
Isso significa, entre outras coisas, um aumento do custo de criação
dos filhos, assim como mudanças importantes nas expectativas e nas
relações entre pais e filhos, aceitando-se maior autonomia e uma
educação menos autoritária. Essa prolongação da escolaridade reflete
e remete a outras importantes mutações sociais e

não se explica apenas por uma política de melhoria do nível de formação


da mão de obra, nem pelo desejo de promoção que inspira as famílias em
um crescimento econômico vigoroso, mas também pela escolarização dos
aprendizados profissionais( ... ). A prolongação das escolaridades remete a
mutações muito mais profundas: mais ainda que uma socialização dos
aprendizados, é uma aprendizagem da sociedade. Antes esse aprendizado
se efetuava dentro da familia, e esta podia, então, se definir adequadamente
como a 'célula básica' da sociedade ( ... ). Se os pais se tornaram menos
autoritários, mais liberais e permissivos, é sem dúvida porque os costumes
evoluíram; mas, sobretudo, porque desapareceram as razões para impor
uma determinada atividade aos filhos ( ... ). A liberalizaÇ.ão da educação
familiar implica que o aprendizado da vida em sociedade se transfira da
família para o colégio. (Prost, 1989: 82)

Tudo isso, junto com outros processos, como o da concentração escolar


nos âmbitos rurais e o trabalho da mulher fora do domicílio, significa
que a disseminação da escolarização e sua maior duração significaram
a implantação dos refeitórios escolares (com cozinha própria ou com
serviço de catering) e maior autonomia alimentar por parte das crianças
e dos jovens (entre outras manifestações , muitas crianças e
adolescentes recebem dinheiro para comprar seu almoço e lanches

408
diversos), assim como uma importante ruptura no aprendizado
culinário e alimentar por parte dos jovens.
5) Importantes 'transformações demográficas' derivadas tanto dos
grandes movimentos de população já citados como da significativa
diminuição da natalidade e do envelhecimento da população,
consequência ao mesmo tempo das melhoras sanitárias. Ainda assim,
as mudanças demográficas afetam as estruturas familiares e o tamanho
dos lares, que continuam sendo as unidades de consumo alimentar
mais importantes. De fato , aumenta o número de lares e aumentam
as proporções dos lares com apenas um indivíduo, dos lares
monoparentais e das famílias nucleares, ao mesmo tempo que
diminuem as dos lares extensos e complexos. Assim, como em outros
países europeus, ainda que com maior atraso, diminui o tamanho
médio do lar, que passa, por exemplo de 3,9 membros em 1970 para
2,9 em 1990 (Contreras, 1993a).
Essa progressiva diminuição do tamanho médio dos lares significa,
também, um progressivo aumento dos lares compostos por pessoas
sozinhas. Os lares unipessoais não são compostos apenas por viúvas
ou viúvos, mas também por um número crescente de divorciados e de
solteiros independentes. Claro que os comportamentos e atitudes
alimentares dos "solitários" serão diferentes segundo as circunstâncias
dessa condição, tais como a idade, o sexo, a duração previsível da
solidão etc. Segundo Rigalleau (1989), na ausência provisória ou
permanente do grupo familiar e da divisão de papéis que normalmente
a acompanha, a pessoa solitária, homem ou mulher, jovem, mais velha
ou anciã, deve tomar todas as decisões relativas à compra, preparação
e consumo de alimentos, ou pode ser que não tome nenhuma e caia
em uma indigência alimentar. Em todo o caso, independentemente
de sua complexidade, essas mudanças nas estruturas e no tamanho
dos lares repercutiram consideravelmente em muitas das atividades
domésticas relativas à alimentação (pautas de compra e
armazenamento de alimentos, preparação das comidas, demanda das
"porções" adequadas etc.).
6) Como se pode ter deduzido das muitas considerações anteriores, a
'industrialização da alimentação' foi um processo muito importante
que afetou muito diretamente os comportamentos alimentares da
população. Nesse sentido, pode-se afirmar que a industrialização
alimentar é, ao mesmo tempo, causa e efeito das transformações em
matéria de tais comportamentos. Essa industrialização tem diversas
manifestações: por um lado, um importante processo de especialização

409
e intensificação agrícola e pecuarista e, por outro, o desenvolvimento
das empresas agroalimentares dedicadas à produção de 'alimentos-
serviço': congelados, embalados e prontos para comer, pré-cozidos,
pratos preparados etc. E para as "novas formas " da alimentação
contemporânea das quais falamos no item 2, os produtos congelados,
pré-preparados e pré-cozidos em geral representam consideráveis
vantagens "materiais" (não são necessários utensílios, nem bagunça,
nem preparação - são "fáceis e rápidos de preparar", apresentados
em porções individuais etc.) tanto para as mulheres que trabalham
fora de casa como para todas as pessoas que moram sozinhas. Nesse
sentido, pode-se afirmar que a agricultura e a pecuária se distanciam
cada vez mais da "natureza" e que a alimentação está mais longe das
matérias-primas e mais perto da indústria.
7) Assim, esse processo de desenvolvimento da indústria alimentar
foi acompanhado de uma ' importante revolução no campo da
distribuição e da comercialização'. De fato , à melhoria nos sistemas
de transporte sucedem-se a ampliação das redes de distribuição e o
surgimento de novas estratégias comerciais. Desse modo, aparecem
os primeiros comércios de tipo autosserviço, em seguida os grandes
supermercados, os hipermercados e os grandes centros comerciais.
Ao mesmo tempo , desaparece grande quantidade de pequenos
comércios tradicionais de caráter familiar, as mercearias, e os hábitos
de compra da população se modificam não apenas nas grandes
cidades, mas também nas pequenas cidades e, inclusive, nos povoados,
tudo isso favorecido pela penetração do automóvel e pela necessidade
das novas donas de casa de concentrar suas compras em poucas
ocasiões.
8) Difusão de ' novas ideias sobre o corpo e de novos modelos
alimentares'. No decorrer dos últimos trinta, quarenta anos, uma
série de mudanças em relação ao ideal do corpo - tanto o masculino
quanto o feminino - se consolidou , com foco na preferência pela
"magreza", em lugar da "robustez". Essa é uma preferência não apenas
"estética", mas também em termos de "saúde" porque, de fato , as
ideias sobre o corpo e sobre a saúde exercem uma influência muito
direta e muito importante na cultura alimentar e nos comportamentos
alimentares considerados adequados para cada caso (Bourdieu, 1988).
Assim , desenvolveu-se, durante os últimos anos, um persistente
discurso nutricional sobre a relação entre a alimentação e a saúde.
Existem padrões da "boa alimentação" e recomenda-se, de maneira
intensa, pelos meios de comunicação de massa, que se mantenha

410
uma "dieta prudente" ou "equilibrada" ou "saudável" que contribua
para a preservação da saúde. Em meio à abundância contemporânea,
nos países industriais os problemas de saúde foram deslocados
daqueles relacionados com a desnutrição para os relacionados com a
superalimentação. Também aumentou consideravelmente, nos últimos
anos, o valor social atribuído à alimentação, à saúde e à beleza física
(Mennel, Murcott & Van Otterloo, 1992). Além disso, e paradoxalmente,
quanto mais a medicina cura e permite aumentar a duração da vida,
mais os indivíduos sentem a ameaça, que aumenta com a idade, de
novas doenças a serem combatidas ... e esperam que os prógressos
médicos permitam curá-las. A saúde converteu-se em um argumento
fundamental do consumo e está se estendendo a todos os setores dos
bens e dos serviços. A alimentação é, hoje, o exemplo mais evidente
dessa evolução. O 'equilíbrio ' alimentar é considerado como a
prioridade no cuidado com o estado de saúde - na França, 87%, na
frente de "frear o consumo de álcool e de tabaco " (81 % ), de
"intensificar a pesquisa médica" (78%) e de "melhorar o conforto
das habitações" ( 41 % ). Levando-se em consideração essas visões,
pode-se dizer que em pouquíssimos anos, a dimensão imaterial ou
simbólica na qual ocorre a inovação dentro do setor agroalimentar
transformou-se profundamente. De fato , em poucos anos está se
passando da moda dos produtos 'leves' (sem açúcar, sem gordura,
sem calorias, sem álcool, ou com esses elementos em pequenas
proporções, com adoçantes, por exemplo) à tendência dos produtos
equilibrados, 'com suprimentos' (ou seja, com uma dose garantida
de vitaminas ou uma composição equilibrada de lipídeos). Essa nova
tendência parece indicar que as expectativas dos consumidores em
relação à alimentação baseiam-se em seu desejo de saúde e eles optam
pela tranquilidade, mais que pela magreza. Buscam uma resposta
para seu medo cada vez maior de doenças (Rochefort, 1995). Assim,
o alimento foi se transformando em medicamento, e a alimentação
já não responde à necessidade de satisfazer à fome ou à necessidade
de energia, mas sim à "fome de saúde". Paralelamente a essa
"medicalização" da alimentação desenvolveram-se, nos últimos anos,
numerosos "sectarismos alimentares" que propunham uma grande
diversidade de regimes cujo objetivo seria, teoricamente, a saúde e/
ou o emagrecimento: vegetarianismo , veganismo, naturismo,
macrobiótica, várias dietas, fórmulas farmacêuticas, vários substitutos
dos alimentos convencionais e das refeições normais, alimentos ou
pratos "leves", "desnatados", "sem álcool" etc.

411
9) 'Mudanças ocorridas no campo das atitudes, das ideias e dos
valores'. De acordo com Nelson (1986: 198-199), algumas das
mudanças mais importantes nas atitudes sociais e individuais das
últimas décadas foram: "l. Maior desejo de autonomia pessoal e de
independência; 2. Menos diferenças entre as atitudes do homem e
da mulher ( ... ); 3. Maior aceitação de um estilo de vida menos
estruturado e menos organizado".
Em boa medida, o que se chamou de "novo individualismo"
sintetizaria esse conjunto de mudanças no campo das atitudes e dos
valores. E esse "novo individualismo", baseado no desejo de maior
liberdade e nas possibilidades de realização pessoal, seria, na opinião de
King (1983), o fator mais poderoso de descontinuidade no consumo
de alimentos: a transição da formalidade, do respeito, do tradicional e
dos valores herdados para o novo, o pessoal, o experimental, o informal.
A tecnologia e a indústria alimentícia responderam perfeitamente a tudo
isso, pois souberam influenciar consideravelmente na satisfação das
preferências e das necessidades individuais. A "diversidade" foi a chave
mestra das políticas industriais,60 e alcança todos os aspectos: da tradição
ao exotismo, do conveniente ao individualismo, do gourmet ao dietético.
Essa extraordinária diversificação, indica Pynson (1989), responde de
forma muito lógica a uma dispersão dos objetivos e à coexistência, dentro
de um mesmo indivíduo, de aspirações aparentemente tão contraditórias
como a tradição do território reencontrado, a brincadeira com a
alimentação convertida emgadget ou o desejo da magreza. Nesse aspecto,
a publicidade alimentar desempenha um papel importante, agradando o
individualismo dos consumidores e fazendo-lhes ver a possibilidade de
desenvolver uma alimentação pessoal, e até certo ponto única, de acordo
com seus próprios gostos e/ou necessidades. A extraordinária diversidade
disponível graças à tecnologia alimentar permite satisfazer essas demandas
individualizadas, reduzindo o grau de comensalidade familiar e,
simultaneamente, são positivamente valorados a informalidade e o
individualismo na vida cotidiana e repudiados o ritual e a autoridade
etc. (Harrison, 1986; Herpin, 1988; King, 1983; Nelson, 1986).
60
A imagem de uma indústria alimentícia a serviço dos consumidores para satisfazer
seja suas novas necessidades provocadas pelos novos modos de vida, seja seus
desejos ou seus gostos mais propriamente individuais é perfeitamente ilustrada
pelas seguintes declarações de um importante empresário dedicado ao setor das
massas: "O bom empresário, o que quer oferecer um produto diferenciado, precisa
obrigatoriamente intuir, estudar e analisar o que o consumidor quer (... ). Por outro
lado, há alguns fatos objetivos que modificam a demanda, por exemplo, a redução da
natalidade e a maior proporção de pessoas sozinhas forçaram o oferecimento de
embalagens menores" (Nomen, E. El País/Extra , 25 jan. 1993, p. III, grifos nossos).

412
Assim, pode-se concluir que as profundas mudanças ocorridas nos
comportamentos e atitudes alimentares na Espanha, tanto nas
quantidades dos diferentes produtos como em sua estrutura e em suas
dimensões espaciais e temporais, são uma consequência dos processos
que acabamos de descrever nos itens anteriores.

Globalização e Homogeneização
dos Repertórios Alimentares
Em termos gerais, pode-se afirmar que, desde a década de 1950,
principalmente, a alimentação comum se homogeneizou progressivamente:
passou, em pouco tempo, de ecossistemas muito diversificados a outros
hiperespecializados e integrados em vastos sistemas de produção
agroalimentar em escala internacional. Desse modo, aumentou
consideravelmente a produção mundial de alimentos ao mesmo tempo
que desapareceram numerosas variedades vegetais e animais que
constituíram a base de dietas de âmbito relativamente local.
Um mesmo dado pode servir para ilustrar ambos os tipos de
transformação: por exemplo, no decorrer da história foram registradas
cerca de 7.500 espécies de maçãs. No início do século XXI, existiam
apenas cerca de trinta, das quais dez representavam 90% das maçãs
consumidas (Fischler, 1979). Em todo o caso, são muitos os exemplos
desse tipo. Lembremo-nos de alguns outros:
• Na Coreia do Sul, 74% das espécies, provenientes de 14 plantações,
foram completamente substituídas em 1993.
• Na China, existiam cerca de dez mil espécies de trigo em 1949 e apenas
cerca de mil em 1970. Também desapareceram as espécies silvestres de
arroz, amendoim e cevada.
• Na Malásia, nas Filipinas e na Tailândia, foram abandonadas as espécies
locais de arroz, de milho e de frutas.
• Na Etiópia, desapareceram determinadas espécies de cevada e de trigo.
• Na Argentina, a quinoa desapareceu.
• Na Costa Rica, foram substituídas as variedades indígenas de milho.
• No Chile, foi constatado o desaparecimento de espécies de batatas,
assim como de espécies locais de aveia, cevada, lentilha, melancias,
tomates e trigo.

413
Paralelamente a esse processo, as tarefas da cozinha doméstica
foram transferidas, em grande medida , para a indústria. Como
consequência de tudo isso, é consumida uma quantidade cada vez maior
de alimentos processados industrialmente. Além disso, a mundialização
dos intercâmbios econômicos difundiu o repertório dos alimentos
disponíveis e a mundialização dos intercâmbios culturais contribuiu para
a evolução das culturas alimentares e, consequentemente, dos hábitos,
preferências e repertórios, com o desenvolvimento das confusas misturas
gastronômicas. Esse fenômeno não ocorre apenas nos países mais
industrializados, mas também, ainda que com restrições, matizes, graus e
consequências diferentes, em todos os países do mundo. Tudo isso
significou uma ampliação do repertório alimentar e, ao mesmo tempo, a
sua homogeneização. A partir do fim do século XX, em qualquer país
do mundo, o essencial de sua alimentação provém de um sistema de
produção e distribuição cuja escala é planetária.
Atualmente, os países industrializados podem contar com maior
variedade de alimentos durante o ano. É certo também que, para que
tudo isso fosse possível, foi preciso recorrer (para permitir a conservação
e o transporte) a um uso disseminado e crescente de aditivos (conservantes,
corantes, aromatizantes etc.). Esses aditivos contribuem, também, por
um lado, para uma homogeneização progressiva dos alimentos; e, por
outro, significam uma ingestão sistemática e prolongada de substâncias
cujas consequências não são ainda conhecidas. De qualquer forma, as
mudanças que se produziram nas dietas alimentares da maioria dos países
do mundo destacam, no lugar da abundância e do bem-estar, certa má
nutrição. É claro que o interesse em obter mais alimentos a um custo
baixo continuará influenciando a produção - e o consumo - de produtos
cada vez mais homogêneos. Além desse exemplo das maçãs que acabamos
de ver, lembremo-nos da "homogeneidade" dos "frangos de granja'',
dos "tomates de estufa" ou dos "robalos de fábrica". As regulamentações,
também cada vez mais internacionalizados, sobre as composições e
processos autorizados e não autorizados, por razões "higiênicas", podem
atuar no mesmo sentido.
Assim, pois, depois de séculos de má nutrição recorrente como
consequência de certa falta de alimentos, hoje, nas sociedades
industrializadas, pode-se afirmar, salvo exceções, que todos comem e
que se instaurou um sentimento de abundância e até de superabundância
alimentar. Comer deixou de ser um objetivo principal da organização
social para se converter em um direito internacionalmente reconhecido.
De fato , no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos

414
(1948) insiste-se em que " todos têm direito a um padrão de vida adequado
para sua própria saúde e bem-estar e de sua família, incluindo a
alimentação". Agora , é certo que, assim como ocorre com outros
"direitos", sua consagração jurídica não significa necessariamente sua
realização efetiva.
Por outro lado, a industrialização do setor agroalimentar, que se
encontra em boa parte na base desse processo de homogeneização e
intensificação da produção a que estamos aludindo, foi acompanhada
por uma ruptura fundamental das relações que os seres humanos
mantiveram fisicamente com seu meio e com o fato de que numerosas
tarefas até então realizadas pelas donas de casa em suas cozinhas hoje
são realizadas na fábrica (Goody, 1984; Capatti , 1989a). De fato, no
último século, e sobretudo nos seus últimos quarenta anos, ocorreu a
transformação mais radical da alimentação humana, deslocando grande
parte das funções de produção, conservação e preparação dos alimentos
do âmbito doméstico e artesanal para as fábricas e, especificamente, para
as estruturas industriais e capitalistas de produção e consumo (Pinard,
1988). Atualmente, os sistemas alimentares são regidos cada vez mais
pelas exigências marcadas pelos ciclos econômicos capitalistas de grande
escala, os quais significaram, entre outras coisas, a intensificação da
produção agrícola, a orientação da política da oferta e da demanda, a
concentração do negócio nas empresas multinacionais, a ampliação e
especialização de redes de distribuição cada vez mais onipresentes e,
definitivamente, a internacionalização da alimentação. A comida é, hoje,
um grande negócio em torno do qual se movimentam cifras milionárias:
maior produtividade agrícola, mais rendimento da pecuária, intensificação
da exploração marítima , incremento dos pratos manufaturados ,
incremento do faturamento em publicidade , auge da oferta de
restaurantes etc. Sem ir muito longe, o gasto total realizado na Espanha
na aquisição de alimentos durante o ano de 2001, destinado tanto a
lares como ao setor de hotéis e restaurantes e a instituições, alcançou
61,44 bilhões de euros, valor que representou um incremento de 8,3%
com relação à cifra obtida em 2000 (MAPyA, 2002). O gasto médio por
pessoa, no ano de 2002, representou a cifra de 1.282,04 euros (INE).
A evolução dos modos de vida em direção a atividades menos
produtivas está na origem dos processos de homogeneização alimentar.
Como já vimos, o aumento do nível de vida, associado a um aumento do
salário assim como também a uma evolução do lugar e do papel social
das mulheres, significou um deslocamento da produção alimentar
doméstica para o sistema de mercado. Tudo isso se traduziu em uma

415
regressão da preparação culinária para o próprio consumo em favor de
uma demanda crescente por produtos prontos para comer e de um
aumento da frequência das diversas formas de comidas em restaurantes.
Além disso, a individualização crescente dos modos de vida comportou
certa "desritualização" das refeições, reforçada pela diminuição das
influências religiosas e morais. E a convivência associada às comidas, ao
menos no que se refere às refeições mais cotidianas, perdeu importância.
Aumentou a diversidade dos tipos de refeições segundo os contextos
(lugares, momentos, comensais ...) e, como consequência, o leque de
expectativas relativas às características qualitativas dos produtos
alimentares (Lambert, 1997b ).
De uma forma ou de outra, como acabamos de ver para o caso da
Espanha, o processo de rápida industrialização e urbanização na segunda
metade do século XX determinou: a mudança na estrutura econômica;
as transformações ocorridas no mercado de trabalho; o aumento do nível
de vida da população; a maior incorporação feminina no trabalho
remunerado fora do lar; as variações da composição familiar; a coisificação
do corpo; a hegemonia da magreza e, por fim , o novo valor outorgado
ao tempo de trabalho e de ócio. Todos esses aspectos favoreceram o
surgimento de expressões alimentares particulares. A alimentação da
população, ao mesmo tempo que se diversificou em relação a períodos
recentes, também se homogeneizou, internacionalizando-se em diferentes
aspectos. O espaço culinário doméstico tornou-se mais técnico, coincidindo
com sua menor utilização, da mesma forma que as comidas caseiras se
tornaram mais simples e as despensas se encheram tanto de 'alimentos-
serviço' que economizam esforço e tempo quanto, de acordo com os
lares, com produtos de reconhecida qualidade e com denominação de
origem. Cozinhas que, previsivelmente, se mecanizarão ainda mais em
um futuro próximo e estarão cheias de novos tipos de alimento, sejam
funcionais, transgênicos ou de quinta categoria.
Todas essas novas tendências vieram a conformar o sistema
alimentar moderno, afetando a estrutura e a composição das refeições,
as formas de abastecimento, o tipo de produtos consumidos, as maneiras
de conservá-los e cozinhá-los, os horários e a frequência das refeições,
os orçamentos investidos, as regras à mesa ou os trabalhos e valores
associados às práticas alimentares. Trata-se de uma ordem complexa e
heterogênea per se. Ainda que, diferentemente de outras épocas, a maior
parte da população tenha hoje a possibilidade de escolher entre um
leque de possibilidades e suas respostas, da mesma forma que acontece
em outros âmbitos sociais, em que essas escolhas podem ser essencialmente

416
plurais, há várias pressões econômicas e políticas no sentido de que os
comportamentos alimentares das populações industrializadas se
modifiquem e se assemelhem cada vez mais entre si.
O sistema alimentar moderno apresenta traços algumas vezes
paradoxais e outras vezes complementares que podem ser sintetizados
em pelo menos quatro tendências básicas (Warde, 1997; Germov &
Williams, 1999):
• O fenômeno da homogeneização do consumo em uma sociedade
também massificada.
• A persistência de um consumo diferenciado socialmente desigual.
• O incremento de uma oferta alimentar personalizada ou 'pós-fordista',
chancelada pela criação de novos grupos de consumidores que
compartilham estilos de vida.
• O incremento de uma individualização alimentar causadora da crescente
ansiedade do comedor contemporâneo.
Com efeito, os distintos processos socioeconômicos levaram
diferentes autores a caracterizar a nova ordem alimentar como "hiper-
homogênea" (Fischler, 1979), em decorrência da globalização da dieta
em escala internacional (Goody, 1989; Marti-Henneberg et ai., 1987,
1988). A padronização do consumo começa a se manifestar no momento
em que passa a ser possível falar em uma 'alimentação industrial'. Esse
termo nos remete, em boa medida, às transformações que acontecem no
século XIX e ao conjunto de fatores que as possibilitaram e iniciam com
a invenção de novas técnicas para conservar os alimentos, como o
enlatamento e a refrigeração artificial; com as melhoras nos meios de
transporte ferroviários e ultramar; com a mecanização aplicada à produção
de alimentos, sobretudo na agricultura, em sua preparação (limpar,
destroçar, ralar, cozinhar) ou no processo de envase; e, finalmente, com
as mudanças ocorridas na comercialização e nos pontos de venda, que
passam dos mercados abertos e distantes das grandes cidades à proliferação
das lojas varejistas, os supermercados e hipermercados. Não se pode
entender a cozinha e a dieta contemporânea sem conhecer as mudanças
que, desde a metade do século XIX, têm afetado todas essas fases dos
sistemas alimentares. Cada uma dessas transformações incidiu sobre os
rumos tomada pela produção, na padronização dos ingredientes, nos
conteúdos dos pratos e nas formas de prepará-los e, definitivamente, na
homogeneização do consumo alimentar dos países que de diferentes
formas participaram de todas essas modificações.

417
Assim, hoje os comportamentos alimentares nos países
industrializados baseiam-se mais nas estratégias de marketing das empresas
agroalimentares do que na experiência racional ou nas práticas
tradicionais (Abrahamsson, 1979). Essas estratégias têm uma dimensão
"multinacional" e/ou "global" e afetam, também, os países do Terceiro
Mundo, onde os maiores e menores efeitos dependem da medida em
que as diferentes comunidades se incorporam a uma economia monetária
e as mudanças introduzidas nos modos de produção significam menor
uso da terra e do trabalho para a produção de mercadorias para
subsistência e maior para os cultivas comerciais (Manderson, 1988).
As grandes empresas agroalimentares controlam, cada vez mais, os
processos de produção e distribuição de alimentos. Alimentos, por sua
vez, produzidos cada vez mais "industrialmente", e isso apesar do fato
de a própria noção de "indústria alimentícia" (Atkinson, 1983; Fischler,
1995a) ser repugnante para muitas pessoas. De fato, o consumo de
alimentos processados aumentou consideravelmente a partir dos anos 60
do século XX e continua aumentando, apesar das denúncias que os
desqualificam moral, gastronômica, econômica e dieteticamente tanto
nos países mais industrializados como nos do Terceiro Mundo. Aumenta
o consumo de tais produtos em número de unidades, em diversidade de
produtos e em porcentagem de orçamento. O processo está longe de ver
seu ponto final porque a tecnologia alimentar está constantemente
desenhando novos produtos e as últimas aplicações alimentares da
biotecnologia anunciam diversas novidades alimentares para um futuro
relativamente imediato, tais como, por exemplo: tomates que não
apodrecem, leite de vaca com vacinas incorporadas, berinjelas brancas,
arroz colorido e aromatizado, batatas com amido de melhor qualidade
que as fará mais crocantes quanto fritas , milho com um leve sabor de
manteiga etc.
De acordo com as considerações anteriores, e de modo geral, pode-
se falar em homogeneização e internacionalização alimentar em dois
sentidos.
1. Por falta de variedade nutricional das dietas, o que significa que,
contrariando nossa natureza onívora, reduzimos e desestimamos as
possibilidades de obter energia do consumo variado de alimentos e,
consequentemente, acabamos registrando excessos ou carências de
ordem nutricional. Nos países industrializados esse é um aspecto que
preocupa especialmente os técnicos sanitários e os responsáveis pelas
políticas alimentares.

418
2. É normal falar em homogeneização pela semelhança de consumos
entre os diferentes países a partir da diminuição das espécies locais.
Mesmo que muitos produtos tenham desaparecido nestes últimos
anos. É verdade, entretanto, como destacamos em várias ocasiões,
que a homogeneização tem um longo passado histórico que se reflete
na produção monótona de alguns alimentos em âmbito local. Por
exemplo, as cozinhas regionais francesas só se consolidaram no século
XIX, de maneira que também não são antigas como às vezes se
pretende mostrar. Na Idade Média, várias regiões tinham uma
alimentação parecida; estudos feitos sobre a cozinha provençal do
século XIV mostram que inclusive as diferenciações entre cozinha
aristocrática e popular não tinham grande relevância (Goody, 1989).
Nessa época, sequer as diferenças entre as cozinhas inglesa e francesa
eram importantes. Por sua vez, quando analisa as modificações
ocorridas na dieta dos operários de Sabadell, na passagem do século
XIX ao XX, Carrasco (1986) destaca que os trabalhadores das fábricas
tinham uma alimentação pouco variada, à base de pão, feijão seco,
batatas, peixe salgado, vinho, frutas e verduras - estas últimas apenas
sazonalmente - e pouca carne . Uma dieta que não difere
substancialmente daquela que Martínez Alier (1968) constata entre
os trabalhadores do campo de Córdoba nos anos 1960, cujos alimentos
básicos eram o pão, o azeite, o grão-de-bico, o feijão e as hortaliças
da época, tal como vimos no capítulo 4.
Relacionada com a tendência à homogeneização dos consumos,
falou-se também da mundialização ou internacionalização da cozinha.
É certo que não se deve subestimar as diferenças regionais existentes,
nem os movimento de autopreservação para conservá-las (ver o item
"Rupturas nos sistemas de representação alimentar e desconfiança dos
consumidores", adiante), mas a semelhança de produtos expostos nos
supermercados de qualquer país, das bebidas oferecidas em todos os
aeroportos ou das refeições servidas nos hotéis internacionais é, de acordo
com Goody (1989) e Fischler (1995b), evidência da uniformidade dos
gostos vinculada ao caráter industrial e à nova ordem mundial.
A influência da comida processada industrialmente é notada de maneira
mais intensa nas regiões que não têm uma larga tradição culinária
perenizada pela escrita. Nesse sentido, Goody acredita que a
internacionalização é irrevogável. Tal mundialização da cozinha é
favorecida, por sua vez, por distintos processos. Por um lado, pelo auge da
'migração' das comidas iniciadas há décadas , ainda que essas,
frequentemente, tenham pouco a ver com as cozinhas de origem:

419
restaurantes vietnamitas na França, chineses no Canadá, libaneses na Grã-
Bretanha, japoneses no Chile, mexicanos ou árabes ou italianos na Espanha
etc. Com frequência, ocorre que a comida oferecida como exótica ou
estrangeira não é tão autêntica como a maioria dos consumidores imaginam.
Vários pratos hoje populares nos Estados Unidos e que são considerados
como claros exemplos de cozinhas estrangeiras foram, na verdade,
inventados no próprio país. Ainda que o chili con carne mantenha sua
denominação em espanhol, os americanos de origem latina afirmam que
nada têm a ver com ele. Segundo MacClancy (1992), há dicionários
culinários de origem mexicana que definem esse prato como "uma comida
detestável que é vendida nos Estados Unidos, do Texas a Nova York",
lembrando, além disso, que esse prato foi inventado na cidade texana de
Santo Antonio, em 1870. Por sua vez, o creme denominado vichyssoise,
ainda parecendo um prato de origem francesa, também provém da cidade
de Nova York e foi criado em 1910. O famosíssimo e frequente chop suey é
outro exemplo de origem falsa. Apesar de, na Europa e nos Estados Unidos,
ser considerado um prato básico na comida chinesa, o certo é que era
totalmente desconhecido pelo povo chinês até que os restaurantes da China
tiveram que começar a servi-lo para satisfazer às demandas dos turistas
norte-americanos (MacClancy, 1992).
Por outro lado, a mundialização da cozinha foi favorecida, também,
pelo desenvolvimento de uma cozinha a que, precisamente, se denominou
"internacional". Por exemplo, nas grandes redes hoteleiras predominou
até fins do século XX um tipo de comida chamada "internacional" cuja
base era, fundamentalmente, francesa e italiana. Além disso, as Escolas
de Restauração reproduziam essa mesma cozinha, pois era a única
ensinada aos futuros profissionais destinados a hotéis e restaurantes.
Entretanto, o processo de internacionalização se acentua, como
indica Goody (1989), em função das características econômico-políticas
das sociedades receptoras. Os países em vias de desenvolvimento que
tiveram uma tradição culinária escrita e hierarquizada, como a Índia ou
a China, não experimentam uma "internacionalização" da comida tão
intensa como os países africanos, no qual a cozinha apresentou
historicamente apenas uma diferenciação social. Assim, as comidas
industrializadas europeias se disseminam com mais êxito em âmbitos da
América Latina ou África, enquanto que áreas vietnamitas, hindus ou
chinesas exportam sua cozinha para a Europa, ainda que também recebam
influências ocidentais (o chá na Índia, por exemplo). A disseminação,
em qualquer parte dos cinco continentes, dos estabelecimentos chamados
de fast-food também contribuiu para outro tipo de mundialização

420
(hambúrgueres, cachorros-quentes, crepes, croissants, kebab etc.), com a
particularidade de que para os grupos mais jovens das zonas pouco
desenvolvidas são considerados uma amostra de modernidade. Contribui,
também, a indústria editorial com um autêntico boom de livros de cozinha
que, com suas receitas e modas, supera muitas fronteiras territoriais.
O processo de homogeneização ou de mundialização dos hábitos
alimentares foi denominado por alguns estudiosos como "americanização"
da alimentação no sentido de que, nos últimos anos, os Estados Unidos
foram o líder no grau de sofisticação do consumo de alimentos e de
certos estilos de vida e os demais países foram se "americanizando" em
diferentes ritmos (Reiter, 1996). O problema, entretanto, é mais
complicado, pois não se trata de um processo de americanização no
sentido de uma aculturação pura e simples, mas sim de um processo que,
com mais exatidão, poderia ser chamado de "mcdonaldização" (Ritzer,
1992, 2001; Aries, 1997). Esse processo de "mcdonaldização" seria o
resultado da aplicação dos critérios de mecanização, intensificação,
padronização e planejamento do trabalho, de redução dos custos e
obtenção de lucros rápidos em todas as fases da cadeia alimentar, desde
a produção até o consumo final. Nesse sentido, caberia dizer que as
sociedades "ocidentais" se americanizam menos do que se industrializam
e se transformam mais do que se aculturam (Fischler, 1995b ). E mais,
pode-se dizer, também, que apesar da tendência à homogeneização na
oferta e nos consumos alimentares, desenvolve-se com cada vez mais força
um interesse por aceitar e incorporar os que poderiam denominar-se
'alimentos étnicos'. Assim, por exemplo, independentemente de os
Estados Unidos terem optado pelo modelo de um melting pot, e de o
Canadá ter preferido a aproximação do 'mosaico cultural', em ambos os
países ocorre uma extraordinária mistura de grupos culturais e étnicos,
cada qual com seu próprio estilo de comida. A aculturação das minorias,
acompanhada, paradoxalmente, por um aumento do interesse pelo
patrimônio cultural e pela própria identidade, favoreceu a popularidade
das comidas étnicas, algumas das quais foram convertidas em genuínos
produtos americanos. Essa "etnicidade", passada, sem dúvida, pela
peneira do processamento industrial e do marketing, pode ser vista
refletida em boa parte dos estabelecimentos alimentares norte-americanos
e de muitos outros lugares do mundo. Na verdade, a indústria alimentícia
popularizou em "porções individuais" e pré-cozidas alguns dos pratos
étnicos mais conhecidos, desde a paella até o "arroz três delícias",
passando pelos tacos mexicanos.

421
Assim, de acordo com Poulain (2002a), os particularismos nacionais
e regionais não desapareceram tão rapidamente como alguns autores
sugeriram recentemente. Certamente, McDonald's, ainda como o primeiro
restaurante mundial e a própria imagem da homogeneização, levou em
consideração esse tipo de particularidades em suas tentativas de
penetração nas diferentes culturas alimentares do mundo e desenvolveu
estratégias de microdiversificação para se adaptar a algumas das
particularidades dos gostos dos mercados locais. A estratégia inicial dessa
cadeia de restaurantes rápidos considerava que sua oferta - ou seja, a
gama de produtos resultantes de uma organização muito sofisticada -
era imutável, tendo como objetivo superar os obstáculos de sua aceitação
por meio da gestão da comunicação e do marketing. Entretanto, diante
da resistência dos mercados, pouco a pouco foi sendo introduzida uma
série de modificações na oferta para adaptá-Ia aos hábitos locais. Na
França, por exemplo, nos restaurantes McDonald's é servida cerveja,
enquanto que nos Estados Unidos os estabelecimentos não servem bebidas
alcoólicas. Na França, Holanda e Bélgica, a maionese acompanha as
frituras, enquanto nos Estados Unidos o ketchup goza de indiscutível
supremacia. Em seu início, essa cadeia produzia um café leve, tipo
"americano", que não era em absoluto do agrado dos italianos ou dos
espanhóis. Hoje, as tecnologias foram adaptadas para oferecer tipos de
café também mais parecidos com os gostos locais. Nesse sentido, pois,
alguns particularismos locais ainda são bastante fortes. Os espanhóis
continuam fazendo suas refeições em horários que os franceses e os
ingleses consideram muito tarde e, inclusive, a própria noção de refeição
não abrange o mesmo significado em toda a Europa.
A internacionalização das cozinhas contrasta, além disso, com os
esforços dos chefs da restauração, dos gastrônomos ou, inclusive, das
autoridades locais para recuperar ou 'inventar' novas cozinhas, tradicionais,
regionais ou nacionais. Cozinhas que, analisadas em seu conjunto, têm
pouco a ver com as refeições cotidianas da maioria da população.
Entretanto, o empenho em destacar a suposta diversidade e a peculiaridade
culinária de cada cultura, país ou região é significativo e parece uma reação
lógica à deslocalização sofrida pelos alimentos modernos ao serem
separados de seu contexto geográfico e das restrições climáticas aos quais
tradicionalmente estavam associados. O medo da padronização está sendo
utilizado por diferentes setores (restaurantes, políticos, associações
culturais) para reivindicar a manutenção ou a restituição das cozinhas
regionais e autóctones. Os debates na Europa e as diferentes negociações
que, no seio da União Europeia ou em escala internacional, vêm sendo

422
travados sobre certos produtos emblemáticos para certos países (o queijo
camembert, para a França, ou o azeite de oliva, para a Espanha) ou as
duras negociações agrícolas que acabam tomando restaurantes como
McDonald's como bodes expiatórios e símbolos da mundialização- ataques
a casas de fast-food, queima de bandeiras norte-americanas - indicam que,
por trás dos fenômenos econômicos e sociais, emergem os sinais, e às vezes
os sintomas, de uma crise de identidade que afeta a esfera alimentar
provocada e cristalizada pela industrialização.
De modo geral, as pressões globalizantes parecem mascarar a
complexa heterogeneidade que é produzida localmente, pois cada região
acaba resolvendo a produção, distribuição e consumo de alimentos também
seguindo suas próprias experiências históricas. Por outro lado , a
uniformidade alimentar apresenta alguns paradoxos importantes. Assim,
por exemplo, ela não exclui que , nos grandes estabelecimentos
distribuidores (supermercados, hipermercados, centros comerciais), muitos
produtos fiquem fora das prateleiras por falta de espaço; em apenas um
ano, os Estados Unidos lançam no mercado mais de três mil ' novos'
produtos de alimentação, o que faz com que, nos diversos comércios
expedidores, possam ser encontrados pães de diversas variedades, iogurtes
de composição muito variada ou azeites de composição diversa e com
diferentes origens. Um simples dado numérico: nas prateleiras dos grandes
supermercados como os que existem em vários países podem ser
reconhecidos mais de 18.000 referências alimentares. Em contrapartida,
também é certo que, nos países industrializados, a introdução de novos
produtos alimentares é mais condicionada pelas estratégias de marketing
do que por critérios de tradição ou nutrição e coincide com lançamentos
similares para todos os países.
Por outro lado, como indica Malassis (1975a, 1975b), o aumento
considerável das quantidades produzidas não significou o fim das
desigualdades nos consumos. O que variou com o desenvolvimento
agroalimentar é que o consumo, diferentemente de etapas anteriores, se
converte em socialmente praticável. Assim, encontramo-nos diante de
tendências alimentares aparentemente contraditórias. De fato, como
devemos entender a padronização alimentar? Carrasco (1992a) insiste
em que devem ser delimitados os setores e/ou os aspectos nos quais se dá
a homogeneização. Na Espanha, por exemplo, o material disponível para
análise não permite , pelo menos no momento , sustentar essa
generalização . Para começar, é preciso ver se o resultado tende à
estagnação ou se é apenas uma fase de um processo contínuo de
transformações. Se for defendido, como hipótese, que a homogeneização

423
tende a aumentar, deveria ser confirmado, primeiro, que as tradições
locais, por exemplo, foram realmente tão diversas como as tentativas de
recuperação gastronômica dão a entender. Carrasco prefere inclinar-se
a uma aparente homogeneização interterritorial, 'socialmente horizontal',
entre populações que estão sob pressões sanitárias e publicitárias
semelhantes e que, em um curto período, encontram-se diante de uma
extraordinária oferta por um lado e de uma desautorização cultural dos
saberes tradicionais por outro. Circunstâncias que, nessas sociedades,
promovem certa " desculturação alimentar". Por sua vez, essa
homogeneização é paralela ou simultânea a um processo constante de
heterogeneidade 'socialmente vertical' que, por outro lado, se observou,
também, no decorrer da história. Carrasco acha difícil que entre a maioria
da população seja difundido, por exemplo, o consumo de caviar iraniano
ou do presunto do Reno. Nesse sentido, pode-se defender que as
estratégias publicitárias favorecem a homogeneidade interterritorial, assim
como, paralelamente, a heterogeneidade das ofertas.
Com frequência, quando se fala da homogeneização dos consumos,
é como se fosse incorporado apenas um aspecto dessa referência, os
produtos "disponíveis", e não tanto aqueles efetivamente ingeridos.
E tampouco as situações que provêm ou acompanham o consumo
alimentar, ou a identidade de quem os ingere. As diferentes estratégias
atualmente definidas em âmbito individual, doméstico ou local sugerem
uma diversidade não desprezível dos comportamentos que definem a
alimentação cotidiana. Como indica Pynson (1987), diante da
homogeneidade há que se falar em diferentes 'estilos alimentares' com
base em variáveis sociais como a idade, o nível de instrução, a faixa salarial,
a estrutura familiar, a origem étnica ou a categoria socioprofissional,
entre outras. Pode-se dizer, consequentemente, que as maneiras de
solucionar a alimentação cotidiana são heterogêneas e as formas de acesso
aos alimentos e aos serviços alimentares, também. São vários os autores
em cujos trabalhos se defende que a padronização não é real e que não
podemos falar em um só tipo de alimentação, como se todas as mudanças
ocorridas durante as últimas décadas tivessem suprimido as diferentes
formas de comer de acordo com algumas variáveis: homem ou mulher,
criança ou adulto, trabalhador rural ou industrial, rico ou pobre. Contra
a tese que defende a dissolução das diferenças devido a questões de
classe, autores como Grignon e Grignon (1980a, 1980b), Herpin (1980,
1984), Bourdieu (1988) ou Gómez (1992) insistem em mostrar a
permanência da importância do peso da variável classe social no consumo
alimentar contemporâneo. Questionam, assim, as explicações da psicologia

424
que desconsideram as diferenças sociais e indicam, pelo contrário, ·que
as escolhas e as práticas podem sempre estar relacionadas com a classe
social a que se pertence, visto que a abundância e a democratização não
suprimiram as desigualdades no acesso aos recursos disponíveis.
Por outro lado, ainda que a fome e suas derivações tenham
acompanhado a humanidade no decorrer de sua história, a crescente
insegurança alimentar, entendida como falta ou escassez de alimentos,
existente em certas partes do mundo, parece estar ligada à progressiva
expansão da economia de mercado de caráter capitalista. As perguntas
a respeito se repetem. Se é fato que, como se tem defendido em diversas
instâncias, a produção alimentar atual é suficiente para alimentar toda
a população mundial, por que a fome persiste? Por que a fome não
desaparece no momento histórico da grande abundância? As realidades
que sustentam as diversas situações de fome são variadas: zonas urbanas,
grupos indígenas e minorias étnicas, famílias e indivíduos com salários
baixos etc. As explicações sobre o fenômeno da fome são múltiplas e
diferentes entre si, tal como indicamos no capítulo 6, dependentes não
do tipo de conflitos que o origina e das sociedades que o sofrem, mas
sim da posição ideológica e política de quem o avalia.
Assim, e em decorrência de tudo o que foi dito, o reconhecimento
geral do maior acesso e da hiper-homogeneização dos consumos deve
ser contrastada com , pelo menos, três realidades: a persistência da
desigualdade social no acesso a determinados tipos de alimentos e às
possibilidades de escolha entre os mesmos; a diferenciação segundo a
bagagem sociocultural que condiciona grupos e indivíduos; a variabilidade
propiciada pela oferta alimentar (estabelecimentos, restaurantes,
produtos) e pelos particularismos locais.

Rupturas nos Sistemas de Representação


Alimentar e Desconfiança dos Consumidores
Os sistemas de representações sociais sobre a alimentação estão
evoluindo mais lentamente que os sistemas de produção-distribuição
com suas inovações tecnológicas relativas tanto aos produtos como à
embalagem, e tanto nos lugares de produção quanto no transporte,
armazenamento e distribuição. Como o aumento da importância das
indústrias agroalimentares, a urbanização e as mudanças nas estruturas
e no tamanho das famílias, o conteúdo de nossa alimentação se modificou
profundamente. Os consumidores têm conhecimento apenas parcial dessa

425
evolução, que vai desde o que poderíamos chamar de situação
"tradicional" ou "pré-industrial" até a atual era do cracking e da "junção".
Nesse quadro evolutivo, o papel das indústrias alimentícias mudou e o
alimento é apresentado de maneira dualista. Por um lado, se 'artificializa'
e, por outro, deve conservar um status "natural", pois para o consumidor
esse é o único nexo tangível com a natureza. Assim, com o tempo, as
práticas alimentares podem ser evolutivas, a mudança pode tropeçar na
insatisfação do consumidor confrontado, por exemplo, com os alimentos
"industriais", que são considerados insípidos, sem seu sabor característico
e, inclusive, perigoso.
A "revolução industrial" aplicada à indústria alimentícia permitiu,
nas últimas décadas, aumentar consideravelmente a disponibilidade de
todo tipo de alimentos, até o ponto em que se passou da escassez à
superabundância, como já vimos. Esse é o aspecto positivo dessa revolução,
mas há outro. Como indicou Fischler (1995b ), em poucas décadas a
revolução industrial, a especialização e os rendimentos crescentes da
produção agrícola e o desenvolvimento hipertrófico das cidades
contribuíram para criar uma "modernidade alimentar" que modificou a
relação do homem com sua alimentação. Com a evolução da produção e
da distribuição agroalimentar, perdeu-se, progressivamente, todo contato
com o ciclo de produção dos alimentos, ou seja, sua origem real, os
procedimentos e as técnicas empregadas para sua produção, conservação,
armazenamento e transporte. Gruhier (1989) chegou a dizer que os animais
que hoje consumimos (também os vegetais) são autênticos "mutantes"
que têm pouco a ver com seus "antepassados" de trinta ou quarenta anos
atrás, ao passo que, ao contrário, o homem contemporâneo, pelo menos
biologicamente, é idêntico a seu antepassado medieval.
Essa seria outra das manifestações da "modernidade alimentar",
criada pela revolução industrial e suas concomitâncias (hiperespecialização,
busca constante de aumento nas rendas das produções agrárias e pecuária,
crescimento hipertrófico das cidades e "desertificação" das zonas rurais
etc.). Assim, a relação do homem com sua alimentação teria se modificado,
o código alimentar referente às categorias sociais teria sido violado e os
sistemas taxonômicos da alimentação teriam entrado em crise.
Definitivamente, deve-se falar em uma desestruturação dos sistemas
normativos e dos controles sociais que tradicionalmente teriam regido as
práticas e as representações alimentares (Fischler, 1995b).
As aplicações tecnológicas à denominada "cozinha industrial"
permitiram "manipular" todos e cada um dos atributos sensoriais que
haviam possibilitado identificar e caracterizar um alimento: cheiro,

426
textura, forma, cor e sabor, principalmente. Desse modo, hoje, nem a
composição, nem a forma, nem os cheiros, nem as texturas dos alimentos
encerram necessariamente um significado preciso e familiar. Pelo
contrário, já que produtos como a "carne em palitos" ou sucedânea de
carne de enguia podem remeter a qualquer coisa. Dessa maneira, os
recentes avanços da tecnologia ou da indústria alimentícia perturbaram
a dupla função 'identificadora' do culinário, ou seja, a identificação do
alimento e a construção ou sanção da identidade do sujeito (Fischler,
1985b). Assim, se a indústria alimentícia contribuiu para solucionar uma
série de problemas derivados, apenas em parte, da necessidade de
compatibilizar a realização das tarefas domésticas com o trabalho
assalariado a maior ou menor distância do lar, por outro lado a
padronização da cozinha industrial, a normatização das matérias-primas
e das qualidades finais da alimentação parecem provocar certo repúdio
na medida em que não satisfazem nenhuma das funções essenciais do
consumo alimentar, como, por exemplo, o prazer e a comunicação
(Delfosse, 1989).
A cultura alimentar ainda hoje dominante não parece ter integrado
o novo contexto de produção-distribuição caracterizado por uma
agricultura muito mecanizada que proporciona as matérias-primas às
indústrias, as quais, por sua vez, realizam transformações cada vez mais
complexas e sofisticadas e vendem aos hipermercados os produtos já
limpos, em pedaços e empacotados. No universo das representações,
entretanto, o universo do comestível é constituído por alimentos
procedentes do setor primário, ou seja, produtos brutos e frescos, com
uma imagem mental de natureza em oposição a outros produtos
procedentes do setor industrial , que formariam o universo do não
comestível. A percepção atual dos produtos alimentares continua sendo
elaborada com base nesse duplo universo de representações, visto que
geralmente as pessoas consideram os "produtos industriais" piores que
os "produtos naturais" (Lambert, 1997b). Os consumidores resumem sua
percepção por meio de ideias sobre a autenticidade e a qualidade. Isso
significa uma perfeita adequação a sua cultura , a seus sistemas de
representações. A menor separação desses produtos em relação a essa
cultura pode significar a perda de seu sentido até o ponto em que não
parecem mais alimentos, mas sim "artefatos", "plástico", que "não têm
alma". Para Jégou (1991), "a indústria proporciona um fluxo de alimentos
sem memória" no qual a dimensão simbólica da alimentação já não é o
resultado de um lento processo de sedimentação entre o homem e seu
alimento, mas o antecede. Assim , os " novos alimentos" podem ser

427
classificados no limite do comestível e sua ingestão revela-se cheia de
riscos. Temas que recebem destaque nos meios de comunicação (a crise
da vaca louca, por exemplo) reforçam claramente essa ansiedade latente.
Os novos produtos possuem por excelência elementos exteriores à cultura
de quase todos ~s indivíduos que eles representam (Lambert, 1997a).
Além disso, a industrialização como processo tecnológico foi
percebida negativamente por diferentes grupos sociais - é o caso dos
consumidores, técnicos, educadores e "donas de casa". A manipulação
industrial dos alimentos é acompanhada por uma expressão de incerteza
provocada pelos excessos que o processo em si mesmo incorpora, de forma
que a cadeia agroalimentar está sendo questionada em todos os níveis.
Isso coincide, paradoxalmente, com o aumento das regulamentações sobre
higiene e das políticas de qualidade desenvolvidas pelas administrações
e pelo setor industrial para tentar garantir a estabilidade das características
organolépticas e microbiológicas dos produtos no decorrer de sua vida e
tentando caçar o microrganismo onde quer que ele se encontre (Millán,
2002). O fenômeno de controle e busca do prolongamento da vida dos
produtos beneficia os processos industriais, mas diminuiu o gosto dos
alimentos para o paladar do consumidor. Assim, por exemplo, as frutas e
os legumes são calibrados de forma que tenham as mesmas medidas e se
pareçam entre si. Algumas espécies produzidas pela pesquisa agronômica
se destacam por seu rendimento e por sua boa conservação, não por seu
apreço gustativo ou maior demanda . Paralelamente, ignora-se o
desaparecimento de numerosas variedades de maçãs, peras ou de outras
espécies vegetais, ao mesmo tempo que os pescados "pescados" no mar
atingiram a nova categoria de "selvagens" para diferenciá-los dos pescados
"cultivados" nas granjas piscicultoras ou fábricas de peixe.
Alguns se perguntaram até que ponto a indústria e a tecnologia
alimentares são compatíveis com a qualidade nutricional e gastronômica.
Do ponto de vista dos consumidores, as experiências mais recentes
provocam desconfiança, porque a tecnologia esteve mais a serviço do
produtor, do transportador e do vendedor que do consumidor:

... vejamos o que aconteceu depois de vinte anos com as frutas e legumes:
tornaram-se insípidos e sem grande interesse gustativo. Com efeito, foram
efetuadas as seleções com base em uma série de critérios favoráveis ao
produtor, ao transportador e ao vendedor: rendimento, solidez do fruto,
possibilidade de colheita precoce ou mecanizada, atitude favorável à a
maturação artificial, cor e aspecto vantajoso etc.( ... ) Os tomates bons são
os inchados? As melhores ervilhas são as extrafinas? Os pêssegos brancos

428
são os saborosos? Então, eram selecionados tomates pelo critério inchaço,
as ervilhas pela finura, os pêssegos pela brancura, sem preocupação com o
sabor. Resultado: pêssegos brancos, mas sem gosto, tomates inchados,
mas insípidos, ervilhas extrafinas e textura farinhenta. E tudo em
consonância: vagens de feijões verdes ruins e sem fio , morangos sem
perfume apesar de sua cor vermelho carmjm, maçãs vermelhas, mas não
maduras ... (Gruhier, 1989: 77)

Hoje, a artificialidade da alimentação traz problemas para as


pessoas. Produz tanto uma ruptura com as regras ancestrais como a
oportunidade de fazer evoluir o perfil do comensal rumo a um indivíduo
consciente de seu passado cultural, autônomo (livre para suas escolhas
alimentares na abundância da oferta) , responsável (formado no
conhecimento das características dos alimentos) e promotor de sua própria
riqueza alimentar. Agora, como indica Fischler (1990), a falta de consenso
implícito ou explícito unívoco sobre a arte e a maneira correta de se
alimentar comporta grande incerteza e uma verdadeira ansiedade.
O desconhecimento das formas de fabricação dos alimentos e das
matérias-primas utilizadas se soma a essa confusão e desenvolve entre os
consumidores uma atitude de desconfiança para com a oferta alimentar,
mais abundante do que nunca. Além disso, a desconfiança do consumidor
é um estado afetivo primário, ligado a seu instinto de sobrevivência,
que não se modifica com uma simples justificativa (Lambert 1997a).
E fundamental a familiarização na aceitação dos alimentos nbvos .
Sylvander e Melet (1994) falam da incerteza sobre "as definições dos
produtos", sobre a "qualidade dos produtos", que estaria na origem de
"um aumento da desconfiança dos consumidores", assim como da criação
de políticas de gestão de qualidade nas empresas. Hoje, do complexo
sistema internacional de produção e distribuição alimentar, os consumidores
conhecem apenas os elementos finais: os lugares de distribuição e os
produtos. O resto é uma verdadeira 'caixa-preta', que gera um grande
medo, na medida em que a existência está associada à alimentação.
Por outro lado, com a globalização econômica, as intoxicações
alimentares deixaram de ser locais para se converterem em internacionais.
Uma rede de intercâmbios em escala planetária e os sistemas de
distribuição em massa que propõem ao consumidor grandes quantidades
de mercadorias fazem com que a indústria alimentar fique muito sensível
ao pânico. De fato, nesses sistemas hipercomplexos dos quais participam
sem dominá-los, os consumidores, desorientados, ouvem todos os rumores
negativos sobre envenenamento, rumores com frequência lançados sem

429
discernimento por uma imprensa sensacionalista que privilegia a manchete
alarmante. De todas as formas, a complexidade crescente do sistema
alimentar e midiático atual contribuiu para alimentar um número cada
vez maior de pânicos alimentares, cada vez mais incertezas que misturam
o imaginário e o real.
Como vimos no capítulo 6, até os anos 1990 a noção de "segurança
alimentar" abrange o conjunto de dispositivos e atividades de luta contra
o risco de fome que afetava certas regiões do mundo. Assim, segurança
alimentar significava que uma população dispunha de recursos alimentares
suficientes para garantir sua sobrevivência e sua reprodução. Hoje,
entretanto, nas sociedades industrializadas, essa expressão ganhou um
novo sentido, e segurança ou "não segurança" referem-se a uma série de
perigos - relativamente negativos e quantificáveis - que já não estão
ligados à falta ou escassez de alimentos, mas sim à sua inocuidade
sanitária. Os riscos para a saúde podem estar relacionados com as
intoxicações químicas ou microbiológicas e, a longo prazo, com as
consequências do uso de novas tecnologias aplicadas à produção e à
transformação alimentar, ou ainda com as patologias provocadas pelos
príons, por exemplo. Com efeito, o recurso à engorda artificial de ave e
gado, a pesticidas nos campos de cultivo, a antibióticos e hormônios, a
aditivos químicos e ingredientes adicionados, a técnicas de transformação
complexas leva a se questionar os alimentos resultantes da produção
industrial, colocando em dúvida a qualidade nutritiva e a segurança do
que é oferecido. Esses novos produtos, nem sempre facilmente
identificáveis por trás da manipulação industrial, são chamados por
Fischler (1995b ), com certa ironia, de OCNis (objetos comestíveis não
identificados).
Assim, o aumento de alimentos mais baratos e pratos preparados
que permitem diminuir o tempo dedicado à cozinha e a frequência das
compras se conjuga com certo repúdio a esse tipo de comida industrial,
especialmente entre as pessoas responsáveis pela alimentação doméstica.
A desconfiança com relação à origem e aos ingredientes adicionados a
esse tipo de produtos suscitou entre tais responsáveis o temor em torno
dos processos químicos agroalimentares e, em particular, dos aditivos.
Essa desconfiança foi se deslocando, depois , para os produtos não
categorizados como " naturais", para os de risco bacteriológico (mariscos,
ovos, molhos) ou para aqueles que foram geneticamente manipulados,
os alimentos transgênicos ( cf. capítulo 6). Fala-se em possíveis riscos para
a saúde e para o meio ambiente. Nesse sentido, os movimentos sociais
surgidos na comunidade internacional - associações de ecologistas e de

430
consumidores - para pressionar os governos sobre a regulação dos avanços
da biotecnologia e suas aplicações comerciais não deixaram de aumentar
nos últimos anos.
Por um lado, há o medo de recorrer aos produtos processados
industrialmente e, por outro, a necessidade e/ou comodidade de usá-
los. O benefício da abundância alimentar é menos óbvio quando, por
outro lado, se converte em possível promotor de enfermidades e riscos
de alcance diverso. Nesse contexto, as sucessivas crises alimentares ("vaca
louca", febres aftosas, peste suína, infecção por salmonelas ... ) alarmaram
profundamente os consumidores, por destacarem tanto o extraordinário
alcance da globalização do sistema alimentar e, consequentemente, as
repercussões mundiais de suas incongruências e erros, quanto a escassa
confiabilidade do próprio sistema. Por outro lado, tais crises provocaram
reações que vão desde o incremento de regimes alimentares alternativos
até agora minoritários, como o vegetarianismo (García, 2002), até a recusa
ou a diminuição do consumo de alimentos altamente apreciados em etapas
anteriores (as carnes vermelhas, por exemplo) e que colocaram em situação
difícil setores centrais da produção bovina (Contreras, 2002b ). Por
exemplo, diante da "crise da vaca louca" os espanhóis modificaram o
consumo de carne bovina: registrou-se uma queda de mais de 50% no
período mais crítico (de fins de 2000 a inícios de 2001 ), tendo-se
recuperado há muito pouco tempo o mesmo nível de demanda. Diante
dessa situação crítica, consumidores decidiram buscar alternativas às carnes
vermelhas em outro tipo de fontes de origem animal, outros optaram
pelo consumo de alimentos procedentes do cultivo biológico e outros
simplesmente por continuar consumindo carne bovina, acreditando que
a carne consumida estava mais controlada do que nunca. No decorrer de
2001, a crise foi "reabsorvida" graças a todo um conjunto de medidas
que tendiam a restaurar a confiança dos consumidores: sacrifício em massa
dos bois com suspeita de contaminação, retirada de produtos das lojas,
novas legislações para a preparação das farinhas animais, política de
identificação da carne , aplicação do princípio de precaução ou
obrigatoriedade dos certificados de qualidade, entre outras. Em qualquer
caso, já dissemos no capítulo 6 que algumas reações nacionais e/ou
nacionalistas à crise da "vaca louca" destacavam a importância da
dimensão cultural do consumo alimentar na medida em que destacaram
que o "próximo", o "conhecido" é considerado "mais controlado" e isento
de perigo e que, ainda que a industrialização tenha provocado a perda
de "referências" dos produtos alimentícios, os consumidores continuam
precisando delas.

431
'Gastro-anomia' ou uma Nova Ordem Alimentar?
Novos riscos, novos alimentos, novos consumidores
Nos países ocidentais, a industrialização da alimentação facilitou
diversos processos. A evolução da alimentação foi positiva em certos
aspectos e negativa em outros. Por um lado, favoreceu o amplo acesso
aos artigos alimentares produzidos em maior quantidade e a um custo
relativamente mais baixo. De fato, a produção agroalimentar intensiva,
acentuada especialmente a partir da segunda metade do século XX,
facilitou que, junto com o aumento do nível de vida da população, se
acesse com maior frequência alimentos que há poucas décadas eram
'inacessíveis' para a maioria dos grupos sociais, excetuando-se as elites.
É o caso das carnes, das aves, dos lácteos, do pão ou dos peixes brancos.
Hoje, um operário metalúrgico francês pode comprar dez vezes mais ovos,
oito vezes mais presunto e 2,5 vezes mais filés do que quarenta ou
cinquenta anos atrás (Pynson, 1987). A ampliação das redes distribuidoras
e de transportes permitiu, por outro lado, que produtos muito variados
cheguem a todas as partes, inclusive às zonas geograficamente mais
isoladas, e isso independentemente do fato de o lugar de produção ser
próximo ao de consumo. As novas tecnologias agrícolas tornaram acessível,
além disso, toda uma ampla série de alimentos cuja oferta se mantém,
independentemente de sua possível sazonalidade natural, durante todo
o ano (Mennell, Murcott & Van Otterloo, 1992).
Todos esses processos fazem com que a alimentação seja mais variada
e mais diversificada do que antes. Essa variedade é percebida como positiva
em vários sentidos. Por um lado, porque permite não cair em uma
monotonia alimentar com escassos incentivos: hoje é possível comer
diferente a cada dia, a cada refeição. Por outro lado, a diversidade da
alimentação é supostamente mais saudável em termos nutricionais, pois
permite uma contribuição adequada de certos oligoelementos e vitaminas
e evita, por exemplo, enfermidades como a pelagra (carência de vitamina
PP e do aminoácido triptofano ), que durante o século XIX atacou as
populações mais pobres da Espanha ou da Itália que tinham como base da
alimentação o milho, ou enfermidades como o cretinismo e o bócio
(transtornos provocados por dietas deficitárias em iodo), que também
afetaram algumas populações pobres espanholas há poucas décadas. Alguns
povos dos vales das Astúrias viram uma diminuição de tais transtornos de
saúde quando sua alimentação, muito escassa em iodo, foi diversificada,
coincidindo com a ampliação das redes de distribuição e descentralização
do consumo de alimentos (Femández Sanz, 1990; Femández, 1990, 2002).

432
Entretanto, não podemos citar os aspectos pos1t1vos da
industrialização sem recordar, por sua vez, as tendências predominantes
do sistema alimentar contemporâneo em sentido contrário. Estamos nos
referindo à superalimentação que, termos gerais, caracteriza o consumo
alimentar de alguns grupos. Apesar do relativo acesso aos alimentos e da
oportunidade de escolher entre múltiplas ofertas, alguns problemas de
saúde parecem ser derivados dos hábitos atuais de consumo. O fato
de não se alcançar o estado ótimo nutricional continua mantendo
preocupados os técnicos da saúde pública. Ainda que de procedência
diversa, e com significados muito diferentes, a má nutrição não abandonou
nem os países industrializados, nem os mais pobres. Se nos primeiros a
má nutrição tem sua origem majoritariamente no excessivo consumo de
nutrientes essenciais, nos segundos está na deficiência parcial ou total
de tais nutrientes. Comer pouca fibra e poucos carboidratos complexos
e, contrariamente, consumir proteínas de origem animal em excesso com
nível elevado de lipídios saturados e ingerir açúcares simples, assim como
calorias em excesso, parece estar repercutindo negativamente na saúde
e, especialmente, na saúde daqueles que nesse novo contexto estão
aprendendo a comer e pensar a comida, como é o caso do grupo dos
mais novos (Carrasco, 2002). Já destacamos, no capítulo 5, que a má
nutrição característica dos países industrializados está atualmente
relacionada com o aumento de numerosas e diversas doenças denominadas
da "sociedade da abundância".
Trata-se de um paradoxo, mas que, de acordo com Harris (1985a),
não constitui uma arbitrariedade cultural própria das sociedades
industrializadas. Segundo suas análises, os comportamentos alimentares
otimizados são aqueles que se prestam a uma relação custo-benefício
mais favorável que os comportamentos evitados. Hoje, como já dissemos
( cf. cap. 5), os mecanismos que "acendem" o apetite são mais sensíveis
do que os que o "apagam", de maneira que se convertem em um convite
para a indústria alimentar. Entretanto, o custo em doenças levou a
sociedade ocidental a uma aversão maior aos alimentos de origem animal
com alto conteúdo de gorduras e colesterol. Para Harris, esse dado
confirma que, agora menos, pode-se entender que os hábitos alimentares
são dominados por símbolos arbitrários. As estratégias das empresas
multinacionais fazem com que esses hábitos sejam restritos por um
conjunto de custos e benefícios mais preciso, ainda que parcial, porque
o 'bom para comer' é, nesses momentos, o 'bom para vender'. A opulência
demonstrou ter suas próprias limitações, cujos perigos são derivados da
abundância alimentar, e não da escassez. Seus custos são expressos em

433
termos de obesidade e transtornos cardiovasculares e, por tal motivo,
nossa sociedade evita tudo aquilo que tem um custo maior: os alimentos
de origem animal com gorduras e colesterol.
Harris considera que, nas suas origens, o que se constituía como
uma "vantagem adaptativa" atualmente poderia ser considerado um
"defeito genético": o aumento dos mecanismos que "despertam" o apetite
já que, hoje, as possibilidades de satisfazê-lo são permanentes. Fischler
(1979, 1995a), por sua vez, explica esse fenômeno com base nas restrições
socioculturais, as quais têm capacidade de anular a regularidade das
ingestas alimentares dos onívoros, aumentando-as, e de limitar as boas
escolhas. Se a aversão às gorduras é considerada por Harris como um
exemplo de adaptação à nova ordem alimentar, para Fischler a lipofobia
é uma tentativa de frear a "loucura de cultura". Para ele, o comensal
contemporâneo perdeu sua capacidade de distinguir entre o comestível
e o não comestível porque a crise dos códigos e valores culturais que até
então havia guiado suas escolhas alimentares assim o potencializa.
É uma crise da civilização. A desestruturação, segundo Fischler (1995b ),
afeta também as práticas e os saberes alimentares. Esse sociólogo introduz
um termo específico para explicar a disseminação da desestruturação: a
'gastro-anomia'. Compara os hábitos alimentares da sociedade rural
francesa - marcados pela sazonalidade e pelas restrições econômicas,
pelo costume de estabelecer as horas das refeições, pela vida social e
familiar como estruturadora das ocasiões de comensalidade - com os
hábitos alimentares da sociedade urbana atual, em que as maneiras e os
usos se acomodam às pressões de trabalho.
Paulatinamente, o comensal urbano se converte em um indivíduo
muito mais autônomo em suas escolhas que ultrapassa suas limitações
sociais rumo a condutas individuais: os tempos, ritos e companhias são
impostos com menos formalismos. A alimentação e a restauração lhe
oferecem a possibilidade de comer de todas as maneiras: sozinho ou
acompanhado, a qualquer hora, sem ter que se sentar à mesa. Há aqueles
que atribuem essa subjetivação à redução das pressões por conformidade
exercidas mediante categorias sociais de pertencimento (Giddens, 1991,
1996; Beck, 2002). Isso traduziria a fragilidade dos grandes determinismos
sociais, principalmente os de classe social, que pesam sobre os indivíduos
e suas práticas de consumo. Na alimentação, esse movimento indicado
por Fischler adquire formas tão variadas como a ampliação do espaço de
tomada de decisão alimentar, o desenvolvimento das porções individuais
ou a multiplicação dos menus específicos para os diferentes comensais
de uma mesma mesa, como é o caso das refeições familiares em que as

434
crianças, o marido e inclusive a esposa podem comer pratos diferentes.
Nesse contexto, tende-se a criar novos grupos 'biassociais' que
compartilham estilos de vida e gostos particulares, atendendo-se às
diferenças/semelhanças gerais, de gênero ou de modas, mais que à inclusão
de classe. Nessa perspectiva, observa-se que as pessoas podem escolher
seus próprios 'pacotes' de hábitos de consumo dentro de uma ampla
gama de possibilidades. O argumento da diversidade alimentar,
mencionado como uma alimentação 'quase' pós-fordista em termos de
variedade, propunha a ideia de que o nicho de consumo é voluntário e
resulta de um sistema capitalista que tende a uma produção mais flexível
(Warde, 1997).
A situação de maior acessibilidade e flexibilidade se vinculou a certas
características daqueles que são, segundo alguns teóricos, os 'novos'
consumidores (Morace, 1993; Rochefort, 1995, 1997). Diante do "alimento-
mercaddria" surge o "sujeito-consumidor", que se distingue do consumidor
opulento formado na época fordista, acrítico indivíduo deslumbrado pela
cultura do consumo e capaz de aceitar todos os valores da rentabilidade
industrial como valores positivos da modernização (artificialização, seriação,
produção e consumo em massa), mas que também se diferencia das
representações neoelitistas dos anos 80 com o triunfo da individualização
neoliberal, da cultura promocional e socialmente hostil da flexibilização
sem limites do pós-fordismo tecnológico. Os 'novos' consumidores da
transformação do milênio teriam superado, assim, a inconsistência feliz da
opulência e também a agressividade da cultura light pós-moderna. Esses
consumidores do ajuste, da crise do consumo - do consumo coletivo ou do
consumo ostentoso individualista - se posicionariam com base em valores
mais reflexivos, recorrendo aos tópicos dos anos 90: a solidariedade, o
novo pacto familiar, os consumos verdes, o discurso do sustentável, o
comércio justo, o multiculturalismo, os produtos equilibrados e saudáveis
etc. Distanciando-se dessa sociedade de consumo, já que começou a
conhecer, relativizar e exigir. Mesmo que se admitindo o diagnóstico do
novo consumidor como excessivamente otimista, pois o consumo em massa
continua sendo o grande nicho constitutivo da demanda e em que seus
valores e referências continuam vigentes, deve-se reconhecer que há algo
novo nesses argumentos. A novidade está no fato de tais argumentos se
distanciarem dos dois tópicos analíticos que hoje se mostram inúteis no
estudo do consumo como problema social (Alonso, 1998, 2001): a ideia do
consumidor alienado e totalmente dominado, sem razão nem sociabilidade
mínima, e a ideia do consumidor racional puro ou Homo economicus, sem
outro argumento além daquele da maximização de suas preferências

435
individuais. Em uma perspectiva intermediária, o consumidor, em relação
com os bens alimentares, é apresentado como um sujeito cujas escolhas
se fazem em função do contexto social em que se move e como um ser
portador de percepções, representações e valores que são integrados e
se complementam com os demais âmbitos e esferas de atividade. Isso
significa que o mesmo processo de consumir é observado como um
conjunto de comportamentos que guardam e ampliam no âmbito do
privado e do público os estilos de vida e as mudanças culturais da sociedade
em seu conjunto.
Para Fischler, a nova liberdade de que dispõe o comedor contem-
porâneo traz incorporada, entretanto, uma dose de incerteza. A alimen-
tação é objeto de decisões cotidianas, mas para tomá-las o indivíduo
conta apenas com informações coerentes ou dignas de absoluta confiança.
Aqui reside boa parte do problema, não no consumidor em si mesmo,
mas na 'cacofonia' dos critérios culturalmente propostos, que vão desde
os conselhos médicos aos publicitários, passando por uma infinidade de
alternativas díspares entre si, quando não contraditórias. Se para Fischler
a sociedade tradicional era uma sociedade 'gastro-nômica', regida por
normas alimentares, a sociedade moderna, mais urbana e industrializada,
é uma sociedade 'gastro-anômica', ou seja, configurada sem leis ou com
normas desestruturas ou em degradação. Nessa transição cultural, a
gramática e a sintaxe da alimentação cotidiana sofrem uma extraordinária
transformação. As refeições familiares diminuem, o tempo a elas dedicado
é cada vez menor, come-se mais vezes sozinho, são omitidas refeições e
pratos, muda-se a estrutura , os horários são mais irregulares .
Definitivamente, todas essas modificações estruturais são as que animaram
alguns 'urbanistas' das principais capitais "ocidentais" a iniciar um processo
inverso ou de retorno, o da 'neorruralidade', abandonando as cidades e
buscando no campo uma forma de vida de acordo com os critérios que
até agora governavam as sociedades tradicionais e repudiando ,
consequentemente, o urbano, visto como sinônimo de industrializado,
artificial ou global (Eder, 1996; Cantarem, 2002).
Em um marco cultural percebido como mais flexível e informal, as
restrições materiais podem exercer, entretanto, um efeito socialmente
desintegrador e desestruturante. Enquanto a alimentação cotidiana tende
a se vincular ao universo do trabalho, que é solucionado no âmbito
doméstico com produtos industriais modernos e fora com os restaurantes,
a refeição ritualizada e socializada está inscrita no tempo de ócio, que se
reveste de novos significados, convertendo-se em uma forma de consumo
cultural (Warde & Martens, 2000). Agora, a alimentação já não estrutura

436
o tempo, os horários das diversas atividades, mas é o tempo, ou os tempos,
das diferentes atividades que estrutura a alimentação, que hoje se
estabelece entre dois extremos: o laboral e o dos diferentes tipos de lazer
ou de festividade. Nesse contexto, o individualismo e o incremento do
número de ingestas ou, o que é o mesmo, o snacking se vislumbram como
outra tendência característica da alimentação atual. Nas sociedades
industrializadas, a dieta se refaz porque o caráter produtivo da sociedade
industrializada é reformulado, e com ele a natureza do tempo, do trabalho
e do ócio. As práticas alimentares são percebidas agora como tempo
demandado. Por isso, o snacking aparece em um contexto específico
coincidindo com tipos de trabalho altamente produtivos que supõem,
por sua vez, menos tempo para comer. Desfrutar o máximo em menos
tempo possível implica compartilhar o consumo alimentar com outras
atividades (trabalhar, ver televisão, andar, estudar) e a maior frequência
de ocasiões para o consumo A indústria alimentícia, e especialmente a
publicidade, reforça a ideia do incremento da liberdade de escolha
individual, e as comidas preparadas em casa ou fora dela são mostradas
e vistas como práticas que economizam tempo. A dialética se dá entre
essa suposta liberdade individual e os modelos normatizados. O tempo
parece ser, hoje, o recurso mais limitado , e sua maior ou menor
disponibilidade administra e determina as práticas alimentares, assim como
também as formas de sociabilidade alimentar, o equipamento doméstico
e a consciência do tempo e sua valorização. Daí que, entre os alimentos
em ascensão que aparecem nas cestas de compra, figurem produtos que
estão quase ou totalmente prontos para comer e incorporam as tarefas
mais difíceis implicadas na preparação dos alimentos.
Outro fenômeno associado com o valor que se outorga ao tempo
foi o aumento, em todos os países industrializados, do número de refeições
realizadas fora de casa. No caso da Catalunha (Enquesta Nutricional de
Catalunya, 1996), por exemplo, é interessante destacar que apenas 19,2%
da população nunca comem ou jantam na casa de amigos e que 20,7%
nunca vão a restaurantes, enquanto 6,5 % comem mais de uma vez por
semana em um bar (5,1 % comem diariamente) e outros 7,5 % o fazem em
um refeitório do próprio trabalho (5,1 % comem diariamente no refeitório
do próprio local de trabalho). 61 Nas grandes cidades, essas porcentagens
podem aumentar sensivelmente. De fato, no conglomerado parisiense,
61
De acordo com a Enquesta Nutricional de Catalunya (2004), as mudanças observadas
entre 1992 e 2002 em relação à porcentagem de refeições realizadas em casa foram
as seguintes: a do café da manhã manteve-se igual (76% ); a do almoço passou de
83% para 72%; a do jantar se manteve igual (92% ).

437
os habitantes realizam, em média, 3,9 refeições fora de casa, enquanto
que para o conjunto de cidades com mais de duzentos mil habitantes
essa média alcança apenas 2,7% . Essa situação, ainda que crescente,
dista da constatada nos Estados Unidos, onde mais de 40% das refeições
acontecem fora do domicílio (Fischler, 1995b). De acordo com nossa
própria pesquisa (Observatorio de la Alimentación, 2004), na Espanha
apenas 11,8% dos almoços acontecem fora do lar.
Com a nova valorização do tempo e as pressões exercidas pelas
restrições laborais (distâncias, horários, transportes), aumenta o recurso
da alimentação fora do lar, nos " refeitórios de empresa" para os
trabalhadores, refeitórios coletivos (empresariais e escolares), restaurantes,
cafeterias e bares. Nesse sentido, o êxito dos fast-food e de outras muitas
fórmulas de comida rápida está estreitamente vinculado, entre outras
coisas, a esse novo valor outorgado ao tempo. Nesses locais, convergem
vários fatores socioculturais. Cumprem a missão de oferecer pratos rápidos
com menus sem surpresa (cardápios imutáveis) a bom preço, e neles os
jovens podem manifestar melhor suas diferenças, por exemplo, comendo
com as mãos ou vendo videoclipes (Pynson, 1987). O processo de
'mcdonaldização', tal como é descrito por Ritzer (1992), é a fórmula
pela qual os princípios que regem esses restaurantes de comida rápida
(eficácia, rapidez, higiene, bom preço) dominam cada vez mais setores
sociais dos países industrializados. Por exemplo, muitas padarias estão
seguindo os mesmos critérios de organização. Agora, esses processos não
afetam apenas o negócio dos restaurantes, mas também a educação, o
trabalho , as atividades de lazer, a política ou a família. Gefre e
colaboradores (1988) indicam que esse tipo de cozinha pretende
responder mais adequadamente ao valor que o consumidor dá ao tempo,
muito valioso para ser gasto cozinhando e, inclusive, comendo.
Agora, a restauração pública e privada nem sempre segue os critérios
de racionalidade, rapidez, planificação ou bom preço que identificam a
' mcdonaldização'. Nesse nível, a oferta também é múltipla e há a ideia
de uma pluralidade em restaurantes (cozinha étnica, local, regional,
cozinha nova, cozinha de mercado, cozinha vegetariana). Ritzer (1992)
sugere, fazendo referência à sociedade norte-americana, que ainda que
muitos aspectos do mundo tenham sofrido um processo de
' mcdonaldização', é possível identificar pelo menos três características
da sociedade contemporânea que escaparam dessa tendência:
1. Há um fenômeno de restauração anterior, pré-moderno, facilmente
identificável, que se mantém nas sociedades industrializadas. É o caso,
nos Estados Unidos, das lojas de comestíveis Mom and Pop.

438
2. Não se deve ignorar o fato de que um setor dos restaurantes nascido
nas últimas décadas surge, em parte, em contraposição a esse tipo de
organização. Um exemplo claro é o auge dos restaurantes B&B's,
que oferecem seus serviços em habitações particulares com atenção
personalizada e cafés da manhã caseiros.
3. Alguns analistas acreditam que estamos caminhando para uma
sociedade 'pós-moderna' caracterizada por ser menos racional que
sua antecessora. Por exemplo, nessa nova ordem cultural, assiste-se à
destruição ou desaparecimento das modernas edificações no estilo
arranha-céus e sua substituição por comunidades menores, mas
também mais acolhedoras.
Assim , cabe argumentar que existem diversos graus de
'mcdonaldização' em diferentes sentidos que expressam tendências
contrárias na organização da cultura em torno das prioridades que marcam
tal processo.
Por outro lado, a tendência a comer fora de casa é paralela não
apenas ao incremento das determinações laborais e do valor outorgado
ao tempo, mas também à aparente simplificação das práticas alimentares
caseiras, dos produtos adquiridos e da sofisticação do equipamento
doméstico. Considerando-se a diversidade como característica do sistema
alimentar contemporâneo, o refinamento culinário, como indica Demuth
(1988), torna-se compatível com a simplificação. É o que Grignon e
Grignon (1980a, 1980b) observam como tendência no modelo de consumo
dominante das sociedades urbanas: a combinação de uma alimentação
pública de luxo com uma cozinha-minuto relativamente cara, mas
simplificada no âmbito doméstico, por mais que, de acordo com esses
autores, entre as classes populares seja menos frequente comer fora de
casa e a cozinha doméstica seja mais elaborada. Pode-se pensar, inclusive,
que nossa sociedade de hoje se comporta de modo um pouco
"esquizofrênico" com relação à alimentação e no que diz respeito à
"cozinha", como se tivéssemos duas personalidades distintas segundo as
circunstâncias. É como se, em algumas ocasiões, as mais numerosas,
comêssemos exclusivamente para recuperar a energia perdida, para "nos
nutrir", para "encher a barriga", e para isso aceitássemos os produtos
industriais, os chamados "alimentos-serviço" ou de 'conveniência'; e,
como se nesses momentos nos sentíssemos , fundamentalmente ,
"trabalhadores", "peças da engrenagem" etc., sendo-nos conveniente
aceitar e nos acomodarmos às facilidades oferecidas pelo "progresso'',
pela tecnologia, pela indústria. Em outros momentos, ao contrário, a
comida é concebida como fonte de prazer, de socialização, de afirmação

439
de nossas identidades individuais e coletivas, e neles é necessário manter,
ou recuperar, se preciso, a tradição, a qualidade, o saber-fazer, o tempo
suficiente para conseguir os sabores de sempre. Nesses momentos,
sentimo-nos indivíduos livres, pertencentes a uma família determinada,
a um povoado ou região e a uma comunidade histórica.
Também, junto com a determinação temporal das práticas
alimentares que potencializam o individualismo , o snacking ou a
restauração, produz-se outro fenômeno de igual significação que nos
permite falar em uma nova ordem com relação à ideologia alimentar.
Referimo-nos à proliferação de canais difusores dos modelos alimentares
e do consequente ecletismo de mensagens e ideias sobre alimentação.
Esse fator, a proliferação dos canais transmissores de modelos alimentares,
pode ser considerado em um aspecto: a emissão-recepção de informação
alimentar. A população recebe informação de diversos tipos sobre cozinha,
estética, nutrição e saúde por intermédio de diversos canais: família,
administração pública, associações de consumidores, de especialistas,
indústrias, publicidade, meios de comunicação, livros ou enciclopédias.
A característica principal dessa informação é que respondem aos interesses
de fontes emissoras muito diferentes entre si. Por um lado, a indústria
alimentícia, dizíamos antes, converteu-se em uma das atividades
econômicas mais importantes dos países industrializados, com poderosas
multinacionais à frente da perpetuação e, se for o caso, da ampliação/
diversificação do negócio. Por outro, a preocupação com o estado de
saúde e a influência das ciências biomédicas fazem com que, em muitas
ocasiões, os alimentos tenham que ser terapêuticos, ou, no mínimo,
cumprir as recomendações nutricionais básicas. Sabemos, além disso, que
os produtos devem responder às variadas necessidades e desejos dos
consumidores, e que esses não têm por que coincidir nem com os interesses
industriais, nem com as prescrições médicas.
Essa situação, sem dúvida, contribuiu para que as escolhas e
preferências alimentares se vissem alimentadas ou condicionadas por
ideias pouco claras sobre os alimentos ou sobre as situações de consumo.
Tal como indica Fischler (1995b ), nos países industrializados instalou-se
uma espécie de 'balbúrdia dietética', que deixa confuso o comensal
moderno que precisa tomar decisões sobre sua alimentação cotidiana.
Os discursos médicos se misturam, se enfrentam ou se confundem com os
discursos gastronômicos, os regimes de emagrecimento se juntam às
receitas, e os manuais de nutrição e saúde coexistem com os guias
gastronômicos. As prescrições em torno de um produto dirigidas a um
público específico se converteram para outros em proibições, os modelos

440
de consumo que são válidos para a ciência em determinado momento
são criticados ou superados pela nutrição e pela medicina assim que são
difundidos entre a população catalã. Por exemplo, uma porcentagem
muito alta dos entrevistados desconhece os alimentos cujo consumo deve
ser reduzido para se prevenir a hipercolesterolemia. A Enquesta
Nutricional de Catalunya (1996) destaca que 32,8% da população
consideram necessário moderar ou reduzir o consumo de azeite de oliva
e 18,1 %, pelos de legumes. Por outro lado, são considerados como
alimentos muito saudáveis as verduras, as hortaliças, o pescado branco, o
arroz e o mel, seguidos pela carne, os legumes e pelo pescado azul,
enquanto os menos saudáveis, segundo a opinião dos entrevistados, são
a carne de porco, o vinho, a manteiga, o açúcar, o ovo e o óleo de milho.
Dentro do conjunto de canais que transmitem mensagens sobre
alimentação e, além disso, evidenciam muito claramente a profusão de
informações a que estamos nos referindo, encontra-se a publicidade,
capaz de unificar em torno de um mesmo produto ou serviço os discursos
mais diversos e contraditórios. É o caso dos temas medicina-nutrição,
estética, gastronomia , tradição-identidade , exotismo , ecologia,
hedonismo, progresso e modernidade, que, em maior ou em menor
proporção, aparecem em qualquer anúncio de produtos alimentares. As
mensagens publicitárias, que a maioria da população afirma considerar
superficiais, fugazes e de difícil retenção, estão carregadas de imagens
culturais e de propostas materiais e simbólicas que pretendem não mais
tanto informar, mas sim persuadir, e inclusive dissuadir, o público-alvo
em uma determinada direção . Essas mensagens, por outro lado ;
reiterativas, onipresentes e semanticamente densas são apresentadas como
a solução de qualquer problema ou conflito relacionado com a
alimentação cotidiana e acabam sendo a cereja que enfeita um bolo
informativo por si só já muito saturado (Gracia, 1996c, 1998).
Definidas (cf. "O caso espanhol...") as formas da desestruturação
em torno da atemporalidade, da dessocialização, da deslocalização ou
da desconcentração das comidas (Herpin & Verger, 1991), temos de nos
perguntar se nossos comportamentos alimentares podem se situar entre
essas coordenadas e se, de fato, são tão desagregados e, inclusive,
alarmantes como por vezes se deu a entender nas instâncias midiáticas,
técnicas e também sociológicas. É certo que algumas das características
das sociedades industrializadas, como as pressões do trabalho, a
tecnificação da vida cotidiana ou a coisificação do corpo, transformaram
profundamente as formas de comer e de pensar a comida. E também é
certo que, entre alguns grupos sociais, arraigaram-se tendências de

441
significado negativo que podem disseminar riscos sociais e nutricionais:
o snacking, a monotonia alimentar, a perda do saber-fazer culinário, a
restrição extrema ou o consumo excessivo de alimentos. Entretanto,
também é verdade que ainda não é muito significativo o número de
pessoas cuja alimentação pode ser claramente qualificada como
desestruturada. De fato , ainda que certas atitudes indiquem que hoje o
ato de comer se dessocializou, parece haver também outras atitudes que
contradizem tal assertiva. Referimo-nos à circunstância de que, na
Espanha, por exemplo, o número de refeições de caráter social parece
estar aumentando tanto no âmbito privado como no público. As
possibilidades de comer em grupo, pois, são múltiplas e continuam
constituindo uma via para a perpetuação da função de comensalidade e
de criação e recriação da identidade coletiva: tradições populares,
quadrilhas de amigos, celebrações familiares, comensalidade laboral, festas
escolares, atos empresariais e institucionais, comemorações histórico-civis,
atividades esportivas e de lazer, ritos de passagem etc. (Homobono, 2002) .
Contra as teses que explicam todas essas tendências como resultado
da modernidade alimentar, Grignon e Grignon (1980a, 1980b, 1984, 1986a,
1986b) argumentam que essa é apenas a explicação, no campo específico
da alimentação, de um cenário global de mudança derivado das teorias
do crescimento que acompanham a expansão e as políticas econômicas
dos anos 60 e que, de fato, o que se produz é uma espécie d~ colonização
das hipóteses de desestruturação da alimentação, ordenada pelos
interesses agroindustriais. Os autores mostram que a situação na sociedade
industrial não é um cataclismo generalizado, na medida em que as ingestas
alimentares também não incluem as três pautas principais correspondentes
ao café da manhã, almoço e jantar para a grande maioria dos franceses
(75,3% ), o que na realidade significa um freio ao consumo extensivo ou
à alimentação contínua com a qual a indústria agroalimentar sonha,
visivelmente interessada em aplicar ao máximo a prática do snacking.
Entretanto, estudos realizados na França e em outros países
industrializados (Poulain, 2002b) ou em transição (Jing, 2000) avalizam
uma parte importante das teses gastro-anômicas de Fischler, na medida
em que mostram, por um lado, uma simp lificação da estrutura das
refeições e um aumento da importância da alimentação entre as mesmas,
como também um descompasso entre as normas sociais relativas às comidas
e as práticas efetivas: as primeiras restituem amplamente a norma da
comida tripartida (entrada, prato composto e sobremesa) e a proibição
de comer fora de horário, o que explica que as verdadeiras transformações
escapam em grande medida às pesquisas que utilizam unicamente

442
entrevistas diretas e, sobretudo, os métodos de autorresposta (Garine,
1980; Calvo, 1980; Hercberg et ai. , 1988; Gracia, 1996c; Observatorio de
la Alimentación, 2004; Poulain, 2002b ).
Por sua vez, os estudos realizados na Espanha com base nesses
critérios não provaram que exista uma população pioneira caracterizada
por todos ou por grandes quantidades desses quatro ou cinco pontos
próprios da alimentação desestruturada, ainda que a an á lise do
descompasso entre normas e as práticas e a forte interiorização do modelo
tripartido de refeição convide a considerar a tese da desestruturação
proposta por Fischler (Carrasco, 1992b; González-Turmo, 1995; Gracia,
1998; Kaplan & Carrasco, 1999; Observatorio de la Alimentación, 2004).
Na mesma linha indicada por trabalhos realizados em outros países
europeus, surgem formas específicas de desestruturação relacionadas com
a simplificação das refeições e com o incremento do snacking, afetando
determinados grupos de população. É o caso daqueles que vivem com
poucos recursos e/ou sozinhos, daqueles cujos ritmos são marcados pelo
acúmulo de trabalho e pela hiperatividade, dos grupos de pessoas mais
velhas ou jovens ou dos indivíduos que estão em estado de deslocamento
e ainda não se adaptaram à sociedade de chegada. Todos esses são,
efetivamente, os segmentos mais vulneráveis às pressões desestruturadoras
dessa nova ordem alimentar.
Aceitando a premissa de que, de fato, somos o que comemos, cabe
perguntar-se finalmente que outras questões de interesse social sobre a
cultura podem ser mostradas por aquilo que as pessoas comem. A resposta
parece ser contundente: tudo ou quase tudo. A aliment ação, e
particularmente a cozinha ou 'as cozinhas', refletem a socie dade.
A Espanha é um exemplo de pluralidade culinária. Uma sociedade
pluriculinária é, provavelmente, uma sociedade pluricultural, ainda que
às vezes haja uma tendência a superestimar a perenidade e a originalidade
de algumas práticas alimentares e, especialmente, de alguns pratos que,
mais ou menos artificialmente, foram convertidos em símbolo de uma
cozinha "espanhola" em detrimento das particularidades locais e regionais.
É o caso da paella, do gaspacho ou da tortilha de batatas. Somente uma
análise de dentro desse sistema nos permite observar que estamos longe
de uma unidade culinária, da mesma maneira que estamos longe de observar
uma unidade cultural. A Espanha, como em outros aspectos de sua
realidade social, é um espaço privilegiado para a análise da diversidade
alimentar. Historicamente, foi um espaço de encontro e também de
desencontros culinários, cuja característica principal girou em torno da
apropriação de elementos de outras cozinhas com as quais manteve contatos

443
culinários, assim como da transferência e influência de outros sistemas
alimentares, seja o árabe ou o americano em épocas anteriores, seja o de
outras cozinhas de vocação internacionalista, como a francesa ou a italiana,
ou o de outras tantas que foram migrando e se instalaram no território
espanhol ao compasso de um ímpeto principalmente restaurador- cozinhas
árabe, mexicana, grega, paquistanês, chinesa, japonesa.

Movimentos de Afirmação de Identidade e


Recuperação dos Particularismos Alimentares
Os gastrônomos de nossos dias se queixam com frequência que as
cozinhas perderam identidade e foram se desvirtuando, desaparecendo,
ou que os velhos pratos tradicionais foram abandonados. Queixam-se,
definitivamente, da decadência das cozinhas "tradicionais", "nacionais"
e/ou "regionais". Segundo Aries (1997) , na França, a restauração
"tradicional" realizada com matérias-primas brutas representa apenas
4% do mercado. A cozinha já utiliza, sem nenhum tipo de complexo, os
produtos prontos produzidos pela indústria. A pressa, a massificação, a
dificuldade de encontrar matérias-primas de qualidade seriam algumas
das causas da perda de identidade e da progressiva homogeneização das
cozinhas atuais, caracterizadas por "sabores indiscerníveis de insípida
melancolia, repetidos de modo monótono" (Luján, 1990: 15-16). Perda
de identidade, desvirtuamento, desaparecimento virtual, abandono dos
velhos pratos, decadência da cozinha tradicional. Esse era o panorama
sombrio que se desenhava no fim do século passado.
Entretanto , a partir da consciência da perda da cozinha
"tradicional", "regional" ou "nacional", empreenderam-se autênticas
operações de "resgate" de variedades vegetais e de raças de animais locais
ou regionais, assim como de produtos locais "artesanais", de pratos
"tradicionais" etc. Essas operações contaram, em algumas ocasiões, com
importantes ajudas econômicas provenientes de diferentes órgãos das
administrações públicas. Também nesse sentido, as dicotomias produto
"natural"! produto "artificial" ou produto "do país"/ produto "de fora",
produto "artesanal" / produto "industrial" podem ser utilizadas como
estratégias de mercado, em pequena ou média escala. Um aspecto
complementar dessas considerações é o interesse dos produtores pela
obtenção de "Denominações de origem", "Denominações de qualidade",
"Indicações geográficas protegidas", já não mais relativas apenas aos
grandes vinhos, mas também aos queijos, aos embutidos, a variedades de
legumes e vegetais, frutas, carnes, peixes etc. Trata-se de uma resposta

444
comercial agressiva ou defensiva, de grandes ou de pequenos produtores
que, amparando-se na "especificidade", na "tradição", na "qualidade"
ou no "conhecido", no " artesanal" , no "caseiro'', no "sabor", no
"autêntico", pretendem concorrer em um mercado cada vez mais
monopolizado pelas grandes marcas industriais e pelas grandes cadeias
de distribuição. Também é certo que, constatadas essas novas tendências,
as empresas da indústria alimentícia pretendem explorar essas mesmas
características atribuindo-as a seus produtos. Servem de ilustração algumas
frases sobre alguns produtos alimentares industriais da década de 90:

Assim são feitas as especialidades X. Com os melhores ingredientes e


seguindo fielmente as receitas tradicionais. Sem acrescentar nem
conservantes nem corantes. Porque somente assim é obtido o sabor de
sempre. Fabada asturiana, lentilha com chouriço, cozido espanhol, feijão
com chouriço e grão-de-bico com dobradinha. X conse1Vamos o autêntico.
(Grifos nossos)

São exatamente a progressiva homogeneização e a globalização


alimentares ou, pelo menos, a "consciência" disso, que provocam certa
"nostalgia" relativa aos modos de comer e aos pratos que foram
desaparecendo, suscitando um interesse por regressar às fontes dos
"patrimônios culinários". A "insipidez" de tantos alimentos oferecidos
pela indústria agroalimentar provocaria a lembrança relativamente
mitificada ou idealizada das "delícias" e das "variedades" de 'ontem'.
Um ontem, certamente, não necessariamente percebido de modo objetivo.
Assim, desenvolveu-se nos últimos anos uma consciência relativa à erosão
que sofreram os complexos alimentares animais e vegetais. E, desse modo,
o mercado parece "aproveitar", também, a frustração e a insatisfação
provocadas pelos alimentos industriais e pelos cada vez mais expandidos
serviços de catering para reivindicar o prazer da mesa, o direito de desfrutar
os sabores e a qualidade, a necessidade de manter, pelo preço que for,
os produtos próprios da terra, assim como os conhecimentos e as técnicas,
o "saber-fazer" que os acompanham, as variedades locais, a riqueza e a
razão de ser da tradição, a identidade conferida pelos sabores particulares
dos pratos característicos e do fato de consumi-los em datas específicas,
datas de comunhão identitária ... Com efeito, estamos assistindo a uma
eclosão da gastronomia, caracterizada por uma valorização inédita do
fenômeno culinário. Essa eclosão valoriza simultaneamente o aspecto
hedonista da comida, o estético e o criativo, o valor dos produtos ou
matérias-primas de caráter social e/ou tradicional, e o nexo com um
território e uma cultura determinados.

445
Os processos de homogeneização cultural, assim como os de
homogeneização alimentar, costumam encontrar " resistências",
movimentos de afirmação de identidade que, no terreno alimentar, podem
ser encontrados na recuperação de variedades e pratos típicos, locais e
com "sabores específicos". Assim, aparecem a consciência de "tradição
culinária", a revalorização dos sabores tradicionais, a recuperação de
produtos e de pratos "em vias de extinção" ou já desaparecidos e a
consideração de que a cozinha é um patrimônio cultural importante que
deve ser preservado por razões ecológicas e culturais. Desse modo, surge
na Europa, e se desenvolve cada vez mais, um novo mercado: o dos
particularismos alimentares de caráter local, que devem ser preservados
porque formam parte, são, um patrimônio cultural.
Nos atuais processos de patrimonialização, os diferentes usos
ideológicos por parte dos discursos hegemônicos, assim como por parte
das diferentes estratégias econômicas dos diferentes setores implicados
(entre eles cabe destacar, por sua incidência, direta ou indireta, os
turísticos) são muito importantes. Tudo isso gera uma estranha e
heterogênea dialética entre, por um lado, a reivindicação do sabor (em
si mesmo) e dos "sabores" (ligados a memórias mais ou menos específicas
ou mais ou menos idealizadas ou a " produtos da terra ", da
"autenticidade" etc.) e a uma consciência cada vez maior do alcance da
insipidez ligada à industrialização alimentar e à diminuição do tempo
dedicado à cozinha. Em qualquer caso, como indica Espeitx (2000), dizer
que a valorização da " cozinha regional" e dos "produtos típicos" é
resultado de uma interpretação e de uma reconstrução mais ou menos
recente não significa dizer que essa cozinha e esses produtos não existiram
de fato. Ou seja, que existiram produtos bem adaptados a um meio e
pratos propriamente locais, caracterizados por ingredientes básicos,
princípios de condimentação característicos e um conjunto de
procedimentos culinários, regras, usos, utensílios, representações
simbólicas e valores sociais. O que é realmente novo é o significado e a
função que lhes são outorgados, o papel econômico e usos ideológicos
que lhes são atribuídos pelos discursos hegemônicos, independentemente
do diferente grau de interiorização por parte das diferentes pessoas.
Contudo, compensando a mundialização dos mercados alimentares,
os "produtos da terra" começam a se converter em atrativos para os
consumidores urbanos. A antiga oposição entre a alta cozinha e a cozinha
rústica ou popular agora se estabelece entre a gastronomia rústica e a
alimentação industrializada. Nos discursos espontâneos dos consumidores,
mas também, com frequência, naqueles dos promotores da restauração e

446
do turismo, as cozinhas locais e os produtos da terra são vistos como um
universo tradicional, no sentido ingênuo do termo. Ou seja, como
'estáveis', fundados sobre uma tradição imutável , em oposição às
transformações e aos ciclos da economia de mercado, e 'autênticos', em
oposição ao artificial dos meios urbanos. Nesse espaço de suposta
autenticidade, os produtos e as práticas repousariam sobre os valores de
uso, e a demanda dos consumidores emergiria de uma visão paradisíaca
da ruralidade feliz (Bonnain-Moerdych, 1980; Atkinson , 1980, 1983;
Eder, 1996). De fato, os projetos políticos criados para inventariar o
patrimônio alimentar e culinário local, como é o caso da França, da
Itália ou da Catalunha, são um bom exemplo do interesse que desperta
não a manutenção dos particularismos locais, mas sim, quando é o caso,
sua restituição (Bérard, Contreras & Marchenay, 1996; Bérard &
Marchenay, 2005; Espeitx, Cáceres & Massanés, 2001; Poulain, 2002a).
A importância cada vez maior concedida às produções "localizadas"
corre paralelamente à evolução das sociedades industrializadas, que geram
certa superabundância de espaços e "apagam" o significado dos lugares.
Os aspectos positivos atribuídos aos chamados "produtos da terra", por
exemplo, refletem certa vontade de fazer frente a uma homogeneização
e globalização excessivas. Entretanto, a autenticidade, a tradição, as raízes
são amplamente manipuladas, numa época em que o mercado e a
comunicação dominam a dinâmica social. O "terreno" ou a paisagem
são objeto de uma demanda sem precedentes que gera numerosas e
diversas estratégias de gestão ambiental, mercantis e de identidades. Se
antes o "progresso " e o benefício econômico estiveram ligados à
intensificação agrícola e à homogeneização das paisagens, hoje a mais-
valia e a qualidade de vida parecem ligadas à recuperação daquilo que
desapareceu como consequência do progresso. Hoje, as produções
agrícolas e alimentícias locais (os chamados "produtos da terra") ocupam
um lugar específico no universo agroalimentar e respondem de modo
específico às orientações da Política Agrária Comunitária (1992) ,
estimulando uma diversificação das produções e uma intensificação das
práticas técnicas. Além disso, as preocupações atuais com a conservação
da biodiversidade podem encontrar em tais produções vetores de
manutenção in situ de organismos vivos ligados a uma forma de
originalidade. Essas produções também estão relacionadas com a gestão
do território, o microdesenvolvimento local de zonas desfavorecidas ou
a gestão da paisagem (Bérard, Contreras & Marchenay, 1996).

447
A Cozinha como Marcador Étnico e o
Fenômeno da Patrimonialização
das Cozinhas Regionais
Por que uma determinada maneira de se alimentar, alguns produtos
e algumas formas "locais" de prepará-los e consumi-los podem se converter
em objeto de "patrimonialização"? Uma cultura alimentar é o resultado
de uma ampla aprendizagem que se inicia no momento do nascimento e
se consolida no contexto familiar e social. As formas -de se alimentar, os
produtos consumidos e a forma de cozinhá-los estão relacionadas com
os recursos locais, com as características do clima e dos solos, ou seja,
com o território, com as formas de produção, com a agricultura e com a
pecuária; e, também, com as formas de abastecimento e com o comércio.
Também estão relacionadas com os sabores, com os conhecimentos, com
as práticas culturais, inscritos em um contexto socioeconômico específico.
Por tudo isso, a alimentação e tudo o que se relaciona com ela foram
percebidos como um 'marcador étnico'. Em outras palavras, a alimentação
foi um dos elementos que contribuíram para "gerar identidade", por
meio da constatação da diferença. Hoje, o conceito de "identidade'', de
amplo uso - e abuso - é frequentemente associado com a cozinha nacional
e/ou regional. Fala-se muito de seu caráter identitário, é-lhe outorgado
o valor de "sinal de identidade", ainda que não haja uma definição clara
do que significa dizer tudo isso.
É importante destacar, também, que enquanto os traços distintivos
foram mais marcados, a percepção da diferença servia mais para atribuir
características negativas aos "outros" (outra população, outra nação,
outro grupo social...). A constatação da diferença se converte em um
valor positivo justamente no momento em que se produz um processo de
homogeneização no âmbito da alimentação, e em que essa diferença se
reduz. Por outro lado, é preciso considerar que os mesmos fatos
alimentares podem ser apresentados como positivos e, portanto, atuar
como emblemas, ou como negativos, e assim estigmatizar, em função do
que se argumente. Uma prática cotidiana como a alimentação se inscreve
em um marco de representações e significados, com a finalidade de
estabelecer categorias entre os territórios, os agentes e os grupos sociais.
Assim, as diferentes formas de cozinhar podem funcionar como fronteira
entre os grupos sociais em contato. Portanto, o salto que se dá entre a
constatação da diversidade (Calvo, 1982) e seu uso ideológico só é possível
porque as práticas alimentares também fazem parte das estratégias sociais

448
e participam do conjunto de conflitos e tensões da sociedade. Não
podem, portanto, ser analisadas isoladamente dessa realidade.
Como já indicamos, é facilmente reconhecida uma heterogeneidade
alimentar, fruto da diversidade geoeconômica, histórica e sociocultural,
e são reconhecidos também os comportamentos alimentares particulares
como consequência dos processos que foram sendo articulados em
determinada sociedade pelo mero fato de fazerem em parte do mundo
industrializado. Dissemos, também, que os traços culinários são mantidos
durante mais tempo que muitos outros traços da cultura. É a interação
intercultural que faz com que as populações dos diferentes lugares
adquiram no decorrer do tempo consciência de suas particularidades.
Somente através da inter-relação é adquirido o sentido de pertencimento
e identidade. A identidade culinária é construída também em relação
com os 'o utros': por exemplo, ser 'basco'e comer como ' basco' em
Barcelona ou ser 'catalão' na fronteira franco-espanhola e reconhecer
uma 'cozinha catalã' como própria. A comida é um elemento importante
que serve aos grupos sociais para tomarem consciência de sua identidade
e de sua etnicidade - entendida como o sentimento de fazer parte de
uma entidade cultural distinta -, de maneira que seu compartilhamento
possa significar o reconhecimento e a aceitação/incorporação dessas
diferenças (Medina, 2002; Macbeth, 2002). É certo, também, que muitas
vezes esses traços serviam para a segregação e para o repúdio cultural
porque a ideia que cada grupo tem sobre a comestibilidade dos produtos
tem lugar importante no nível dos contatos culturais e porque cada grupo
traz em si mesmo uma categorização específica a respeito.
A etnografia demonstrou também que a aplicação rigorosa das
regras alimentares foi , no decorrer do tempo, · uma proteção contra a
aculturação e a perda de identidade diante do contato cultural com
outros grupos e que é muito lógico que os coletivos de imigrantes não
queiram abandonar certas práticas, mas, ao contrário, queiram criar na
sociedade de destino os espaços adequados para satisfazer' suas
peculiaridades alimentares. Estamos diante de um processo no qual
intervêm vários aspectos psicoculturais em que a alimentação desempenha
um papel diferenciador: em primeiro lugar pelo sentido outorgado aos
produtos autóctones e, em seguida, pela codificação social e cultural
que se opera entre os diferentes grupos e classes sociais a partir da
aceitação, ou não, das cozinhas dos 'outros'. Paralelamente, essas práticas
se converteram em parte do patrimônio de pertencimento e servem
também para a rememoração emotiva e identitária. O desafio hoje
colocado nas áreas de encontro multicultural está em favorecer a

449
confluência da mestiçagem alimentar assim como a continuidade de certas
práticas que, assim como as culinárias, contribuíram para preservar a
particularidade cultural diante da homogeneização, ainda que as pressões
exercidas pela política econômica das sociedades industrializas apontem
necessariamente para uma internacionalização de 'quase tudo': os traços
e os gostos culinários, a insegurança e o risco, os problemas de saúde, a
mercantilização do corpo e o uso e a conceituação do tempo. Na
realidade, o que se preserva é a própria coesão comunitária através dos
rituais que contribuíram para determiná-la e reproduzi-la e, precisamente,
dos quais a comida sempre foi um componente indissociável: pratos para
serem comidos em família, em dia de festa ou de reuni ão (não do dia a
dia). É certo também que, em um contexto no qual as pessoas estão em
outro lugar que não o de sua origem, o motivo da reunião comunitária
pode ser exatamente preparar e comer algum desses pratos.
O fenômeno de patrimonialização das cozinhas nacionais ou
regionais (que significa, muitas vezes, uma reconstrução, uma reinvenção
e uma valorização dessas) se produz em um contexto socioeconômico e
histórico específico. É necessário, portanto, contextualizá-lo, situá-lo
no marco em que se encontra. Seu contexto é o do conjunto das
transformações socioeconômicas contemporâneas e de suas repercussões
nos comportamentos e nas ideias relativas à alimentação. Em qualquer
caso, convém levar em consideração que não se trata de uma situação
homogênea nos diferentes países. As diferenças nos ritmos e na
profundidade das transformações variam muito de um país para outro e,
também, entre as regiões de um mesmo país a diversidade de situações
pode ser muito grande, assim como entre os diferentes setores sociais.
De fato , são evidentes os paralelismos nos processos de patrimonialização
das cozinhas locais em diferentes países e regiões. Mas esses processos
não são produzidos todos ao mesmo tempo (por exemplo, na França, a
valorização das cozinhas regionais e dos produtos locais se iniciam antes)
nem no mesmo contexto político e socioeconômico. Uma comparação
de processos poderia nos permitir responder a uma série de perguntas
como, por exemplo: quais foram os principais agentes de
patrimonialização? Quais foram seus objetivos? A patrimonialização das
cozinhas nacionais e a patrimonialização das cozinhas regionais são
diferentes momentos de um mesmo processo ou se trata de coisas
diferentes, que partem de situações diferentes e nas quais intervêm outros
agentes, outros condicionantes e outras motivações? Os processos de
patrimonialização nos diferentes países compartilham todos as mesmas
características fund amentais, ou existementre eles diferenças suficientes
para se falar em processos diferentes? (Espeitx, 2000).

450
Se a tomada de consciência da mundialização da economia conduz
a uma necessidade de referências universais - o papel desempenhado
pelas grandes marcas, por exemplo (Rochefort, 1995) - , também é certo
que outra maneira de encontrar referências está no descobrimento das
culturas locais e no fato de compartilhá-las em alguma medida. Nesse
sentido, identidade e/ou patrimônio são novos "recursos" da modernidade
e de usos polivalentes. Nesse caso já não se trata de produções mundiais
que perdem progressivamente o vestígio de seu lugar de origem, mas sim
de produtos que, pelo contrário, o assumem. Espera-se deles que evoquem
um território, uma paisagem, alguns costumes, algumas referências
identitárias.
Há diferenças notáveis entre a lógica político-cultural da
patrimonialização e a lógica mercantil. Poderíamos dizer que a lógica
político-cultural responde a uma vontade de recuperar o que, tendo
desaparecido ou em vias de desaparecer, foi cons iderado uma
manifestação da identidade. A lógica econômica, por sua vez, se inclina
a patrimonializar o que é suscetível de se converter em mercadoria, seja
por sua dimensão de espetáculo ou de objeto consumível. Desse modo,
os objetos patrimonializados sofrem uma descontextualização progressiva
dos modos de vida particulares dentro dos quais tiveram sua origem e
adquiriram sua par ticular significação. Hoje, a maioria dos objetos
patrimonializados que temos oportunidade de observar estão pouco ou
nada integrados em um "lugar", pouco ou nada integrados em um "modo
de vida" particular. Nesse processo, algumas manifestações desaparecem
sem que ninguém as reivindique e outras (sobretudo aquelas que têm
maior dimensão estética e/ou espetacular) tiveram tal êxito que, inclusive,
podem ser imitadas em muitos lugares. Parece que hoje a "tradição" se
descontextualiza, se desmem bra ou se fragmenta cada vez mais em
"especialidades" diferentes e específicas, e é mantida ou recuperada não
tanto por indivíduos que pertencem a uma sociedade ou a uma cultura
particular, mas sim por outros agentes muito diversos, associações,
corporações, administrações públicas, empresários turísticos etc.
Os processos de patrimonialização têm algo de paradoxal, pois
surgindo de certo repúdio aos processos de uniformização cultural,
derivados da lógica própria da economia de mercado, parecem ter sido
rapidamente "assimilados" e mais ou menos "estereotipados" dentro
dessa mesma lógica econômica. Assim, por exemplo, muitas "tradições",
incluindo as gastronômicas, foram consideradas e revalorizadas como
"recursos" culturais e econômicos na forma de espetáculos para o turista,
nacional ou internacional, na forma de livros cuidadosamente editados

451
e ilustrados que circulam, sobretudo, como objeto de presente em datas
tradicionalmente indicadas pelos mesmos, na forma de restaurantes
" típicos", de oficinas de artesanato e de "animação cultural", de comércios
especializados no fornecimento de materiais, ideias ou na compra de
produtos artesanais para uso ornamental etc.; ou, também, em cadeias
de distribuição, algumas de alcance internacional, de produtos de
"artesãos tradicionais". Pode-se dizer que o " tradicional" "está na moda"
e que, nessa mesma medida, a " tradição" é um "valor agregado" do
ponto de vista econômico , anima a demanda e aumenta o preço.
O "típico", o "tradicional", o " rural" são agora globalmente idealizados
e "submetidos" à lógica da economia de mercado.
Na medida em que a " tradição" foi considerada " patrimônio
cultural", também sua recuperação e manutenção foram economicamente
"subvencionadas" por diferentes instâ ncias das administrações. Em
qualquer caso, parece que a " tradição", o " patrimônio cultural'', em
quaisquer de suas múltiplas formas , constitui, cada vez mais, uma
atividade própria de um fenômeno absolutamente moderno: o lazer. Com
a disseminação e com a valorização do "tempo de ócio", as manifestações
culturais de caráter local, objeto de patrimonialização, já não respondem
tanto aos "atores locais", à gente que, globalmente, "vive e trabalha" em
um lugar e de acordo com um modo de vida particular (muitos deles
desaparecidos), mas sim a profissionais relativamente especializados e
direta ou indiretamente relacionados com as atividades econômicas.

452
Epílogo

Uma Antropologia da Alimentação é Necessária


No decorrer deste livro mostramos com amplitude a complexidade
biocultural do comportamento alimentar humano. Agora, falta uma última
coisa: refletir sobre a maneira como a antropologia social pode participar
dessa análise. A antropologia deve aplicar seus esforços para melhor
compreender e diagnosticar a complexidade do fenômeno alimentar,
descrevendo e interpretando as diferentes transformações que aconteceram
e continuam acontecendo e, de modo geral, o que elas têm a nos dizer
sobre a sociedade de maneira mais ampla. Em nosso entendimento, esses
esforços devem ir mais além, aproveitando as possibilidades desse objeto
de estudo. Hoje, as diferentes partes do sistema alimentar são um espaço
útil para caracterizar e compreender o mundo contemporâneo, como
demonstra a crescente atenção dispensada pelas diferentes disciplinas, ainda
que também constituam um espaço de conflitos que não podem ser evitados.
Diminuir a desigualdade social e evitar as discriminações, melhorar a saúde
e a qualidade de vida das pessoas, preservar o meio ambiente e a
biodiversidade, manter as identidades locais ou advogar pela redução dos
riscos e dos temores das pessoas são alguns dos objetivos que devem ser
perseguidos pela antropologia da alimentação, na medida em que dispomos
de um marco teórico e metodológico que nos permite identificar os
problemas e abordá-los.
A sociedade contemporânea se caracteriza, cada vez mais, por um
grande interesse e preocupação relativos à nutrição, à dietética e à
alimentação em geral. Esse interesse e essa preocupação favoreceram,
ao mesmo tempo, numerosas e muito diferentes e complexas pesquisas

453
relativas tanto ao campo da produção de alimentos como aos efeitos
saudáveis ou prejudiciais de sua ingestão. Assim, nas últimas décadas,
ocorreu um notório aumento da compilação de dados sobre os modelos
de consumo alimentar e da pesquisa de base epidemiológica. A maior
atenção científica coincide, ao mesmo tempo, com o incremento de
organizações institucionais e associações internacionais e estatais
dedicadas total ou parcialmente a estudar as relações entre alimentação,
saúde e bem-estar.
Do mesmo modo, a pauta das agendas dos cientistas sociais
dedicados à alimentação humana está repleta de temas 'quentes', de
prnblemas que devem ser resolvidos a partir do 'reconhecimento' e do
'conhecimento' das diferenças culturais, do papel desempenhado pela
socialização no consumo alimentar e das implicações sociais da comida
para a saúde e para o ambiente. A produção, a distribuição e o consumo
de alimento envolvem diversos setores em qualquer sociedade que nos
levam desde a agricultura até o processamento dos alimentos, do
restaurante ao lar, do indivíduo ao grupo social. Apesar da abundância
aparente, o sistema de reprodução e divisão alimentar atual não garante
às pessoas as necessidades básicas, nem a divisão igualitária dos alimentos,
nem a capacidade regenerativa dos recursos utilizados, nem a preservação
da identidade cultural. Também não favorece a confiança nos alimentos
produzidos, nem o desejo, tão humano como legítimo, de querer preservar
e melhorar a qualidade de vida. Qualquer política pública ou privada
que possa ou queira incidir em e/ou modificar esse sistema alimentar
deverá fazê-lo reconhecendo e conhecendo as numerosas incertezas e
expectativas que reveste nesses momentos o comer e o não comer,
e deverá fazê-lo também levando em consideração que hoje ser o que
comemos reflete, talvez mais do que nunca, a natureza complexa e
contraditória da ordem social dominante.
No atual contexto da produção de mercadorias, os alimentos foram
adquirindo enorme centralidade, tanto pelo valor de uso e/ou de troca
que ao longo da história e das culturas teve para o sustento e intercâmbio
social, como pelo papel econômico central que assumiu na sociedade
contemporânea. As disparidades mundiais referentes ao abastecimento
e ao acesso dos alimentos correm risco de não se resolverem em um futuro
próximo, e hoje se fala na segmentação do planeta (norte-sul, ricos-
pobres, Primeiro-Terceiro Mundo) em termos alimentares: aqueles que
têm acesso relativamente fácil à comida e cuja parte da renda destinada
à alimentação é cada vez menos significativa em termos proporcionais, e
aqueles que não sabem o que comerão amanhã, se é que comeram algo

454
hoje, ou que o fazem graças à "bondade" e à ajuda dos primeiros; aqueles
que ficam doentes por comer em excesso e aqueles que também ficam
doentes ou morrem por não comerem absolutamente nada. Desse modo,
o interesse pelo conjunto dos hábitos alimentares foi incorporado nas
políticas de saúde pública e nos esforços para reduzir certas doenças
que, como nos casos das cardiovasculares nos países industrializados ou
dos estados carentes nos países em desenvolvimento, são as principais
causas de morte prematura.
Por outro lado, graças à pesquisa relativa aos alimentos e aos seus
efeitos nutricionais, pode-se afirmar que, pelo menos aparentemente,
nunca soubemos tanto sobre os alimentos como agora. Os avanços
científicos e tecnológicos desenvolvidos no decorrer das últimas décadas
permitem graus de análise extraordinariamente pormenorizados, de tal
maneira que se pode descrever, qu antitativamente e nos mínimos
detalhes, a composição de qualquer "alimento" ou produto. O grau de
conhecimento chegou ao ponto em que nossa sociedade contemporânea
parece não comer carne, maçãs, pão ou grão-de-bico, por exemplo, mas,
sim, colesterol, vitaminas, fibras, minerais, gorduras, carboidratos, ácidos
graxos poli-insaturados, monoinsaturados ou saturados, lipídios, ácido
fólico, cálcio, ferro , calorias, "aditivos" diversos etc.
As categorias por meio das quais os alimentos são percebidos e
classificados parecem, pois, ter se modificado consideravelmente em
função da maior decomposição química impulsionada pela ciência.
Da mesma forma, ao mesmo tempo que conhecemos cada vez mais e
melhor a composição dos alimentos, também conhecemos cada vez mais
e melhor os efeitos dos diferentes nutrientes em nosso organismo. Como
consequência de tudo isso, hoje, a ciência pode nos recomendar com
precisão o que devemos comer para nos mantermos saudáveis. E, assim,
nossas sociedades contemporâneas se interessam em saber ' o que
comemos' (e para isso são feitos grandes investimentos em pesquisas
nutricionais) para, em seguida, recomendar 'o que devemos comer' (e
para isso são investidas importantes quantias em campanhas publicitárias
de lançamentos de novos produtos ou em programas dieteticamente
"educativos"). Assim, pois, constata-se que as autoridades, políticas e
científicas, se preocupam com o estado de saúde da população.
Entretanto, surpreendentemente, apesar dos extraordinários avanços
científicos experimentados, e apesar da preocupação com o estado de
saúde da população, acompanhada de mudança econômica, que orienta
as autoridades políticas e científicas, os alarmes sobre o estado nutricional
são abundantes e frequentes.

455
Assim, hoje, quando a disponibilidade de alimentos é maior do
que nunca, e quando o conhecimento sobre os mesmos também nunca
foi tão disseminado, não parece que "comamos bem" de acordo com os
cânones nutricionais existentes. As sociedades industriais parecem
distinguir-se pelo fato de os indivíduos comerem mais do que é necessário
e mais do que lhes é exigido por sua saúde. O que acontece, então? É o
que devemos nos perguntar. Diversas explicações são possíveis. As
autoridades sanitárias competentes se queixam de que "as pessoas não
estão dieteticamente educadas" ou ainda que não seguem as
recomendações nutricionais que lhes são indicadas e obedecem, pelo
contrário, às recomendações publicitárias. Tal como procuramos destacar
no decorrer dos diferentes capítulos deste livro, o problema é muito
mais complexo porque a alimentação não é, exclusivamente, um fenômeno
biológico, nutricional ou médico. A alimentação é um fenômeno, 'além
disso', social, psicológico, econômico, simbólico, religioso e definitivamente
cultural, no sentido antropológico do termo. E, se não for considerada
essa multidimensionalidade da alimentação, corre-se o risco de incorrer
em erro no diagnóstico das situações ou nas soluções que são propostas.
Algumas observações podem ser ilustrativas a esse respeito. Por
exemplo, as criaqças e os jovens das escolas norte-americanas sabem
exatamente o que responder quando lhes perguntam sobre os componentes
nutritivos de determinada dieta. Podem apresentar, por exemplo, uma
lista de alimentos ricos em vitaminas e minerais. Entretanto, esse
conhecimento "intelectual", que hoje alguns profissionais da nutrição
reivindicam para os estudantes espanhóis, não se reflete em seu próprio
comportamento alimentar. A situação entre os jovens da high school não
é muito diferente (Fieldhouse, 1986). E, com efeito, a junk food é um
tipo de comida característica dos adolescentes norte-americanos. Ajunk
food deve ser considerada dentro do contexto de uma experiência social
que inclui música, ruído e companhia. É uma forma de comer que pode
identificar os adolescentes diante dos adultos, da mesma maneira como
se pode identificá-los por meio de determinada forma de vestir, de falar
ou pelos lugares que frequentam. Na medida em que, nas refeições
estruturadas ou regulares, esses elementos estão ausentes, os teenagers
veem que a "experiência social" lhes é negada. As pautas alimentares
seguidas por esses jovens norte-americanos (baseadas no consumo de
hambúrgueres, pizzas, batatas fritas e bebidas adoçadas) chegaram a
alarmar os nutricionistas. Segundo o nutricionista norte-americano
Schuchat (1973), somente quando os "bares de salada" chegarem a ser
lugares "da moda" onde eles possam se encontrar, caberá esperar

456
mudanças relativamente drásticas nos hábitos alimentares dos
adolescentes. Esse é um dos vários exemplos que poderiam ser citados
para destacar que os alimentos adquirem , frequentemente, um
significativo valor simbólico por meio do qual as pessoas podem se
identificar a si mesmas e identificar as demais. As pessoas se identificam
segundo o que comem. Identificam-se ou "se constroem" por meio da
comida (Chiva, 1979; Fischler, 1985). Por meio de determinados usos e
preferências alimentares, um indivíduo se identifica com um determinado
grupo social, étnico ou etário.
No decorrer das páginas deste livro foi reforçado em diversas
ocasiões que, no ato da alimentação, o homem biológico e o homem
social ou cultural estão estreitamente ligados e reciprocamente envolvidos.
No ato alimentar, pesa um conjunto de condicionamentos múltiplos e
ligados por interações complexas: condicionamentos e regulamentos de
caráter bioquímico, termodinâmico, metabólico, psicológico, pressões
de caráter ecológico. Tudo isso influencia na escolha, na preparação e
no consumo de alimentos e tudo isso é o resultado de um processo social
e cultural cujo significado e razão devem ser buscados na história ou na
dinâmica particular de cada sociedade ou cultura (Fischler, 1995b).
Consequentemente, as transformações que têm como finalidade
melhorar as condições de vida de uma população não devem ser feitas sem
a compreensão prévia de seus valores e práticas culturais e sem a intenção
de adequá-las a tal realidade. As capacidades de inovação e de adaptação
alimentar são, com frequência, maiores do que os próprios interventores
acreditam. Por exemplo, quando, há alguns anos, o governo italiano
abasteceu com macarrões os salvadorenhos que viviam em um campo de
refugiados em Honduras, não havia nem o contexto cultural, nem as
ferramentas culinárias adequadas para que pudessem ser preparados ao
"estilo italiano". Entretanto, através da experimentação, os salvadorenhos
descobriram que os macarrões fritos em azeite eram um snack aceitável e
que se fossem tostados e pulverizados poderiam ser misturados com canela,
açúcar e água e transformados em uma bebida refrescante (Fieldhouse,
1995). Esse exemplo destaca que, também, deve-se deixar espaço para a
interpretação cultural das ações propostas: introduzir trocas no
comportamento alimentar é tão simples quanto complexo, mas dificilmente
elas podem ser realizadas sem se considerar o emaranhado cultural no
qual os alimentos e o ato de comer adquirem sentido.
São muitos os exemplos que podemos mencionar para ilustrar os
problemas apresentados nos programas de intervenção em nutrição e
nas políticas públicas que partiram de uma concepção simplista da

457
sociedade e da própria intervenção. Outro exemplo, que é muito
contemporâneo, está relacionado com a valorização da imagem corporal.
De fato, a contraposição entre as recomendações nutricionais, por um
lado, e a perfeição como conveniência das formas corporais, por outro,
se fez evidente em muitas sociedades. Tustin (1988) ilustra essa
contraposição com o caso dos habitantes das ilhas do Pacífico (Nova
Zelândia) e sua percepção positiva da acumulação de gordura corporal.
A valoração positiva da acumulação de gordura corporal, em termos de
status e capacidade de prover os familiares, era historicamente explicada
como uma condição essencial para a sobrevivência nas condições materiais
tradicionais: os acontecimentos que colocavam em perigo o fornecimento
de comida durante longas temporadas (as viagens entre as ilhas, os
furacões etc.) eram frequentes e os sobreviventes eram aqueles que
contavam com uma boa reserva de gordura corporal. Essa valoração
positiva se manteve até hoje. Em contraposição, nas condições atuais, em
que não há problemas relevantes de distribuição de alimentos, essa
tendência favorecida pela valoração social positiva coloca os maoris e os
habitantes das ilhas do Pacífico em uma situação de risco em relação a
doenças como o diabetes: 12,5% deles padecem desse mal, proporção muito
mais alta que os 3% dos neozelandeses de origem europeia que o têm
diagnosticado. A educação nutricional, como esse caso ilustra claramente,
exige uma readaptação cultural global. São valores sociais particulares,
vinculados a práticas alimentares também particulares que deveriam ser
transformados para evitar a piora do estado de saúde da população.
Precisamente, um dos temas no debate internacional sobre
alimentação e nutrição é a elaboração de 'padrões nutricionais de caráter
uniforme'. Discute-se como aplicar os padrões considerados corretos nas
recomendações, nos cálculos das refeições e no estado nutricional das
diferentes populações mundiais. Estudos comparativos feitos na Índia
ou no México, por exemplo, enfatizaram a necessidade de que aqueles
que guiam as políticas de saúde levem em consideração os conceitos
'etnonutricionais', já que esses, ao se basearem nos sistemas de
classificação e representações emic (ou seja, as próprias percepções
e categorizações sobre a realidade de população determinada) e
expressando, consequentemente, diferentes lógicas de comportamento
alimentar, permitem entender melhor os condicionantes nos quais tais
padrões devem se apoiar. Nesse sentido, pareceria oportuno abandonar
a intenção de criar padrões standard ou uniformes. Já se sabe que é mais
fácil, por exemplo, atribuir a fome à ignorância científica ou à falta de
educação nutricional ou econômica das culturas onde ela ocorre, ainda

458
que isso seja absolutamente falso e errado, do que buscar a muçlança do
sistema econômico que a favorece, como a experiência de tantos anos de
fome e escassez demonstrou. Seria necessário, pois, que os cientistas
compreendessem as diferentes formas de entender a alimentação, além
de "receitas", dietas, e, associadas a ela, os comportamentos sociais, de
maneira que não sejam contraditórios ou invalidados por crenças e práticas
relacionadas, por exemplo, com o binômio 'quente-frio', por sua vez
muito difundidas em diferentes partes do mundo.
Em parte por esses motivos, alguns desses cientistas buscaram
auxílio nas ciências sociais. A OMS foi recolhendo todas essas reflexões
críticas e, atualmente, nos programas europeus e internacionais trabalha-
se com base no entendimento de que qualquer política nutricional deve se
referir aos alimentos, 'à comida', e não aos nutrientes. Assim, pois,
não é de estranhar que, de forma progressiva, dietistas, nutricionistas e
planejadores da saúde pública reconheçam nesses âmbitos que é
necessário contar com conhecimentos alimentares construídos com base
em disciplinas não biomédicas. Na verdade, são seus próprios dados, os
obtidos da pesquisa nutricional e epidemiológica, que indicam que há
fatores que remetem diretamente à necessidade de análises
socioantropológicas ou psicológicas. Persiste, entretanto, o desencontro
disciplinar favorecido pela evolução epistemológica das diferentes
ciências. No caso da nutrição, a maioria dos primeiros cientistas foi
estimulada pelos problemas práticos do século XIX relativos à
alimentação e à saúde derivados, em sua origem, das consequências da
rápida industrialização entre as populações mais pobres das cidades.
A maioria deles eram químicos ou físicos que queriam descobrir que
alimentos proporcionavam energia e sustento de forma mais econômica,
entendendo a comida como o combustível que abastecia a máquina
humana. Hoje, os nutricionistas dão a impressão, em geral, de que são
mais necessários que antes, e talvez realmente o sejam. De fato, a
quantidade de órgãos governamentais e instituições dedicados às
questões nutricionais assim o faz pensar. O valor social atribuído à
alimentação e à saúde foi aumentando de forma paralela ao longo da
segunda metade do século XX, coincidindo com a maior penetração
institucional e o maior reconhecimento social das ciências biomédicas,
de tal forma que aqueles que exercem a nutrição se converteram em uma
parte importante do poder médico, operando em todos os níveis - local,
nacional e internacional - e influenciando nas políticas governamentais,
assim como no uso de fundos de pesquisa pública (Mennell, Murcott &
Van Otterloo, 1992).

459
Até relativamente pouco tempo atrás, o diálogo entre os dois tipos
de ciências, as biomédicas e as sociais, não foi frequente, na verdade
quase inexistente, e se as pesquisas feitas desde fins do século XX
revelaram algo, foi a dificuldade patente em estabelecer um código comum
entre os dois âmbitos de observação e análise. Os resultados desses
desencontros entre o biológico e o social foram, por um lado, os vários
fracassos dos programas de intervenção nutricional e saúde e, por outro,
as insuficiências registradas em boa parte dos estudos sobre práticas
alimentares que insistiram apenas no social, não passando às vezes do
plano meramente descritivo das identidades culturais. Cabe dizer, também,
que, às vezes, os enfoques unidisciplinares também foram produzidos no
próprio âmbito das ciências humanas e sociais (Murcott, 1988).
Certamente, não é frequente ver antropólogos trabalhando com os
economistas ou com os sociólogos. Por outro lado, as ciências sociais
sempre serão diferentes das ciências experimentais, simplesmente em
virtude da natureza daquilo que estudam, o que significa, de saída, que
nunca podem proceder por estrita replicação de procedimentos
experimentais. Não há laboratórios, não há experimentos. Os seres
humanos têm memória e linguagem, capacidades que garantem motivação
e originalidade. Nenhuma circunstância social é idêntica a outra.
Nenhuma configuração política pode ser reproduzida exatamente como
antes. Nenhum acontecimento econômico se repete do mesmo modo ...
Nesse sentido, a história não é justamente o passado, mas também
o presente e o futuro , todos em um. A história não é, simplesmente, o
transcorrer do tempo. A impossibilidade de replicação de experimentos
e, com isso, a irrelevância de uma estrita versão do método experimental
são duas das razões pelas quais boa parte dos cientistas sociais se
distanciam, metodologicamente, das ciências biomédicas, físicas ou outras.
Na realidade, o problema de muitos dos profissionais dedicados ao
estudo da alimentação humana é que reconhecem a complexidade biossocial
da alimentação, mas não a incorporam em seus corpos teóricos e em suas
práxis, ou o fazem de modo muito parcial. No fundo, o problema da maioria
deles é que lhes falta interesse para construir sua análise considerando
essa complexidade e, o que é mais importante, falta-lhes uma formação de
base interdisciplinar que os tome capazes de 'compreender' e abordar o
caráter multidimensional do fato alimentar. Por essa razão, é necessário
insistir, no âmbito das especializações, em estabelecer um ponto de
encontro, um espaço comum no qual as premissas teóricas e os recursos
técnicos, em lugar de se distanciarem, se aproximem e evitem, na medida
do possível, os erros e fracassos que vão se acumulando. Em sua obra

460
pioneira no âmbito da antropologia aplicada, Foster (1969) já recorria a
exemplos de adequação do conhecimento antropológico sobre o
comportamento alimentar nos programas de intervenção da saúde pública
sobre nutrição. Os problemas encontrados, por exemplo, nos centros de
saúde materno-infantis nas áreas rurais da Venezuela, onde as mães
trocavam o leite em pó obtido do governo por bebidas e outros alimentos
para os adultos, exigiram um estudo detalhado dos fatores socioculturais
e econômicos que motivavam essa prática.
Da informação obtida por Foster poderiam ser feitas, sobretudo,
três observações fundamentais. A primeira, que a distribuição de leite
em pó era vista como um questionamento das capacidades das mães de
proporcionar um leite natural adequado e, portanto , entrava em
contradição com um dos papéis fundamentais das mulheres em sua
cultura. Em segundo lugar, os critérios dos centros de saúde, que
privilegiavam as crianças entre outras categorias de pessoas dentro de
uma mesma família, para o caso do acesso aos alimentos, em oposição à
hierarquização de prioridades própria dos indivíduos da cultura na qual
os mesmos eram aplicados. Finalmente, não houve um treinamento
paralelo das mães na preparação do leite para as crianças, além da
distribuição. Até o momento em que não haviam sido criadas medidas
para contrabalançar essas práticas e erros, com base no conhecimento
da lógica cultural da população, a melhora do estado nutricional da
população infantil não foi substancial, apesar da afluência de visitas aos
centros de saúde e do êxito inicial que aparentemente haviam apresentado.
Mas quando é que a ciência nutricional se volta pra as ciências
sociais? Os nutricionistas acabaram se tornando os especialistas na análise
das relações entre práticas alimentares e estado de saúde das populações,
tanto nas sociedades industrializadas como nas que não o são. São eles
que fixam os padrões daquilo que se considera uma alimentação correta
em uma perspectiva nutricional e são eles que, com sua influência direta
nas políticas alimentares e sanitárias, opinam e intervêm nos problemas
que podem derivar do perfil alimentar e nutricional da população. Desde
a década de 1980, alguns governos, seguindo as iniciativas da FAO e da
OMS, desenvolveram políticas alimentares nacionais visando a dois
objetivos principais. O primeiro, prevenir as enfermidades e fomentar a
saúde pública informando a população sobre a importância de seguir
uma 'dieta prudente' (abundante em frutas, verduras e fibras e escassa
em produtos com gorduras de origem animal). O segundo, que as políticas
alimentícias garantissem a segurança dos produtos alimentícios,
estabelecendo as normas que os produtores devem seguir, assim como as

461
indústrias e as companhias distribuidoras de alimentos. Esses objetivos
significaram, especialmente nos países industrializados, a criação de
complexas organizações com a finalidade de zelar pela boa informação e
pela educação pública, pela pesquisa e pelo controle alimentar. Da
abundante literatura gerada nos últimos anos, cabe destacar um aspecto
central: um número importante de programas desenhados para melhorar
os hábitos alimentares teve êxito apenas relativo, na medida em que as
mudanças registradas na conduta das populações não foram substanciais
nem necessariamente produzidas na direção esperada. Os nutricionistas,
delimitando os padrões de conduta, viram que os grupos sociais parecem
conhecer as recomendações dietéticas, mas não necessariamente as
colocam em prática , como destacado no exemplo dos estudantes
americanos. Essa falta de atenção aos conselhos técnicos os levou a se
perguntarem sobre o porquê de tal atitude.
É evidente que os estudos antropológicos podem contribuir com
os recursos necessários para a investigação dos comportamentos ou hábitos
alimentares e nutricionais. De fato, Peito (1988) delimitava muito bem
essa questão recordando que o estudo da alimentação se desenvolveu
como um campo eminentemente biomédico no qual, mais tarde, foram
necessárias outras contribuições com a finalidade de tentar esclarecer os
condicionantes sociais do comportamento alimentar. A direção e a
evolução dos estudos sobre alimentação e nutrição humana realizados
com base na antropologia foram muito influenciadas por uma série de
fatos históricos, como a tomada de consciência e a divulgação das
dimensões da crise mundial de energia e de alimentos dos anos 1970.
E por outras circunstâncias como, por exemplo, a descoberta do papel
da nutrição na saúde e na etiologia de muitas enfermidades; a
revitalização cultural e étnica expressa também por meio da revitalização
de tradições alimentares; o desenvolvimento do interesse por uma cozinha
internacional e pelo comportamento gourmet como símbolos renovados
de bem-estar ou as mesmas mobilizações sociais diante das recentes crises
alimentares e das resistências observadas àquilo que se poderia chamar
de alimentos ou estabelecimentos totem e que podem ser considerados
como uma imposição contrária à própria identidade cultural (por exemplo,
o movimento representado pelo agricultor francês Josep Bové, convertido
em um líder do movimento antiglobalização). Todos esses fatos favoreceram
também que, com base em outras disciplinas, se tenha buscado 'a perspectiva
antropológica'. Para Peito (1988: 55), uma característica fundamental de
muitos dos estudos que podem ser agrupados sob o rótulo 'antropologia
da alimentação' ou 'costumes alimentares' é a ênfase em analisar os

462
alimentos como uma forma de compreensão dos processos sociais e culturais:
"os alimentos não são considerados tanto como portadores de nutrientes,
mas sim como modelos ou mecanismos para se estudar a cultura".
De acordo com Roca (1998), a antropologia recorre a uma
conceituação da cultura - os modos adquiridos de ação e pensamento
socialmente organizados e suscetíveis de serem transformados segundo o
devir e a ação social - que a capacitam para identificar os diferentes
fenômenos sociais, os elementos que os compõem e suas relações entre
si. Seu interesse em incluir a dimensão comparativa e transcultural
permite, por sua vez, obter uma extraordinária riqueza de dados para
confrontar as diferentes realidades e para concluir sobre isso o que se
mostrou tão útil: os aspectos diferentes e recorrentes das distintas culturas
e grupos sociais, destacando que em todos a realidade é descrita e
entendida da mesma forma. O relativismo cultural, por um lado, e a
contextualização, por outro, evitam erros básicos no momento de formular
certos problemas. Convém aqui lembrar a máxima que diz que "é preferível
uma solução aproximada com um diagnóstico preciso do que uma solução
exata com um diagnóstico aproximado". Além disso, o cenário nos últimos
anos, com o crescente uso da combinação de métodos quantitativos e
qualitativos, revela tamhém o potencial do método de triangulação e os
vínculos de integração dos níveis micro e macro. Nesse sentido, o que a
etnografia faz é proporcionar os dados necessários, em um primeiro nível,
para se desenvolver esse processo e, partir da identificação e caracterização
do problema, definir as bases que permitam avaliá-lo e oferecer um
diagnóstico o mais preciso possível.
Por outro lado, reafirma-se o recurso ao método etnográfico é
reafirmado como meio útil para identificar e abordar os fenômenos
sociais. Seu crescente uso nos últimos anos e sua adoção por outras
disciplinas demonstram como sua aplicação é útil para uma grande
variedade de situações e problemas atuais. A etnografia proporciona ao
pesquisador um caminho para examinar o conhecimento e o
comportamento das pessoas que fazem parte de um grupo social e
o modo como vivem e interpretam suas experiências. Simultaneamente,
esse método requer, por parte dos pesquisadores, a contextualização
dessas formas de vida no âmbito em 9ue se estabelecem seus eventuais
vínculos com unidades sociais globais. E preciso examinar o que as pessoas
dizem, aquilo que é verbalmente comunicado ao pesquisador, e aquilo
que as pessoas fazem, isto é, aquilo que o pesquisador observa de perto
e de forma direta, em uma tentativa de compreender o modo como a
vida cotidiana se forma e se organiza.

463
No caso do estudo do comportamento alimentar, trata-se, em uma
primeira instância, de analisar o descompasso que, frequentemente, ocorre
entre o discurso verbal e as práticas reais, entre as perspectivas emic e etic
e conseguir, por outro lado, vincular o comportamento relativo à comida,
com base em uma visão holista, com outras questões mais genéricas: os
valores e as práticas alimentares em sua relação com uma lógica cultural
mais ampla.
Os estudos antropológicos especializados em alimentação iniciados
no início dos anos 30 do século passado continuam proporcionando,
hoje, os conceitos, as categorias e, inclusive, os métodos para analisar as
relações entre alimentação e cultura. A antropologia social continua
sendo, nesse sentido, tão ou mais oportuna do que no início do século
passado. Em determinados níveis, especialmente no âmbito da ação de
políticas internacionais destinadas a sociedades do Terceiro Mundo, ainda
que não apenas a essas, a antropologia social é necessária para discutir,
aconselhar e sugerir soluções para os problemas alimentares e nutricionais.
Mas, assim como antes, esses informes continuam tendo um impacto
limitado nas políticas alimentares. Basta fazer uma revisão dos problemas
que acabamos de esboçar: alguns são novos, mas outros fazem parte de
velhos conflitos. O objetivo prioritário deve continuar sendo a promoção
de pesquisas destinadas principalmente a possibilitar a colaboração entre
diferentes disciplinas relacionadas que enfatizem as semelhanças e
desmontem os mitos criados sobre as diferenças que colocam obstáculos
a essa colaboração. Deve-se continuar trabalhando no que poderia ser
denominado "antropologia do conhecimento" com relação às ideias
geradas por grupos científicos e burocratas que governam as políticas
agronômicas e nutricionais locais e internacionais. Deve-se, também,
trabalhar para conhecer a influência dos fatores socioculturais, políticos
e econômicos que estão relacionados com os distintos comportamentos
alimentares sociais e individuais e, definitivamente, deve-se continuar
trabalhando para conhecer as consequências que os diferentes tipos de
políticas alimentares e econômicas têm sobre o abastecimento, a
distribuição e o consumo, e identificar quais delas geram maiores
desigualdades sociais ou significam maiores riscos para a saúde ou para o
meio ambiente entre as populações. Com isso, não apenas poderão ser
caracterizadas e documentadas as questões ocultas do sistema alimentar,
mas também, e que é o mais importante em nossa opinião, compreendidos
os mecanismos que guiam sua transformação e também seus efeitos.
As possibilidades da antropologia da alimentação são, a priori,
amplas. É certo que tudo o que concerne à evolução presente e futura

464
do consumo alimentar é hoje uma encruzilhada econômica e política
relevante. Nesse contexto, os cientistas sociais são interpelados pelos
políticos, tecnólogos, pelos especialistas em marketing e pelos demais
cientistas quando não encontram soluções para os problemas no âmbito
de suas próprias áreas ou disciplinas. Nessa perspectiva, de acordo com
Grignon (1993), a presença do antropólogo ou do sociólogo é premissa
por excelência nas comissões e comitês em que participam técnicos e
pesquisadores biomédicos, cozinheiros e tecnólogos , pecuaristas
e economistas. Normalmente, os conhecimentos socioantropológicos são
reivindicados quando já provaram encontrar saídas "sociais" para os
conflitos. A convicção de que os consumidores são irracionais e ignorantes
e que seus costumes são arcaicos ainda está presente na discussão sobre
o que é conhecimento no campo da alimentação humana (sem que se
leve em consideração, por exemplo, que alguns dos "erros" populares de
hoje foram "verdades científicas" ontem). Sabemos que atuar assim é
"começar a casa pelo telhado": apresentar solução para problemas que
não foram previamente reconhecidos e compreendidos. Entretanto, este
é o tipo de abordagem mais frequente: delimitar, medir, avaliar os
fenômenos sem antes tê-los descrito e identificado ·detalhadamente. Atuar
e intervir sobre o comportamento individual ou grupal de sujeitos cujas
identidades foram inventadas - no sentido de construídas - por um
conhecimento extraordinariamente especializado, nesse caso o nutricional
e o economista, que desejaria se dirigir a um público flexível e moldável
segundo sua vontade.
Essa "arquitetura sem base", logicamente, tem grandes possibilidades
de ruir sobre si mesma. Por essa razão, deve-se evitar o que Grignon
(1993: 63) chama de "sociologia de serviço", orientada exclusivamente
pela demanda e por seus objetivos, levada a trabalhar com noções triviais
do ponto de vista do conhecimento antropológico global, submetida à
compreensão ou, pior, à atração do marketing e pouco capaz de se manter
distanciada em relação às problemáticas, teorias e temas que está
determinada a estudar. Uma coisa é ter firme convicção de que uma
parte do trabalho do antropólogo ou sociólogo deve consistir em tentar
compreender e, se for o caso, resolver problemas; outra, porém , é
responder a uma demanda cuja única exigência é "colocar a cereja" em
um bolo elaborado, de acordo com a metáfora, por "outros confeiteiros'',
no sentido de que ser convidado a discorrer mais ou menos cientificamente
sobre ideias recebidas do mundo agroalimentar, do meio médico ou da
gastronomia, mas não do mundo derivado de sua própria observação e
delimitação. Os modelos alimentares surgem como resultado de uma

465
grande série de interações entre o social e o biológico e, por conseguinte,
sua investigação não se justifica apenas pela preocupação com a
conservação de uma herança que testemunha uma época, mas sim pelo
interesse em compreender o funcionamento e a dinâmica de um corpo
de conhecimentos operativos por meio do qual os grupos sociais se
inscrevem em seu meio.
Levando em consideração o interesse de tantos setores, públicos e
privados, na melhoria de nossa alimentação, é preciso insistir que, para
comer melhor, devemos saber mais sobre as causas e consequências práticas
de nossos hábitos alimentares em transformação. Devemos considerar as
práticas nocivas para a saúde também como aspectos da vida cultural e
determinados por fatores socioculturais. Nesse sentido, há carência, por
exemplo, de estudos que determinem os efeitos da escolaridade precoce
e da sua prolongação, da pressão do ambiente, das condutas adotadas
para fazer frente a situações vitais, do apoio social e das condições
ambientais sobre os estilos de vida e sobre as possibilidades e
impossibilidades de mudar a conduta. Muito importante, definitivamente,
é averiguar por que motivo ou motivos as pessoas, apesar de saberem as
consequências, se comportam de forma supostamente arriscada com
relação à saúde (um exemplo controverso: mulheres que não deixam de
fumar por medo de engordar). Também é verdade, infelizmente, que as
exigências cotidianas de muitas pessoas não permitem uma dieta ou um
estilo de vida com essas características, mais equilibrado e mais conveniente
para sua saúde, o que deixa claro, uma vez mais, que para mudar de
dieta é necessário, em muitos casos, mudar de vida, o que nem sempre é
fácil, inclusive quando se está doente. Assim, pois, para se compreender
os comportamentos alimentares de uma população é indispensável
considerar as interações complexas entre alimentação, sociedade e cultura.
Por essa razão, faz falta, como indica Baudrillard, uma 'teoria' para o
consumo em geral, e para o consumo alimentar em particular, que possa
reintegrar os dados quantitativos em uma lógica das significações:

O que deve ser questionado não são os coeficientes, mas sim a ruptura
epistemológica que faz passar de uma definição do consumo em termos de
balanço calórico, energético, em termos de gastos e de orçamentos
familiares (definição tranquilizadora, que permite racionalizar o consumo
em função da produtividade e tirar fáceis conclusões ideológicas sobre os
valores nomjnais das cifras) a uma definição formulada em termos de
estrutura social, de cálculo de sinais e de diferenças, em que o 'consumo
de bens materiais' signifique certa relação com o grupo, certa relação com

466
a cultura ... Em resumo: em que o consumo só adquira seu sentido em
relação estrutural com todos os demais co mport amentos sociais.
(Baudrillard, 1974a: 33)

Por fim, com este livro pretendemos, por um lado, abordar as


contribuições da antropologia social para uma melhor compreensão do
fenômeno alimentar. E, por outro, estabelecer algumas pontes que
permitam levar 'o cultural' para as ciências mais dedicadas aos
determinismos da natureza e da biologia, como as ciências biomédicas,
que parecem ser as detentoras do monopólio sobre o "conhecimento
alimentar".

467
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Supcl'llll'l'' l·n . \ntr• 'l'"I' 1gía Sllcial
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der \l·cul·il t< 'ct1a. l ' ni1n,itl· Jl·
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'\al·tlln;tl Je ( ·1l·m·1a' \kJil'it' 1
'\utnl·i1 •n Sal1;1d11r /uhiran ( l'\'\S/.
< 1J<1Jl· J., \k\ll'•'). Sua li1Ji1;1 Jl·
1111l·'11l!al·a11 ll'lll 'l lk,c11111h iJ11 l·n1
t"rn" J11 l·,tud" "'l'll'l'Uitural J;i
;tli111cntac;111. 'auJe l' guJlT• 1.
Os autores deste livro. Jesús Contreras e Mabel Gracia. apre-
sentam uma das melhores obras atuais sobre antropologia
social da alimentação. Estudam os que comem. escutam essas
pessoas, observam seus modos de viver e buscam compreender
os significados subjetivos que envolvem o comer no mundo da
vida cotidiana. É um escrito belíssimo. sensível e denso. Exce-
lente para os profissionais que se preocupam com os processos
da cultura alimentar. suas estruturas cognitivas e simbólicas.
Tratam a alimentação não como um conjunto de produtos die-
téticos. mas como um complexo sistema de signos. imagens.
comportamentos. hábitos. práticas. crenças. valores e história.
O leitor inevitavelmente se sente aproximado desse tema
humano e pode se configurar como um personagem que também
sente e quer significar sua comida compreendendo-a como um
rito sociocultural e intersubjetivo entre seus semelhantes.

Mlllia do Carmo Soares de Freitas


Nutricioni~ta. profc~~ora a~~ociaua uo Departamento
uc Nutril:üo ua Univer~iuauc Fcucral ua Bahia

.li~li!Ilil l l ~ li~ li~llll

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