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KATÁDESMOI: Práticas de magia no período clássico ateniense
Yasmin as Silva Pacheco


Índice

Índice de Figuras ........................................................................................................ 3

AGRADECIMENTOS ............................................................................................... 4

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 4

1. MAGIA ± UM CONCEITO E UMA PRÁTICA .................................................. 9

2. KATÁDESMOI e a aplicação da magia no contexto ateniense ............................. 27

3. Análise do Objeto............................................................................................... 46

CONCLUSÃO ......................................................................................................... 57

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 60


Índice de Figuras

Figura 1. Mapa da polis de Atenas, indicando geograficamente, a


localização do cemitério do Cerâmico no círculo vermelho. ..................... 28

Figura 2. Katádesmos de ofício. Gentilmente cedido do catálogo, não


publicado da Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido ........................................ 47

Figura 3. Katádesmos contra processo. Gentilmente cedido do catálogo,


não publicado, da Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido ................................ 51


AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, à minha orientadora Prof.ª Dr.ª Marta
Mega de Andrade (LHER/UFRJ), por sua infinita paciência, incentivo e
por acreditar que eu pudesse trilhar estes caminhos pela História.
A Prof.ª Dr.ª Sandra Ferreira (ARGO/MN/UFRJ) por sua incansável
vontade de ajudar, reler e corrigir o presente trabalho. Seus conselhos e
orientações.
A Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido (NEA/UERJ) por sua
disponibilidade em ajudar, e por ter, gentilmente, cedido o material para
que este trabalho fosse possível.
Ao Prof.º Dr.º André Leonardo Chevitarese (LHER/UFRJ), por seus
ótimos conselhos e ajuda no levantamento de material.
A banca examinadora, que aceitou ler este trabalho, com
contribuições valiosas.
A Rodrigo Pereira por estar ao meu lado em cada obstáculo que
enfrentei neste caminho, dando ótimos conselhos.
Agradeço, por fim, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e ao
Instituto de História, que, por meio de seu corpo docente, possibilitaram o
meu aperfeiçoamento teórico-metodológico e, consequentemente, o
desenvolvimento deste trabalho.
Dedico este trabalho, primeiramente, aos Orixás, que propiciaram eu
estar aqui escrevendo ± o. Em especial Iemanjá, que vem me
acompanhando ao longo dos anos de minha vida.
Dedico, também, estas palavras escritas aos meus pais: Marcos e
Sonia, que muito me apoiaram nesta trajetória, desde o início da graduação
até a apresentação deste trabalho.


INTRODUÇÃO

O período clássico ateniense tem sido alvo de diversos estudos no


campo na História com diversos enfoques e objetos. Entretanto, neste
trabalho proponho-me analisar os Katádesmoi ± finas lâminas de chumbo
com imprecações ± para melhor compreender a sociedade deste período e
local. Entre os séculos IV e V a polis1 de Atenas localizada da região da
Ática, nas proximidades do Mar Egeu. Em particular, pretendemos nos
concentrar nas tabuinhas e figuras encontradas no cemitério do Cerâmico,
Keraimekos, localizado na área contígua à muralha noroeste, entre as portas
sagrada e dipylon, num dos entroncamentos de vias mais movimentados
pela passagem entre a asty ² centro cívico "urbano" ² e os portos. Estas
dimensões geográficas foram expandidas com os processos históricos
vividos no território, atualmente a cidade de Atenas abarca a polis antiga,
porém com extensões maiores.
O advento da polis ocorre entre os séculos VIII e VII a. C. e tem sua
consolidação no século V (VERNANT, 2002, pp. 53), momento que
Vernant considera como o nascimento de uma polis do período clássico.
Este período foi marcado por inúmeras modificações políticas e sociais. O
auge da democracia e a difusão da escrita então entre elas. A escrita, por
exemplo, tem sua difusão pautada na paidea2 grega e em uma noção de
difusão de conhecimentos poliade como um plano intelectual e cultural do
mesmo. Este uso foi ampliado para a redação de leis, que após escritas
estariam afixadas para que todos pudessem ver (VERNANT, 2002, pp. 56 -
57).

1
Polis é um conceito traduzido normalmente como Cidade±Estado. Entretanto, atualmente as
bibliografias especializadas têm optado por não traduzir o temo, pois, esta tradução não daria
conta de todos os elementos sociais, políticos e econômicos que estão envolvidos. Incluo ±me
nesta corrente.
2
Conjuntos de conhecimentos passados para as gerações mais novas. Conhecimentos sociais,
religiosos e intelectuais que possuíam uma compreensão de mundo a ser transmitida.


Os Katádesmoi eram essas lâminas com imprecações para fazer mal
ao inimigo e pertenciam a uma noção mais particular da ação.
Consideramos aqui que estas são práticas rituais utilizadas em um
momento específico da polis. Entretanto, não nos propomos neste trabalho
a delimitar o início do uso dessas lâminas ou o processo da sua decadência.
Os usos sociais que possuíam é que nos interessam no presente estudo.
1R SULPHLUR FDStWXOR LQWLWXODGR ³0$*,$ ± um conceito e uma
prática´ QRV RFXSDPRV DFHUFD GR WHPD PDJLD HP GLIHUHQWHV FRUUHQWHV
antropológicas. Para isso, traçamos um pequeno histórico acerca dessas
correntes desde o século XIX até a segunda metade do século XX,
ressaltando as principais características, os autores mais representativos e
suas ideias. Todavia, intentamos nos deter, mais especificamente, em como
a magia foi compreendida por esses estudiosos e sua relação com as
sociedades e comunidades. Com isso, percebemos uma série de
compreensões acerca das relações existentes entre tais conceitos e aquilo
que se compreendia como sociedade.
Neste capítulo, ainda, buscamos estabelecer a relação entre magia e
religiosidade, traçando suas aproximações e distanciamentos, de acordo
com as Vertentes antropológicas. Buscando compreender, também, o que
seria a religião e a religiosidade por meio de Geertz, na intenção de
compreender a articulação possível entre esses dois conceitos e práticas na
sociedade ateniense do período clássico. Este caminho foi trilhado a partir
dos estudos empreendidos, principalmente, por Marcel Mauss (2000) e
Clifford Geertz (2012), para a compreensão da articulação desses dois
universos de práticas sociais que se articulam entre si e que mantem
contato.
No segundo capítulo, intitulado, ³KATÁDESMOI - e a aplicação da
magia no contexto ateniense´, buscamos compreender melhor o contexto
da polis ateniense inserido no período clássico. Além disso, situamos


geograficamente o cemitério do Cerâmico ± Keraimekos ± local onde nosso
objeto de estudo foi mais encontrado e por isso é nossa referência ao
estudarmos as lâminas. Neste capítulo, traçamos um pouco sobre os usos e
possibilidades propiciadas por essas práticas mágicas, assim como
delimitamos compreensões e crivos para a análise a ser desenvolvida nas
páginas seguintes.
Este segundo capítulo, também, é responsável por delimitar a nossa
compreensão dessas práticas dos Katádesmoi, como formas rituais,
inseridas em uma polis com elementos próprios. É neste momento que nos
ocupamos em analisar, mais profundamente, acerca do local que essas
práticas possuem e como elas se relacionam com o espaço e com as pessoas
presentes neste local. As lâminas como pertencentes a um grupo de
elementos mágicos presentes na comunidade poliade, utilizando elementos
que não seriam, a priori, próprias da magia ou, ao menos, separadas da
religiosidade oficial.
Já o terceiro intitulado, ³Análise do Objeto´, se ocupa acerca dos
objetos materiais, em si, e sua análise a partir da luz dos elementos
discutidos nos capítulos anteriores. Neste terceiro momento as fotos dos
Katádesmoi serão utilizadas, não apenas para ilustrar esta cultura material,
mas também para servir de aporte para melhor compreendermos o uso dos
conceitos debatidos nos primeiros dois capítulos. Estes serão analisados na
tentativa de elucidar questões teóricas aplicadas as práticas mágicas
atenienses.
Questões como a relação dos Katádesmoi com a morte e com o
morto, enquanto uma prática ritual, salvaguardando relações de utilização
desses mortos para a realização das imprecações serão avaliadas.
Elementos como a complementariedade da magia e da religiosidade,
debatida no primeiro capítulo, puderam ser analisadas a partir das
inscrições presentes nas lâminas de chumbo. Elementos como a utilização


de nomes e indicações de demos como forma de indicação da pessoa a ser
afetada pela imprecação, também, foram analisadas, como meio de uma
forma de tornar mais eficaz a prática.
Na última sessão desta versaremos algumas conclusões, mesmo que
preliminares e superficiais, sobre o tema desta monografia. Conseguimos
vislumbrar não apenas características acerca do objeto, mas também, como
compreender a teoria que permeia este trabalho articulada com as questões
aqui propostas.


1. MAGIA ± UM CONCEITO E UMA PRÁTICA

O conceito de magia muito vem sendo discutido pela Antropologia e,


em menor medida, pela História. Entretanto, há uma variedade de
conceitos, conforme cada Escola/Vertente antropológica a respeito do tema
e sua relação com a religião. Escolhemos como ponto inicial desse debate a
Escola Evolucionista, que ainda no século XIX se ocupou de questões
acerca das religiões e magias em povos considerados ³primitivos´
(BARNARD, 2004, pp. 8). O cunho evolucionista se manifestou nas mais
variadas interpretações, tendo como fio condutor a ideia de uma sociedade
se desenvolvendo em etapas e essas estariam seguindo em ordem crescente,
tendo todas elas que passar pelos mesmos momentos de desenvolvimento.
Um desdobramento dessa escola se pautou na consideração de que as
culturas e as sociedades, enquanto entes compostos por indivíduos
(DURKHEIM, 2003, p. 44), passavam por etapas de desenvolvimento. Por
meio deste crivo, as mesmas eram julgadas enquanto evoluídas ou
primitivas.
Antropólogos pertencentes à Escola Antropológica Evolucionista, que
podemos destacar, foram Morgan, Tylor, com seu evolucionismo cultural,
Lehmann e Sir Arthur Frazer3 (BARNARD, 2004, pp. 35). Este último
categorizou o sistema de crenças de maneira que a magia ocupava um local
para povos "primitivos", ela seria responsável pela base da sociedade e
seria substituída pela religião e em seguida pela racionalidade e pela
ciência, de maneira progressiva. Tendo assim o autor sistematizado
categorias de pensamento, segundo os níveis de desenvolvimento social, os
mais "primitivos" teriam como suporte a magia, essa sociedade evoluindo

3
Sua obra mais conhecida intitula-VH³25DPRGH2XUR´RULJLQDOPHQWHSXEOLFDGRHP em
13 volumes..


passaria a adotar sistemas religiosos mais complexos e quando chegassem a
seu auge de desenvolvimento teriam a racionalidade como categoria de
pensamento juntamente das práticas científicas4, como meio de agir
socialmente (DURKHEIM, 2003, p. 233-234). O objetivo desses estudos
seria descobrir leis gerais que regiam as sociedades em todos os aspectos.
Já /HKPDQQGHILQLXPDJLDHQTXDQWR³XPDSUiWica de superstiç}HV´MiTXH
estas não estariam enquadradas no considerado científico ou religioso na
época (MAUSS, 2000, p.10)
Para este autor o que comprovaria essa antecedência social e
cronológica na magia seria o fato que ela teria uma simplicidade ritual e
haveria uma hostilidade irredutível entre magia e religião e isso denotaria
que a magia é anterior a esta. A religião surgiria no momento em que os
homens percebessem a ineficácia da magia, o que ocasionaria uma
³UHYROXomR QD PHQWDOLGDGH GR KRPHP´ 0217(52 , p. 10). A
religião teria ocupado o nível antecedente à ciência devido a sua
complexidade.
A Escola Antropológica Evolucionista obteve diversas críticas às suas
proposições, na qual ressalta a presença de um forte etnocentrismo, assim
como uma relação de ausência alteridade presente a partir da diferenciação
entre o antropólogo e as pessoas nativas. A sociedade europeia passou a ser
considerada como a mais evoluída, dentre as comunidades que se tinha
conhecimento na época, o que se tornou um dos paradigmas desta corrente
antropológica e de pensamento social. Em contrapartida, as sociedades
HVWXGDGDV HUDP FRQVLGHUDGDV ³SULPLWLYDV´ SHUPHDGDs por superstições e
crenças que não alcançavam a compreensão científica. Todas essas
sociedades deveriam alcançar o mesmo patamar de desenvolvimento que a
sociedade europeia.

4
Essa teoria denota o caráter evolucionista que Frazer apresenta.


A Escola Sociológica Francesa se formou, também, no século XIX,
preocupando ± se com as sociedades, de uma maneira geral, sem pensar no
indivíduo ou em como suas ações poderiam modificar diretamente a
comunidade que integravam. Essa sociedade era compreendida como algo
orgânico que poderia ser modificado como um todo e não a partir de
pequenos elementos. Essas estruturas que moldaram os grupos humanos se
davam em diversos âmbitos, políticos, econômicos, religiosos, dentre
outros. Ela foi responsável, junto da Escola Evolucionista, pela dicotomia
entre magia e religião (MONTERO, 1986, p.11), partindo do princípio de
sua complexidade. Entretanto, ao analisarmos alguns autores podemos
perceber que muito foi estudado acerca, também, da complementariedade
de ambas. Aqui nos interessa perceber como a religião e a magia foram
compreendidas nesse momento da teoria social, sendo Durkheim e Marcel
Mauss os mais representativos autores deste período.
Durkheim defendeu que a magia teria uma tendência ao âmbito
particular, o que ocasionaria o egoísmo e a imoralidade; enquanto a religião
seria a fonte da moralidade e da coesão social. Seu objetivo era
compreender ambas enquanto fatores dessa coesão social, tendo
compreendido a religião como fator responsável por tal e não a magia.
Entretanto, este pensamento ficou defasado em relação às teorias sociais
tendo em vista que os estudos antropológicos e sociológicos ingleses do
início do século XX compreenderam uma maior complexificação social das
sociedades estudadas e de suas culturas, fator que não era amplamente
considerado, até então5.
Marcel Mauss (2000), quando se ocupa do tema da magia defende que
não é possível compreender religião e magia como uma dicotomia, mas sim
elas se relacionam e se articulam dentro da comunidade que estão inseridas

5
Destaca-se neste pensamento os seguintes autores: B. Malinowski, Radcliffe-Brown e Evans-
Pritichard.


o que representa um mote de discordância com a teoria de Emile
Durkheim, seu contemporâneo. Assim, como Montero (1986) afirma a
utilização das ações mágicas em cultos religiosos, ou seja, a magia, ao
invocar uma entidade sobrenatural, pode utilizar elementos dessa
religiosidade presente, por exemplo, os mesmos deuses. Nessa assertiva,
mais uma vez, o autor não estabelece uma dicotomia entre a magia e
religião, como fez a Escola Evolucionista, mas apenas define características
que as diferenciam.
A Escola Funcionalista, que teve seu início no final do século XIX e
maior atuação no século XX defendia, em linhas gerais, um maior rigor nas
pesquisas de campo e, por consequência, maior objetividade em seus
estudos, dando primazia às relações de alteridade e compreensão do social
a partir do ponto de vista nativo. O campo antropológico deveria ser
participativo e observador dos elementos culturais a serem analisados e
pesquisados em si e não comparativamente com as sociedades europeias.
Um dos representantes desta linha de pensamentos é o antropólogo
Bronislaw Malinowski que atuou em campo com o conceito de observação
participante6 (BARNARD, 2004), mesmo que de maneira ainda tímida, se
comparada aos modelos mais atuais. Sua principal preocupação foi estudar
os elementos culturais a partir das funções que os mesmos assumiram nas
suas sociedades. Ele entende a magia como um desses elementos, porém
recusa a interpretação evolucionista e trilha um novo caminho a partir das
funções sociais da magia. Esta seria um meio do homem compreender
elementos que o raciocínio lógico ainda não assimilava ou que não
fornecessem informações confiáveis, portanto, a magia ainda era vista
como uma etapa do pensamento humano e não uma característica das
sociedades.

6
Teoria defendida pelos funcionalistas, na qual o antropólogo deve observar a sociedade
estudada e, em certa medida, participar e interagir com a mesma.


Essa Escola, apesar de diferir dos evolucionistas, ainda mantinha certa
ressalva ao estudo da magia enquanto elemento e prática social que não
denotasse um atraso no desenvolvimento. Outra similaridade entre ambas
as Escolas foi a manutenção do ideal de que a ciência moderna era superior
a magia, ainda denotando uma continuidade parcial do evolucionismo em
suas teorias. Entretanto, contribui para os estudos sobre magia, pois
compreende que os estudos sobre essas práticas devem se dar a partir de
suas funções sociais, porém permanece a dicotomia entre magia ± religião
± ciência, presente na corrente anterior. Tendo a magia sido pautada nas
relações de confiança do homem em dominar elementos da natureza e da
vida, enquanto a religião estaria mais voltada para a compreensão humana
de sua impotência perante elementos naturais e seres sobrenaturais
(MALINOWSKI, 1984).
O Culturalismo Norte Americano, ou Relativismo Cultural, teve sua
evidência por volta da década de 1930, ressaltando elementos
antropológicos diferenciados, se comparados às correntes de pensamento
anteriores. Seu principal representante foi Franz Boas que, considerado pai
da Antropologia Moderna, formulou críticas incisivas sobre o
determinismo geográfico e biológico, como marcador definidor de
características sociais e culturais (BARNARD, 2004, pp. 55). Essa corrente
defende que a cultura era algo independente, fruto de uma história
particular, portanto as culturas e sociedades em torno do mundo não teriam,
necessariamente, estágios semelhantes, se expostos a situações
semelhantes. Essa concepção foi uma clara reação às assertivas
evolucionistas.
Boas formulou o conceito de etnocentrismo para ressaltar a importância
de se estudar cada sociedade e sua cultura de maneira particular e não em
um grande panorama comparativo, uma vez que ela se manifestava por
meio dos costumes. Portanto, nesta corrente a magia era compreendida


como um fenômeno cultural a ser estudado inserido em seu contexto
específico e não comparativamente a outras sociedades com histórias
diferentes.
A Escola Estrutural, mais conhecida como o Estruturalismo, devido ao
método utilizado, tem seu início na segunda metade do século XX e
permanece com representantes dessa corrente até os dias atuais. Essa
Escola é marcada por sua compreensão de cultura, na qual são entendidas
como sistemas de signos que são partilhados e estruturados por princípios
básicos que organizam o intelecto humano (BARNARD, 2004, pp. 125).
Esse signo é composto por um suporte material ± o significante ± e o objeto
que o signo designa ± o significado. Essa estrutura pode ser inserida em
três formas diferentes, sendo a primeira chamada de índice, que comporta o
suporte material que representa diretamente o material. O segundo,
chamado de ícone é quando este suporte material evoca o objeto, em si. Já
o terceiro, que ficou conhecido como símbolo caracteriza-se pelo fato de o
suporte material não estabelece relação direta com o objeto.
Essas regras que permeiam o pensamento humano e, por consequência,
a sociedade, constroem pares opostos e conceituais que constituem esse
social. Portanto, uma vez que se conhece a estrutura de determinados
aspectos sociais, seria possível compreende ± los em diversas comunidades
de diferentes locais e histórias. Cria-se modelos aplicáveis em diversas
situações. Um desses aspectos analisados foi o mito, no qual se defendia
que este era importante para a compreensão do funcionamento das culturas
e do que se perpetuou ou deixou de existir, uma forma de compreender a
continuidade de determinados elementos culturais.
O principal autor que representa do Estruturalismo é Lévi-Strauss,
considerado o fundador dessa Escola, tendo como objeto de estudo as
estruturas concernentes à composição das sociedades. Ao se ocupar com a
magia nas comunidades que estudou, procurou entendê-la como estruturas


ou manifestações delas, assim como a Escola que fundou. Este autor
defende que a magia é uma forma antecessora da ciência, entretanto ambas
são sistemas articulados e independentes que podem coexistir em um
sistema cultural. Não são aspectos opostos e possuem semelhanças em suas
operações mentais, todavia agem em momentos diferentes do cotidiano das
pessoas, se aplicam a diferentes fenômenos. Para este autor a magia
ocuparia, assim como os demais elementos da sociedade, um signo.
Todavia, essa prática estaria inserida no signo ícone, no qual o suporte
evoca o objeto, sendo este último a magia.
Entretanto, o Estruturalismo mantém, em menor escala, a noção
evolucionista com a dicotomia GH VRFLHGDGHV ³FLYLOL]DGaV´ H ³SULPLWLYDV´,
conceitos que a Escola de Frazer defendiam. Entretanto, essas são
GHQRPLQDGDV GH GLIHUHQWHV IRUPDV DV VRFLHGDGHV ³FLYLOL]DGDV´ VmR
chamadas de ³TXHQWHV´ H VH FDUDFWHUL]DP SRU HVWDUHP HP FRQVWDnte
movimentação e desenvolvimento tecnológico. Já as comunidades
³SULPLWLYDV´ R (VWUXWXUDOLVPR FKDPD GH VRFLHGDGHV ³IULDV´ essas têm
como principais aspectos se encontrarem fora da história, orientando-se
pela forma de pensamento mítico, sendo conhecido como uma maneira de
suprimir o tempo.
Em sequência a essa teoria antropológica, surge a crítica ao
Estruturalismo, formando uma nova corrente que ficou conhecida como
Pós-estruturalismo. Este foi criado a partir da inconformidade com o
formalismo da escola anterior (BARNARD, 2004, pp. 140). Defende,
principalmente, as desconstruções das estruturas antes formuladas, uma vez
que compreende que as sociedades são mais particulares em suas culturas.
Barnard, na obra acima citada, defende que esta corrente, em muitas
ocasiões, assume um formato de pós-modernismo na teoria social, porém
essencialmente formado por críticas aos autores estruturalistas.
Autores como Pierre Bourdieu e Michel Foucault, dentre outros, fazem


parte dessa nova corrente de pensamento. Foucault defende que estruturas
não são pré existentes em uma sociedade, voltando suas atenções para a
atuação dos discursos e do poder dentro da dinâmica social (BARNARD,
2004, pp. 144). Em contrapartida, Bourdieu, mesmo sendo considerado
pós-estruturalista, se preocupa com questões sociais diferenciadas,
atentando-se em analisar como as estruturas se constituíam dentro de cada
cultura, mesmo que não as considerando preexistentes e iguais em todas as
sociedades, como a corrente anterior propusera. As práticas sociais também
IRUDP REMHWR GH HVWXGR GR DXWRU VHQGR HODV XPD ³VpULH HVVHQFLDOPHQWH
OLQHDU´FRPXPDOyJLFDSUySULDHQRUPDOPHQWHUtJLGD %28RDIEU, 2009,
p. 138). As práticas rituais seriam um desdobramento dessas práticas
sociais que Bourdieu analisou.
A Antropologia Interpretativa Norte-americana surge por volta da
década de 1960, com uma preocupação com as culturas, a maneira de
interpretá-las e respeitando cada uma delas (conceito de particularismo
histórico). A cultura passou a ser analisada a partir do crivo de seus
símbolos e significados e assim, esta sendo composta (GEERTZ, 2012, p.
91). Isto seria possível a partir de uma interpretação das pessoas que vivem
em dada sociedade, assim como os elementos que permeiam e estruturam
esta e sua forma de pensar. O norte-americano Clifford Geertz é um dos
autores mais representativos dessa corrente antropológica, que sintetizou as
WHRULDVFRUUHQWHVHPVHXOLYUR³$,QWHUSUHWDomRGDV&XOWXUDV´GH(VWH
autor priorizou, em seus estudos, a compreensão das culturas a partir de sua
descrição densa (BARNARD, 2004, pp. 163), sendo este o melhor meio
para a pesquisa, segundo Geertz.
A antropologia Pós Moderna, ou Crítica, ou ainda nominada de Crítica
Literária, surge na década de 1980 como uma reação as correntes
anteriores, porém sem que rompesse completamente com elas,
principalmente o Estruturalismo, Pós-estruturalismo e a Antropologia


Interpretativa. A principal preocupação de análise desta corrente são os
recursos retóricos e textuais que estão presentes nas sociedades, sendo estes
recursos os responsáveis pela organização das mesmas. O tom da crítica
assume um papel mais presente nos trabalhos, como por exemplo ao
politizar a relação observador-observado e o papel de autoridade que o
antropólogo detinha nas pesquisas antropológicas (BARNARD, 2004, pp.
171). Autores como James Clifford, Richard Price e Michel Taussing estão
presentes nessa nova perspectiva antropológica, analisando a cultura a
partir dos elementos sociais mais diversos, priorizando os marcadores
linguísticos da mesma.
É importante ressaltar que a partir desse pequeno apanhados das
principais correntes antropológicas, não temos a intenção de definir uma
única como preponderante neste trabalho, apenas demonstrar que a magia,
objeto que aqui nos ocupamos, pode ser compreendida nas mais diversas
interpretações teóricas, com mais ou menos enfoque, dependendo da teoria
antropológica utilizada. No presente trabalho pretendemos ressaltar
algumas das Escolas que possam melhor analisar a magia, dentro das
práticas sociais e mágicas que aqui estudamos. Pretendemos, ainda,
destacar algumas considerações feitas a respeito das diferenças existentes
entre magia e religião, para que possamos compreender melhor nosso
objeto de estudo
Montero defende que a magia usa entidades sobrenaturais, já a religião
agrega ritos mágicos em seu culto, sendo essa a diferença primeira entre
ambas, porém não faz com que essas sejam dicotômicas (MONTERO,
1986, p. 10). Concordamos nesse ponto com a autora, pois ao nos
direcionarmos para Atenas clássica, analisamos que a religiosidade cívica
está permeada por tais ritos, como os cultos e festas dedicados ao deus


Dioniso7, que observamos, dentre outros elementos, a possessão e a mania
causadas pelo deus8 (VERNANT, 2006, p. 78). Já a magia é possível
compreendermos ao olhar para o objeto de estudo desta monografia ± os
Katádesmoi ± pois em sua confecção e solicitação, deuses ctonianos 9, que
fazem parte da religião oficial são evocados para que intervenham em prol
do solicitante.
Segundo Montero (1986), muitos antropólogos afirmam que a magia
seria do âmbito particular e a religião mais coletiva, porém ela discorda,
afirmando que essas características são mais amplas e articuladas. Marcel
Mauss (2000) não compartilha da mesma opinião, pois defende que mesmo
quando a magia é praticada por um único homem, não foi criada apenas por
ele, sozinho, e sim por um conjunto de pessoas e tradições, assumindo
assim um caráter de coletividade, mesmo que indireta. Ele e Hubert (1970)
defendem que a magia vai ser constituída por elementos sociais e da
religiosidade, assumindo um caráter técnico, com ritos eficazes, com
momentos de complementariedade e distanciamentos. Não há uma
preocupação com a dicotomia entre o sagrado e o profano, que os autores
afirmam estar presente nas religiosidades, mas o social e suas questões
assumem proeminência.
Portanto, a magia está sempre fundada em atos coletivos e em tradições,
mesmo que praticada por motivações particulares e de maneira individual,
assim como representa um algo de realização direta (MAUSS, 2000, p. 16).
Os autores concordam ao afirmar que a magia tem um teor coletivo em si.
Entretanto, é necessário pensarmos em práticas mágicas que, não apenas
são feitas sozinhas ou em duplas, como aquelas que conjugam em si

7
Deus grego relacionado ao vinho, ao teatro e as festividades.
8
Também é possível compreender isso por meio de algumas peças teatrais gregas, como por
exemplo, ³$V%DFDQWHV´HVFULWDSRU(XUtSLGHVHDSUHVHQWDGDpostumamente no Teatro de
Dioniso, em 405 a.C.
9
Estes são deuses relacionados ao Mundo Inferior e que possuem contato com a alma do morto.
Tais como, Hades, Hermes Pscopompo, dentre outros.


características de intencionalidade privadas, como é o caso dos
Katádesmoi.
Na tentativa de definir magia, Montero (1986) chega a algumas
DVVHUWLYDV GH FRPR HOD SRGH VHU FRPSUHHQGLGD H WUDEDOKDGD ³FRPR XP
sistema que se organiza para compreender inteleFWXDOPHQWH R PXQGR´
(MONTERO, 1986, p. 21)6HQGRDPDJLD³XPVLVWHPDGHSHQVDPHQWRTXH
SUHVVXS}H D DomR UHJXODU H PHFkQLFD GD QDWXUH]D´ (MONTERO, 1986, p.
22) com leis específicas e manipuláveis a partir de ritos mágicos. A autora
GHIHQGH TXH D ³PDJLD p Xm rito mágico essencialmente voltado para a
REWHQomR GH HIHLWRV SUiWLFRV´ (MONTERO, 1986, p. 31) e que, dessa
maneira, possui condições de realizar a solicitação feita ao mago. Isso é
possível observar nos Katádesmoi, a partir do momento que nos atentamos
a intencionalidade do mesmo, que pressupõe uma eficácia prática em fazer
mal ao inimigo. Essa eficácia também é atestada por Maria Regina Candido
(2004), ao ressaltar que os Katádesmoi eram confeccionados em chumbo
devido a sua durabilidade, dentre outras funcionalidades rituais, o que
representava a durabilidade da imprecação, para que esta pudesse ser
efetuada sem interferências da destruição do material do ritual.
Outra motivação, segundo a autora, do uso deste material para a
confecção das lâminas seria sua temperatura fria e cor cinza que eram
associados a morte, e, portanto, o tornava mais propício para o uso nas
imprecações. Além disso, a autora cita que essas imprecações não
aparecem nos processos jurídicos atenienses, fato que ela atribui a eficácia
dessas práticas dentro do sistema mágico (CANDIDO, 2004, p. 54). Este
elemento citado pela autora, corrobora a proposição de Mauss e Hubert, em
que a magia é feita as margens da sociedade (MAUSS & HUBERT, 1970,
p. 71), de uma maneira oculta, pois uma vez que os Katádesmoi fossem
apresentados ao tribunal ateniense, este estaria assumindo uma forma
publicizada.


Além disso, este elemento caracteriza um distanciamento entre magia e
religião, que apesar de não serem opostas, apresentam proximidades e
distanciamentos. Os ritos mágicos têm por característica sua realização em
espaços mais reservados e/ou na natureza, com a presença de feiticeiros ou
magos, já os ritos religiosos são realizados em meios públicos, com
sacerdotes e em locais mais visíveis (MAUSS, 2000, p. 22). Isso é possível
observar em Atenas a partir dos locais de realizações das cerimônias da
religiosidade oficial da polis, estes possuíam datas festivas que constavam
no calendário da cidade, com locais específicos e pré determinados
(VERNANT, 2012, p. 29). Já os ritos mágicos, mais especialmente os
Katádesmoi, eram realizados em locais de pouca circulação diária, como
por exemplo o Cerâmico (CANDIDO, 2004, p. 61). Este possuía grande
passagem de citadinos e estrangeiros, por se encontrar na via principal.
Entretanto, a passagem era pouca nos locais em que mais possuíam
sepultamentos. Portanto, os locais utilizados para a realização desses rituais
e o depósito dessas lâminas eram razoavelmente isolados, como
pressupunha Mauss ao discorrer acerca das práticas mágicas e suas
necessidades peculiares (MAUSS, 2000, p. 57).
Maria Regina Candido defende que a magia, enquanto prática, possuía a
função de aliviar sentimentos e frustrações, com certa marginalização
social, que não possuem saídas racionais, sendo ela uma forma extralegal
de conseguir atender seus desejos privados. As práticas mágicas também
possuiriam um encorajamento pela necessidade humana de ter uma
manifestação do poder supremo (CANDIDO, 2010, p. 29). Uma vez que
não existia uma separação de deuses entre a magia e a religião, como no
caso ateniense. (VVD DXWRUD FRPSUHHQGH ³D PDJLD GRV Katádesmoi como
uma prática do desvio à religião poliade e que emergiu em meio ao
contexto GH FULVH GH FUHQoDV H YDORUHV´ DVVXPLQGR DVSHFWRV QHJDWLYRV
perante a sociedade (CANDIDO, 2004, p. 105). Entretanto, é evidente que


a dicotomia entre ambos, clara na assertiva da autora, não permeia todas as
relações existentes, pois nas lâminas a complementariedade evidenciada
por Mauss se torna mais presente, uma vez que os deuses utilizados
permeiam ambas as categorias, por exemplo.
Ainda na tentativa de compreender o que seria magia dentro do contexto
FOiVVLFR DWHQLHQVH 0DULD 5HJLQD &DQGLGR DVVXPH TXH D ³>@ PDJLD GRV
Katádesmoi é uma forma alternativa de alguém acreditar ter a possibilidade
de assumir o controle de seu próprio destino.´ (CANDIDO, 2004, p. 105),
sendo ela compreendida como um meio silencioso de agir contra o inimigo
e meio de mudar a visão de mundo de seu solicitante. O que tornaria o
controle total dos deuses, na vida dos homens, algo menos presente ou ao
menos contestável na sociedade poliade.
Um dos principais elementos que corroboram tal complementariedade,
defendida por nós, é a necessidade da tradição para manter os ritos
mágicos, defendida por Marcel Mauss, com quem concordamos neste
trabalho. Isso é percebido ao analisarmos que os deuses são utilizados em
ambos, tanto nas práticas mágicas dos Katádesmoi quanto na religiosidade
ateniense. Segundo Maria Regina Candido os deuses que mais aparecem
nas lâminas são Hermes, Hécate, Perséfone e Cérbero (CANDIDO, 2010,
p. 49). Hermes, por ser o deus das travessias e o responsável pela travessia
da alma do mundo dos vivos para o mundo dos mortos, foi um dos mais
invocados nas imprecações encontradas. Já Cérbero era invocado, por ser o
cão guardião do Hades e do Palácio de Hades e Perséfone, representava
uma ideia de limiar entre ambos os mundos. Esses deuses invocados nas
imprecações estavam presentes e possuíam ritos em sua homenagem na
religiosidade cívica, mais uma vez é possível considerar a
complementariedade aqui defendida e não a dicotomia entre ambas as
práticas do período.


Logo, magia e religião não poderiam ser compreendidas como
dicotômicas dentro do mundo clássico ateniense, não apenas pelos usos dos
mesmos elementos nos ritos mágicos, mas pelas próprias peculiaridades
existentes dentro da religiosidade do mesmo local e período. A religião era
um elemento presente no cotidiano dos cidadãos atenienses (VERNENT,
2006, p. 59), e até mesmo de seus citadinos, a partir do momento que estes
participavam indiretamente da movimentação que ocorria para a preparação
dos rituais religiosos (VEGETTI, 2010, p. 252). A própria tradição,
defendida por Mauss, como elemento necessário para a prática mágica,
estava presente, uma vez que DUHOLJLRVLGDGHJUHJD³FRQVLVWHQDREVHUYkQFLD
GRVFXOWRVHULWRVSUHVFULWRVSHODWUDGLomR´ (VEGETTI, 2010, p. 233).
Outro aspecto que atesta a proximidade de ambas as práticas seria a
importância do uso de outros elementos desta religiosidade. Segundo
Vernant (2006) essa religião cívica baseava-se no uso de seus elementos, o
que é próximo das práticas dos Katádesmoi, pois, como Candido (2004)
defende, sua eficácia se dá a partir da observância do correto uso dos
elementos e das etapas previstas pela tradição. Sendo essas manifestadas de
três maneiras diferentes nesta religiosidade: o mito, o rito e a representação
figurada podendo ser verbal, gestual, dentre outros (VERNANT, 2006, p.
24). Tais elementos podem ser observados nas etapas a serem cumpridas na
produção das lâminas de imprecação (CANDIDO, 2004, p. 74). Um
exemplo dessa proximidade seria a necessidade do solicitante ver a
confecção da lâmina como forma de atestar sua eficácia, o que se compara
a necessidade da observância dos cidadãos em alguns rituais religiosos
atenienses10.
*HHUW] HP VHX OLYUR ³$ ,QWHUSUHWDomR GDV &XOWXUDV´ QRV IRUQHFH XPD
definição de religião que será adotada no presente trabalho, como crivo

10
Acercada da relação mito e rito ver: LÉVI-STRAUSS, Claude. A eficácia
simbólica. Antropologia estrutural, v. 5, 1975.


para compreender este conjunto de elementos que tanto se articulam com as
práticas mágicas, também, aqui debatidas. Para este autor a religião é um
sistema de símbolos que atua para estabelecer e manter disposições e
manutenções nos homens, por meio da formulação de conceitos,
transformando aquilo que motivam em uma realidade (GEERTZ, 2012, p.
67). Símbolo seria algo usado para qualquer objeto ou ato que serve como
vínculo para a compreensão de algo (GEERTZ, 2012, p. 67), como a noção
divina, por exemplo.
Assim como a magia, as práticas religiosas possuem símbolos
(GEERTZ, 2012, p. 67) que precisam ser compreendidos e inseridos na
FXOWXUD GH GHWHUPLQDGD VRFLHGDGH 6HJXQGR *HHUW] D FXOWXUD ³>@ denota
um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em
VtPERORV>@´(GEERTZ, 2012, p. 66). Esta também é compreendida como
³[...] um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas
SRU PHLR GDV TXDLV RV KRPHQV FRPXQLFDP >@´ (GEERTZ, 2012, p. 66).
Esses símbolos religiosos representam a congruência entre o estilo de vida
e o que está além da vida humana, o sobrenatural, logo a religião seria algo
que ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica, podendo se tornar
material (GEERTZ, 2012, p. 67 e 70).
As discussões acerca da teoria empreendida pelo autor para chegar a
essas definições são realizadas a partir da constatação que este permanece
muito próxima da desenvolvida por Malinowski, no qual a religião ajuda as
pessoas a suportarem momentos de tensão e pressão emocional. Pois, a
religião possui a noção de que esta tem a funcionalidade de confortar o
sofrimento, torna-lo tolerável. Portanto, ela ancora os recursos simbólicos,
como meio de expressar sentimentos, inclusive através de rituais
(GEERTZ, 2012, p. 76). Entretanto, o pressuposto fundamental para a
presença e a participação de uma religião seria a crença na mesma
(GEERTZ, 2012, p. 81), o que é perceptível na religiosidade grega ao


pensarmos em seu panteão e calendário de cultos, por exemplo, que
pressupunha uma série de festividades em honra aos deuses (ZAIDMAN,
2010, p. 146).
Religião passa a ser compreendida como uma perspectiva religiosa, que
difere de outros elementos da vida cotidiana e contribui para a
compreensão da realidade, mesmo que esta seja construída a partir de
elementos dessa religião (GEERTZ, 2012, p. 82). O autor compreende
perspectiva como um modo de ver as coisas, uma forma particular de
apreender o mundo sob algum crivo (GEERTZ, 2012, p. 81). Aqui
partiremos do crivo da religião ou religiosidade, no caso ateniense. Essa
religiosidade seria pautada na ação que gera um ritual, um comportamento
consagrado, e é a partir dele que surge convicções e diretrizes que
continuam guiando as ações das pessoas que creem. Neste ponto é possível
compreendermos mais um aspecto de interseção entre a religiosidade cívica
ateniense e a prática de magia dos Katádesmoi, pois estes últimos
compartilham essa noção de perspectiva e realidade a partir da criação e
utilização de símbolos, sem elos materiais, as lâminas de chumbo, sejam
elas sobrenaturais, os deuses do panteão.
Outro elemento que converge para essa articulação de
complementariedade que defendemos é o uso do ritual como uma maneira
de fundir o mundo sobrenatural e o mundo vivido, por meio de um
conjunto de formas simbólicas (GEERTZ, 2012, p. 82). Sendo os símbolos
para os Katádesmoi a utilização de etapas que devem ser observadas, assim
como materiais específicos a serem utilizados (CANDIDO, 2010, p. 74),
como veremos mais a frente. Geertz defende que são as experiências rituais
mais públicas que geram uma consciência espiritual (GEERTZ, 2012, p.
82), entretanto as práticas mágicas também se utilizam dessa consciência,
pois utilizam os mesmos símbolos da religiosidade e se mantem a partir da
tradição (MAUSS, 2000, p. 84) que lhe foi permitida por meio desses


mesmos elementos.
Entretanto, essa religião só é vivenciada pela maioria dos homens em
alguns aspectos de suas formulações (GEERTZ, 2012, p. 87), não
acessando seus símbolos por inteiro. Este universo comtemplaria uma
concepção individual de mundo estabelecido (GEERTZ, 2012, p. 87), mas
sim como um reflexo da vida cotidiana (GEERTZ, 2012, p. 87). Esta
compreensão nos aproxima da individualidade da prática mágica defendida
por Maria Regina Candido (CANDIDO, 2004, p. 22), que seria direcionada
aos interesses particulares dos citadinos atenienses.
Portanto, definir magia tem sido algo custoso para os mais diversos
âmbitos das ciências sociais, todavia sua caracterização nos permite
estabelecer um contraponto, não uma dicotomia, com a
religiosidade/religião. Definir magia como um contraponto da religião seria
uma alternativa simplista para a questão que aqui propomos. Segundo
Montero, D³PDJLDWUDEDOKDULDFRPIRUoDVTXHVHULDPLPDQHQWHVjQDWXUH]D
HQTXDQWRDUHOLJLmRYHQHUDULDIRUoDVWUDQVFHQGHQWHV´ (MONTERO, 1986, p.
8), sendo essas suas características mais primordiais. Ainda neste
FRQWUDSRQWRSRGHPRVFRPSUHHQGHUTXH³PDJLDVHGHILQLULDFRPRXPFXOWR
individual, tendendo para o privado, enquanto religião constituiria um
IHQ{PHQRFROHWLYRHS~EOLFR´ (MONTERO, 1986, p. 8). Tendo essa autora
GHIHQGLGR TXH ³D PDJLD p SRU GHILQLomR REMHWR GH XPD FUHQoD D SULRUL´
(MONTERO, 1986, pp.12). Mauss e Hubert (1970) entendem que os atos
de mágicos VmR ³PHQRV S~EOLFRV´ VH FRPSDUDGRV DRV GHPDLV DWRV H ULWRV
sociais, sendo este um ponto que aqui concordamos com os autores ao
analisarmos os ritos mágicos associados aos Katádesmoi, pois esses ao
serem realizados em locais distantes da circulação das pessoas, possuem
um caráter mais marginal11 em relação à sociedade.

11
8VRDSDODYUD³PDUJLQDO´QHVWHWUDEDOKRQRVHQWLGRGHDVPDUJHQVGHDOJRHQmRQRVHQWLGR
pejorativos, que esta palavra pode assumir,


Notavelmente esse contraponto nos coloca questões interessantes para
que possamos refletir acerca da natureza da magia e de suas práticas, porém
não podemos deixar de nos atentarmos para as diversidades de cultos,
crenças e práticas mágicas que podemos encontrar em um microcosmos
como Atenas. Portanto, devemos salvaguardar os estudos de caso para
compreendermos melhor a dinâmica desses dois pontos que permeiam a
sociedade, tendo como base essas conceituações supracitadas.


2. KATÁDESMOI E A APLICAÇÃO DA MAGIA NO CONTEXTO
ATENIENSE

Os Katádesmoi são placas e/ou lâminas de chumbo gravadas com


imprecações a fim de agir diretamente em questões pessoais dos citadinos 12
atenienses. Seu uso pode ser analisado sob diversos crivos, optamos pelas
implicações sociais do mesmo, assim como em explorar seus usos dentro
de uma lógica políade já estabelecida pelos habitantes. Essas lâminas foram
encontradas depositadas em locais como cemitérios, fontes e em alguns
santuários (CANDIDO, 2004, p. 61). Os que mais nos trazem informações
sobre as práticas rituais em si são os encontrados em cemitérios, mais
especificamente no cemitério do cerâmico (Keraimekos), onde foi
encontrado um número significativo destes objetos, se comparados aos
demais locais.
Tais lâminas ainda se constituem como um objeto de estudo envolto de
diversas dificuldades de análise, o que não nos impede de trabalhá-las em si
e em seu contexto. Podem ser consideradas suportes simbólicos
(BOURDIEU, 2009, p. 172), como um instrumento ritual, com um objetivo
primeiro de fazer mal a um inimigo, o que era compreendido como um
direito previsto e legítimo dentro da sociedade. Entretanto, era de extrema
importância para que esse direito fosse exercido que o agressor fosse
delimitado com precisão, para então a vingança ser efetuada (CANDIDO,
2004, p. 33), essa característica vai poder ser analisada nas lâminas que este
trabalho se ocupa.
Iremos nos ater a este objeto que foi largamente encontrado entre o
século V a. C.13 até meados do IV século, momento em que tais objetos

12
Faço esta escolha, pois me refiro a todos aqueles que possuíam residência e moradia na asty de
Atenas, ou seja, no espaço ³XUEDQR´ H VXDV SUR[LPLGDGHV ,QFOXR PHWHFRV HVWUDQJHLURV
cidadãos, escravos e toda sorte de pessoas que tinha suas relações ali estabelecidas.
13
Todas as datas a seguir são anteriores a Cristo, salvo quando indicado.


foram amplamente encontrados, na polis de Atenas, ou seja, seu período
clássico. Mais especificamente utilizarei aqueles encontrados no cemitério
do Cerâmico, por esses estarem mais intimamente ligado a morte e ao
morto, tanto intencionalmente quanto espacialmente. Defendemos que esta
SUR[LPLGDGHSRVVXtDXPDVLJQLILFkQFLDPDLRUSDUDDLQWHQomRGH³ID]HUPDO
DR LQLPLJR´ &ANDIDO, 2004, p. 76), intenção elementar da produção
desses artefatos. Entretanto, segundo Candido, essa não seria seu único
intuito, tais lâminas tambpP SRGHULDP DJLU QD ³GHVWUXLomR´ GR DOYR GR
solicitante, ou em sua paralização momentânea, para que este não pudesse
realizar algo que prejudicasse o solicitante. Segundo a autora, essas práticas
PiJLFDV VHULDP ³IRUPDV DOWHUQDWLYDV GH YLQJDQoD´ &$1','2 004, p.
19) utilizadas pelos citadinos atenienses, sendo essas lâminas pertencentes
à categoria de cultura material, fornecida pela arqueologia, como melhor
forma de aferir processos de mudanças na sociedade políade ateniense
(CANDIDO, 2004, p. 55). Na figura 1, abaixo, podemos observar a
localização do referido cemitério na polis ateniense.

Figura 1. Mapa da polis de Atenas, indicando geograficamente, a


localização do cemitério do Cerâmico no círculo vermelho.

Esses artefatos arqueológicos possuíam como principal depósito os


sepultamentos de mortos específicos como: crianças, assassinos e mulheres
que morreram no parto (CANDIDO, 2004, p. 73), ou seja, de pessoas que
faleceram antes do tempo social da polis, que previa que um cidadão
deveria cumprir obrigações políticas e/ou de procriação para a cidade. As
psyches14 desses mortos eram agentes nesses rituais feitos pelos magoi15
com o intuito de fazer mal a um inimigo, a partir do requerimento de um
solicitante e da manipulação dos objetos para tal (CANDIDO, 2004, p. 76).
Isto já denota um uso desse morto para outras finalidades, como veremos
mais a frente.
Segundo Vernant (2002, p. 74) o final do século VII e o século VI
a.C., conhecido como período arcaico ateniense, foi um momento marcado
por uma crise política, econômica e religiosa, com conflitos internos e a
possibilidade da estruturação da polis. Candido concorda com Vernant ao
defender que tais lâminas são produtos de uma crise ateniense (CANDIDO,
2004, p. 17), que seria proveniente deste período arcaico. Porém, Candido
defende que os Katádesmoi eram utilizados por pessoas de muitos recursos,
principalmente cidadãos abastados. Todavia, esta autora não nos deixa
claro o momento de surgimento desta prática, apenas ressaltando o período
de proliferação da mesma. Isto nos deixa indícios da possibilidade do
surgimento dessas lâminas, enquanto práticas mágicas, ainda no período
arcaico, apenas se popularizando no período clássico ateniense. Entretanto,
no presente trabalho, por nos propormos a compreender o período clássico,
não iremos nos ater a questões de origem dessas práticas, porém

14
Compreendemos aqui psyché como sinônimo de alma, de espírito do morto que adentra o
Mundo Inferior.
15
Plural da palavra grega magos, que se refere à pessoa detentora de um saber fazer, de uma
técnica mágica.


consideramos importante ressaltar este caminho possível.
A partir desta concepção defendemos que não é possível estabelecer
uma datação precisa para o início do uso dos Katádesmoi. Porém, é
pautado, também, nesta crise que tais práticas puderam se proliferar, mas
não necessariamente ter seu surgimento primeiro. Desta maneira, estes
podem ser compreendidos como uma reação social às questões que
estavam em pauta no momento. Logo, iremos nos ater ao período clássico
ateniense por considerarmos que este, além da maior proliferação já citada,
seria mais representativo como prática mágica relacionada ao fator social.
Aqui compreendemos o social segundo a concepção de Marcel Mauss
(2000), que defende que este é um conjunto de representações simbólicas
que caracterizam pessoas e coisas relacionadas a elas (MAUSS, 2000, p.
43). Sendo a magia um sistema simbólico no qual se compõe por uma
construção coletiva (MONTERO, 1986, p. 6).
Candido também defende que a popularização dessa prática mágica
se deu a partir de uma descrença na religiosidade e na política da polis,
como meio de resolução de problemas privados ou poliades (CANDIDO,
2004, p. 33). Entretanto, o próprio fato destas lâminas independerem do
sistema de tribunais dos cidadãos e de pressupor o atendimento de questões
particulares como afirmado por Candido, demonstram que o uso dos
Katádesmoi era possível aos citadinos, mesmo que não utilizado por todos,
sendo este o ponto de vista que aqui defendemos.
Sua realização dependia de elementos disponíveis aos citadinos,
mesmo que não fáceis de encontrar, a priori, como os magoi e o cemitério
do Cerâmico, dentre outros. Outro elemento que corrobora esta proposição
é o fato de haver Katádesmoi com imprecações motivadas por amor,
realizadas por mulheres, muitas vezes cortesãs, para que o seu objeto de
desejo permanecesse apenas com ela e não com outras profissionais
(CANDIDO, 2004, p. 51). Segundo a mesma autora, o chumbo era um


material maleável e de baixo custo, presente em Atenas, o que suporta
nossa análise de que essa prática de imprecação tinha como característica
sua acessibilidade.
Tomando isso por base, os katádesmoi compreendiam um sistema
coletivo a partir do momento em que se apropriavam de elementos
presentes na sociedade ateniense. Além disso, estavam inseridos em um
contexto de um rito especifico, com necessidades próprias ± assim como as
práticas religiosas usualmente também utilizavam ritos para se comunicar
com os deuses ou para qualquer outro tipo de necessidade. Consideramos o
ULWR FRPR XP ³DWR JOREDO TXH S}H HP MRJR R IXQFLRQDPHQWR PHQWDO H
emocional dos indivíduos e dos grupos.´ (ZAIDMAN, 2010, p. 19), assim
FRPRR³[...] rito mágico: [é] qualquer rito que não faça parte de um culto
organizado, [é um] rito privado, secreto, misteriosos e tendendo, como
limite para o rito proibido.´ (MAUSS, 2000 p. 23). Este também é
compreendido como uma ação tradicional eficaz dentro de uma sociedade,
que são definidos em relação aos outros elementos e não em si, pois esses
são atos simbólicos e todos estes são eficazes (HUBERT & MAUSS, 1970,
p. 71).
O rito, assim como os mitos, tem a pretensão de agir sobre o mundo
natural e social, a partir de seus elementos e suas práticas. Por essa
necessidade há a dimensão da linguagem, que nela se insere as palavras e
os gestos (MAUSS, 2000, p. 17). Em contextos rituais estão sempre
presentes aspectos da fala, sendo esta de grande importância para a
realização dos mesmos. Para Mauss (2000) as práticas mágicas possuem
uma linguagem própria que é usada para confecção de tais ritos e para
garantir sua correta realização e eficácia. Conjuntamente a isso, este autor
ressalta a importância da entonação da linguagem a ser entoada para a
produção do ritual.
Os ritos eram dependentes de um interlocutor, entretanto este não


precisava ser humano, poderia ser do mundo das divindades. Eles utilizam
as significações sociais da visão mítica corrente do período. Essa dimensão
também assumirá uma eficácia mágica, que institui magicamente o que tal
linguagem diz, de maneira performática (BOURDIEU, 2009, p. 59,155 e
185). Para os Katádesmoi essa eficácia ritual por meio da fala se dá de
maneira mais clara, pois o que legitimaria o processo seria a crença do
próprio magos e do solicitante da imprecação. Tais elementos que o
caracterizam podem ser analisados tanto nas lâminas de chumbo, quanto
nas práticas da religiosidade cívica, que serão desenvolvidos ao longo deste
capítulo.
Segundo Vernant (2006), a fala, por meio da oralidade, se configura
como um elemento de suma importância para a caracterização e
manutenção dos ritos religiosos na Atenas clássica, sendo este ponto
corroborativo à complementariedade entre essa religiosidade ateniense e as
práticas mágicas do mesmo período.
Segundo Candido essas lâminas de chumbo eram fabricadas e
ritualizadas pressupondo dois participantes: o magos e o solicitante.
Defendemos aqui, concordando com a autora, que ainda assim, essa seria
uma prática mágica de caráter privado. Esse aspecto é visto uma vez que
comparamos os interesses da religiosidade cívica com esses rituais
mágicos. Enquanto a religiosidade pressupõe preocupações e elementos de
resolução públicas para os mesmos, as práticas rituais dos Katádesmoi
pressupõe a resolução de problemas de cunho mais particular. A primeira
incluindo todo o corpo de cidadãos e a polis, sendo essa sua principal
motivação. Já o segundo, relaciona-se ao próprio solicitante ou o grupo
específico ao qual ele está inserido, como por exemplo, de uma oficina de
cerâmica, em Atenas. Assim, com as imprecações, a prática pressupõe
particularidade, possuindo apenas o solicitante e/ou conjuntamente com o
magos (CANDIDO, 2004, p. 61).


As etapas necessárias para a efetivação das práticas mágicas por meio
desses artefatos arqueológicos necessitavam da presença do solicitante da
magia, pois proporcionava uma noção de "ver com os próprios olhos", o
que Vernant apud Candido (2003, p. 131) denomina Ekphrases. O autor
define como a possibilidade e a capacidade do solicitante apreender e
observar a imprecação e seu resultado com os próprios olhos. Essa ação
teria efeito direto na realização do ato mágico. Este fator teria a função de
caracterizar maior possibilidade de efetivação da solicitação feita, de uma
maneira que os espíritos pudessem identificar o solicitante sem lhe causar
danos. Essa presença também atestava a credibilidade do magos que estava
realizando o ritual mágico, pois acompanhar a realização dos ritos era uma
das formas de atestar o saber fazer do magos (CANDIDO, 2004, p. 64).
Essa assertiva é corroborada por Mauss (2000) quando afirma que a magia
está diretamente associada à uma técnica e que sem a mesma o rito não
possui a mesma eficácia (MAUSS, 2000, p. 17). Além disso, segundo
Montero, apenas se procura o mago quando se acredita em sua capacidade
de realizar o ato mágico que se busca. Concordamos com essas afirmativas
ao analisarmos os Katádesmoi, pois esses apresentam uma necessidade de
elaboração ritual, com etapas bem definidas, para que sua eficácia seja
garantida (CANDIDO, 2004, p. 74).
Essa credibilidade deveria ser testada e legitimada pelo solicitante a
partir de uma série de elementos a serem cumpridos pelo magos que
estavam previstos como a própria fabricação dos Katádesmoi (CANDIDO,
2004, p. 74). Esses artificies, segundo o Estruturalismo, agiriam na
produção desses artefatos, a partir dos signos que estruturavam a sociedade
e não a partir de conceitos compreendidos no âmbito da ciência moderna
(MONTERO, 1986, p. 58; BARNARD, 2004, pp. 125). Estas lâminas
deveriam ser produzidas em chumbo, com as escritas do nome da pessoa


alvo da imprecação, podendo ou não utilizar seus demóticos 16, sendo esta
fabricação com uma figura humanoide ou apenas em formato de lâmina.
Caso existisse essa figura humanoide outros preceitos deveriam ser
observados: como a necessidade da escrita desse nome na perna direita e a
presença de genitálias deveria ocorrer de maneira exagerada, para ressaltar
o gênero do inimigo. Esta poderia ou não vir envolta de uma caixa de
chumbo. Em caso positivo as inscrições viriam nesse recipiente e não na
figura humanoide (CANDIDO, 2000, p. 74). Todas essas características
presentes nos Katádesmoi tinham como intuito a identificação exata
daquele a que se referia a imprecação, característica necessária para
legitimar seu direito a vingança, assim como os responsáveis pela
manipulação da vítima da imprecação (CANDIDO, 2004, p. 76). Segundo
Mauss (2000) o nome é um meio de personificação daquele que deve ser
atingido pela imprecação (MAUSS, 2000, p. 96), sendo assim podemos
compreender que esta característica dos Katádesmoi pode ser lida pelo viés
francês da antropologia da magia.
Além dessas etapas a serem observadas pelo magos, esse deveria estar
atento às palavras proferidas, não apenas escritas, durante o ritual. Segundo
Mauss e Hubert (1970), a eficácia da palavra dialoga com a eficácia dos
ritos que eram realizados e esses necessitavam de uma fórmula para a sua
confecção e completa realização, conforme Mauss postula (MAUSS, 2000,
p. 68). Segundo Candido, a confecção das lâminas de chumbo deveriam
observar as etapas já anteriormente descritas e que possuíam fórmulas bem
definidas. Mauss afirma que todo ritual deve possuir essas características.
Neste ponto, compreendemos que ambos os autores concordam com
algumas características presentes nas práticas mágicas. Tendo isso como
base, defendemos que essas imprecações deveriam possuir eficácia mágica

16
Referência à origem da pessoa, ao demos ao qual esse citadino faz parte. Provavelmente mais
utilizado em cidadãos.


para que os objetivos do solicitante fossem alcançados, também a partir dos
ritos, pois sem ela as pessoas não continuariam acreditando e realizando
práticas mágicas (MONTERO, 1986, p. 7). Segundo Montero, essa
dimensão se dá devido à crença que as pessoas solicitantes depositavam no
poder místicR HYRFDGR H DWULEXtGR DR ULWXDO ³D PDJLD IXQFLRQD SRUTXH DV
SHVVRDVFUHHP´ 0217(52, p. 61).
A partir da perspectiva de Bourdieu acerca da relação da linguagem
com as práticas rituais (BOURDIEU, 2009, p. 59) percebemos que esta
linguagem nas lâminas de chumbo depende de um interlocutor, para que
essa etapa seja cumprida e se possa dar continuidade ao rito. No caso por
nós estudado esses interlocutores são as divindades ctonianas que são
invocadas para agir de acordo com a vontade do solicitante As práticas
mágicas tinham uma relação com a linguagem, assim como a religiosidade
oficial, por meio de verbos e nomes que eram inscritos pelo solicitante e
produtor do material para o rito mágico ± magos ± a divindade se tornava
irredutível, na qual não seria mais possível desvincular a imprecação, seu
ritual e a solicitação. A linguagem, acima de tudo a fala, vai assumir local
de destaque nessa prática ritual (MAUSS, 2000, p. 68) em que os
Katádesmoi estão inseridos. Nesta fala era comum que o magos invocasse,
primeiramente, um poder divino ± Diké ± uma deusa associada à justiça
(VERNANT, 2002, p. 79), pois partia-se do princípio que o solicitante
buscava esta por meio dos Katádesmoi. É importante ressaltarmos que era
viável a presença dessa escrita para o cumprimento dos ritos, uma vez que
a mesma estava amplamente difundida na polis, por fazer parte da
Paideia17 ateniense.
A partir das características já demonstradas da escrita na sociedade
ateniense, como sua difusão, a qual as lâminas estão associadas,

17
Paideia é o conjunto de ensinamentos que fazem parte do processo de aprendizagem do
cidadão ateniense.


compreendemos que esta nuance era possível a todos. Pois, além de estar
presente na Paideia, ela também estava na redação de leis e em ações
políticas, como por exemplo as ostracas18. Isso demonstra que o
conhecimento da escrita era algo que poderia ser sabido pelos citadinos,
logo era possível a todos (VERNANT, 2002, p. 56). Portanto, o uso desse
elemento na confecção dos Katádesmoi nos mostra que tal prática mágica
também seria possível a todos e não apenas um elemento requisitado e
produzido pelas elites de Atenas, a aristocracia.
Os ritos para terem essa eficácia, além de cumprir as etapas citadas
anteriormente, era necessário que apresentassem os gestos como forma de
linguagem (MAUSS, 2000, p. 17), assim como ser confeccionados nos
materiais previstos, como no chumbo no caso dos Katádesmoi (CANDIDO,
2004, 65). É possível percebermos algumas características rituais e físicas
dentro da análise da magia dessas lâminas. Estas foram divididas, por
Candido, segundo suas intencionalidades e locais de atuação. Assim temos
os Katádesmoi de amor, imprecações contra processos (litígios),
competições e de oficinas. As primeiras são relacionadas às
prostitutas/cortesãs que lançavam mão de uma imprecação com o intuito de
assegurar que seu cliente permaneceria com ela e não fosse procurar outra
concorrente. Para isso, desejavam, por exemplo, que o corpo do amado
ardesse em chamas. Além disso, muitos homens realizavam esse tipo de
Katádesmos no intuito de reaver seu objeto de desejo. A segunda agia em
processos nos tribunais e visavam atingir a língua do oponente, para que
não pudesse falar, exercer a palavra e a retórica no tribunal. Também podia
visar atingir os pés para que não caminhasse até a assembleia. Ou, ainda, as
mãos para que não escrevessem o discurso para outro falar. As imprecações

18
Ostracas ± pequenos cacos de cerâmica, usados para escrever o nome dos cidadãos que seriam
punidos com o ostracismo. Ação em que os cidadãos, em assembleia, decidiam aqueles que
estavam em posições favoráveis por muito tempo, ou que representavam risco à democracia
ateniense, e os exilavam fora da cidade pelo período de 10 anos.


de competições agiam, normalmente, em competições de esportes e
visavam partes do corpo. Parecidas com as de litigio quanto a ação junto ao
corpo do inimigo, porém com o intuito de inviabilizar o competidor de
desempenhar seu papel corretamente e de exercer os movimentos previstos
do esporte. Já as imprecações de oficinas eram realizadas, normalmente, de
um dono de uma destas para outro, visando a eliminação de uma
concorrência ou competitividade em um dado serviço (CANDIDO, 2004,
p. 63).
Outra característica descritiva desses artefatos arqueológicos foram os
locais em que foram encontrados, no qual presume ± se que foram,
também, depositados. Candido relaciona tais locais com o fator de esses
serem ligados a morte, como por exemplo, o Cerâmico como espaço de
depósito, pois este era o local de mais proximidade com os mortos. Os
poços seriam um local para essas imprecações por serem associados ao
Mundo Inferior que é comporto por inúmeros rios. Portanto, ao
depositarem nesses locais, o solicitante estaria enviando seu pedido
diretamente aos mortos que agiriam a seu favor. Outro elemento
representativo deste local seria a possibilidade de, ao colocar o Katádesmos
na água, o solicitante enviar a psyché de seu inimigo para o não lugar
intermediário do Hades, já que a água seria elemento de passagem para o
mundo dos mortos (CANDIDO, 2004, p. 75-76). Além desses aspectos
descritivos, a análise arqueológica nos permitiu colher alguns dados sobre
este ritual. O mais proeminente e significativo foi o fato de não terem sido
encontrado, aparentemente, vestígios de sangue nas lâminas de chumbo.
Isso denota que os rituais dos Katádesmoi não previam o sacrifício de
animais, o que os aproximava de alguns preceitos órficos (CANDIDO,
2004, p. 61).
A magia estaria vinculada diretamente a essas especificidades. Isso pode
ser observado quando nos voltamos para a religiosidade cívica e uma de


suas divindades denominada Peithó. Ela seria a divindade da palavra, da
eficácia da persuasão e das fórmulas (VERNANT, 2002, p. 54). Essa
deidade teria surgido no mundo grego a partir do advento da polis que
Vernant situa entre os séculos VIII e VII, no qual a palavra assume
proeminência frente a outros instrumentos de poder (VERNANT, 2002, p.
13) e torna-se meio de persuasão, de política e adquire um status de
verdade, passa a ser usada para os mais diferenciados fins. Rituais,
sacrifícios, debates políticos e libações, passam a ter como um dos
elementos centrais a palavra e, por consequência, a presença da divindade
Peithó, com usual invocação da mesma, para inspiração. Essa palavra deixa
de ocupar apenas espaços rituais e religiosos e ganhar o espaço do tribunal,
do discurso e da argumentação, ela passa a ocupar um local mais popular e
mais acessível. Esse processo ajudou sua consolidação na polis e de seus
habitantes, com sua consequente popularização enquanto veículo de
comunicação, da verdade e da publicização.
Tendo em vista esses elementos podemos afirmar que essa deidade já
estava presente e consolidada nas datas em que temos maior evidência
arqueológica dos katádesmoi ± século V e IV. Isso nos demonstra que não
apenas Peithó, mas a palavra, em si, já estava consolidada e ocupando essa
noção de verdade. Quem fala ou profere um discurso está falando a
verdade, a priori, quando as práticas mágicas de fazer mal ao inimigo estão
se popularizando, se tornando uma violência privada (CANDIDO, 2004, p.
22). Logo, é assertivo afirmar que tais práticas estavam se utilizando de
elementos da religiosidade cívica e da composição social para se
estruturarem, porém, além disso, estão construindo uma série articulações
para que seja possível alcançar os objetivos procurados. Mais uma vez
podemos visualizar essa articulação complementar existente entre a magia
e a religiosidade ateniense debatida no capítulo anterior.
Não apenas elementos da religiosidade ateniense, como também de um


cotidiano naturalizado dessa sociedade são apropriados para a realização
desses ritos, passam a utilizar elementos de uma tradição pré-existente
dentro dessa polis, que seria o pressuposto para a existência e consolidação
das práticas mágicas. Além disso, a repetição se apresenta como a
necessidade da mesma para que exista a consolidação do ato mágico
(MAUSS, 2000, p. 84).
É possível vermos isso não apenas nos deuses adotados nessas
práticas mágicas, que pertencem à religiosidade cívica, como também à
presença de uma literatura que ressalta a existência da magia em outros
tempos. A magia como uma techné está presente no canto X da Odisseia,
nas ações em relação à feiticeira Circe, o que denota a tradição mágica da
cultura grega, assim como o envolvimento dos deuses, principalmente
Hermes, com as técnicas de magia. A presença de ervas e seus usos para
evitar males, que ocorre nesta literatura, se apresenta como um exemplo
dessa magia na tradição escrita da polis. Com isso é possível
compreendermos a extensão dessa tradição, que estava presente na
sociedade ateniense. Sendo assim podemos atestar o pressuposto de Mauss,
em que ele afirma que para haver uma prática mágica em uma sociedade
esses rituais precisariam estar ligados à uma tradição preexistente e a um
ciclo de repetições de atos (MAUSS, 2000, p. 16). Neste caso, essa
continuidade é perceptível com os deuses usados nos Katádesmoi e na
própria narrativa que ressalta figuras mágicas, como Circe. Pensar em uma
magia não tão desviante da religiosidade cívica políade se torna
compreensível e possível.
Outro elemento a ser atestado pelo citadino seria o fato do magos
saber realizar as preces e invocações aos deuses ctonianos para que possam
mobilizar as psyché com o intuito de lançar esses elementos sobrenaturais
para agir diretamente no inimigo, a partir da imprecação realizada. O uso
de pertences pessoais da vítima também era uma prática comum e era


utilizada junto das lâminas de imprecação, tanto em seu ritual como em seu
depósito nos espaços devidos. Todo esse conjunto de práticas rituais tinha
por objetivo identificar e direcionar, o mais precisamente possível, a
imprecação para seu alvo.
A identificação se dava, principalmente, pela presença do nome e,
eventualmente, da presença dos órgãos genitais, dessa maneira aquilo que
era desejado para esse inimigo, assim como as forças que atuariam eram
direcionadas para o mesmo e instruídas a cumprir os malefícios pedidos e
inscritos nas lâminas, como parte ritual da solicitação e fabricação dos
Katádesmoi. Os pertences pessoais, como fios de cabelo, eram utilizados
com esse mesmo intuito, o de criar um vínculo entre os Katádesmoi e a
pessoa que por ele deveria ser atingida, garantindo maior possibilidade de
eficácia dessa prática mágica na pessoa desejada pelo solicitante
(CANDIDO, 2004, p. 75). O nome da pessoa a ser prejudicada assume
importância devido ao direcionamento mais preciso para a mesma, mas
também devido ao que ele representa. Segundo Montero, o nome denota
um local social a qual a pessoa pertence, envolve parte de sua
personalidade, assumindo demasiada importância para a identificação do
portador desse nome.
Os espaços onde eram depositados os Katádesmoi são de conhecimento
dos pesquisadores, pois temos contato com o registro arqueológico que nos
informa onde esta cultura material foi descoberta. Entretanto, permanece a
questão sobre a escolha desses espaços e sobre as motivações dessa
escolha, permanece ainda um caminho em aberto para se trilhar em futuras
pesquisas. Todavia, o que se percebe é uma relação dos locais de depósito
com aproximações com o Mundo Inferior19, como o cemitério do
Cerâmico, em que a maior parte do material foi encontrado. Locais como

19
Também referido como Mundo dos Mortos ou o Hades, local para onde iam as almas mortas.


poços, fontes e rios também foram relacionados como espaço ritual para
essas lâminas e associados ao mundo ctônico por suas características, como
umidade, ausência de luz, temperatura mais baixa, o que aproximaria estes
ao imaginário do Hades e de onde os deuses ctônicos e as psychés saíam
para realizar as vontades do solicitante.
Todas essas etapas do ritual deveriam ser observadas atentamente pelo
solicitante para que ele pudesse atestar a legitimidade do ritual, reafirmar o
conhecimento do magos e R ³VDEHU ID]HU´ H DPERV HP FRQMXQWR YDOLGDU D
imprecação e garantir sua eficácia. Isso era necessário para que esse magos
pudesse realizar outros rituais, já que sua técnica estaria reafirmada, e isso
só poderia acontecer pelo elemento simbólico do olho, do olhar. A ideia do
solicitante em acompanhar a imprecação seria de olhar a mesma e por meio
desse ato afirmar a verdade, assim como conferir mais poder e
possibilidade de que o Katádesmos agisse de acordo com a sua intenção.
Ao utilizar os mortos como agentes (CANDIDO, 2004, p. 73) de
uma ação ± fazer mal ao inimigo ± os magoi os invocavam, provocando sua
fúria ou apenas incitando sua raiva e a canalizando com um objetivo claro.
Esses mortos foram analisados por Mauss, em seu livro Teoria Geral da
Magia, onde HOHRVFKDPDGH³GHP{QLRV´ (MAUSS, 2000, p. 96). Segundo
este autor as práticas mágicas possuiriam a personificação do espírito a ser
usado nos rituais, por meio de seu nome, o que reafirma a importância
deste elemento dentro das imprecações atenienses, como ressaltado por
Candido (2004). Segundo este autor, os mortos poderiam se tornar os
espíritos a serem utilizados pelos magoi, em certas circunstâncias,
assumindo determinadas características, como as previstas na sua utilização
para os Katádesmoi. Portanto, podemos assumir que os agentes atuantes
QHVVDV OkPLQDV HUDP R TXH 0DXVV FKDPD GH ³HVStULWR´ HP VHX OLYUR
(MAUSS, 2000, p. 98). O nome atua como agente de personificação desse
espírito, assim como meio de alcançar o objeto da imprecação.


Entretanto, é preciso que pensemos nas oferendas oferecidas a esses
mortos por meio dos preceitos da religiosidade ateniense. Esse ritual tinha
como prática o depósito de comidas, enfeites, dentre outros, em datas
específicos e preestabelecidas, como nos ritos particulares e familiares
(CANDIDO, 2003, p. 123). Essas ofertas teriam por objetivo apaziguar
esse morto, torná-lo inofensivo, para que não pudesse causar nenhum mal.
Todavia, quando pensamos nas invocações dos mesmos para fazer algum
malefício, exceto os insepultos que não tiveram seus ritos funerários
cumpridos, as engrenagens que aí atuam se tornam mais complexas, pois
era da ordem do possível que o magos atuasse em alguma psyché que
recebesse essas ofertas. Era necessário que este provocasse a animosidade
desse morto, para que este agisse em prol do solicitante, de acordo com as
solicitações mágicas (CANDIDO, 2004, p. 61).
Tendo isso em mente nos fica o questionamento de como tais elementos
poderiam interagir e se esse morto invocado agiria contra um vivo, mesmo
tendo recebido as oferendas. Defendemos aqui, de acordo com Candido,
que nos casos dos mortos com violência eles agiriam sim em prol do
solicitante da magia, mesmo que estivesse recebendo os preceitos corretos,
pois sua raiva não poderia ser apaziguada com tanta facilidade, se
comparado aos demais mortos que não eram considerados aptos a serem
utilizados nos ritos mágicos. Contudo, não encontramos dados suficientes
para estabelecer o tipo de relação direta entre as oferendas e os mortos
invocados, fica o questionamento se esses mortos poderiam ser
apaziguados por meio de alguma oferta antes de realizar o mal ao qual foi
solicitado. Deixamos esse caminho aberto para futuras pesquisas.
Vernant IDODHPXP³PLVWLFLVPRJUHJR´SDUDFRPSUHHQGHURVFRQMXQWRV
de práticas religiosas ou mágicas, que tinham como principal intuito obter
um contato mais direto com as divindades, tais como os órficos,
pitagóricos, dentre outros (VERNANT, 2012, p. 69). Esse autor também


defende que tais correntes poderiam ou não ser absorvidas pelas ações e
crenças presentes na religiosidade cívica ateniense, em muitos casos
permanecendo às margens dessa sociedade, com suas práticas ocultas dos
demais, como afirma Candido (2004). Pensando nessa caracterização é
possível estender essa afirmativa do autor para o uso dos Katádesmoi, e
compreendê-los como uma prática mágica que possui essa intenção de se
aproximar mais diretamente da divindade, porém não com sacrifícios ou
práticas diárias, mas sim por meio das invocações. Não é possível afirmar
que este era o intuito principal, haja vista que essas lâminas visavam
prejudicar um inimigo, entretanto isso era feito a partir de invocações a
deuses ctonianos, de maneira direta. Portanto essa prática estaria dentro de
um misticismo grego como Vernant caracteriza, uma vez que evoca
diretamente os deuses e age com os mesmos, da mesma maneira que
compreende um rito com características específicas que dialogam com a
religiosidade cívica.
Neste mesmo viés de aproximação e diálogo entre essa magia do saber
fazer dos Katádesmoi e a religiosidade cívica, é possível compreender um
pouco mais dessa relação a partir da prática oracular, como Zaidman
(2010) nos apresenta. Ao pensar a caracterização das práticas religiosas
gregas, atenienses ou de suas colônias, essa autora ressalta o caráter
oracular presente nesses locais, assim como sua multiplicidade, fossem eles
por meio da Pítia, em Delfos, ou favas, delírio divino, dentre outros
(ZAIDMAN, 2010, 95). Um dos aspectos ressaltados seria a presença de
pequenas tabuinhas que foram encontradas em santuários oraculares,
presumivelmente, redigidas pelos consulentes que lá tentariam ido obter
respostas para seus questionamentos. Plaquetas essas que também eram de
chumbo (ZAIDMAN, 2010, p. 132). Infelizmente a autora não desenvolve
essa temática de maneira mais profunda ao longo de seu livro. Entretanto,
isso nos dá pistas não apenas de como as correlações são possíveis ao nível


do panteão grego, mas também ao nível de prática. É possível nos
questionar que a prática de confeccionar pequenas tabuinhas com
inscrições, com o intuito de obter algo, não era, necessariamente, novo na
sociedade ateniense, uma vez que essa polis tinha contato direto com o
oráculo de Delfos e outros.
A partir dessa linha de pensamento podemos compreender como as
relações se davam e como as práticas mágicas, enquanto práticas sociais
(BOURDIEU, 2009), puderam se desenvolver dentro de Atenas, de uma
maneira, mesmo que marginal, parcialmente aceita e compartilhada. O que
nos exemplifica o que Mauss defende ao afirmar que uma prática mágica
não surge sem a preexistência de uma tradição que pauta seu
desenvolvimento (MAUSS, 2000, p. 105). Para a existência desse conjunto
de ritos com o intuito de obter algo ± no caso dos Katádesmoi ± de fazer
mal ao inimigo, poderia ter se identificado e utilizado dessa prática das
tabuinhas que os consulentes depositavam, ou fabricavam nos santuários e
terem adaptado para seus próprios usos.
Bourdieu (2009) define práticas sociais como XPD³VpULHHVVHQFLDOPHQWH
OLQHDU´, com uma lógica própria que atende uma demanda social específica
((BOURDIEU, 2009. p. 138). É normalmente rígida com seus rituais e
eventuais sacrifícios. As práticas rituais seriam um desdobramento, uma
forma de exercer as práticas sociais no âmbito religioso ou mágico. Essas
teriam uma operação no campo da abstração e do discurso, como formar
componentes da mesma, atuando no campo da oposição ao normatismo
vigente e por consequência gerando oposições às mesmas, entretanto isso
não se dá de maneira clara.
Para Bourdieu ³>@ D SUiWLFD ULWXDO MDPDLV VH RS}H GH PRGR FODUR
aspectos que simbolizam alguma coisa e aspectos que nada simbolizam e
dos quais ela faria abstração >@´ (BOURDIEU, 2009. p. 145), sendo assim
ela continua gerando os sistemas opositores, sem se afastar completamente


do sistema vigente. &RPSUHHQGHPRV TXH ³a prática ritual é o conjunto
desses gestos [mágico/religiosos] associados em um contexto que, pela
multiplicidade dos objetos e das obras de arte, fala de uma piedade
partilhada e se dLULJH D VHQVLELOLGDGH H HPRomR´ 9(51$17  S
208).
Assim é possível compreender melhor quando analisamos os
Katádesmoi que, enquanto prática ritual, atende a uma demanda que a
religiosidade cívica não compreende, pXPDHVSpFLHGH³GHVHMRHV~SOLFDdo
GHVHVSHURFROHWLYR´ (BOURDIEU, 2009, p. 158). Todavia, permanece com
os elementos da mesma religiosidade, ressignificando-os para que dessa
maneira possa ser efetiva e reconhecida por seus praticantes. Portanto, as
imprecações enquanto práticas rituais, se manifestam com uma lógica
própria pautada em elementos já existentes na sociedade.
Neste ponto Bourdieu (2009) e Mauss (2000) dialogam em suas teorias
de maneia complementar e que usamos aqui para compreender as
imprecações, na forma dos Katádesmoi, como uma prática mágica. Agindo
em complementariedade à religiosidade corrente, utilizava os elementos já
presentes na mesma. Isso denota que, para a sua existência ser possível, foi
necessário que uma tradição estivesse estabelecida, a religiosidade, para
que só então as imprecações pudessem ser feitas, criando assim sua própria
tradição mágica.


3. ANÁLISE DO OBJETO
A partir dos elementos e conceitos até então debatidos nos propomos
neste último momento do presente trabalho a nos debruçarmos nos
Katádesmoi, enquanto cultura material. Compreendemos aqui a cultura
material como um meio físico apropriado socialmente pelo homem, que é
modelado pelo mesmo lhe dando formas segundo seus propósitos culturais.
São padrões que incluem projetos e objetos, abrangendo artefatos,
modificações em paisagens, dentre outros (MENEZES, 1983, p. 112). Para
tanto, os Katádesmoi, que aqui analisaremos, o faremos a partir da luz
dessa compreensão. Tais lâminas são, por nós compreendidas, como
elementos materiais apropriados pelos homens com um propósito.
Entendemos essa ação como uma prática social e como uma pratica ritual,
com seus elementos inseridos na lógica poliade ateniense.
Esta cultura material estava inserida em um contexto ateniense que
possuía suas próprias práticas culturais. Entendemos cultura a partir da
concepção de Shanks: como a produção de relações sociais dotadas de
significados, tanto próprios quanto pré-definidos, no qual uma ordem social
é comunicada, seja ela de cunho religioso, político ou em qualquer outra
instância (SHANKS, 2001).
Intentamos realizar sua análise por meio das fotos gentilmente cedidas
pela Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido (NEA/UERJ) à luz dos conceitos
debatidos até o presente momento. Importante ressaltar que todas as fotos e
traduções aqui utilizadas são provenientes deste mesmo catálogo, ainda não
publicado, por isso não citarei a mesma referência todas as vezes que o
utilizar.


Figura 2. Katádesmos de ofício. Gentilmente cedido do catálogo, não
publicado da Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido

Este Katádesmos, apesar de sua imagem não estar em boas condições,


nos permite analisar as mais variadas questões. Segundo as informações
cedidas por Candido, esta lâmina é uma imprecação de ofício, encontrada
no cemitério do Cerâmico e custodiada no Museu de Atenas. Teria sido
depositada aproximadamente no século V a. C., o que corrobora nossa
assertiva da proliferação desta prática no período clássico ateniense. Esta
lâmina possui: 5 centímetros de altura, 9 centímetros de largura e 1
centímetro de diâmetro, sendo de considerável espessura para uma lâmina
mágica de chumbo.
Ao analisarmos a materialidade deste Katádesmoi podemos
compreende-lo como um artefato arqueológico que dialoga com elementos
do Estruturalismo (BARNARD, 2004, pp. 125), desenvolvido no primeiro
capítulo, principalmente sua relação de signo e significado. Podemos então
compreender esta materialidade à luz dessa teoria para melhor analisar sua
composição física e ideacional. O índice seria representado pelo próprio
suporte material do Katádesmos e seu processo de produção a partir do


chumbo e dos rituais necessários para sua fabricação. O ícone estruturalista
é compreendido como a evocação do objeto em si, a partir do suporte
material, sendo este momento considerado, por nós, quando o magos evoca
as divindades ctonianas20 e a psyché para agir em prol do solicitante. Na
etapa do símbolo, enquanto a ausência de correlação direta dos
Katádesmoi, o suporte material, com o objeto em si, esses não mais
representam diretamente a psyché que vai realizar a magia solicitada, é uma
representação da estrutura, mas não mais o representante direto.
A partir do catálogo aqui utilizado, tivemos acesso a escrita original e a
tradução deste Katádesmos. Transcrevo abaixo a tradução realizada por
Candido:

³Lisanias soprado de prata


..ambos ele e a esposa
..também os negócios
..exercício da atividade
5. ..e os negócios
..também o desprezível
.os pés também
..a mente/raciocínio
..cabeça nariz [...]
..terra sagrada.........´

Ao analisarmos esta imprecação podemos ver o nome da vítima


Lisanias e sua esposa que devem ter seus pés, mente, cabeça e nariz
prejudicados para que não possam realizar uma atividade de negócios. Isso
denota que este Katádesmos é uma imprecação de ofício, pois está
atendendo o solicitante para que este possa preponderar nos negócios,

20
Deuses ligados ao Hades, Mundo Inferior, local mitológico que habita a alma dos mortos.


frente a Lisanias. Ao analisarmos esta tradução, podemos notar a palavra
prata, o que denota que o alvo desta imprecação possuía negócios na
produção de objetos de prata no período clássico ateniense e sua principal
função era soprar esta prata para que ela pudesse ser trabalhada e se tornar
cultura material. Apesar de não ser nosso objetivo, este artefato abre
caminhos para compreender o uso dos materiais neste período em Atenas.
Ao traçarmos as complementariedades entre magia e religião neste
período muito falamos acerca do uso dos mesmos deuses do panteão oficial
QDVLPSUHFDo}HVSDUD³ID]HUPDODRLQLPLJR´1HPWRGDVDVOkPLQDVHstão
em condições de serem analisadas em sua materialidade, entretanto
possuímos as traduções que muito podem nos dar uma luz acerca de suas
práticas. Neste âmbito o próximo Katádesmos possui apenas a transcrição e
os dados arqueológicos para serem analisados. Segue abaixo a tradução:

³Melano inscrevo embaixo... negócio alma atividade. Trabalho


pés mãos língua vontade
Também todos (estão) sob o trabalho de Melano. Hermes. Inscrevo
embaixo atividade negócio alma mãos habilidade
5 Atividade negócio alma e o que existe: Hermes arruíne junto.
Inscrevo Evagora mãos pés alma Língua atividade trabalho e
todas as partes dela. Inscrevo embaixo Biotea mãos pés alma
,QVFUHYRHPEDL[RWUDEDOKRKDELOLGDGHHWRGDVDVSDUWHVGHOD´.

Esta imprecação foi encontrada em uma sepultura próxima ao


Pireu21, datada no século IV a. C., porém o catálogo não nos fornece mais
informações físicas sobre esta imprecação. Entretanto, muito foi preservado
de sua escrita, para que pudéssemos obter diversas informações. Como

21
Principal porto de Atenas, responsável por boa parte da comercialização com localidades estrangeiras.
Também utilizado para entrada e saída de cidadãos e metecos.


podemos observar, esta é uma imprecação de ofício direcionada a Melano,
Evagora, Biotea e aqueles que estão sob seu comando e relacionados a seu
trabalho. Intenta-se afetar a alma, os pés, as mãos e a vontade de Melano,
os pés a língua, alma e todas as partes de Evagora e as mãos, os pés, a alma
e todas as partes de Biotea. A partir disso podemos compreender que não
apenas partes físicas são afetadas pelas imprecações, mas há também, a
intenção de paralisar a alma da pessoa, para que esta não tenha nenhuma
possibilidade de tentar resistir aos efeitos (CANDIDO, 2004, p. 72). Além
disso, a vontade também é alvo desse malefício, acreditamos que isso
denota o reconhecimento da psyché ainda nos vivos e o possível contato
dessa psyché com a do morto invocado para realizar a imprecação.
Outro elemento que podemos observar nesta imprecação é a presença
da invocação de um deus presente nos cultos da religiosidade cívica:
Hermes. Este é considerado um deus mensageiro, das travessias e da
passagem. Portanto, lhe é atribuído uma característica das passagens e pode
ser considerado um deus ctoniano (VERNANT, 2006, p. 35). Este seria
responsável por fazer a travessia do morto do mundo dos vivos para o
mundo dos mortos. Devido a isso Hermes teria acesso, não apenas ao
Mundo Inferior, mas também às almas dos mortos que não adentraram sua
morada. Esta potência do deus é conhecida como Hermes Psicopompo
(ZAIDMAN, 2010, p. 64), apesar de nas lâminas ele ser referido apenas
com seu nome e não com sua potência.
Hermes, além de seu contato com os mortos, também é um dos mais
utilizados nas lâminas, pois há uma associação do mesmo com práticas
mágicas, uma vez que ele aparece no Canto X da Odisséia como portador
do artificie responsável por livrar Odisseu do feitiço de Circe (CANDIDO,
2001, p. 257). Esta literatura estava presente na sociedade ateniense, como
formadora dessa sociedade e ajudava a compor o panteão e as explicações
míticas acerca deste deus. Portanto, fica evidente o que defendemos até


então, o uso de elementos associados à religiosidade oficial ateniense nas
práticas mágicas dos Katádesmoi. Sua apropriação desses elementos fica,
então corroborada, a partir da evidência do uso de deuses desse panteão,
exemplificado por essa imprecação, dentro de tais práticas.
A seguir iremos analisar uma imprecação que foi encontrada muito
deteriorada, por isso não temos a fotografia correspondente a mesma,
porém possuímos o registro do local em que ela foi retirada na escavação.
Este registro nos propicia compreender melhor aqui que estamos
defendendo neste trabalho, acerca das possibilidades de deposito, com uma
predileção pelo cemitério, no caso ateniense o Cerâmico. Segue a imagem.

Figura 3. Katádesmos contra processo. Gentilmente cedido do catálogo,


não publicado, da Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido

Nesta imagem podemos perceber que o Katádesmos foi depositado


em uma sepultura. Sabemos por meio do catálogo consultado que esta
sepultura encontrava ± se no cemitério do Cerâmico, corroborando nossa
assertiva acerca do local de depósito. Sabemos, também, que esta lâmina de
chumbo possui altura de 4,5 centímetros, largura de 16 centímetros e um
diâmetro de 0,1 centímetro, esta largura comparativamente maior com as
demais explica-se devido ao fato desta ter sido encontrada enrolada na mão


direita do morto (CANDIDO, 2003, p. 124). Esta lâmina está, atualmente,
custodiada no Museu de Atenas e possui sua datação delimitada por volta
no século V a. C., mais uma vez demonstrando a proliferação das práticas
de magia dentro da polis ateniense no período clássico, assim como a
utilização do cemitério do Cerâmico como espaço de depósito da mesma.
Ao pensarmos neste espaço de depósito podemos compreender
melhor a necessidade dessa proximidade com o morto para que este possa
ser utilizado nas imprecações para atender o pedido do solicitante
(CANDIDO, 2004, p. 73). As práticas mágicas dos Katádesmoi possuem
uma maneira própria de compreender e lidar com a morte e com o morto,
utilizando alguns desses para seus próprios interesses. Nesses rituais a
morte é compreendida como algo comum e necessária, porém não é o fim
da existência.
O morto era preciso para se efetivarem tais práticas rituais, a partir
de uma invocação de uma psyché. Mortos específicos como suicidas,
crianças, mulheres que morreram antes de se casarem, mortos insepultos,
dentre outros (CANDIDO, 2004, p. 73). Esses mortos não seriam levados
por Hermes ao Mundo Inferior, ou apenas teriam sua entrada dificultada, o
que os deixariam disponíveis para manipulação. Muitos desses mortos
também estariam dotados de grande raiva, que poderia ser usado pelos
magoi em benefício próprio e/ou de seu solicitante. Estas características
denotam a necessidade da utilização do morto nos rituais mágicos e
corrobora nossa compreensão do Cerâmico como um local de depósito por
representar uma proximidade com a morte e com a alma a ser invocada
para a imprecação. A aproximação com a morte e a necessidade de lidar
com a mesma é outro elemento que nos permite compreender a
complementariedade entre os Katádesmoi e as práticas da religiosidade
oficial em Atenas. Abaixo segue a inscrição desta mesma lâmina,
consultada no catálogo, não publicado de Candido:


³... Polimnsos (demos de) Paianeus ........ Tim..
.... Antigenes (demos de) Paianeus ......... Mnesi..
... Hegemaxos(demos de) Paianeus ....... Theo....
... Stephanos(demos de) Paianeus ......... Ete....
Pai....Polixarides(demos de) Paianeus .... Peith..´

Esta escrita de imprecação demonstra uma série de nomes listados


com a presença de seus demóticos. Essa estrutura nos permite compreender
que este Katádesmos é uma imprecação de processo e que está listando
uma quantidade de testemunhas que devem ser impedidas de falar em um
tribunal. A partir desta informação podemos atestar a importância do nome
para esta prática mágica, pois verbos e nomes produzem um vínculo
irredutível nas práticas rituais (BOURDIEU, 2009, p. 147). Os nomes
também eram compreendidos como uma forma de demonstrar e reafirmar
um local social e a função que o indivíduo ocupa, assim como sua
personalidade (MONTERO, 1986, p. 47). Este nome teria a função de
aproximar e direcionar essa psyché da pessoa viva, portadora do nome, este
seria um agente de personificação (MAUSS, 2000, p. 82 e 99).
Outro elemento interessante que podemos notar nesta inscrição é a
referência ao demos, relacionado aos nomes listados, sendo o demos
entendido como divisão política da polis, no qual continha o registro com
as informações dos cidadãos, como por exemplo família, propriedade,
localização, dentre outros (ZAIDMAN, 2010, p. 56). Estes, também, eram
utilizados para ressaltar a identidade das vítimas de suas imprecações, para
que fossem relacionadas não apenas com seu nome, mas também com seu
local de origem.
Outra imprecação, pertencente ao catálogo ainda não publicado de
Candido, que aqui podemos destacar é uma imprecação amorosa. Esta é


interessante compreendermos a partir do crivo da possibilidade de
realização dessas práticas como possível a todos e não apenas aos cidadãos.
Esta lâmina é datada do século IV, o que vai nos dar uma melhor dimensão
do período aqui estudado. Com isso podemos perceber que a proliferação
dos Katádesmoi, que defendemos ter ocorrido no período clássico, é
corroborada a partir da compreensão que esses estão presentes nos dois
séculos aqui analisados.
Atualmente está custodiada no museu de Atenas. Seu local de
depósito é incerto, devido à ausência desta informação. Entretanto, este
catálogo nos informa que tal lâmina é proveniente da Ática, local
geográfico onde se encontrava a polis ateniense, o que justifica sua citação
no presente trabalho. Transcrevo abaixo a tradução da inscrição contida na
lâmina:

³ODQFHXPDLQVXSRUWiYHOTXHLPDomRHPGLUHomRDWRGDVDVFRLVDVDPDGDV
que foi gerada do esposo
.......Cura Longevidade ......mate
Subterrâneos...tanto quanto............alma...o coração do esposo
Foi gerado.............cura de muito tempo.................lance/atire
$LQVXSRUWiYHOTXHLPDomRHPGLUHomRDWRGDVDVFRLVDVDPDGDV´

Observamos que esta inscrição se ocupa em amaldiçoar locais como


alma e coração que eram relacionados aos sentimentos das pessoas. Além
disso, ao percebermos que não há a presença do nome daquele a ser
atingido ou, ao menos, seu demótico, nos atentamos que este é indicado
FRPDSDODYUD³HVSRVR´RTXHGHQRWDVXDLQVHUomRHPXPJUXSRIDPLOLDUH
conjugal, onde ele vai ser atingido segundo este local que habita.
A escrita das lâminas amorosas possui como característica o desejo


de queimar o objeto de desejo do ser amado e não o destruir (CANDIDO,
2010, p. 69). Esta queimação estaria relacionada a intenção de fazer com
que o alvo da imprecação fosse atingido por esta para que ardesse em
desejo e amor em relação ao solicitante. Isso denota uma motivação
extremamente particular, normalmente, possuindo apenas um único alvo.
Isso demonstra uma diferenciação entre as lâminas amorosas e as de
processo, por exemplo, como pudemos ver que as últimas possuem uma
série de nomes a serem atingidos em prol de um objetivo, já as de amor,
como neste caso, possui apenas o esposo como foco da mesma.
Ao analisarmos a imprecação podemos inferir que, possivelmente,
uma mulher lançou a mesma desejando a este homem que ocupa o lugar de
esposo que queimasse, ardesse em relação aquilo que lhe era amado. Tais
coisas poderiam ser pessoas, na intenção de que este esposo passasse a
amar a solicitante. Este fator nos mostra que não apenas cidadãos homens
exerciam tais práticas mágicas, mulheres poderiam exercer segundo suas
necessidades e intenções privadas.
Outro aspecto dos Katádesmoi que podemos articular é o fato da
possibilidade de uma mulher realiza-lo, segundo suas intenções. O que
demonstra que mulheres cidadãs estariam inseridas neste grupo, mas
também era possível que prostitutas realizassem estas práticas na intenção
de permanecer com alguém, seja de maneira profissional em detrimento a
outra prostituta, seja na tentativa de atrair para si seu objeto de desejo
contra o leito conjugal (CANDIDO, 2010, p. 53). É importante ressaltar
que apenas mulheres estrangeiras exerciam a função de prostituta dentro da
polis ateniense, não sendo uma profissão ocupada por mulheres cidadãs.
Portanto, podemos observar que estas práticas mágicas e sociais não
eram realizadas apenas por cidadãos atenienses, mas sim por seus
citadinos. Os Katádesmoi poderiam ser realizados por todos, sendo eles
abastados ou não, cidadãos ou não, pois estas práticas pressupunham um


caráter privado que estaria presente em todas as camadas sociais da polis.
Além disso, a presença de imprecações realizadas por prostitutas corrobora
a nossa posição de que estas práticas poderiam ser realizadas por todos, era
possível a esses.


CONCLUSÃO

Na tentativa de definir magia, Montero chega a algumas assertivas de


FRPR HOD SRGH VHU FRPSUHHQGLGD H WUDEDOKDGD ³FRPR XP VLVWHPD TXH VH
RUJDQL]DSDUDFRPSUHHQGHULQWHOHFWXDOPHQWHRPXQGR´ (MONTERO, 1986,
p. 21) 6HQGR D PDJLD DQDOLVDGD SHORV HVWXGLRVRV FRPR ³XP VLVWHPD GH
pensamento que pressupõe a ação regular e mecânicD GD QDWXUH]D´
(MONTERO, 1986, p. 22) com leis específicas e manipuláveis a partir de
ritos mágicos. Analisando os Katádesmoi é possível compreende-los como
práticas mágicas e práticas rituais da forma defendida por Bourdieu (2009).
Enquanto práticas mágicas por partilharem dessa concepção de magia;
enquanto sistema de pensamento de compreensão do mundo e prática ritual
pelo seu caráter ritualístico nas diversas etapas de sua confecção. Estas
estão congregadas com a noção, defendida por Bourdieu, do qual entende
essas práticas são VRFLDLV VHQGR XPD ³VpULH HVVHQFLDOPHQWH OLQHDU´
possuindo uma lógica própria que atende uma demanda social específica.
A própria tentativa de definição e a caracterização de magia, nas
Vertentes Antropológicas aqui descritas puderam nos lançar luz acerca da
compreensão da realização do Katádesmoi enquanto práticas mágicas
rituais de caráter social (BOURDIEU, 2009, p. 145; VERNANT, 2006, p.
208). Esses elementos também puderam ser observados na análise dessa
cultura material a partir das informações obtidas na bibliografia e do
próprio catálogo aqui utilizado.
Essa demanda pudemos ver ao analisar algumas das motivações
encontradas para a produção dessas lâminas, a necessidade e
permissividade de vingança e de fazer mal a um inimigo, para o ganho de


algo ou a vontade de impedir o mesmo de realizar alguma ação
(CANDIDO, 2004). Todos esses elementos se dão na convergência de um
cenário poliade em que a religião está presente e fornece alguns elementos
para que as práticas mágicas sejam viabilizadas, como a presença e
utilização do mesmo panteão (CANDIDO, 2004, p. 22). Esses elementos
nos levam a defender que tais ações foram possíveis a partir de uma série
de elementos que formaram uma tradição (MAUSS, 2000, p. 87), que
viabilizaram a proliferação e consolidação dessas práticas.
Elementos como o contexto em que as práticas rituais dos Katádesmoi
estavam inseridas, em uma lógica da religiosidade oficial da polis, assim
como sua complementariedade e articulação puderam ser compreendidas de
maneira mais ampla. Pudemos observar, a partir da análise das lâminas que
a presença dessas religiosidades e deuses permeavam as práticas mágicas.
Logo, pudemos corroborar nossa hipótese que no período clássico
ateniense a dicotomia entre a religiosidade oficial e a prática dos
Katádesmoi não era algo presente, mas sim ambas as práticas se
complementavam e se articulavam segundo suas necessidades e tradições.
Pudemos observar a presença de pessoas realizando as imprecações
que não estavam previstas como cidadãos da polis, apenas como citadino, o
que corrobora nossa assertiva de que sua realização era presente nas mais
variadas camadas sociais da polis, assim como poderia ser realizado por
todos, devido a presença de prostitutas realizando imprecações amorosas.
Outra hipótese que pudemos observar foi a presença dos nomes e dos
demóticos como maneira de direcionar as imprecações para o alvo da
mesma, sem que este morto pudesse se desviar em suas ações.
Entretanto, o que mais nos ficou evidente foi a necessidade de um
depósito ritual especifico que aproximava o Katádesmoi do morto que
agiria em prol do solicitante. O cemitério do Cerâmico seria o espaço que
mais propiciaria esta necessidade, assim como aquele em que mais foi


encontrado as lâminas de chumbo.


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