You are on page 1of 22
A nacdo na América espanhola: 4 questdo das origens Frangois-XNavier Guerra Centre de Recherches en Histoire de l'Amérique Latine et du Monde Ibérique, Université de Paris I (Panthéon - Sorbonne) Refletir sobre a nagio na América espanhola é se avencurar num vasto campo de pesquisas, nao s6 pelo ntimero de paises envolvidos — dezenove, contando Porto Rico ~ mas pela complexidade do processo de construgio na- cional em sociedades bem diferentes ¢ heterogéneas. Ja que este texto nfo pretende esgotar 0 tema, centraremos nossa reflexo sobre as origens das “na ges” hispano-americanas, Esta escolha no corresponde somente ao lugar pri- vilegiado que as origens ocupam na elaboragio de qualquer imagindrio nacio- val, mas também a uma das especficidades mais marcantes destes Estados, “que éa de cerem saido de um tnico conjunto politico, a Monarquia hispanica,, Retomar a questéo das origens é, entretanto, avancar num terreno dificil, pois as interpretagGes e mitos elaborados por quase dois séculos de construgio nacional sio impregnantes. O nascimento das “nacdes” hispano-americanas evoca constantemente para os ndo-especialistas e, « fortiori, para.a imensa mai- oria da populagio destes paises imagens e termos vagos, @SOIERAREIBAGA “Aacional, nacionalismo, colénias, descolonizacio, paises novos. Esses tracos dos grandes debates policicos do passado americano, fragmentos de constru- gies historiogréficas, empréstimos feitos & problematica nacional de outros continentes, transformaram-se em lugares-comuns propicios a codo tipo de ambigilidades e a todos os anacronismos. Os mais recentes destes lugares-comuns nfo sio menos duvidosos. Associ- at, por exemp|o iA eTe aTA SE cas aiea LA UERCSISNTSGD) concepgao, que se desenvolveu apés a I] Guerra Mundial, ligada a visio tercei- rormundista de América Latina, (@SHIESIRINERS: Ge iOOnEESERSCIIST- 0, pois a palavra “coldnia”, empregada as vezes pelos protagonistas da inds- (GenclenciagirevestineseTRENUMMSENEIGOTMUEREREENING© se pode comparar a descolonizagio contemporinea, na qual os povos subjugados pela Europa se ndentes de liberam de sua tucela, com uma independéncia realizada por des europeus. Se € preciso procurar uma comparagio pertinente, ¢ em direcio aos Estados Unidos que se deve voltar, marcando porém as diferencas ~ nume: sas — que separam a América britinica da América espanhola, canto pelo card. ter multiéenico desta, quanto pelo préprio desenrolar do processo de indepen- dénciz, Como os Estados Unidos, os Estados hispano-americanos sio paises ‘péin criou pouca a pouco no Nevo Mundo, Fsscr eves Estados, de alguna maneira, herdeiros dos antigos "Estados" indigenas € retomar ingenuamente os temas da retérica independentista para justificar a separagdo com a Europa € exaltar sua nova existéncia por uma antiguidade gloriosa © mesmo se aplica aos termos de “emancipacéo nacional” € “nacionalis- mo”, ainda muito utilizados nas hist6rias nacionais dos paises lacino-america- nos. Gragas a estas expressdes, nés nos achamos em terreno conhecido: o da “questio nacional” da Europa do século XIX. SQQUNGSRUNSGUED Esta versio to evidence e familiar apresenca problemas consideraveis. O G@Buriosas nacionalidades, estas nacionalidades mudas.' América espanhola é um verdadeiro mosaico de grupos deste tipo, mas ne- nhuma “nagio” hispano-americana jamais pretendeu se idencificar com qual- quer um deles. Até porque, depRisideer@stséenlosdewidaremmmconsummicadas “estes grupos se encontravam entrelagados, profundamente miscigenados ¢ partilhavam em grau bem elevado a mesma religido € a mesma leskade policica Os fundadores dos novos Estados, os construtores das novas nacdes sio todos de origem européia e tém em comum tudo que, além disso, consticui a nacionalidade: a mesma origem ibérica, a mesma lingua, a mesma religido, a mesma cultura, as mesmas tradi¢des politicas e adminiscrativas. $6 0 lugar de nascimento e as identidades culturais em formagio os diferenciam dos euro- peus que estavam do outro lado do Atlintico. Mesmo se estes tiltimos ele- mentos serviram de fundamento 4 edificacdo de novas nagdes, parece excessivo 10 atribuir-lhes o valor de uma nacionalidade. © problema da América Latina ndo €o das nacionalidades diferentes se constituindo em Estados, 2505R nica, nagies separadas e diferentes Conseqiiéncia légica dessa extraordindria homogeneidade culeural da Mo- narquia hispanica: as “nagdes” que nés conhecemos hoje raramente correspon- dem as que nasceram na época da independéncia. Estas tiveram existéncia efémera e, por sua vez, se fragmentaram, arrastadas por um movimento cen- trifugo que colocou em perigo a existéncia de nacdes, como a Argentina ou 0 México, que nos parecem agora os mais estabelecidos. Se uma certa nacionali- s novos Estados? dade estava na base da nacio, como explicar a friabilidade di O carater teleolégico desta interpretagio € evidente; ele repousa sobre uma confusio semantica entre um dos sentidos politicos do temo “nagio" — ser um Estado soberano — e de um dos seus sentidos culturais — ser uma comunidade humana dotada de uma identidade singular. S6 a necessidade imperiosa de con- solidar paises instdveis e de conformé-los ao modelo de Estado-nacao que triun- fava encio na Europa explica que os autores da bistéria pétria (a historia de cada uma das “nagées” latino-americanas) tenham se esforgado a fazer da indepen- déncia 0 coroamento, por assim dizer, natural e inelutavel da preexisténcia da no.“ NCTE SETS ST SPN, ponto de parcida. A independéncia precede tanto a nago como o nacionalismo. Isto quer dizer que os novos Estados no se apdiam sobre qualquer identi- dade coletiva prévia? Seria absurdo pretender tal coisa. COGSTISESSIEMAIED “novos Estados, se elas bastavam para explicar a independéncia, © desmorona- mento do Império russo-soviético, ao qual nés assistimos, mostra bem que a desintegragio de um conjunto politico multicomunitério pode nao ter ori- gem nas reivindicagées destas comunidades — de existéncia aliés constance- mente incerta — mas numa crise que afeta primeiro 0 centro do império, poe em causa sua estrutura politica global e acaba por provocar numa tiltima fase sua implosio. E nesta ética — a ruptura de um conjunto politico multicomunitério, da qual 0 século XX nos oferece outros exemplos*— que convém analisar a inde- pendéncia da América espanhola. (pReisOuenilcOnsee]leiicial/eXanninaipe> -meiro a estrucura politica da Monarquia hispinica e os diferentes tipos de pot que, como e em nome de quem a porcio americana da Monarquia se enfim, de compreender separa da “metrdpole” e adora esta nova forma de existir que é a nagio moder- na. Esta é, alids, insepardvel deste conjunto de idéias, de imagindrios € de comportamentos que constituem a modernidade. @EAaACaOMNOGeEaNaOID G@emunidadeppolitien Modelo em dois sentidos. Em primeiro lugar, como arquétipo, como alguma coisa de ordem ideal, servindo de referencia ao pen: samento ¢ & ago em tentativas sempre inacabadas de inscrevé-la no real. Em segundo lugar, como um conjunto complexo de elementos ligados entre si— em nosso caso, como um combinatério inédito de idéias, imaginérios e valo- tes, e portanto de comportamentos ~ sobre a maneira de conceber uma cole- tividade humana: sua estrutura intima, 0 laco social, o fundamento da obri- gacio politica, sua relacdo com a historia, seus direitos Identidades de antigo regime (GEBARUBAADE la cem uma escrucura ainda mais complexa que os Estados europeus da mesma época. Aos grupos existentes nestas sociedades — sejam formais, de cardter territorial (reinos, provincias, cidades, freguesias) ou pes- soais (ordens, todo tipo de corporagio) ou informais (lagos de parentesco, de clientela ou de interesses) — em duas “repiblicas” (a dos espanhéis ¢ a dos indios) e de miltiplas distingées menos formalizadas, fundamentadas sobre o local de nascimento (crea/fos’ € _Peninsulares) e sobre a mestigagem (mestigos de condigio incerta). Mesmo que esta multiplicidade de grupos explique o caréter complexo dos conflicos da independéncia — com freqiiéncia uma guerra de todos con- tra todos ~ a dificuldade de construir, em seguida, a nagio moderna, por natureza tendencialmente homogénea, nem todos participaram num mes mo nivel desta dltima empreitada, Hoje em dia existe um acordo quase geral para privilegiar, de um lado, seja a consciéncia creolla e a identidade americana, sejam as identidades que foram elaboradas em diferentes regides 12 durante a época colonial ¢, de outro lado, a for nagiio de proco-Esta Jos, quer dizer, de espacos de poder relativamente auténomos criados pelas institui- da Monarquia. (QOSaMaURSDOEOaeeneD gées € divisdes administrativa ie a ‘Em parte somente, pois estas abordagens tendem a 36 considerar um tipo de identidade ~ cultural ou politica ~ ou a considerar apenas cectos niveis idencitarios, negligenciando as miiltiplas filiagdes que sfio a regra em toda sociedade ¢ o cardter hierarquizado que estas idenc des tém nas sociedades de antigo regime Sea identidade remete sempre ao que um grupo considera ser € ao que, portanto, 0 torna diferente dos outros, nés podemos consideré-la em dois re- gistros diferences: o(RESISEROIBBUBIGBE- pertencer a uma coletividade de condi- Gio politica reconhecida e possuindo um territério, insticuigdes € governo pré- prio, ¢ 0 registro culcural — partilhar um conjunto de representagées coletivas sobre as relagdes do grupo com 0 solo, a histéria, a provincia, seus vizinhos ESteSHLOIS EI POSUENCEHE MEMO MOCOERSERBI, pois podem exist for- tes identidades culcurais que, como a “americanidade”, no possuem corres- pondéncia politica, ¢ idencidades polfticas extremamente igorosas, como as de Caracas, Buenos Aires, atores principais da independéncia, fundadas sobre diferencas culturais bem cénues. DEVEESeWent@OyCOnsiCleraneOTESMIONERD 08 dois tipos de identidade, suas concordancias ¢ divergéncias ¢ seu encadea- ‘mento naquilo que aparece como uma pirdmide de identidades superpostas. F como a Monarquia hispnica é antes de tudo uma arquitecura politica com- plexa, sio as identidades politicas que nos servirio como fio condutor. Na base de toda a escrucura politica americana, encontramos a cidade prin- cipal & frente, como centro de poder de uma regio. Trata-se da transposi¢io americana de um dos aspectos mais originais da estrucura territorial da Castilha dos comegos da Idade Moderna: a existéncia de grandes municipios, verdadei- ros Senhorios coletivos ex rcendo sua jurisdigao sobre um conjunto de cidades ealdeias “sujeitas". A fundacio de cidades foi, desde o principio, insepardvel da Conquista, pois a cidade era para os conquistadores saidos do mundo medi- terrfineo o quadro ideal da vida em sociedade e 0 modelo primeico de organi- zagio politica. Sendo a Conquista, no essencial, uma iniciativa privada, em Fangio dos contratos passados entre os conquistadores ¢ 0 rei, entende-se porque as cidades precederam mesmo a organizacéo estacal. Quando a Coroa, ntima nabs Ue algunas grandes|familias; mas continuam sendo quase até o fim do século XVIII a base de toda organizacio politica da América espanhola, além de representar o ideal de uma cidade aucogovernada. A estas cidades ¢ povoa- dos “espanhéis” juntaram-se logo seus homdlogos “indios”, pois a Coroa se esforca com sucesso em estender as sociedades indigenas 0 modelo municipal castelhano. sio uma comunidade policica tendencialmence completa, Nalpequena NEED GERM _cempo as facahas dos conquistadores e a valentin de seus adversérios No fim do século XVIII, somente dois reinos americanos podiam ser compa- rados, de acordo com todos estes critétios, a0s reinos europeus: a Nova Espanha e o Chile. O Peru, de identidade precoce e elaborada, inclufa regides bem diferentes para poder manter por muito tempo uma unidade de governo. Nos dois novos vice-reinos que foram erguidos no seu interior, a Nova Granada — como reino de Quito — em 1739, ¢ o Rio da Prata — como o Alto Peru — em 1776, 0 reino era apenas nominal ou mesmo inexiscente. (€calapprovincinineaosimpoMEAMRENAMAMMesieMDrnaMes. Aquilo que se chara de “provincias” na América espanhola siio os espacos politicos das cidades princi- pais, ou encio circunscrigdes administrativas onde os representantes do rei exer- cem sua autoridade; trata-se de circunscrigdes muito varidveis no tempo para que possam servir de base sdlida a uma identidade bem-estabelecida. Elemento complementar da singularidade americana, a representagio politica inerente & qualidade de cidade e reino nao passa pela existéncia de instituigdes representa- (Gepsepeumizempempcortess Mas 2 Coroa sempre evitou que se constituisse na América este contrapoder que ela combacia na Europa. Nao somence ela nunca convocou as cortes na América, como também munca os deputados americanos assistiram as imponentes cortes castelhanas sob os Habsburgos, ou as fracas cor- tes espanholas sob 0s Bourbons. O tinico mecanismo de representagio formal que foi praticado, as adverténcias de diferentes corpos ao rei ¢ as negociacBes subseqiientes, apenas reforga o papel dos mais importantes entre eles, as cidades capitais, 4 frente de suas provincias ou de seus reinos. Arvora-se 0 estandarte real, dizendo Castela, Nova Espanha, Guanaxnato por nos- so senbor Fernando VS CEASA ACTOR CSTD ‘EinoNNovaTSpaNlayaTedadeN(GuanaxuarOyW!sce modo de conceber a monarquia continua extremamente vivo até a independéncia. Isto apesar dos esforcgos dos Bourbons no século XVIII para criar “um corpo unido de as nagio”, ou seja, para homogeneizar a monarquia lucando contra os privilé- gios dos corpos e contra o satis particular dos reinos. Essa redugo & unida- de, vitoriosa para uma boa parte da Espanha peninsular, fracassa nas {ndias ee ie = Essa visio implicava também a sobrevivéncia de uma concepcao pré-abso- lucista de poder. AGIEGHERIED COS IRCHiCos imioderios/Ueliinalsoberniaianit. 16 relacdo bilateral feita de direitos ¢ de deveres recfprocos, 0 que trazina idéia de uma soberania compartilhada’e a limitagdo do poder mondrquico pelos direi- tos dos reinos ¢ pelos privilégios dos individuos e dos corpos. @UNaON2S BED gxistequnnsraUmceniclentidaeeSUPIEMEAGRGUE apesar de informal, Gp deixa de se revestir de uma grande importancia: ser nascido na América. Esta identidade, essencial para as relagdes com a Espanha peninsular, se manifestou de diferentes maneiras depois da Conquista. EES2 ieee ESTES SOSIpPMbbicosMOSEUSFEMOSN que significava que os reinos das {ndias formas- sem uma categoria particular e distinca no interior da Coroa de Castela. A reivindicagio encontrava fundamento na singularidade geogréfica ¢ humana das Indias, se exprimindo cada vez mais por um corpo Legislativo e insticui- gGes especificas e dando lugar a pedidos constantes de respeito de “foros ¢ privilégios” dos reinos das [ndias e de seus habitantes. Essa diferenciagio se vé reforgada no século XVIII, pela nova maneira que as elites peninsulares tém de considerar os reinos provincias americanos: elas os tomam como “colénias", quer dizer, por tertitérios que existem apenas para o beneficio da metrépole que, implicitamente, sio desprovidos de direitos politi- cos préprios. ‘95 outros reinos, mas de uma metrépole, a Espanha peninsular. Mesrsa que este vocdbulo nao tenha sido utilizado nos documentos oficiais, isto no impede que ele seja ressentido como uma ofensa pelos calles, orgulhosos de sua condicao de espanhdis € dos privilégios que mereceram por seus servicos ao rei, quando da Conquista. A partir da década de 1770, essa distingio adquire, enfim, um contetido culcural, pela aparigo do que se poderia chamar de americanidade. Partilhada em alguns aspectos pelos colonos britdnicos da América do Norte", esta nova identidade é uma resposta A visio pejorativa que a ciéncia européia dava do Novo Mundo ¢ de seus habitances na época das Luzes. GSCGinTaRInEIOTES (GeimaaOMAAAMAUASMILoD O Novo Mundo é concebido como um mundo novo, preservado pela Providéncia a principio por impiedade do des- potismo europe. Na América espanhola, a nova identidade comporta, além do mais, uma outra maneira de pensar as relagdes creollos-ind{genas. (UD -quaisquer que seam suas origens étnicas, sic americanos pelo fato de terem_ (GESGAOESHOMAESMIOBOIOVE ssa unificacio, obra dos creo/loz, mantém-se po- rém em grande parte rerérica, pois retine numa s6 identidade os indigenas e os evcllor Ora, 0 status superior que estes Gltimos gozam na sociedade ver pre- _cisamente da condigio de serem espanhéis, descendentes dos que conquista- ‘am ¢ povoaram as Indias em detrimento cas populagdes indigenas. Mesmo essas diferenciagdes nao tendo, nas vésperas da independéncia, a forca desintegradora que lhes atribufram diversos autores, verifica-se que as varias maneiras de formular a distin 0 entre os espanhdis da Espanha € os da América sio reveladoras de uma crescente especificidade america- na Uma singularidade que os eveol/os expressarao por sua vez, de acordo Porém, na véspera da crise de 1808, a unidade da Monarquia hispanica ainda é considerdvel e 0 pertencimento a esta continua como identidade su- prema e indiscutivel. Trata-se de uma identidade muito forte e fundada sobre uma extraordingria comunidade de tragos culcurais: a lingua, 0 castelhano — para a populacéo oella e a mestiga e para uma parte crescente da populagio indigena —, uma literatura ¢ movimentos artisticos partilhados; a religido, o catolicismo, sem minorias religiosas significacivas; ¢, para os creollos, a memé- ria de seus lugares de origem na Peninsula Ibérica e seus lacos familiares com 0s peninsulares que reforcam um fluxo continuo de imigrances pelo juramento de fidelidade e que fazem dele o centro de uniao de Estados povos bem diversos. Essa identidade politica é reforcada para urna boa parte da populacio e apesar da secularizagio dos fandamentos do poder," por uma uni dade religiosa que se enraiza em valores da antiga Monarquia catdlica. A Provi- déncia tinha escolhido @ Monarquia hispanica para defender a Cristandade con- ‘ra seus inimigos internos e externos e para expandir a (6. @QUG@EN@STCaONENS @asepariveldamclesdoRMreligi@opA ceproducao da visio providencialista da mo- narquia, caracteristica dos séculos XVI e XVII, é considerével na América, nfo somente por causa do maior tradicionalismo desta, mas porque, em tiltima ins- tancia, ela legitima, inclusive pelos indios, a possessio da América pela Es- pasha. Daj a dificuldade com que logo vao se deparar os fundadores das novas “nagGes: como ser, ao mesmo tempo, independente, republicano e catdlico? Cum. ligar entre elas comunidades cuja unidade era até entio assegurada por lacos verticais com 0 monarca? Como assentar a fidelidade & nagdo moderna, por esséncia secular, sobre um imagindrio que privilegiava os fundamentos religio- sos da obrigagio politica? Desafios e dilemas da identidade na época revoluciondria e oporem e se recomporem de acordo com as conjuncuras politicas de uma crise imprevisivel ¢ inédita. | GoseBonaparte, A abdicacio, unanimemente rejeitada pelos americanos e pe- ninsulares, abre caminho a uma revolugio que o tradicionalismo da monar- quia no conseguiu pressentir tio proxi (sobre anecessicace de dar umanovaConstituigao imonarquia: f ent3o que a nado irrompe no cendrio como referencia central ¢ incontornével do discurso politico. E levando com ela estas outras figuras identitdrias"®— patria, povo, reino ~ catregadas, como ela, de todas as ambigiiidades de um imaginario politico em plena mutagio. Da dificuldade de pensar a monarquia em termos de nagdo moderna nascera a implosio do mundo hispanico. Coneuco, nem 0 processo revolucionério nem o da redefinigio de identida- (@eSSAONINEARESOMISIMBIEs. Numa primeira etapa, assiste-se a uma explosio de pacriotismo onde espanhéis e americanos rivalizam, na ligagio & “nagio espanhola”, identificando esta ao conjunto da monarquia. Contrariamente ao sentido restrito que logo Ihe serd atribuido na América, @(BACEa@eSea SES entice (Gosmpinclusivenosyindiioss Trara-se de um patriotismo cipico dos Estados de antigo regime europeu compostos geralmente por povos diferentes," um pa- triotismo, no nosso caso, centrado nos valores que asseguraram durante séculos a unidade da Monarquia hispanica: a fidelidade dos “vassalos” com o senhor, a defesa da fé, 0 providencialismo religioso a conservacio de suas proprias leis ¢ 19 costumes. A nacao-pétria que se invoca € uma realidade ao mesmo tempo poli- tica, moral ¢ espirieual, que ulcrapassa largamente uma entidade geogrifica par- ticular; como disse com felicidade um americano: Sim, meus jovens, a patria, 2 amavel patria no é ourra coisa que a doce uniio que liga um cidadio a outro pelos laos indissoliveis de um mesmo solo, a mesma lingua, uma religiio imaculada, um gover- no, um Rei, um corpo, um espirito, uma fé, uma esperanga, uma caridade, um batismo ¢ Um Deus, pai universal de todos...” do desaparecimento do rei e das hesitagées, ou mesmo da colaboracio das autoridades monéequicas com o usurpador, TTT (Gempsolidariedadenossiemaosqpeninsulares, Ninguém age ou fala em nome de um Vice-Reino, de um governo, de uma provincia ou de uma intendén- cia, mas em nome dos “povos” de um reino, de uma provincia ou de uma cidade. Contrariamente & visio administrativa e unitéria do absolutismo, & 0 velho imagindrio pré-absolurista de uma monarquia plural que ressurge_ (GhGOOMPEEP. Logo, em setembro de 1808, se constitui na Espanha um poder central provisério, a Junta Central: s6 as juntas espanholas que correspondem aos antigos reinos ~ mais Madri como capital — parcicipam de sua formagao e sio representadas. Esta distorgio entre unanimidade moral da “nagio espanhola” ¢ sua es- trucura politica fragmentada, que tinha sido gerada durante séculos pelo carater pessoal e vertical dos lagos entre os “povos” e o rei, transforma-se agora numa contradiio maior. @lagminayarunidadesdasmonarquiaynarmedy (GLIRUTRTEPRSETAGAONPOMICATLANEANGAY As proprias palaveas manifes- tam esta tensdo: com a nacio ¢ a patria, sempre empregadas no singular, coexistindo as duplas reino-reinos e povo-povos. Sem que ninguém tenha proposto, os acontecimentos de 1808 colocaram fim a0 absolutismo, AEB @GIEIROMAGIPOWS. Os termos empregados sio miiltiplos e varidveis, mas o 20 que eles designam ¢ clato: a sociedad. @3S0@33SN0 SSS SSSR E sea legicimidade s6 podia surgir da sociedade, a representagao desta socie- dade tornava-se uma necessidade urgente. ee questdes consi- derdveis, mesmo quando vista, como é 0 caso nesta primeira época, de uma 6tica tradicional. Através de dois problemas paralelos ~odireito dos america- nos em formar juntas de governo semelhantes as da Espanha e sua participacio nas instituigdes provisdrias que substituem 0 rei no centro da monarquia ~, ela a bem pritica a questao do states politica da/Amética ¢ A primeira reivindicagio se choca desde 0 comego com a recusa radical das colocava de uma di autoridades provisérias peninsulates ¢ de seus representances na América. O pro- cesso de reuniio de uma Junta Geral — as Cortes — da Nova Espanha foi interrom- pido, de forma brucal, desde setembro de 1808, pelo golpe de Estado dos peninsu- lares do México. Na América do Sul, as tentativas de formagio de juntas auténo- mas foram duramente reprimidas, mesmo pelus armas quando necessicio. QIU SPEAR A América de governances que buscassem na soberania do povo uma nova legicimidade. O a privada qualificativo “despético”, com 0 qual os americanos logo qualificario as atiudes das autoridades espanholas, encontra aqui seu principal fundamento O segundo problema, mesmo recebendo um tratamento mais matizado, chega entretanto a resultados andlogos, pois as declaragoes Wepetidas’ Ue igual dade en 1809, a convocagio dos cabildes das principais cidades americanas para eleger os representantes & Junta central representa, deste ponto de vista, um marco essen- cial. Pela primeira vez, os reinos e provincias das Indias so chamados a enviar deputados & mais alta instincia politica da monarquia e se afirma de uma ma- neira solene que: 95 vastos ¢ preciosos dominios que a Espanha possuii nas Indias nao tamente Colénias ou Feitorias como as de outras Nagdes, mas uma parte integrante da Monarquia espanhola."* sio Mas esse reconhecimento de sua igualdade politica com os reinos europeus continua em grande parte verbal, em relacio ao ntimero de representantes atri- buidos & América — 9 contra 26 da peninsula — e também ao uso, num docu- mento solene, mesmo no modo negativo, da palavra “colénias”, que os ameri- canos abominam. peninsular ~ mas de seus lagos com 0 tei. # nesse sentido que eles reivindicam sua condigio de espanhdi Nés somos os descendentes daqueles que derramaram seu sangue para adquirir novos dominios & Coroa da Espanha (..). E por isso que nds somos tio espanhéis quanto os descendentes do rei Peldgio ¢ merecemos as mestnas distingSes, privilégios e precrogativas que o resto da nagio."” A afirmagio de uma mesma identidade espanhola acompanha uma visio dualista da Monarquia formada : (eerie reese TERTARREITOSTRAGTMMONRESPEILAMOSPAS milciplas e ancigas queixas sobre a igualdade entre creol/as ¢ peninsulares se enconcram agora unificadas na reivindicacao dos direitos da Amética, A partir de 1810, aumenta o fosso entre os dois continentes. A ofensiva francesa derrota os patriotas espanhéis, provoca a queda da Junta Central ea formagio, em Cadiz, assediada pelas tropes francesas, de um Conselho de Re- géncia de legitimidade incerta. A convocagiio urgente das Cortes s6 acribui provisoriamente & América 28 deputados, contra mais de 200 na Espanha peninsular. Diante desses acontecimentos, que fazem pensar em uma derrota definitiva da Espanha resistente ¢ mostram uma vez mais a posigio secundaria _que os governos provis6rios atribuern a0 Novo Mundo, a maioria das "cidaces: principais" da América do Sul coastituem, como na Espanha de 1808, suas: ca eae ‘A formagio dessas juntas nio significa ainda independéncia, como preten- pe mais tarde a mitologia “nacional” .@QgeOeuRehtes|dajepocaicontinuam -destinar a palavra “nagao” ao conjunto da Monarquia: a juntas se actibuem somente poderes tempordrios, assumindo provisoriamente a soberania na es- pera da constituigao de uma soberania tinica ¢ incontestével. Mas, apesar desta explicagao destinada a evitar anacronismos teleolégicos, (SEROUS aon @SHBARMES. A dispersio da soberania ¢ 0 nio-reconhecimento reciptoco de poderes provisdrios espanhéis americanos vio provocar uma guerra na Amé- rica: a0 mesmo tempo uma guerra Ela é também um conflito de lealdades rivais: uns se batem pelo rei, outros por sua patria. Esta deixa de remeter ao conjunto da Monarquia € 0 patriotis- 22 mo se debruga sobre a defesa ¢ exaltagio da América, em principio da pequena patria e em seguida, do reino, da cidade, da vila ou mesmo das freguesias dade policica flagrance, da qual eles sio objeto, (CeAARRTRUTTETOTATUAVORUESUANALEBEAVEAED” A mudanca vai mais longe e modifica a identidade mesma dos creo//os. GSS@SMESMOSMDENGUD Na “guerra de palavras” que acompanha todo conflito e mais ainda a guer- ra civil, os peninsulares vio utilizar uma linguagem que 36 tende a agravar 0 distanciamento das duas partes da Monarquia € enfraquecer os lagos com os americanos leais 4 Coroa, Para estes, a guerra nao é uma simples lura contra “vassalos infigis” mas uma nova conquista da América, o que equivale a identi- ficat os creallos com os povos conquistados. Uma conquista tida como vitoriosa por antecipacao por causa da inferioridade atribuida ao novo continente e seus habitantes. Retrucando o argumento, os insurretos assimilam, eles também, a guerra & Conquista, mas a desqualificam com todos os argumentos que a “le- genda negra" européia tinha utilizado contra a Espanha; eles chegam mesmo a se identificar com os povos conquistados recobrando a liberdade perdida. Mesmo sendo este argumento essencialmente retérico, sem ser empregado por todos, sua significacao ¢ clara: @]EUSEuea iO rallaideW eiedadelespannOle G Seja pela negacao dos “justos titulos” da Conquista ou pela justa revolta contra um governo despético, estava aberta a via para a proclamagio da inde- pendéncia nao somente diante dos governos provisérios peninsulares, mas tam- bém diante do rei 20 qual se havia prestado juramento pouco tempo antes Vitérias e incertezas da nagdo Paralelamente ao debate sobre a igualdade politica entre os dois continen- tes, 0 problema da representacio provocava, de igual modo, uma profunda mutagao no pensar a sociedade, a soberania, a autoridade. A longa evolucdo do pensamento europe nestes dominios vinha se juntar a nova maneira pela qual a Franga revolucionatia, tio préxima no tempo e no espaso, tinha formu- lado estas novas concepgées para dar nascimento A nagio moderna O centro dessa mutagio revolucionaria nfo se encontra, a0 contrario das interpretagées cldssicas, na América, mas na Espanha. Acrescente-se A sua participa mais incima as Luzes as circunstancias que so as suas insurreigdo: seu cardter de sede do poder central, 0 desaparecimento de fato da censura politica, a proliferagio da literatura patriécica ¢ a expansio das sociabilidades modernas. Pela Idgica mesma da crise, o imagindrio bem tra- dicional de 1808 cede lugar, em menos de dois anos, a uma visio moderna da na 2 Franga tinha obtido depois de um rude conflito com o soberano se faz em sua auséncia € em seu nome na Espanha. A transferéncia de soberania para a “nagio” € 0 ponto de parcida da revolugao hispanica. A principio, porém, a maioria das elites espanholas concebe essa transfe- réncia como proviséria e a nacio como um reino formado por diversos cor- pos cuja constituicdo politica foi forjada por uma longa histéria. Somence uma mifioria radical, os futuros liberais, pensa a nao como uma comuni- dade voluntéria, igualitéria e soberana, livre para definir sua propria Cons- tituigio e fonte de coda autoridade. Sio eles entretanto que, em favor do debate sobre a convocagio das Cortes, vio conseguir, gragas ao seu dominio da opiniao piiblica nascente, impor suas visdes Os argumentos utilizados sio muito diversos. A unanimidade de senti- mentos patriéticos dos espanhéis dos dois continentes, sem distingao de gru- pos ou de reinos, sua igual defesa do rei e da patria revelam o cardter iguali- tario da nagio. A fraqueza da Monarquia, manifesta na invasao francesa, acti buida a princfpio ao esquecimento no qual cairam todas as “leis fundamen- tais” do reino, é logo percebida como a conseqiténcia de um despotismo tio profundamente enraizado que s6 uma nova Constituigio poderia erradicar. Nao se trata mais de reformular a formagio histérica do reino, mas de criar uma sociedade nova, cujo edificio se apéia sobre as sdlidas fundagdes, do direico natural e culmina na mais perfeita harmonia do direito civil, arruinando assim o alcazar gético consteuido sobre o sofrimento e ignordncia de nossos ancestrais.” ‘{dadaosdiancedowovernoreriomonargs. A ptria passa. ser uma comunida- ae livre, a por leis que ela mesmo se outorgou: Quando no havia mais leis dirigidas 20 inceresse Belodos (..), quan- do todas as vontades, todas as intengGes e todos os esforcos no lugar & de convergir para um centro estavam sujeitos ao arbicrio de um sé (...), havia certo um pais, e pessoas, um conjunto de homens, mas nao havia Pitria.*" A unio da patria como pais ¢ a pattia como liberdade sera daf por diante um dos motores do patriotismo revolucionétio, especialmente na América AUHOVAROHCEDCOMAMACHORMUNIMERMISID As Cortes, que se retinem em Cadiz em sevembro, no contam com representantes dos corpos privilegiados mas s6 dos depucados "comuns" do Terceiro Estado, eleitos em niimero propor- cional & populagio por um suftégio quase universal. Desde sua primeira sessio, a vitéria da nacio moderna estava adquirida Os deputados que compaem este Congreso, e que representam a Na- gio espanhola, declaram que eles se constitufram em Cortes gerais ¢ extraordindias e que nelas reside a Soberania nacional." Segue-se a promulgacio de uma nova Constituigio em 1812 e, durante quatro anos, uma multidao de leis acabando com o antigo regime e fixando nos textos os princfpios de uma modernidade do tipo francés. Mas se a nagio, como comunidade humana de um novo tipo, se impée entio na Espanha e se transmite em seguida & América rebelada ¢ fiel 4 Mo- narquia, esta nova figura se adapta mal estrucura politica do mundo hispani- co. O grande problema nfo é reconhecer a soberania da nacdo, mas saber qual a comunidade politica deve ser transfigurada em nagio moderna. Na América insurgente 0 problema crucial é que a afirmacao da sobera- nia dos “povos” precede de muito a definicao da nagio. Sdo estes “povos”, as cidades capitais, que formaram juntas de governo e reassumiram a sobera- nia. Mesmo agindo como cabeca de suas respectivas provincias ou de seus teinos e procurando fazer reconhecer sua autoridade pelas outras cidades ou vilas, se cornportam de fato como cidades-estados, chegando, as vezes, a promulgar suas proprias constituigdes. E 0 caso de Nova Granada entre 1810- 1811 e do Rio da Praca, em seguida. Deste fato, mesmo se as Constituigies independentistas adocam muitos pontos da Constituigdo de Cadiz ou de Constituigdes francesas das quais ela se inspirou, aquelas se distinguem des- tas por aspectos muito reveladores da maneira diferente de como se coloca o problema da nago na América Na Constituicio de Cadiz os corpos se constituem da nago ¢ aparecem como realidades incontestaveis que no necessitam de justificativas prévias: As Cortes gerais ¢ extraordinérias da Nagao espanhola (...) decretama Constituicio politica seguinte pelo bom governo e correta adminis- tragio do Estado.” Hay As Cortes sio, no imagindrio comum do mundo hispanico, a represencacdo de todos os espanhéis dos dois hemisférios”, 0 que equivale a identificé-la com 0 como “a reuniai legitima e tradicional do reino. Jé a nagio, ela defini conjunto da Monarquia. Os constituintes de Cadiz se baseiam assim em reali- dades dotadas de uma legitimidade histérica que as dispensa, no momento, nao de outra definigo. E verdade que as Cortes reunidas em Cadi: dio, nem pela composigdo, nem pelo modo de eleicao, nem por seus poderes, uma res- tauracao das Cortes tradicionais. A nagio que elas ém em perspectiva nao é tampouco a nagio antiga, o reino, uma entidade histérica formada de ordens € de corpos diversos, mas uma nagio moderna saida de uma associacao voluncé- ria de individuos. Mas, apesar de todas as novidades, a Constituigio de Cadiz poderia reivindicar sua continuidade com o passado, ainda mais que ela insis- tiria em reconhecer Fernando VII como soberano. A situacio € rotalmente diversa na América insurgente: a rupeura com 0 passado € evidente. Em primeiro lugar, porque a negacao do lago com 0 gover- no central da Monarquia ~ com o Conselho de Regéncia ¢ as Cortes, inicial- mente, ¢ com o rei, depois de seu retorno em 1814 — equivalia & dissolucio dos lacos dos povos americanos entre eles, pois, até entio, sua unidade resulta- va nao de lacos horizontais mas verticais, Em segundo lugar, porque no exis- tiam na América instituigdes representativas do reino ou da provincia que teriam podido substituir imediatamente 0 monarca Mesmo se, de acordo com 0 imaginério politico tradicional, 0 primeiro reflexo dos insurgentes foi convocar uma Junta de cidades, depois um Con- gresso ou Cortes, faltavam os antecedentes € reinava uma grande incerteza quanto aos “povos” que deveriam participar dessa reunido. A Gnica realida- de politica definida na América eram as cidades principais com seus campos de jurisdigao: uma unidade politica de ordem superior s6 poderia surgir de sua aquiescéncia. A elaborago de uma Constituicao equivalia, estrita e nao retoricamente, a consteuir um corpo politico inédito. Esse proceso s6 poderia se apoiar sobre os “povos”, por pactos e negociagies (...) entre Estados ox corpos politicas.® Por isso, mesmo falando de uma maneira bem moderna do povo de tal ou qual regio, explicita-se imediatamente que 08 sujeitos que interferem na constituiggo de um “corpo de nagao” nao sdo os individuos, mas os Estados, as provincias ou os povos ~ de fato, as cidades. O “povo” no singular s6 aparece em um sentido concreto, como 0 povo urbano que manifestava sua vontade na formagio das Juntas, ou no sentido bem geral e retérico de fonte de legitimidade A tarefa era considerivel na medida que a fragmentagio da soberania nao se deteve no nivel das cidades capitais; a seu turno, as cidades, as vilas secundirias mesmo as povoagées reclamaram sua soberania¢ estavam constantemente em con- flito com as cidades capitais, A comparagio com a América briténica mostra até que ponto a auséncia, na América espanhola, de insticuighes representacivas do reino ou da provincia tornou dificil ¢ conflicuosa a formagao de Estados indepen- dentes. Nas treze coldnias, a existéncia secular de insticuigdes representativas, tan- co em nivel local quanto provincial, rornava mais ficil no somente a substituigio do rei mas 0 pacto fundador da nova nagio. Na América espanhola, apesar da necessidade reconhecida por todos da unio dos “povos”, sua realizacio sera no apenas dificil mas explosiva. A auséncia destes ancecedentes representativos acres- centavam-se as dificuldades de ruptura com 0 governo central, que resultavam, de um lado, da definigdo de novos sujeitos da soberania ¢, de outro, da necessidade de inventar novos sistemas para representar nfo somente os “povos", mas também o cidadao que a modernidade nascente propunha como base da nova legitimidade ‘A “nagio” seré entio, na América insurgente, o resultado de um pacto entre 08 “povos”. Resultado inédito e incerto, nfo podendo ser baseado em elementos culturais que definiriio mais tarde a “nacionalidade” na Europa. A tinica iden- tidade que estes “povos” tinham em comum era a identidade americana, bem operatoria na luca contra os peninsulares, mas evidencemence impocente para fundar uma “nagio americana” capaz de vencer a imensidade do espaco. A unidade da América espanhola, que Bolivar tentard realizar mais carde, s6 poderia ser uma utopia politica fundada sobre uma identidade americana que nfo correspondia a qualquer identidade politica concreta A dificuldade de construgéo nacional se via, aqui, acrescida pelo regime re- publicano adotado depois das declaragies de independéncia. Se esta escolha era explicével ¢ sem diivida inevitavel, a modernidade do regime era um facor suplementar de fragilidade politica da soberania absoluta do povo que ele com- portay: O povo continuava como uma referéncia abstrata 0 individuo-cidadao uma excegdo nas sociedades que continuavam a ser massivamente sociedades de antigo regime, formadas por corpos de todo tipo. A Constituigao de Cadiz apre- goava também a soberania de uma nacio de individuos-cidados, mas essa legi- timidade moderna coexistia de fato com a legitimidade histérica do rei que continuava a gozar de uma forca extraordinécia. Nesse sentido, a América fiel 8 Monarquia®® se encontrava em uma me- Ihor situasao, pois sua fidelidade & Coroa, por um tempo, a preserva da disso- lusio territorial. Mas aqui também 0 problema acaba por se colocar, pois as Cortes de Cadiz foram incapazes de dar uma solugio consticucional as aspira~ dos americanos, A igualdade de representagio foi quase adquirida depois de um longo combate dos deputados americanos nas Cortes, a excecio do direico de voro recusado aos negros ¢ mulatos. Mas as Cortes no souberam encontrar uma expresso institucional para a estrucura plural da Monarquia tal como a concebia o imaginario americano € a representagio dos “povos”, 0 que cornava, dai por diante, 0 regime republicano incontornave Os constituintes das Cortes de Cadiz sempre conceberam a nagio espa- nhola ~ a Monarquia — como um Estado unitério, Suas louvagdes as institui- Bes representativas dos antigos reinos foram puramente verbais. Nao somen- te ninguém defendia uma representagio € um governo particulares para os reinos ou provincias, como também existiram até lamentos diante da impos- sibilidade de se proceder a uma divisio “racional” do territério, inspirada na divisio da Franca em departamentos. © postulado da unicidade da nacio, preparado pela redugio absolucisca dos diferentes reinos peninsulares a um s6 reino dotado de Cortes tinicas, ¢ reforgado pela adogio do modelo revolucioné- rio francés, tinha triunfado radicalmente nas elites peninsulares Serd preciso esperar a segunda revolugao liberal espanhola, em 1820, € os progressos dos movimentos independentistas para que os deputados america- nos nas Cortes proponham o plano de uma Monarquia — composta pela Espanha ¢ pelos erés reinos americanos dotados de insticuicdes representativas proprias e de um poder executivo confiado aos trés infantes. O primeiro deveria englo- bar 0 México e a América Central; o segundo, a Nova Granada e Venezuela; 0 terceiro, enfim, os dois Peru, o Rio da Prata eo Chile. O que, em 1810 ou em 1811, poderia ter respondido as aspiragdes americanas de igualdade politica e a governos auténomos vinha muito tarde € se chocava com a concepgio de nagao unitaria dos peninsulares. As Cortes se recusaram mesmo a examinar o projeto. Pode-se dizer, como ressalva As Cortes, que esse sistema, vizinho do que se adotard mais tarde no império britdnico, ndo tinha entio qualquer precedente. Aorigem da nagio na América espanhola nfo € cultural, mas essencialmen- te politica. A nag&o serd fundada, como na Franca e na Espanha revolucionérias, sobre a unio das vontades. Mas, diferente da Franca e da Espanha peninsulares, nio se trata de vontades individuais, mas da vontade dos “povos”. Enquanto na Franga ou em Castela,*6a nova figura recobria uma velha nagao no sentido cul- cural do termo, na América, a identidade politica era muito mais rescrita que a identidade cultural. Foi apenas em regides como o México ou Chile, onde o 28 reino era jé uma realidade definida, que a nacio foi herdada, sem muitas cuptu- ras, do reino. Em outras partes, mesmo se inscrevendo em diversos espagos ad- ministrativos ¢ econédmicos preexistentes, a naco serd o resultado frdgil « em parte aleatdrio dos pactos entre os “povos”, numa primeira fase; ¢ numa segun- da, da unidade imposta aos “povos” pelos exércitos dos Libertadores Uma vez alcangado esse resultado, resta construir outros aspectos da nagio moderna: o politico, destruir a sociedade de corpos para obter indivfduos e crans- formar os “vassalos” em cidadaos; e 0 culeural, fazer com que todos partilhem uma meméria e um imaginério comuns, mesmo miticos.2” Uma adogio preco- ce, premacura sem diivida, do modelo nacional: eis ai a principal singularidade da América espanhola, conseqiiéncia da crise acidental que atinge o primeiro € mais homogéneo dos impérios europeus Tradugto Marco Morel Notas 1 Foi preciso entio, para respeitar o esquema da emancipagio nacional, eransformar as revoltas de antigo regime contra os “maus governos", como a dos Andes em 1781 1783, em movimentos precursores da independéncia 2. E claro que 0 jogo de causalidades externas ou intetnas € diferente no Império austro-hiingaro ou no Império otomano 3. Esca palavea designa na América espanhola 0s habi tidos como tal, nascides na Amética 4. Para abordagens recentes dos problemas da nagio na América Latina ver A. Annino, L. Castro Leivae F-X. Guerra (dir). Delos inperias.a las nacones. Ueran Toercaja, 1994, 620p. e E-X. Guerra e M. Quijada (dir), "imaginarla naciéa’,n" 2 de Cuadernos de Historia Latinuamericana, Mnster-Hambourg, AHILA, 288p. tes de origem européia, ou 1, Saragosse, 5. A Corea consegue igualmente impedir a constituisio, na América, destes senhorios, pessoais que, com os municipios, tinham partilhado a cerra e os homens dos reinos, ‘muculmanos conquistados. 6. Suplemento a la Gazeta de Mexico, 28 de dexembro de 1808, . XV, n" 147, p. 1.019. 7. A utilizagio massiva da palavra "vassalo” no momento da crise da Monarquia marca bem a persisténcia de um imagingrio antigo. 8. Mesmo em se cratando de princi ios conteatuais, nds preferimos reservar esta palavra para 0 contratualismo modern; erata-se aqui das relagies entre os cpu e suas aucorilades 9. Para esta maneira de conceber a soberania, vet A. Anaino, op. cit. cap. 8 10. B af que se encontra 0 fundamento das revoltas das quais ns falamos na nota 1 11, Muicos desses cemas foram bem destacados por Thomas Paine. 12. CE. D. Brading e L. Castro Leiva, Delos Imperia a las nacones, op. cit, cap. Le 5 13. Para um estudo preciso dos diversos sentidos de nagio e de pétria ver o excelente artigo de M. Quijada, "é Que nacién? Dindmicas y dicoromias de la nacién en el mun- do hispinico", em Imaginar la navn, op. cit. pp. 15-52. 14, Para este tipo de pattiotismo ver E. Hobsbawm, Nations ef nationaliomes depuis 1780, Gallimard, 1992, p. 67. 29 30 15. Diario de Mesien, «XL, 0° LS: 16. Real Orden, Sevilha, 22 de j 17. Camilo Torres, sna Junta Central de Expatiz... 1809, ed. facs-, Bogors, 1960. 18. As obras do abade de Prac sobre as colinias desempenham tum papel importante nesta muragio. 19. Catecim de doctrina civil por dom Andris de Muga Luzuriaga, Cadiz, 1810. 20, Semanario Patretiso, Madti, a’ IM, 15 de setembro de 1808, p. 56 21. Decreto das Cortes, 24 de setembro de 1810. 22. Constituci politica de ka Monarguia espaol, 19 de marco de 1812, preimbulo. 23. "Acta de Federacién de las Provincias Unidas de Ja Nueva Granada’, vembro de [$11 24. A adogio desse regime, proprio do pattiotismo revolucionario tinha sido facilitads pela exaltagio das vircudes e exemplos das repablicas antigas. Cortespondis, além do mais, a cidades-Estados que, no comeco, eram os principsis atores da independéncia Este regime eta ali, inevitavel, na medida que se rejeicava a soberania do rei da Espanha Seo regime monarquico era preferido, como imaginar um out rei que fosse 0 “senhor natural” do reino, pois a legitimidade do reina era antes de tudo histérica? 25. Bssencialmente: México, América Central ¢ Peru. 26. A Espanha peninsular do fim do século XVIII é de fato uma Castela “expandids Seri preciso esperar a seguada metade do século XIX para que a homoyencizacio institucional e cultural dos outros reinos provoque enere os que possuem uma Lingus ¢ tuma cultura proprias movimentos nacionalistas que resultardo em nossos dias na d, 1 de secembro de 1809, p. 298. ro de 1809, AHN, “Estado”, $4, D, 7 tn de Santa Bow la Supre oral le rena us, Representacn del cab 7 de no- reconstituigio sob oucras formas ~ as auconomias ~ da Espanha plural 27. CE. particularmente para esta construgdo, Ménoires ex derenir. Amérique fatine XVI ~ XX sige, Bordeaux, Maison des pays ibériques, 1994, 377 p.

You might also like