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Proceso: Relator: Descritores: N° do Documento: Data do Acordio: Votasao: Texto Integral Texto P: Meio Processual: Decisio; Sumario: Decisio Texto Parcial Decisio Texto Integral: Acérdao do Tribunal da Relacao de Lisboa T162/17.6TSSNT-A.LL-2 GABRIELA CUNHA RODRIGUES EMBARGOS DE EXECUTADO TITULO EXECUTIVO LIVRANCA PRESCRICAO AVAL RL 07-03-2019 UNANIMIDADE Ss N APELAGAO. IMPROCEDENTE, I-No atual Cédigo de Processo Civil, nao obstante a forte limitacao do elenco dos titulos executivos nio judiciais, a alinea c) do n.° 1 do artigo 703.° consagrou expressamente que podem valer como titulos executivos os titulos de crédito que, embora desprovidos dos requisitos legais para incorporarem uma obrigacio cartular, literal e abstrata, funcionem como meros quirégrafos da obrigagao exequenda, desde que os factos constitutivos da relagio subjacente, se nao constarem do préprio documento, sejam alegados no requerimento executivo. I1- O exequente esté onerado com a alegagio dos factos constitutivos essenciais da relagio causal A subscrigao da livranga, de modo a identificar adequadamente essa relagao causal subjacente, facultando sobre ela o contraditério, cabendo ao executado, por forga da dispensa de prova prevista no artigo 458.° do Cédigo Civil, o énus probatério relativamente & inexisténcia ou irrelevancia dos factos constitutivos alegados pelo exequente. III - Uma vez extinta por prescricao a obrigacao cambidria, o aval nao pode subsistir automaticamente como fianca, atendendo desde logo & natureza juridica diversa de ambas as figuras. IV - Sé assim nao ser se o exequente alegar (e provar) que 0 avalista/executado se queria obrigar como fiador pelo pagamento da obrigasao fundamental, ou seja, que a relagio subjacente 20 aval era uma fianga relativamente & obrigagao que advinha para avalizado da relac&o subjacente ou fundamental. Acordam na 2." Secgao Civel do Tribunal da Relagao de Lisboa I- Relatério 1.N..., S.A interpés recurso do saneador-sentenca proferido em sede dos embargos de executado intentados por E..., por apenso a agdo executiva para o pagamento de quantia certa, em que é Exequente N..., S.A. e sio Executados, J..., 0s herdeiros de D..., M..., eB 2. No dmbito dos embargos de executado, a Embargante peti a extingdo da execugao, deduzindo, entre outras, a excegdo da prescrigdo, com os fundamentos seguintes: - A execugio para pagamento de quantia certa, da qual os presentes ‘ionou autos constituem apenso, deu entrada em juizo por via eletrénica, em 3 de abril de 2017; -No requerimento executivo inicial nao constava 0 nome da Executada; -No dia 13 de abril de 2017, oN... S.A., afirmando que nao indicou o nome da avalista/Executada e ora Embargante, requereu no processo principal a retificagao da parte destinada aos factos e identificacao dos Executados; - Foi dessa forma que incluiu a ora Embargante nos autos de execugiio; - A livranga que constitui titulo executivo nos autos de execusio apresenta como data de vencimento 4 de abril de 2014; - A Opoente foi citada para os termos da execucio no dia 5 de margo de 2018; - Face ao disposto no artigo 323." do Cé a acao executiva encontra-se prescrita quanto 4 Embargante na data de citago ¢, mesmo que se considere a data da entrada da execugao - 3 de abril -, 0s cinco dias previstos no n.° 2 do referido preceito, para efeitos de interrupsao da prescric&o, terminaram no dia 8 de abril, pelo que também assim se encontra prescrita a ago executiva, atendendo A data de vencimento constante do titulo executivo — 4 de abril de 2014, 3. A Embargada apresentou contestagao, aduzindo os seguintes argumentos: ~ Alivranga dada A execugdo em causa tem aposta a data de vencimento de 4 de Abril de 2014, pelo que, tendo a execusio sido intentada a 3 de abril de 2017, prazo de trés anos ainda estava a decorrer, nao existindo fundamento quanto ao alegado pela Embargante; - Ainda que assim nao se entenda, sempre se dira que a lei é clara quando estabelece no artigo 703.°, n.” 1, alinea ¢), do CPC que a execusiio pode ter por base «os titulos de créditos, ainda que meros quirégrafos, desde que, nesse caso, os factos constitutivos da relacho subjacente constem do préprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo»; -A livranga é valida como documento particular, e como tal é considerada titulo executivo, desde que os factos constitutivos da relagao subjacente constem do préprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo; - Alivranga/documento particular encontra-se assinada pela Embargante, uma vez que esta nfo 0 desmente e confessa a sua assinatura; - Nela se faz alusiio ao contrato, motivo pelo qual, no requerimento executivo, a Embargada invoca expressamente a relagao subjacente que esteve na base da emissio do titulo; - Assim, a Embargada indica a causa da obrigagio exequenda, referindo inclusive que a livranca foi emitida para garantia de um contrato de crédito ao consumo do qual a Embargante se constituiu como garante, o que provou através de toda a documentacao junta ao requerimento executivo estes factos. 4. Apés realizacao da audiéncia prévia, o Tribunal a quo proferiu saneador-sentenga, no qual julgou procedentes os embargos & execugio ¢ julgou extinta a execugio. 5, Inconformada com o assim decidido, a Embargada interpés recurso de apelagao do saneador-sentenga, apresentando as seguintes CONCLUSOES: «d.Vem o Recorrente apresentar o presente recurso por nio concordar com a deciséo do Tribunal a quo que deu procedéncia total aos Embargos de Executado, considerando que, tendo sido a execucéo intentada na véspera do decurso do prazo de prescri¢éo quanto & Embargante, deveria proceder a referida excegéo e ainda que néo poderia tal titulo valor como mero quirégrafo, porquanto a Embargada nao era mutudria do contrato de financiamento subjacente @ Livranga em causa. 2. Nos termos do disposto no art. 70°, n° I da LULL, prescrevem no prazo de trés anos todas as acgoes contra aceitantes relativos a letras. 3. Porém, tendo quanto a esta interveniente processual decorrido 0 prazo de prescrigao do titulo, a lei é clara quando estabelece, no art. 703%, n° 1 alinea c) do CPC que a execugao pode ter por base nos titulos de créditos, ainda que meros quirégrafos, desde que, nesse caso, os factos constitutivos da relagao subjacente constem do préprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo, 4, A livranga junta aos autos, apesar de prescrita quanto & ora Recorrida aquando da sua incluséo no Requerimento Executivo, nos termos do artigo 70° da LULL, é titulo executivo suficiente, como documento particular, nos termos do n.° 1 do artigo 703°, alinea c) do CPC. 5. Ainda que a livranca dada @ execugdo haja perdido a sua natureza cambiéria, poderd a mesma consubstanciar um documento particular assinado pelo devedor, previsto no n.° 1 da alinea c) do artigo 703° do Cédigo de Proceso Civil, conquanto nela se mencione a causa da relagao juridica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo. 6. Assim, extinta a obrigacho cartular incorporada na letra, livranca ou cheque, estes mantém a sua natureza de titulo executive, enquanto documento particular assinado pelo devedor, desde que a obrigagéo a que se reporta néo resulte de um negécio juridico formal. 7. Do disposto do aludido art 458° do Cédigo Civil resulta uma Presungao de causa (presungao da existéncia de uma relagéo negocial ou extra negocial) e a inversito do énus da prova da existéncia da relagao fundamental. 8. De resto, face a uma declaragao de cumprimento ou a uma declaragéio de reconhecimento da divida, resulta do n° I do artigo 458°, n° 1 do Cédigo Civil, a presungao de causa (presungao da existéncia de uma relagéo negocial ou extra negocial) e a inversio do énus da prova da existéncia da relagao fundamental. 9. Podendo a livranca prescrita constituir titulo executive como documento particular contra os avalistas da mesma, pode também ser exigido coercivamente aos avalistas o pagamento do valor ai titulado, atenta a alegagao e prova, por parte do exequente, que a relagio subjacente ao aval era uma fianca relativamente @ obrigagéo que advinha para 0 avalizado, ou seja, a vontade dos executados de se obrigarem como fiadores, 0 que se verificou in casu. 10. Pois a prescrigao da obrigacao cambidria néo acarreta a extingéo da obrigacao fundamental, sendo certo que, ainda que prescrita enquanto obrigagao cartular, a livranga continua a constituir um titulo executivo vilido contra quem a assinou, in casu, 0 emitente e seus avalistas, confessando a divida. U. A Executava avalista reconheceu-se e constituiu-se garante do bom pagamento da divida do subscritor. 12. Através do aval, a Executada garantiu o pagamento daquela obrigacao, reconhecendo a divida como sua, nos precisos e exatos termos da sociedade avalizada. 13. E, por isso, solidariamente responsével por todas as obrigagées emergentes do contrato junto aos autos com 0 Requerimento Executivo, que foram assinados por ambos os Executados avalistas. 14. Ainda que a obrigacéo cartular se extinga, os avalistas so sempre responsveis pelo pagamento da quantia peticionada, tanto a titulo de capital como de juros moratérios, uma vez que a divida nao se considera prescrita, de acordo com o disposto no artigo 309° e na alinea d) do artigo 310° do Cédigo Civil (...)». Propugna, por isso, a Apelante que o recurso seja julgado procedente e que, em consequéncia, os Embargos sejam julgados improcedentes, prosseguindo a execugio os seus tramites normais contra a Executada/Embargante. 6. A Embargante apresentou alegagdes de resposta, nas quais pugna pela confirmacao da decisio recorrida, em suma, com os seguintes fundamentos: - O aval, sendo uma garantia, nao é rigorosamente uma fianga; - Nao se pode extrair do aval uma fianca, como negécio juridico que Ihe estaria subjacente, nem um reconhecimento de divida fora da vinculagao dos artigos 30.” a 32.° da LULL; - Nao tendo a Recorrente alegado e/ou invocado uma fonte obrigacional (rela¢ao subjacente) diversa do aval cambiario quanto 4 Executada/Embargante, a sua assinatura aposta na livranga exequenda nio pode ser aproveitada como obrigago exequivel, nos termos da alinea c) do n.° 1 do artigo 703.” do CPC. 7. O recurso de apelacao foi admitido com subida imediata, nos préprios autos e com efeito meramente devolutivo, por despacho proferido no dia 8.1.2019. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. I - Ambito do recurso de apelagio Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusées da Recorrente (artigos 635.", n.° 4, e 639.°, n.° 1, do CPC), a solugio a aleangar pressupée a andlise da validade da livranca dada A execuga0 como mero quirégrafo quanto 4 Embargante. III - Fundamentagio Fundamentagio de facto Sio os seguintes os factos considerados provados no saneador- sentenga recorrido: 1. A Exequente N..., S.A. instaurou em 3.4.2014 a execucAo de que 0s presentes embargos so apenso contra J... e 0s Herdeiros de D.... 2. Alegou no requerimento executivo inicial, designadamente, seguinte: - A ago executiva vai intentada contra J... e heranga por dbito de D... — avalista da livranga dada como titulo em execugio, conforme de seguida melhor se exporé — representada pelos herdeiros de quem o Exequente tem conhecimento, a saber, M..., conjuge sobrevivo e J..3 - O titulo dado em execugio foi avalizado a titulo pessoal por D... que veio a falecer, tendo-Ihe sucedido a sua mulher M... ¢ 0 seu filho - O Exequente é dono e legitimo portador da livranga emitida em 15.2.1999, subserita pelo Executado J..., e avalizada por D... para garantia de um financiamento concedido pela Exequente sob forma de Contrato de Crédito a0 Consumo 0.” wl... no montante global de 10.115,54 €, conforme documento que junta; - No Ambito do referido contrato, 0 mutuario comprometeu-se a reembolsar a quantia mutuada em 60 prestagdes mensais € sucessivas de capital ¢ juros; - O Mutuirio deixou de efetuar o pagamento das prestagdes mensais a que se obrigou; - Face a este incumprimento, o Exequente interpelou os Executados em 13.3.2014 ¢ 17.3.2017, mediante carta onde comunicou a dentincia do contrato de mituo e informou que passou a ser exigido — de acordo com as clausulas contratuais— 0 pagamento da totalidade do valor mutuado, incluindo os valores em atraso e 0 montante de capital em divida até ao termo do contrato, acrescido de despesas extrajudiciais incorridas; - Nessa mesma carta, atento ao vencimento do contrato por incumprimento definitivo e respetiva mora, o Exequente comunicou aos Executados que procedera ao preenchimento da Livranga, pelo valor de 27.447,01 € e da respetiva data de vencimento; - O valor pelo qual foi preenchida a livranga discrimina-se em: -8.819,71 €, a titulo de capital, e - 8.627,30 €, a titulo de juros de mora & taxa contratual, bem como 0 respetivo imposto de selo — tude calculado até 4.4.2014, - O exequente nio obteve qualquer resposta dos Executados no sentido de ser a divida prontamente paga. - Apresentado a pagamento na data e local do seu vencimento, 0 titulo nao foi pago pelos Executados, tendo o exequente direito de haver destes a quantia vencida pela qual foi preenchida a Livranga (27.447,01 © a que acrescem juros de mora A taxa de 4% contabilizados desde a data de apresentago da livranga a pagamento até A data da apresentacdo da presente execucio, acrescido do respetivo imposto de selo, num total de 3.472,99 €. 3, Deu A execugio a livranca junta com o requerimento executivo, com data de vencimento no dia 4.4.2014, subscrita por J... e assinada no verso, sem qualquer mencao, por E... ¢ D... 4. D... faleceu em 26.4.2003, 5, Juntou igualmente ao requerimento executivo inicial documento com a referéncia “crédito ao consumo BES” em que, designadamente consta, em escrito dirigido a J..., que «temos 0 prazer de informar que o empréstimo foi aprovado de acordo com as seguintes Condigées Particulares» (e 0 mais que consta do referido documento). 6. Esse documento foi assinado junto aos dizeres “assinaturas dos avalistas” por E.. 7. Mais juntou a Exequente ao requerimento executivo duas cépias de missivas alegadamente enviadas a J..., datadas de 13.3.2014 e de 17.3.2017, informando a existéncia de valores em divida e declarando solicitar o respetivo pagamento (documentos aqui dados por integralmente reproduzidos), 8. Em 13.4.2014, a Exequente apresentou requerimento aos autos solicitando que a execugao passe a corer também contra a Executada E..., aqui Embargante. 9. Por despacho posterior (de 27.4.2017), foi determinada a citagio dos Executados. 10. A Embargante foi citada por correio registado com aviso de recesio, datado de 5.3.2018 (ref. eletrénica 11973538). Inexiste matéria de facto nao provada no saneador-sentenca recorrido, Enquadramento juridico Cumpre indagar se, nao obstante a prescri¢ao da obrigacio cartular resultante da livranca dada A execucao, 0 titulo executivo pode valer como mero quirégrafo quanto A ora Executada/Embargante. Preceitua 0 artigo 703.°, n.° 1, alinea c), do CPC, sob a epigrafe, «Espécies de titulos executivos”, que & execugio podem servir de base «Os titulos de crédito, ainda que meros quirégrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relacao subjacente constem do préprio documento ou sejam alegados no requerimento executivon. Nos documentos a que se refere a alinea c) inclui-se a livranga, cujo regime se encontra previsto nos artigos 75.” a 78.° da Lei Ui sobre Letras e Livrangas (doravante LULL). No saneador-sentenca recorrido considerou-se que 0 titulo dado execucio nao assume natureza cambiaria, atendendo A prescrigo da obrigagao de avalista. Nos termos das disposigdes conjugadas dos artigos 70.°, 71.°, 77." e 78.° da LULL, as ages contra o aceitante (e avalista), relativas a letras ou livrangas, prescrevem no prazo de trés anos a contar do seu vencimento. Estabelece o artigo 323.°, n.° 1, do Cédigo Civil que tal prazo se interrompe com a citagio ou a notificacao judicial de qualquer ato que exprime, direta ou indiretamente, a intengio de exercer 0 direito, Segundo o n.° 2 do citado preceito, se a citagao nao se concretizar em cinco dias, por causa nao imputavel ao requerente, tem-se a prescrigao por interrompida logo que decorreram os referidos cinco di Como bem decidiu 0 Tribunal a quo (nao sendo tal matéria objeto do presente recurso), a execugao em apreco foi instaurada na véspera do decurso do prazo de prescrico, pelo que o prazo de cinco dias decorreu apés a compleigio do prazo de trés anos, estando, portanto, prescrito o titulo cambiario, AApelante/Exequente equaciona a aplicacio ao caso da alinea c) do artigo 703.° do CPC, sustentando que a livranga pode valer como quirégrafo. Argumenta que resulta do disposto no artigo 458." do Cédigo Civi uma presungio de causa (presungio da existéncia de uma relagio negocial ou extra negocial) ¢ a inversio do énus da prova da existéncia da relagio fundamental, ao abrigo do artigo 344.°, n.° 1, do referido Cédigo. Considera que a livranga prescrita pode constituir titulo executivo como documento particular contra os seus avalistas, atenta a alegagio e prova pelo Exequente de que a relacio subjacente ao aval era uma fianga relativamente & obrigacao que advinha para o avalizado, ou seja, a vontade dos executados de se obrigarem como fiadores. Conclui que, ainda que a obrigacio cartular se extinga, os avalistas sio sempre responsaveis pelo pagamento da quantia peticionada, tanto a titulo de capital como de juros moratérios, uma vez que divida nao se considera prescrita, de acordo com o disposto no artigo 309.° ena alinea d) do artigo 310.° do Cédigo Civil. O Tribunal a quo pronunciou-se no sentido de estar inegavelmente alegada a existéncia de um contrato causal, qualificado como contrato de empréstimo ou contrato de crédito ao consumo, celebrado entre a antecessora legal da Exequente (Banco Espirito Santo, S.A.) e J..., bem como o incumprimento de tal contrato, e invocada a interpelacao para pagamento e a comunicagio de resolugao por incumprimento e manifestagio de intengio de cobranga coerciva de valor previamente Objeta, porém, que a faculdade de execugio de titulos cambidrios prescritos como documentos particulares do negécio causal nfo se satisfaz com a mera alegago de uma relac&o causal. Impée, antes, a alegacao de uma relagao subjacente quanto a cada um dos concretos obrigados no titulo. Na situacao em apreco, figura no contrato causal a assinatura da Executada/Embargante. SerA que tal assinatura a constitui também como garante da obrigagio substantiva? Aresposta a tal questo foi negativa no saneador-sentenca recorrido, asseverando-se que a assinatura da Executada/Embargante foi aposta na qualidade de avalista e, nessa medida, deve ser interpretada como decorrente do cumprimento de uma obrigagio de informagio ao garante cambiario e no como de constituigio de uma posigao de fianga substantiva. Cumpre, antes de mais, indagar se a livranga prescrita e, portanto, mero quirégrafo, representa o reconhecimento unilateral de divida. Estabelece o n.° 1 do artigo 458.° do Cédigo Civil que «se alguém, por simples declaragao unilateral, prometer uma prestacao ou reconhecer uma divida, sem indicacéo da respetiva causa, fica 0 credor dispensado de provar a relagao fundamental, cuja existéncia se presume até prova em contrarion (sublinhado e negrito nosso). Prevé-se uma presungio da existéncia de uma relacio negocial ou extranegocial, A qual se aplica a inversio do énus da prova da existéncia da relacio fundamental, conforme decorre do artigo 344.” do Cédigo Civil. A questo da suficiéncia de um titulo de crédito, desprovido dos requisitos legais que o tipificam, tem sido problematizada sobretudo a propésito da qualificag4o desse documento como titulo executivo. Sobre esta matéria no hd entendimento univoco na doutrina e na jurisprudéncia. Como nos dé conta 0 acérdao do acérdao do STJ de 7.5.2014 (0 qual seguimos de perto, ainda que se reporte a uma agao declarativa com fundamento em letras prescritas), a questiio da exequibilidade dos titulos de crédito nessas circunstancias pode encarar-se segundo trés perspetivas juridicas bem diferenciadas (p. 303/2002.PLS, in www.dgsi.pt). Para uma primeira corrente, a letra, a livranga ou o cheque que nao reiinam condigdes para valerem como titulos de crédito, nao podem ser constitutivos ou certificativos de uma obrigacao, logo nao podem servir de titulo executivo, defendendo-se que nio foi propésito da reforma processual de 1995/1996 (ef. artigo 46.°, alinea ©), do CPC de 1961) alterar o regime consagrado na LULL nem modificar os requisitos de exequibilidade desses titulos, razao pela qual nfo se pode defender que deles decorra a declaragio de constituigao ou reconhecimento de obrigagdes pecunirias — cf. a titulo meramente exemplificativo, acérdaos do STJ de 29.2.2000, CISTI 2000, I, 124, de 16.10.01, CJ/STI 2001, IIT, 89, de 20.11.03, CI/STI 2003, III, 154, acérdao do TRP 25.1.2001, CJ 2001, I, 192 € acérdio do TRL de 26.2.2004 (p. 1090/2004-8, in www.dgsi.pt). Uma segunda tese sustenta que, nao se mostrando preenchidos requisitos imperativamente previstos na Lei Uniforme respetiva, 0 titulo de crédito pode ainda valer como tal, desde que, pela sua particular natureza, como sucede com as letras e livrancas, envolva um ato recognitivo de divida ou se traduza na promessa unilateral de uma prestagio. Nesta particular situagio, que a doutrina designa como de causalidade substancial e de abstragao processual, 0 credor que invoca o ato unilateral de promessa ou reconhecimento esta dispensado de invocar e provar a relacio fundamental, que se presume, mas 0 devedor pode fazé-lo para contrariar a pretensio do credor, devendo entao alegar e provar a insubsisténcia do crédito, por cumprimento, ou por prescrigo, ou por invalidade da relagao fundamental, ou por outra razAo que no caso possa ter esse efeito (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, p. 437). A doutrina nao é, porém, undnime quanto ao regime de abstragio processual definido pelo citado artigo 458. Segundo a posi¢So sustentada por Lebre de Freitas, a inversao do énus da prova nao dispensa o dnus de alegagao, sendo que o autor tem de alegar a causa de pedir. Para este Autor, o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma divida ou promete cumpri-la sem indicar 0 facto que a constituiu, contra ele propuser uma aco, deverd alegar o facto constitutivo do direito de crédito — 0 que é confirmado pela exigéncia de forma do artigo 458.°, n.” 2, do Cédigo Civil, que pressupde o conhecimento da relagio fundamental —e dai que a prova da inexisténcia de relagio causal valida, a cargo do devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente & causa que tiver sido invocada pelo credor, e nao a qualquer possivel causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor (in A Confisséo no Direito Probatério, Coimbra Editora, p. 390, citado no acérdio do STJ de 7.5.2014 supra mencionado). Uma terceira posi¢io propugna que 0s titulos de crédito que nio obedecam integralmente aos requisitos impostos pela Lei Uniforme respetiva ¢ no possam materialmente subsumir-se ao referido artigo 458.° do Cédigo Civil, por nao conterem um reconhecimento de divida nem uma promessa de prestacao feita pelo seu subscritor, podem valer como meros quirégrafos da relagio causal subjacente A respetiva emissio, desde que os factos constitutivos desta resultem do proprio titulo ou sejam articulados pelo exequente no respetivo requerimento executivo ¢ por ele provados. O entendimento amplo acerca da exequibilidade dos titulos de crédito carecidos de elementos para poderem funcionar no plano da abstracao substantiva, tem sido acolhido e desenvolvido pela doutrina e jurisprudéncia, claramente maioritarias (cf., por todos, 0 acérdio do STJ de 19.12.2006, p. 06B3791, in www.dgsi.pt). No atual Cédigo de Processo Civil, nao obstante a forte limitagao do elenco dos titulos executivos no judiciais, a alinea c) do n.° 1 do artigo 703.° manteve e explicitou a precedente orientagio jurisprudencial maioritaria, consagrando expressamente que valem como titulos executivos os titulos de crédito, que, embora desprovidos dos requisitos legais para incorporarem uma obrigacio cartular, eral e abstrata, podem valer como meros quirégrafos da obrigagio exequenda, desde que os factos constitutivos da relacio subjacente, se nao constarem do proprio documento, sejam alegados no requerimento executivo (cf. acérdiio do STJ de 75.2014). Este regime acaba por ter similitudes com a posicio assumida por Lebre de Freitas, ao consagrar legislativamente, sem qualquer distingo, quer os documentos sejam ou nao subsumiveis ao artigo 458.° do Cédigo Civil, que o titulo de crédito imprestavel, por caréncia dos requisitos legais, para suportar o tipico regime de abstragao substantiva tem sempre de ser complementado com a alegacao dos factos constitutivos da relagio subjacente que nfo constem do documento (ef. citado acérdao do STJ de 7.5.2014). Volvendo ao caso em aprego, sera que a livranca dada a execugio podera valer como ato unilateral de promessa pela avalista, nessa medida sujeita ao regime previsto no artigo 458.° do Cédigo Civil? E, no caso afirmativo, implicaré uma dispensa do énus de alegagi da relacio subjacente? Ou apenas uma dispensa do énus probatério normalmente a cargo do credor? Adotando a orientagao sufragada por Lebre de Freitas, 0 incumprimento de tal énus dita a falta de titulo executivo, mesmo. do prisma da aplicabilidade do artigo 458.° do Cédigo Civil. Como vimos, esta orientagao surge reforgada com a norma (interpretativa do direito anterior) contida na alinea c) do n.° 1 do artigo 703.° do CPC, ao impor, sem qualquer distingao, a quem quer prevalecer-se do titulo invocado como mero quirégrafo da obrigacao, o énus de alegacio dos factos constitutivos da relagao subjacente que dele nao constem, A ora Apelante estava, pois, efetivamente onerada com a alegagao dos factos constitutivos essenciais da relagao causal & subserigo da livranga, de modo a identificar adequadamente essa relacio causal subjacente, facultando sobre ela o contraditério A Executada, e cabendo a esta, por forga da dispensa de prova prevista no artigo 458.° do Cédigo Civil, o énus probatério relativamente 4 inexisténcia ou irrelevancia dos factos constitutivos alegados pela Exequente, Decorre, alids, do preceituado no artigo 724.°, n.° 1, alinea e), do CPC, que, no requerimento executivo, 0 exequente expoe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando no constem do titulo executive, podendo ainda alegar os factos que fundamentam a comunicabilidade da divida constante de titulo assinado apenas por um dos cénjuges. Ora, no caso em espécie, a Exequente alegou no requerimento executive que: - A ago executiva foi intentada contra J... e os herdeiros de D... M..., conjuge sobrevivo e J...3 - O titulo dado em execugao foi avalizado a titulo pessoal por D..., que veio a falecer, tendo-lhe sucedido a sua mulher M... e 0 seu filho - O Exequente é dono e legitimo portador da livranga emitida em 15.2.1999, subscrita pelo Executado J..., ¢ avalizada por D... para garantia de um financiamento concedido pela Exequente sob forma de Contrato de Crédito ao Consumo n.° «J... 10 montante global de 10.115,54 €. Identificou, portanto, a Exequente, o negécio subjacente ao titulo, ainda que de forma sumit Porém, a Executada/Embargante nenhuma intervengao teve no aludido contrato, sendo avalista da livranga prescrita. Argui a Apelante que pode também ser exigido coercivamente aos avalistas 0 pagamento do valor titulado na livranga, atenta a alegagio e prova, por parte do exequente, de que a relacao subjacente ao aval era uma fianga relativamente A obrigagio que advinha para o avalizado, ou seja, a vontade dos executados de se obrigarem como fiadores, 0 que se verificou in casu. Nos termos do artigo 30.° da LULL, o aval é 0 ato pelo qual um terceiro ou um signatario da letra ou de uma livranga garante o pagamento desse titulo por parte de um dos seus subscritores. A doutrina divide-se quanto a caracterizagao do aval, polarizando- se o debate entre a qualificaco do aval como uma garantia subjetiva, destinada a caucionar o pagamento da letra ou da vranga “por parte de um dos seus subscritores” ¢ a edificagio do aval como uma garantia objetiva, destinada a caucionar 0 pagamento da letra tout court (“o avalista nao garante que 0 avalizado pagard, mas que o titulo serd pago”). Perfilhamos o entendimento de Carolina Cunha no sentido de 0 aval se tratar de uma garantia subjetiva, expresso nas seguintes palavra: «Nao nos parece que 0 aval possa ser caracterizado como uma garantia objectiva, destinada a “cobrir” ou “caucionar” a responsabilidade do avalizado, ao qual alguma doutrina vai ao ponto de chamar “devedor garantido”. Compreendemos a atraccéo exercida pelo instituto da fianca: trata-se, por um lado, da matriz consagrada das garantias pessoais e o aval é, estruturalmente, uma garantia pessoal, jé que 0 credor cambiério passa a ter como garantia de cumprimento também o patriménio do avalista. Mas esta atraccao, & qual sucumbiu terminologicamente o préprio legislador cambidrio quando crismou o avalizado de “pessoa por ele [pelo avalista] afiancada” (art. 32°LU) ou quando se refere a obrigagao que ele garantiu” (art. 32°H LU), nao nos deve levar a tomar a nuvem por Juno» (in Manual de Letras e Livrangas, Coimbra: Almedina, 2016, 39). Nao obstante ambas sejam garantias obrigacionais, a natureza juridica do aval e da fianga sio claramente distintas. Na fianga, o fiador obriga-se pessoalmente perante o credor ficando, em principio, todo o seu patriménio responsavel pela satisfacdo do direito de crédito sobre o devedor, constituindo-se 0 fiador como verdadeiro devedor do credor. A obrigagao do fiador distingue-se da obrigacao do devedor por ser acesséria da que recai sobre o principal devedor, embora tenha o mesmo contetido — cf. artigo 634.° do Cédigo Civil. O avalista & apenas sujeito da relagio subjacente ou fundamental A obrigagio cambisria do aval, relagdo essa constituida entre ele e 0 avalizado e que sé é invocavel no confronto entre ambos. In casu, e como antes ficou dito, encontra-se prescrita a agio cambiaria, razdo pela qual a Exequente nada poderia exigir da Executada/Embargante com fundamento no aval que esta apds na livranga. E certo que a prestagao de um aval pode ter subjacente uma fianga. Porém, uma vez extinta por prescrigo a obrigacao cambidria, 0 aval nao pode subsistir automaticamente como fianga, atendendo desde logo a natureza juridica diversa de ambas as figuras. assim nfo sera se 0 exequente alegar (e provar) que 0 ayalista/executado se queria obrigar como fiador pelo pagamento da obrigasao fundamental, ou seja, que a relagao subjacente a0 aval era uma fianga relativamente & obrigagao que advinha para avalizado da relac&o subjacente ou fundamental — vide, neste sentido, os acérdaos do TRP de 28.05.2009 (p. 3093/07.6TBSTS) e de 10.05.2010 (p. 1137/06.8TBPMS-A.P1) e 0 acérdao do TRL de 29.9.2011 (p. 2161/06.6TCSNT-A.L1-8), todos acessiveis em www.dgsipt. Na situagao em apreco, nfo foi sequer alegado no requerimento executivo que a relagio causal do aval radique na existéncia de uma fianga. Como explica Carolina Cunha, «Quer isto dizer que a declaragéto de aval serd apenas um de entre varios elementos a ter em conta pelo intérprete para apurar, dentro dos canones hermenéuticos em vigor (art, 236.” CCiv), se, pelo seu comportamento, 0 sujeito pretendeu igualmente ficar vinculado enquanto fiador da obrigagéo fundamental. Requer-se, portanto, que 0 credor alegue e prove os restantes elementos de onde resulta essa concluséo» (obra citada, p. 159). Na doutrina, anota a Autora, as seguintes referéncias: «No mesmo sentido, cfr. Putman, Droit des affaires, vol IV, “Moyens de paiement et de credit”, Paris, PUF, 1995, P. 114-115 — 0 portador conserva a possibilidade de demonstrar que 0 avalista prestou fianca pelo avalizado, mas a prova “n'est pas si facile”; 0 meio mais “cémodo” consiste na existéncia de um acto exterior a letra, mas, para poderem ser valorados, os indicios tém que ser pertinentes. Entre nds, contudo, no exclui Vaz Serra, “Anotagao ao Acérdao do STJ de 30 de Outubro de 1979”, RLJ, ano 113.°,1980-1981, n.°s 3658-3681, p. 122-128, que, pelo menos em abstracto, a vontade de prestar fianga possa ser declarada “nas letras”, através da prépria declaragéo de aval, nomeadamente nos casos em que “ambas as partes (garante ¢ credor) tiverem entendido a declaracéo [de aval] como prestacéo de fianca”. Se bem entendemos nés a posig&o do Autor, trata-se de fazer valer aqui a ferramenta hermenéutica da falsa demonstratio non nocet, provando uma concordancia entre as vontades reais de declarante e declaratério (Vaz Serra refere, alids, a possibilidade aberta pelo art. 238°2CCiv) — prova que sempre teré, portanto, que mobilizar elementos exteriores ao mero texto da declaragao cambidria de aval» (obra citada, pp. 159 e 160, nota 448). Assim, embora se reconhega que a prestacao de um aval ao aceitante de uma livranga possa ter subjacente uma fianga, a Exequente teria de o ter alegado no requerimento executivo. Nio 0 tendo feito, urge concluir pela improcedéncia das concludes da alegagio de recurso, nada havendo a censurar ao decidido na 1." instAncia, nao se mostrando violadas as disposigdes legais invocadas pela Recorrente. Vencida a Recorrente neste recurso, é responsavel pelo pagamento das custas processuais - artigos 527.", n.° 1, 529.° e 533." do CPC. IV - Decisio Nestes termos, acordam os Juizes desta 2." Secgao deste Tribunal da Relagdo de Lisboa em julgar improcedente a apelagio, confirmando, em consequéncia, 0 saneador-sentenga. Mais se decide condenar a Recorrente no pagamento das custas do recurso. * Lisboa, 7 de margo de 2019 Gabriela Cunha Rodrigues Arlindo Crua Anténio Moreira

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