You are on page 1of 16
‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, $. Paulo, 212): 113-128, 2. sem. 1990 AS MULHERES NA POLITICA BRASILEIRA: 0S ANOS DE CHUMBO Marcelo Siqueira Ridenti* RESUMO: O artigo aponta a participacao politica diferenciada das mulheres brasi- Ieiras nos anos 60 ¢ inicio dos 70, a favor ou contra a ditadura militar. Sdo analisados da- dos estatfsticos sobre a participacéo feminina nas organizagdes politicas clandestinas de esquerda em geral, ¢ nos grupos guerrilheiros em particular. Esses contaram com a parti- Gipagio de varias mulheres, principalmente jovens intelectualizadas, ainda que em niimero muito inferior a participacéo masculina. A militancia feminina nas organizagbes de com- bate armado a ditadura, mesmo que ndo se revestisse de cardter especificamente feminista, foi um momento de avanco na liberagéo da mulher, especialmente se essa militincia for comparada com aquela das “mées-esposas-donas-de-casa” que se organizaram a favor do golpe de 1964, UNITERMOS: Brasil: mulheres, esquerda, anos 60, ditadura militar. Este artigo aborda a relacao das mulheres brasileiras com a politica nos anos 60 in{cio dos 70, particularmente das mulheres de esquerda, com destaque para a participa~ éo feminina nos grupos que pegaram em armas no combate ao regime militar, instaura * Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara. 114 RIDENTI, Marcelo Siqueira, As mulheres na politica brasileira: os anos de chumbo. Tempo Social; Rey. Sociol. USP, S. Paulo, 2(2): 113-128, 2.sem. 1990. Na anélise quantitativa da presenga feminina nas organizagées de esquerda, foram utilizados dados estatisticos extraidos do Projeto Brasil: Nunca Mais (BNM), que, co- mo se sabe, é um longo estudo sobre a oposicao ao regime militar no Brasil nas décadas de 60 e 70, especialmente sobre a repressio governamental & oposicao, tomando como fonte principal de pesquisa 695 processos movidos pelo regime militar contra seus ad- versérios, Os quadros estatfsticos apresentados neste ensaio séo fruto de informacoes retiradas do BNM, as quais retrabalhamos por computador, pelo sistema SAS. O Qua- dro n° | oferece um painel geral sobre o ntimero de homens e mulheres processados por vinculagdo com varias organizacées de esquerda, Verifica-se/que clas eram compostas por ampla maioria masculina nos anos 60 e 70, ainda que algumas organizacées contas- ‘sem com razodvel mimero ou percentagem de mulheres. No total de 4124 processados das esquerdas, 3464 eram homens (84,0%). J4 08 grupos armados urbanos no seu con- junto tiveram percentagem um pouco mais significativa de mulheres na sua composicao: 18,3%. Os grupos nacionalistas, em geral, contaram com poucas mulheres em suas filei- ras, antes ou depois de 1964, fossem eles armados ou nao: nenhuma mulher foi proces- sada por ligacéo com os Grupos de 11 em 1964, tampouco houve acusadas de pertence- rem a organizagées armadas nacionalistas como MNR, MR-21 (0 MAR teve apenas uma processada, e a RAN constituiu-se em excecdo significativa dentre os grupos naciona- listas, pois teve 13 mulheres denunciadas, 34,2% do total; entretanto, a RAN nao era um grupo voltado exclusiva ou principalmente para acées armadas). A presenca femini- na era insignificante em organizagées tipicamente nordestinas: somados os dados refe- rentes A FLNe e ao PCR, houve apenas uma mulher dentre 43 processados. lambém no PCB, em 1964 ou depois, poucas mulheres estavam presentes, a julgar pelo niimero de processadas, apenas 32, ou 4,7% do total de 687 (ver Quadro n° 1), Na grande maioria dos grupos armados urbanos (ver Anexo 1), 0 percentual de mulheres denunciadas ficou entre 15 a 20% do total. Pode parecer pouco, mas no tan- to, se forem levados em conta alguns elementos. Em primeiro lugar, as mulheres ocupa- ‘vam posig6es submissas na politica € a Sociedade brasileira, pelo menos até o final dos anos 60. A’norma era a no participacdo das mulheres na politica, exceto para reafirmar seus lugares de “maes-esposas-donas-de-casa’”, como ocorreu com os movimentos fe- imininos que apoiaram 0 golpe militar de 1964. A média de 18% de mulheres nos grupos armados reflete um progresso na liberacdo feminina no final da década de 60, quando muitas mulheres tomavam parte nas lutas politicas, para questionar a ordem estabelecida em todos os niveis, ainda que, entéo, suas reivindicagGes ndo tivessem explicitamente um cardter “feminista” propriamente dito, que ganharia corpo s6 nos anos 70 ¢ 80, em outra conjuntura. Nao obstante, a participaco feminina nas esquerdas armadas era um avanco para a ruptura do esteredtipo da mulher restrita ao espaco privado e doméstico, ‘enquanto mae, esposa, irma e dona-de-casa, que vive em funco do mundo masculino. Em segundo lugar, a opcéo dos grupos guerrilheiros implicava uma luta militar que, RIDENTI, Marcelo Siqueira. As mulheres na politica brasileira: os anos de chumbo. Tempo Social; 115 Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 212): 113-128, 2.sem. 1990. modo que é até surpreen- dente a presenca ni relativamente significativa do chamado “‘sexo frégil” em ganizagGes tipicamente militaristas, (24,19). Em terceiro lugar, a participacéo feminina nos grupos armados era percentual- mente mais clevada que nas esquerdas tradicionais, como revelam os dados sobre as mulheres processadas por integracdo ao PCB, antes € apés 1964 (cerca de 5%). Outros dados confirmam tal asserco, por exemplo, Leéncio Rodrigues observou, em um artigo sobre 0 PCB, que eram mulheres 9,3% dos delegados ao 1V Congresso do PCB, reali- zado em Sao Paulo, em novembro de 1954 (Rodrigues, 1981, p. 420). Cabe considerar ainda que, embora 0 total percentual de 18,3% de mulheres nos grupos armados estives- se bem abaixo da proporcdo de mulheres no total da populacdo brasileira em 1970 — que chegava a 50,3%, pelos dados do censo demogrifico — a participacdo relativa feminina nas organizagées de esquerda armada era préxima do percentual de mulheres na compo- sigao da populago economicamente ativa no Brasil em 1970, em tomo de 21% (IBGE, 1970). Considerando os dados estatisticos sobre a ocupagéo das mulheres processadas ju- dicialmente por vinculago com as organizag6es clandestinas de esquerda (Quadro n? 2), € a julgar por depoimentos de ex-militantes, contidos no livro Memdrias das mulhe~ res do exilio (Costa et alii, 1980) a dem estabelecida, Ao contrério das imilierss intelectualizadas processadas, as quais, em geral, participaram ativamente das acdes da esquerda, inclusive das armadas. Apenas 10 das processadas eram trabalhadoras manuais, rurais ¢ urbanas (1,7% do total de 578 de- nunciadas por ligacdo com as esquerdas em geral). Especialmente nos grupos armados, quase ndo houve trabalhadoras manuais envolvidas ~ nenhuma processada ~ contrastan- do com a média em tomo de 13% de trabalhadores manuais urbanos e rurais, de ambos 08 sexos, no total dos acusados de envolvimento com as organizagées armadas. Entre- tanto, 28 mulheres processadas por ligago com grupos em armas ( camadas médias intelectualizadas; a0 passo que 51,6% dos processados de ambos os sexos poderiam ser considerados integrantes dessas camadas sociais. Mesmo em se con- siderando apenas os dados dos grupos armados urbanos tipicos, a percentagem de mu- Iheres dos estratos sociais mais intelectualizados chegaria praticamente a 75%, contra ‘TI, Marcelo Siqueira. As mulheres na politica brasileira: os anos de chumbo, Tempo Social; Sociol. USP, S. Paulo, 2(2): 113-128, 2.sem. 1990, quase 58% do total de homens e mulheres pertencentes a esses estratos (ver Quadros n° 2€ 3), Além disso, deve-se ter em conta as diferencas sociais existentes entre as mulhe- res das camadas médias intelectualizadas, como expressa uma passagem do seguinte didlogo entre exiladas politica: “Angela — No Brasil muitos de n6s éramos classe média alta que fazia ou tinha feito universidade. Eramos elite, nao tanto no sentido de que tivéssemos muito di- nheiro, mas no sentido de opotunidades culturais. Sonia — Nem todo mundo. Eu, por exemplo, me classificava como pequena bur- guesia baixa porque vivia economicamente na merda, tendo que trabalhar para estudar. No vestibular passei na Catlica e fui excedente na USP. Nao poderia fa- zer a Catélica porque 0 meu saldrio nao dava. Tive que brigar para entrar como excedente. Durante 0 curso trabalhava em escrit6rio de venda de terreno, em livra- ria, fui secretéria, fiz mil coisas” (In: Costa et alii, 1980, p. 241). fomeceu a maioria dos quadros para os grupos de extrema esquerda. Segundo Poerner, dos 300 delegados estudantis que, ape- sar da represséo da perseguigéo polical,conseguiram chegar a0 local clandestino de realizacéo do Congresso da UNE de 1966, em Belo Horizon xo teminino (1979, p. 270). estudantil também parece ter cres a composicao social das esquerdas em armas era relativamente equivelente do conjunto dos movimentos sociais mais atuantes no perfodo, inclusive no tocante a participacéo por sexo. Muitas mulheres tentavam romper, em diversos aspectos, com séculos de submis- so ao entrarem para organizacées clandestinas de extrema esquerda. Mas néo seria cor- reto identificar a acdo politica das mulheres nos anos 60 apenas com a luta pela ruptura da ordem vigente. Afinal, é Sbvio que também o sexo feminino esté cortado pelas con- tradigdes da sociedade de classes. Isso nos leva a destacar, rapidamente, a ago conser- vadora de um sem ntimero de mulheres naqueles anos: “Em certa medida, eu jé tinha sentido no Brasil, durante o golpe, o papel negativo que as mulheres podem jogar como forca de contencdo do movimento revolucio- nério. E pude sentir no Chile, com uma estranha forca, como as mulheres podem RIDENTI, Marcelo Siqueira, As mulheres na politica brasileira: os anos de chumbo, Tempo Social; 117 Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 22): 113-128, 2.sem. 1990, servir como massa de manobra para paralisar qualquer proceso democratico. E sao uma forca terrivel, terrivel mesmo!” (In: Costa et alii, 1980, p. 60). Essas palavras da dirigente do PCB nos anos 50 e 60, Zuleika Alambert, séo re- veladoras da atuacdo das associag6es de mulheres para criar bases sociais ¢ uma certa “legitimagao” para o golpe de 1964 no Brasil (assim como, posteriormente, para a que- da do governo constitucional de Allende no Chile). Seguindo pistas abertas por Drei- fuss (1981), Solange de Deus Simées demonstrou em Deus, patria e familia (1985), © lugar fundamental ocupado pelas mulheres no golpe militar de 1964, associadas ao “complexo IPES/IBAD”, que “patrocinou uma campanha de desgaste do governo Goulart e do nacional reformismo”, procurando, em seguida, legitimar 0 poder das for- cas golpistas. “E a ‘mulher-mfe-dona-de-casa-brasileira’ que anuncia & nacdo, com grande estardalhaco, sua disposigao de deixar a protecdo do lar e se lancar as ruas € pracas piblicas” (Simées, 1985, p. 26-27). Foram criados grupos femininos conserva- dores para “‘arregimentar a opiniéo publica para o golpe militar de 1964”, nos princi- pais estados e cidades do pafs, grupos que revelariam grande capacidade mobilizadora, Por exemplo, por ocasiaéo das ““Marchas da Familia com Deus pela Liberdade” que, li- deradas pelas mulheres na sua fachada, arrastaram milhares de pessoas as ruas de todo 0 Pais, antes e logo depois do golpe, contando com a adesao de religiosos, de governos estaduais e municipais, bem como do empresariado, inclusive com dispensa do servico € facilidades de wansportes, 0 que explica parcialmente a participacdo macica, naqueles eventos, de camadas sociais médias diferenciadas ¢ até de operdrios, ligados a Igreja. Mas no hé como negar a eficiéncia mobilizadora das classes dominantes, que souberam canalizar politicamente a insatisfag4o com a alta da infla¢do e do custo de vida, apelan- do para a religiosidade anticomunista arraigada em amplos segmentos da populacdo. Interessava fazer a intervencao militar aparecer como fruto de um “‘chamamento popu- lar" contra a aco dos “‘comunistas” ¢ dos “corrupts”, até para convencer a oficiali- dade legalista da necessidade do golpe para salvar a “patria”. Mesmo assim, a maioria dos que foram as ruas pleiteava “uma intervencéo militar que, como em 1945 ou 1954, atuasse temporariamente para ‘restabelecer a ordem’ ¢ logo fizesse os militares retornar 08 quartéi Depois do golpe, as entidades femininas passaram a atuar no sentido de legitimar © novo regime. Porém, na medida em que este se perpetuava ¢ crescentemente se milita- rizava, sem solucionar imediatamente a crise econémica, exacerbando seu carter re- pressivo, o regime tendia a perder suas bases de apoio popular, de modo que as asso- ciagées de mulheres golpistas ficavam cada vez mais isoladas e suscetiveis a cisGes 118 RIDENTI, Marcelo Siqueira, As mulheres na politica brasileira: os anos de chumbo, Tempo Social; Rey. Sociol. USP, S. Paulo, 22): 113-128, 2.8em. 1990, internas desagregadoras. Na crise de 1967-68 ainda se fazia ouvir a voz dessas mulhe- res, j4 sem grande repercussdo social. Por exemplo, um grupo de senhoras cat6licas paullistas dirigiu-se, em agosto de 1967, ao comandante do Exército local para afirmar que: “O Exército pode contar com a compreens4o da mulher paulista, para todas as atitudes que seja obrigado a tomar, mesmo passando por cima de privilégios e titulos, até mesmo das imunidades de algumas batinas...”" (In: Dale et alii, 1986, vol. 2, p. 34). Cardter muito distinto teve a adesao de mulheres aos grupos de esquerda apés 1964. Como evidenciam, por exemplo, os varios depoimentos coletados em Memérias das mulheres do exilio (Costa et alii, 1980), foi s6 no exterior que a maioria das mulhe- res das organizacdes de esquerda nos anos 60 e 70 passaram a adquirir uma consciéncia explicitamente “‘feminista’’, da es| idade da 40 de mulher na luta e Gala nee jismo cujo grau variava conforme a organizacao). Conta Maria do Brito, que foi dirigente dos COLINA e, mais tarde, da VPR: “E claro que havia muito machismo na organizacdo, mas para mim, francamente, dentro do Brasil nunca fez. dife- renga nenhuma o fato de ser mulher. Suponho que a maioria das mulheres tinha proble- mas, mas eu nao tinha, nao posso dizer que tivesse, no posso realmente, era uma situa- Gao muito especial. Quando saf do Brasil, fazia parte do Comando da VPR” (In: Costa et alii, 1980, p. 79). Diz a ex-militante Angelina: “Durante muito tempo eu nao tive consciéncia de que existia uma opresséo das mulheres dentro dos grupos politicos. Ho- Je, eu vejo que essa opressao existia muito marcada pelo tipo de estrutura de poder, pe- las relaces de poder que existiam nas organizacGes em geral”” (1980, p. 249). No mes- mo sentido, fala Maria Nakano: “Foi no meu novo pais de exilio que tomei consciéncia mais clara da condi¢do de inferioridade da mulher. Nunca pensava antes na minha si- tuago como mulher, embora achasse importante as outras mulheres na luta politica, so- ‘uma participacdo insignificante a este nfvel. Mas naquela Epoca no me dava conta disso” (In: Costa et ali, 1980, p. 316). O “*machis- mo” nas organizacées comunistas dos anos 60 revela-se num trecho do romance auto- biogréfico, deliberadamente escrachado, do entéo militante da ALN carioca, Reinaldo Guarany, intitulado A fuga (1984): “As mulheres na esquerda sempre seguiam uma linha bem definida. Com poucas excegées (K era uma mulher lindissima, com seus cabelos morenos ¢ aqueles olhos verdes. Isolde com charme pra sociélogo nenhum botar defeito. Sonia Lafoz digna de ter sua foto em banheiro de porta-avides, Carmela Pezuti de deixar Bal- zac de mao no bolso, outras) elas em geral se dividiam da seguinte maneira: RIDENTI, Marcelo Siqueira. As mulheres na polftica brasileira: 0s anos de chumbo. Tempo Social; 119 Rev. Sociol. USP, S. Paulo, (2): 113-128, 2.sem., 1990. saias de freira. & 0 que era pior: antes da trepadinha, uma lidinha nos documentos do Mariga, depois da dita cuja, um belo discurso do Fidel. Haja estémago! Na VPR 0 quadro era bem parecido, mas, no sei por qué, as mulheres usavam minis- saias mais curtinhas. - jwerendo atacar de vez, entrando de cheio no mi- litarismo e af entdo espantando as bonitinhas, ora fazendo pose de inelectual sal- vador do proletariado. Nesses momentos, as gatinhas retornavam as suas fileiras, bem queimadas de sol. Até hoje nao entendi isso, acho que as companheiras sen- tiam uma certa atraco pela palavra operdrio, talvez pelo seu significado de rude- za, forca, brutalidade, disposico sexual, ou pelo cheiro de suor misturado com fuligem, que estavam rompendo com montées de dogmas e tabus ao mesmo tempo, precisa- vam de um braco peludo para as horas de desamparo” (Guarany, 1984, p. 31). Entretanto, é preciso salientar que “‘a teoria que pairava era que mulheres e ho- mens so iguais. A gente era militante, soldado da revolucao, e soldado nao tem sexo!"’, como diria a militante Sonia (Costa et alii, 1980, p. 248). No seu depoin : vooks rine’ do € igual, entéo vamos demonstrar! Agora, é claro que na orientagio poltica da orga- nizago a influéncia das mulheres era muito menor do que a dos homens” (1980, p. 248-249). Outra exilada, Vania, reconhece que “a mulher deixou de ser virgem, 0 ho- mem deixou de ser macho, lava pratos, faz comida, é bom cozinheiro”. Contudo, para ela, “isso nio era o fundament Na entrevista que nos concedeu a ex Vera Sfivia Magalhdes, ela talou longamente sobre as diticuldades de ser mulher na diregao de uma organizagao e, depois, num comando armado, compostos quase s6 por homens, ainda que a DI-GB, futuro MR-8, fosse um dos grupos mais liberais nos costumes: 120. RIDENTI, Marcelo Siqueira. As mulheres na politica brasileira: os anos de chumbo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 22): 113-128, 2.sem. 1990, “Era uma guerra, enquanto mulher, ser de uma diregao. Era uma coisa muito barra pesada, nada facil para mim, Acho que em 1969 eu sairia da direcéo por mil ou- as raz6es, inclusive porque havia quadros novos surgindo. Mas houve um argu- mento fantéstico, de que eu era uma = gente teorizava € pi a monogamia néo existe, seria uma proposta burguesa, conservadora). E eu perguntava: por que eles nao saem? Por que s6 eu sou instével emocionalmente? [...] Eu fui para 0 grupo armado como uma espécie de compensaco, j4 que saf da direcao que € um cargo méximo. O outro cargo méximo seria ir para um grupo armado, talvez. mais valorizado que a propria dire- cdo, pois ia fazer as acées |...) Eu era mulher, portanto, fazia todos os levanta- mentos com o papel de mulher que a sociedade me atribufa. Por exemplo, eu se> ‘duziaogerenie do baneo para uma conversa, para jantar noite, saber as infor mages do dia de pasamento, et, Eu que me virase, se nio quisese dar o deste cho aquela conversa inicial, 0 que evidentemente nao iria querer. O interesse era 86 pelas ‘des, Mas vivi situagdes bastante complicadas, sozinha. ‘A fungao) da acdo, todo mundo ti- nha metralhadora, ou 38. A mim, cabia o pior revélver. Até que, no final, eu ga-~ nhei uma metralhadora, uma metralhadora, uma grande conquista individual. |...) Uma vez eu sai, em plena Cinelandia, com um coronel, que era dono de uma fé- brica de arma. Passa meu paie me vé vestida de prostituta, porque essa era a mise en scéne naquela ado. Para cada agao uma mise en scéne. O meu pai nao enten- deu nada, imaginava que eu saira de casa para fazer a revolucao ¢, de repente, pa- recia que eu tinha cafdo na vida, Na hora, fingi que néo vi. Se 0 coronel descon- fiasse de mim, ndo tinha ninguém para me dar cobertura, eu me fodia ali mesmo. Eu fui sozinha fazer o levantamento do sequestro americano. Fui de mini-saia, vestida de empregada doméstica, conquistei o Chete s me deu todas as infor- mente facilitava a aco, por isso eu aceitava. ED | Todos eram comando, a gente revezava os comandos das agées. Evidentemente que eu tinha medo. Quando comecamos a pegar em armas, a gente teve tiroteio com a policia, fomos cercados algumas vezes, escapamos. Mas foi um traumatismo para mim, como para todo 0 comando. Agora, a tinica pessoa que levantava essa ques- Go era eu. Por qué? Porque eu era mulher, e a fragilidade de mulher cra muito £6- cil de ser absorvida. A dos homens nao. Ficavam putos, ainda por cima. Depois RIDENTI, Marcelo Siqueira. As mulheres na politica brasileira: os anos de chumbo, Tempo Social; 121 Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 212): 113- 128, 2.sem. 1990. do primeiro tiroteio, esse comando ficou dois meses sem fazer aco, s6 levanta- mento. E claro que era medo. Pronto, fui levantar o problema, quase me ‘mata- ram’. Imaginem se aqueles homens novos, fantésticos, os herdis da nossa terra, jam ter medo. Medo era assunto que néo era para ser tocado, mesmo”. N&o se deve imaginar, contudo, que as mulheres eram totalmente submissas nos grupos de esquerda, em geral, ¢ nos armados, em particular. Isso, alifis, esté implicito nos préprios depoimentos jé citados. novos, nao da liberacao especticn da. condicho feminin, proposta que nao se colocava explicitamente naquela conjuntura da sociedade brasileira. Vale reafirmar 0 equfvoco dos que analisam as lutas sociais passadas, esquecendo da conjuntura espeffica em que se deram. Dizia Regina, numa conversa entre exiladas que recuperavam sua meméria: “Naquele momento a gente pensava em mudanca politica ¢ social e a gente queria ser 0 “homem novo”, mas no tinhamos muito claro 0 que questionar a nivel do nosso coti- diano e vida pessoal. No Brasil, porque eu tinha uma atividade politica e profissional muito intensa, esse questionamento, mesmo difuso, ainda existia. O Chile para mim foi uma volta atrés [...]” (Costa et alii, 1980, p. 416). Outra exilada afirmava, no mesmo didlogo, fazendo um balango: “Eu acho que se a nossa militancia politica implicou rupturas com a familia, com valores, € porque hd uma particularidade nessa militancia. No momento histérico em que ela se d4 havia uma tentativa de critica ao stalinismo, de construgio do homem novo trazido pela revolucdo cubana ou pela revolugdo cultural (chinesa). A gente tentava um m{nimo de inserco do politico no cotidiano, quer dizer, nao €ramos s6 a pessoa herdica no sentido de transformar o mundo, também nos ques- tion4vamos: saimos de casa nfo casando, tentando romper com a virgindade, ten- tando desmistificar 0 casamento. Mas nao vivenciamos isso tudo enquanto movi- ‘mento feminista. (...] Entéo pensévamos que rompiamos com tudo — ¢ rompfamos em parte — mas continudvamos reproduzindo todos os valores da nossa educacdo”” (in: Costa et alii, 1980, p. 416). As relagGes entre homens e mulheres, sobretudo nos grupos de esquerda armada, parecem ter rompido com uma série de preconceitos e préticas, ainda que, olhadas re- trospectivamente pelas feministas de hoje, aquelas rupturas sejam relativamente timidas. Sem dtivida, parece ter havido avancos para as mulheres das novas esquerdas, se com- 122. RIDENTI, Marcelo Siqueira. As mulheres na politica brasileira: os anos de chumbo. Tempo Socials Rev. Sociol. USP, 8. Paulo, 22): 113-128, 2,sem, 1990, paradas as da esquerda tradicional do periodo stalinista, como se depreende, por exem- plo, do depoimento da lider comunista nos anos 40, 50 ¢ 60, Zuleika Alambert (Costa et alii, 1980, p. 48-68). das regras sociais de comportamento teminino. Uma das primeiras mulheres que a im- prensa estereotipou como ‘‘a bela do terror”, pois haveria outras “belas”, declara: “As acusagées que faziam contra mim nos i A grande sensacdo realmente era eu um ou cso go ss sin: ou mela our dor asa pelo menos localizavam em acées definidas, eu nunca, nunca fui ac de ter feito nada. © meu caso foi fundamentalmente ter sido uma das primeiras mulheres ser descoberta. No momento do primeiro golpe na esquerda armada em 1969 ha- via poucas mulheres, pelo menos conhecidas. Eu lia todos os jornais para ver se transparecia um pouco do que eles sabiam, e cheguei a conclusdo de qu

You might also like