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O terceiro-analítico: trabalhando com fatos clínicos intersubjetivos

Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo

Neste capítulo, Ogden reproduz um artigo escrito a convite dos editores do


International Journal of Pshychoanalysis, por ocasião do septuagésimo aniversário de
fundação do mesmo, no ano de 1990. O autor inicia dizendo que um aspecto importante
do momento presente (1990) da psicanálise “é o desenvolvimento de uma conceituação
analítica da natureza da inter-relação entre subjetividade e intersubjetividade no setting
analítico” (p. 58). E um pouco mais adiante diz que considera “o movimento dialético de
subjetividade e intersubjetividade um fator clínico central da psicanálise” (p. 58). Há um
detalhe importante nessas passagens, e que revela, de cara, o que Ogden entende por
intersubjetividade; ele não fala da inter-relação entre sujeito e objeto, antes, se refere à
relação entre subjetividade e intersubjetividade. Em breve essa sutileza será esclarecida
em maiores detalhes, por enquanto deixo o leitor com seus pensamentos.

Em seguida ele diz que com os avanços da psicanálise contemporânea já não


se pode mais considerar paciente e analista como dois sujeitos separados. Nas palavras
do autor:

A concepção do sujeito analítico, conforme elaboração de Klein e


Winnicott, conduziu a uma ênfase cada vez maior na interdependência
entre sujeito e objeto na psicanálise. Acredito ser justo dizer que o
pensamento psicanalítico contemporâneo está aproximando-se de um
ponto em que não se pode mais falar simplesmente do analista e do
analisando como sujeitos separados que tomam um ao outro como
objetos. A ideia do analista como uma tela branca, neutra para as
projeções do paciente, vem ocupando uma posição de importância cada
vez menor nas concepções correntes a respeito do processo analítico.

(P. 58).

Ogden lembra que atribui um papel central à dialética em sua ideia de


intersubjetividade. O modelo de seu pensamento é o da noção de Winnicott segundo a
qual o bebê “é algo que não existe” (separado da mãe). Não há um bebê sem a ideia
de uma mãe. Portanto, não há paciente sem analista e vice-versa. Ele nos diz que
apesar de mãe e bebê serem entidades física e psíquica separadas, elas coexistem com
a unidade mãe-bebê. E acrescenta que, de modo similar, a intersubjetividade do
analista-analisando coexiste com a existência das individualidades de ambos como
indivíduos separados. Ele coloca da seguinte forma:

De modo similar, a intersubjetividade do analista-analisando coexiste em


tensão dinâmica com o analista e o analisando como indivíduos
separados, com seus próprios pensamentos, sentimentos, sensações,
realidade corporal, identidade psicológica, etc. Nem a intersubjetividade
da mãe-bebê nem a do analista-analisando (como entidades psicológicas
separadas) existem em forma pura. A intersubjetividade e a subjetividade
individual criam, negam e preservam uma a outra... Tanto na relação
entre a mãe e o bebê quanto na relação entre o analista e o analisando,
a tarefa não é desembaraçar os elementos constitutivos da relação, num
esforço para determinar que qualidades pertencem a cada indivíduo que
participa dela; pelo contrário, do ponto de vista da interdependência entre
sujeito e objeto, a tarefa analítica envolve uma tentativa de descrever o
mais completamente possível a natureza específica da experiência da
inter-relação da subjetividade individual e da intersubjetividade.

(P. 59 e 60).

Gostaria de analisar com cuidado a passagem acima e, ao fazer isso, voltar à


questão deixada em aberto alguns parágrafos atrás. O conceito de intersubjetividade
aqui apresentado é algo muito vivo. A intersubjetividade para Ogden não é sinônimo de
relacionamento entre duas pessoas, de troca de subjetividades, etc. Tampouco é a
intersubjetividade um campo dentro do qual as trocas entre os dois sujeitos acontece.
Ela não é, também, uma fantasia inconsciente da dupla. Não! A intersubjetividade é ela
mesma uma entidade que está em tensão dialética com as subjetividades individuais. A
intersubjetividade é uma nova subjetividade! Um novo sujeito. Um terceiro sujeito. É
impossível separar totalmente mãe e bebê, assim como analista e paciente, devido à
presença desta nova subjetividade formada pela dupla.

É por isso que Ogden diz que a finalidade de uma análise não é separar
perfeitamente o que pertence ao paciente daquilo que pertence ao analista, em uma
busca utópica por uma espécie de falsa independência. A tarefa analítica envolve “pelo
contrário” entender e descrever a natureza da experiência de inter-relação da
subjetividade individual e da intersubjetividade. Ele chamou essa terceira subjetividade,
produto da tensão dialética entre as individualidades de analista e paciente, de Terceiro
Analítico.

Ele diz:

Neste capítulo, tentarei traçar de forma bastante detalhada as


vicissitudes da experiência de estar simultaneamente dentro e fora da
intersubjetividade do analista-analisando, à qual me referirei como “o
terceiro analítico”. Essa terceira subjetividade, o terceiro-analítico
intersubjetivo (o “objeto analítico” de Green [1975]), é produto de uma
dialética única produzida por entre as subjetividades separadas do
analista e do analisando dentro do setting analítico.

(P. 60).

Quero chamar a atenção para a última frase, pois ela é fundamental para o meu
raciocínio. Ogden diz que o terceiro analítico é uma nova subjetividade criada por
analista e analisando como indivíduos separados (veremos mais adiante que quando o
autor se referir ao terceiro subjugador, fruto da identificação projetiva, dirá que neste
caso as subjetividades de analista e analisando encontram-se subjugadas no terceiro,
ou, confundidas com este). Ou seja, essa terceira subjetividade não é uma mistura de
analista e analisando, mas uma subjetividade que ocupa um espaço entre as
individualidades do analista e do paciente como sujeitos separados. Portanto, o Terceiro
Analítico é construído por meio de um funcionamento mental dialético mutuamente
negador e criador que apesar de dar origem a uma nova subjetividade (a
intersubjetividade), permite que ambas as subjetividades individuais permaneçam
separadas uma da outra. Colocando em minhas próprias palavras: o terceiro analítico é
fruto da introjeção projetiva.

Com o intuito de ilustrar como o Terceiro Analítico se manifesta na clínica, Ogden


dará dois exemplos. Acho fundamental analisarmos os mesmos minuciosamente, pois
ficará claro, penso, que falta na linguagem de Ogden a nomeação do processo que cria
o Terceiro Analítico (e que estou chamando de introjeção projetiva). Farei minha análise
e deixo que o leitor tire suas conclusões.

É muito importante notar que Ogden apresenta ambos os fragmentos clínicos


como exemplo do Terceiro Analítico, ele coloca da seguinte forma: “Apresentarei
fragmentos de duas análises que iluminam diferentes aspectos da inter-relação
dinâmica de subjetividades que constituem o terceiro analítico.” (p. 60). O Terceiro
Subjugador não aparece nesse capítulo, mas no seguinte, no qual o autor abordará a
identificação projetiva, mas, no caso, sem oferecer vinheta clínica. Mas por que isso é
importante? Pois, como pretendo demonstrar, a falta de delimitação e diferenciação
clara entre os terceiros (analítico e subjugador), ou seja, a falta de uma clara
compreensão do que é que cada um deles tem de semelhante e de diferente e, portanto,
a falta da nomeação do processo que gera o terceiro analítico (que estou chamando de
introjeção projetiva), faz com que o próprio Ogden não aborde as alternâncias dos
terceiros em seus exemplos clínicos e, consequentemente, não ressalta o fato de que o
segundo exemplo se trata mais do Terceiro Subjugador e da dialética deste com o
Terceiro Analítico do que do último propriamente dito, apesar de ambos terem sido
anunciados como exemplos do terceiro analítico. Em resumo, pretendo demonstrar que
se a diferenciação entre identificação projetiva (gerando o terceiro subjugador) e
introjeção projetiva (gerando o terceiro analítico) fosse acrescentada ao raciocínio de
Ogden, levando a uma clara diferenciação entre os terceiros, o segundo exemplo clínico
poderia ser retirado do capítulo cinco e inserido no seis e seria considerado um exemplo
do terceiro subjugador em vias de se tornar terceiro analítico, ou, do movimento dialético
entre os terceiros e não um exemplo do terceiro analítico. Penso que se isso fosse feito
o livro ficaria mais organizado e os conceitos mais claros. Sigamos em frente.

Ilustração Clínica I – A carta roubada

Seguirei o caminho de Ogden, ou seja apresentarei o caso e em seguida a


discussão.

Durante uma sessão com o paciente L., em análise há três anos, Ogden se pega
prestando atenção em um envelope em cima de uma mesa que ficava próximo à sua
poltrona. Embora o envelope estivesse ali a semana toda, apenas nesse momento
passa a chamar sua atenção. Ele vinha utilizando o mesmo para fazer algumas
anotações pessoais.

Apesar de o envelope estar ali há mais de uma semana, só agora percebe umas
marcas nele, que parecem indicar que seja parte de uma mala direta (ou seja,
impessoal). Decepciona-se com essa impressão, pois a carta era de um amigo e tratava
de um assunto delicado que deveria ser confidencial (pessoal). Analisando o envelope
Ogden, pela primeira vez, repara nas palavras “Wolfgang Amadeus Mozart”, mas
demora para perceber que era um nome familiar.

Ogden relata que em anos anteriores ele costumava ignorar esses devaneios,
cuja presença parecia interferir em sua escuta analítica. Dessa vez, contudo, tenta
entender de que forma esses pensamentos estariam relacionados com o setting.
Podemos observar, aqui, o início do movimento dialético entre paciente e analista, e
entre ambos e o terceiro analítico intersubjetivo. Ogden inicia seu relato contando sobre
alguns devaneios seus que, aparentemente, não estavam relacionados ao paciente.
mas, ao entender seus pensamentos como sendo produzidos não por ele
individualmente, mas no e com o terceiro analítico, o autor adentra o território das
relações entre subjetividade e intersubjetividade.

Em seguida, Ogden diz que o esforço para fazer essa mudança no estado
psicológico, ou seja, sair de seus devaneios e voltar para a sessão e, ponto central,
introduzindo seus pensamentos no material clínico, se parecia (o esforço) “com a
penosa batalha para tentar ‘combater o recalque’ que eu já havia experimentado ao
tentar me lembrar de um sonho…” (p. 62) O autor não aprofunda o assunto no livro, ou
seja, a dificuldade de se trabalhar com fatos clínicos intersubjetivos, mas penso ser
importante ressaltar que esse “esforço” é comum em tais situações. Há,
frequentemente, uma resistência à introduzir devaneios pessoais do analista no material
clínico; mas o enfrentamento dessa resistência geralmente é recompensado, quando o
analista não desiste da tarefa.

O autor dá-se conta de que sua fantasia de que a carta era parte de uma mala
direta indicava sua desconfiança sobre o caráter genuíno de intimidade da mesma, e
refletia seu receio de ter sido enganado, de modo que se sentiu ingênuo por achar que
um segredo importante estaria lhe sendo confiado.

Em seguida têm algumas associações que incluíam:

... a imagem de um saco postal cheio de cartas com selos que haviam
sido carimbados, uma bolsa cheia de ovos de aranha, Charlotte´s Web
(A teia de Charlotte), a mensagem de Charlotte na teia de aranha;
Templeton, o rato, e o inocente Wilbur.

(p. 62)

Ogden diz que esses pensamentos não pareciam alcançar o que estava
acontecendo entre ele e o paciente. Em seguida, percebe que o Sr. L. está falando de
forma cansada e desanimada (algo que era comum), embora procurasse obedecer a
regra da “associação livre”. Esse paciente vinha buscando meios de fugir de um
isolamento emocional grave em relação aos outros e a si mesmo. Por exemplo, não
sentia que sua casa era sua, assim como sua esposa e filhos não lhe pareciam seus.
Dando sequência a seu movimento de escutar a si, ao paciente, e considerar
ambos materiais como sendo gerados na e com a matriz intersubjetiva (o terceiro
analíticoa), Ogden tem a ideia de que talvez se sentisse enganado pelo paciente
(fazendo uma ligação entre seu sentimento em relação ao envelope e a fala do paciente)
e a aparente sinceridade de seu esforço por falar, mas essa ideia lhe pareceu vazia.
Contudo, em seguida, o autor lembra da frustração na voz do paciente quando relatava
não conseguir entrar em contato com seus sentimentos. Ou seja, primeiramente, Ogden
tentou ligar seus devaneios ao material do paciente por meio do conteúdo “estar sendo
enganado”, mas sente que é uma ligação vazia. Em seguida, ele tem uma lembrança
sobre um conteúdo do paciente. Essa lembrança, levando em conta a concepção que o
autor tem da intersubjetividade, é gerada no e com o terceiro analítico; e começa, como
veremos, a colocar Ogden no caminho certo.

Em seguida Ogden conta que o paciente sonhava com frequência com pessoas
paralisadas, prisioneiras e mudas. Num sonho recente, após muito esforço para
conseguir quebrar uma pedra encontra hieróglifos entalhados em seu interior, o que lhe
causou decepção, por não ser capaz de entendê-los. No sonho, a descoberta foi
excitante e em seguida desesperadora. Mas, ao despertar, o desespero foi obliterado e
o sonho tornou-se algo sem vida.

Em seguida Ogden tenta entender sua experiência na consulta como fruto de


uma identificação projetiva, por meio da qual ele participaria da experiência do paciente
relacionada à sua incapacidade de ter uma vida própria. Contudo, essa tentativa de
entender o material como sendo resultado de uma identificação projetiva lhe pareceu
fazer sentido apenas intelectualmente, de modo que deixou-a de lado. Passou então a
ter uma série de pensamentos “narcísicos” e “competitivos”, que foram interrompidos
pela lembrança de que seu carro estava na oficina e que, se quisesse buscá-lo antes
da mesma fechar, teria que terminar a última consulta do dia em cima da hora.
Imaginava a si mesmo diante da oficina fechada, escutando o barulho do tráfego na rua.
Sentiu desamparo, raiva, pena de si mesmo e um certo melindre, pelo fato de o dono
não o ter esperado, apesar de ser um cliente antigo. Acompanhava essa fantasia um
sentimento profundo de isolamento, assim como uma “sensação física palpável, da
dureza do pavimento, do cheiro desagradável da fumaça dos escapamentos, e da
aspereza do vidro sujo das janelas da porta da garagem”. (P. 64).
Embora não estivesse consciente disso no momento, Ogden diz que depois
percebeu que estava abalado com esses sentimentos e imagens, que acabavam com a
fantasia de terminar de modo impessoal a última consulta do dia e por fim encontrar a
porta da oficina fechada. Quando voltou a escutar atentamente o paciente, Ogden tentou
unir os diversos conteúdos da fala do mesmo:

...a imersão da esposa no trabalho e a exaustão que ambos sentiam no


fim do dia; a crise financeira do cunhado e sua iminente falência; uma
experiência durante a prática de jogging, em que o paciente quase teve
um acidente com uma motocicleta que estava sendo dirigida
imprudentemente.

(p. 65)

Ogden diz que poderia ter utilizado as imagens que tinha tido como símbolos do
material trazido com frequência pelo paciente, como por exemplo, a sensação de
isolamento que acompanhava tudo que o paciente dizia, mas sentiu que estaria sendo
repetitivo e que o momento não era inadequado, ou seja, não achava que era a hora de
fazer uma interpretação.

O autor lembra que o telefone de seu consultório havia tocado durante a


consulta, e que uma mensagem tinha sido deixada. Olha para o relógio para ver quanto
tempo falta para pegar a mensagem e tem uma fantasia de que vai escutar uma voz
fresca, aguda e clara vindo da fita da secretária eletrônica. A fantasia tem um elemento
sensorial: uma brisa refrescante que alivia a imobilidade da sala quente e sufocante.

Ogden se lembra das cores vivas dos selos do envelope, em contraste com as
marcas “indeléveis do carimbo da máquina” (p. 66). Olha novamente para o envelope e
percebe algo que havia ficado como um característica secundária esse tempo todo: que
seu nome no envelope tinha sido escrito de forma bastante pessoal, à máquina de
escrever manual, e não por um computador ou etiqueta postal. Fica “quase feliz” (p. 66)
pela característica de pessoalidade com a qual seu nome havia sido “falado” (p. 66),
como se uma voz humana estivesse de fato falando com ele.

Analisemos esses últimos movimentos. Ogden se questiona se estaria


participando de um experiência de identificação projetiva, mas descarta essa hipótese.
Em seguida, tem uma série de pensamentos ligados ao desamparo e à impessoalidade,
e também a coisas duras e ásperas. Esses sentimentos o abalaram. Depois, analisa o
material do paciente e percebe que poderia ligá-lo às suas próprias imagens, com o
intuito de interpretar um tema recorrente: a sensação de isolamento que acompanhava
tudo que o paciente dizia. mas dá-se conta de que seria inadequado, e de que não era
hora de fazer uma interpretação.

Da outra vez que Ogden havia tentado ligar conteúdos do paciente com os seus
e, por fim, não achou tal relação pertinente, havia, logo em seguida, lembrado da
frustração na voz do paciente ao admitir que não conseguir entrar em contato com seus
sentimentos. Ou seja, a mente de Ogden parece perscrutar o campo, sob a influência
do terceiro analítico. Agora, novamente, após descartar a possibilidade de interpretar, o
autor é levado a outro conteúdo, mas oposto àquele de ausência de afeto: a voz suave
da secretária eletrônica e as cores vivas dos selos do envelope.

Esses sentimentos e fantasias trouxeram “à mente e ao corpo de Ogden algo


que o paciente havia contado meses atrás: que se sentia mais próximo do analista
quando esse errava do que quando acertava. E ele acrescenta:

Eu precisara de todos esses meses para compreender de maneira mais


plena o que ele quisera dizer quando me disse isso. Neste ponto da
sessão, comecei a ser capaz de descrever para mim mesmo as
sensações de desespero que eu estivera sentindo dentro de mim e a
busca frenética do paciente por algo humano e pessoal no nosso trabalho
conjunto. Também comecei a sentir que entendia algo do pânico, do
desespero e da raiva associados com a experiência de colidir
reiteradamente com algo que parece ser humano mas que proporciona a
sensação de ser mecânico e impessoal. (p. 66-67)

Depois de todo movimento dialético que acompanhamos, entre Ogden, o


paciente e o terceiro analítico, o autor chega a um insight: a busca frenética do paciente
por algo humano na terapia.

Em seguida, lembrou que o Sr. L. havia descrito sua mãe como “cerebralmente
morta”, sem condição alguma de demonstrar emoções e lidar com dificuldades
emocionais, o que fazia com que tivesse uma enorme incapacidade de reconhecer a
vida interna do paciente. Por exemplo, quando o paciente, ainda criança, tinha medo de
que existissem monstros embaixo de sua cama, recebia de sua mãe respostas do tipo:
“Aí não tem nada do que ter medo” (p. 67).

Ogden entende então o significado da cadeia de pensamentos do Sr. L., que


incluía se sentir exausto, a falência do cunhado e o sério acidente. Todos pareciam,
agora, reflexos de tentativas inconscientes de comunicar seu sentimento de que a
análise estava esvaziada, falida, morrendo. O analista lhe parecia mecânico e incapaz
de ser humano com ele. Também as fantasias de Ogden sobre o fechamento da
garagem no fim do dia tinham um aspecto de falta de vida: dureza, aspereza, fumaça.

Ogden faz nesse momento uma interpretação.

Eu disse ao paciente que pensava que nossa hora juntos devia parecer
a ele um exercício obrigatório e chato, algo como um emprego numa
fábrica onde se põe e tira o cartão de ponto. Disse, em seguida, ter a
sensação de que ele às vezes se sentia tão inevitavelmente asfixiado nas
sessões comigo, que devia ser como estar sufocando por algo que
parece ser ar, mas na verdade é vácuo.

(p. 68)

O autor relata que após a interpretação a voz do paciente ficou clara e alta, de
uma forma que o analista nunca tinha escutado antes. O paciente concorda com a
interpretação e diz que dorme com as janelas abertas devido ao medo de se sufocar, e
que muitas vezes acorda aterrorizado, pensando que alguém estaria lhe sufocando
com um saco plástico. Diz que, com frequência, sente que a sala de análise está
quieta e quente demais, mas que só agora percebia esses sentimentos. Lamenta dar-
se conta do quão pouco percebe sobre o que se passa dentro de si, a ponto de não
saber quando uma sala está muito quente para ele.

Em seguida o paciente fica 15 minutos em silêncio, algo que nunca ocorrera


antes.Ogden não se sente pressionado a falar durante o silêncio e entende o mesmo
como uma sensação de alívio e repouso. Dá-se conta do enorme esforço que ambos
faziam para que a análise não caísse no desespero, e imagina ele e o paciente, no
passado, “tentando freneticamente manter uma bola no ar, lançando-a um para o outro”
(p. 69). No final da sessão o analista teve sono e precisou combatê-lo.

Na sessão seguinte o paciente traz um sonho. Ele estava debaixo d’água com
outras pessoas, todos estavam nus (e isso não era um incômodo). O paciente estava
segurando a respiração e sentiu pânico ao imaginar que ia se afogar quando ficasse
sem ar. Um homem lhe disse que não tinha problema, que ele podia respirar
normalmente. Ele tentou, com receio, e descobriu que realmente conseguia respirar.
Em seguida, em outro local mas ainda debaixo d’água, o paciente sentia grande tristeza
e chorava profundamente. Um amigo falou com ele, e o Sr. L. sentiu-se agradecido dele
não tentar animá-lo ou tranquilizá-lo. Acordou do sonho muito triste, embora sem saber
o motivo. Percebe-se tentando mudar o foco do sentimento de tristeza para outros
assuntos, com os quais se distraia.

Ogden encerra seu relato aqui; ele abordará o sonho novamente na discussão.

Discussão

Ogden inicia dizendo:

O relato acima foi apresentado não como um exemplo de divisor de águas


numa análise, mas como um esforço para transmitir a sensação de
movimento dialético de subjetividade e intersubjetividade no setting
analítico. Tentei descrever um pouco da maneira como minha experiência
como analista (inclusive os funcionamentos subjacentes da minha mente,
quase imperceptíveis e muitas vezes extremamente mundanos) é
contextualizada pela experiência intersubjetiva criada pelo analista e pelo
analisando. Nenhum pensamento, sentimento ou sensação pode ser
considerado igual ao que era ou seria fora do contexto da
intersubjetividade específica (e em contínua mudança) criada pelo
analista e pelo analisando. (P. 70).

O autor diz que o relato de caso não é exemplo de um divisor de águas, mas do
movimento dialético entre subjetividade e intersubjetividade, o que ficou bem claro em
nossa análise. De fato, ao ler o relato percebemos que não estamos diante de algo
intenso, brusco, como por exemplo, um enactment agudo, cuja consequência é a de
restabelecer a relação triangular de forma abrupta (Cassorla, 2016). No exemplo acima,
pelo contrário, o que vemos é a ação criativa de um processo dialético entre as
subjetividades de paciente e analista e o terceiro analítico. Isso é importante, pois deixa
claro que o autor quer chamar a atenção para um fato corriqueiro do processo analítico,
e não de um processo patológico dominado por defesas intensas, ou seja, não é um
exemplo de uma identificação projetiva.

Ogden acredita que tudo que acontece na sessão analítica carrega a influência
da intersubjetividade, ou, como ele coloca, do terceiro analítico. Após nos contar que
durante seus estados de rêverie não conseguiu focar-se em seu paciente, ele inicia a
discussão do caso dizendo:
Quanto aos desdobramentos do material clínico em si, minha experiência
do envelope (no contexto da análise) começou com eu notando o
envelope, que, apesar de estar fisicamente presente durante semanas,
só naquele ponto surgiu como evento psicológico, um portador de
significados psicológicos, que não existiam antes daquele momento.
Entendo esses novos significados não só como um reflexo do
levantamento de um recalque dentro de mim, mas como um evento que
reflete o fato de que um novo sujeito (o terceiro-analítico) estava sendo
produzido pelo (entre) Sr. L. e mim, o que resultou na criação do envelope
como um “objeto analítico” (Bion, 1962a, Green 1975). Quando percebi
esse ‘novo objeto’ sobre minha mesa, fui atraído por ele de uma maneira
tão completamente egossintônica, a ponto de construir um
acontecimento de que eu não tinha a menor consciência. Notei as marcas
feitas a máquina no envelope, que também não tinham estado ali (para
mim) até aquele ponto. Vivenciei essas marcas pela primeira vez no
contexto de uma matriz de significados relacionados com a decepção
devido à ausência de um sentimento de que estivessem falando comigo
de um modo que soasse pessoal. Os selos sem carimbo foram
igualmente ‘criados’ e tomaram seu lugar na experiência intersubjetiva
que estava sendo elaborada. Meus sentimentos de estranhamento
chegarem a tal ponto que mal reconheci o nome de Mozart como parte
de uma linguagem comum. (P. 71).

O aspecto central da passagem acima diz respeito ao fato de que o envelope, e


algumas de suas características físicas, não “existiam” como objeto analítico até então.
De fato, o envelope, apesar de estar presente há semanas, só na consulta com o Sr. L.
é “criado” como objeto analítico. O objeto é “novo” pois o olhar do analista para o mesmo
está, agora, inexoravelmente influenciado pelo terceiro analítico.

O mesmo acontece com as marcas feitas à máquina no envelope. Estas foram


vivenciadas pela primeira vez no “contexto de uma matriz de significados relacionados
com a decepção devido à ausência de um sentimento de que estivessem falando
comigo de um modo que soasse pessoal”. Os sentimentos de algo impessoal chegaram
inclusive a fazer com que Ogden mal reconhecesse a palavra Mozart.

Temos aqui um exemplo clássico das teorias modernas sobre a


intersubjetividade. Penso que Antonino Ferro teria explicado esse fenômeno em termos
de identificação projetiva. Mas Ogden é mais cuidadoso. Dos autores que perceberam
a importância da identificação projetiva para se explicar a intersubjetividade, Ogden me
parece o mais zeloso. Ele sempre soube que a identificação projetiva não explica tudo
e não deve ser extrapolada sem cuidados, ainda que tenha apoiado a construção de
seu conceito de terceiro analítico na identificação projetiva.

A passagem acima diz muitas coisas e é muito bonita. Chamarei atenção para o
fato de que o fenômeno em questão não é o de identificação projetiva. O analista está
funcionando na posição depressiva, pelo menos predominantemente. Não há sinais de
que esteja imobilizado ou sendo invadido por conteúdos mentais insuportáveis. Não há
sinais de um conluio inconsciente paralisante, pelo menos não nessa consulta. A
capacidade de simbolizar do analista está suficientemente preservada. A ênfase de
Ogden recai sobre o fato de que os conteúdos gerados na mente do analista são frutos
de fenômenos intersubjetivos.

Portanto, a única forma de relacionarmos os fenômenos narrados acima com o


conceito de identificação projetiva, o que Ogden não faz (mas que muitos outros autores
teriam feito), seria se isolássemos do significado do conceito a parte deste que diz
respeito às interações mútuas e cruzadas de projeção e introjeção que têm como
resultado criar (construir) novas realidades. Em minhas palavras, a introjeção projetiva.
É por isso que o conceito que se encaixa é o de terceiro analítico e não de terceiro
subjugador.

Ogden continua:

Um detalhe que exige maiores explicações é a série de associações


fragmentadas relacionadas com Charlotte’s web. Embora fossem
altamente pessoais e idiossincráticos na minha experiência de vida
pessoal, esses pensamentos e sentimentos também estavam sendo
criados de forma nova dentro do contexto da experiência do terceiro-
analítico. Eu tinha consciência de que Charlotte’s web era muito
importante para mim, mas o significado particular do livro não só estava
recalcado, como ainda não tomara a forma que viria a adotar durante
aquela sessão. Foi somente algumas semanas depois daquela sessão
que me dei conta de que esse livro estava originalmente, e em processo
de se tornar, intimamente associado a sentimentos de solidão. Percebi,
pela primeira vez (nas semanas seguintes), que lera aquele livro várias
vezes durante um período de intensa solidão na minha infância e que me
identificara profundamente com Wilbur como um desajustado e um pária.
Considero essas associações (em grande parte inconscientes) com
Charlotte’s web, não como uma recuperação de uma memória que fora
recalcada, mas como a criação de uma experiência (dentro e através da
intersubjetividade analítica) que não existira até então sob a forma que
agora adotava. Essa concepção da experiência analítica é central para
este ensaio; a experiência analítica ocorre no vértice do passado e do
presente e envolve um ‘passado’ que está sendo recriado (tanto para o
analista quanto para o analisando) por meio de uma experiência
produzida entre analista e analisando (isto é, dentro do terceiro-analítico).
(P. 71 e 72, meus grifos).

A passagem acima é belíssima, e aprofunda mais a compreensão que o autor


tem do terceiro analítico. Ogden tem associações relacionadas a um livro cuja leitura
havia sido muito importante para ele. A experiência no e com o terceiro analítico ajudou-
o a entrar em contato com um sentimento associado ao livro até então inexistente. Ou
seja, ele não se deu conta desse significado senão algumas semanas depois e, segundo
ele “não como a recuperação de uma memória que fora recalcada, mas como a criação
de uma experiência (dentro e através da intersubjetividade analítica) que não existira
até então sob a forma que agora adotava.” Portanto, esse novo significado foi criado na
experiência nova com o terceiro, ou seja, pela relação dialética entre subjetividade e
intersubjetividade.

O autor diz que “essa concepção de experiência analítica é central” para a


compreensão de seu ensaio . Eu diria que ela é central para se entender como é que
se dá o funcionamento mental. É impossível exagerar a importância e a beleza do que
o autor está dizendo. A subjetividade é uma ficção teórica. Projeção e introjeção só
podem ser separadas em tese. No momento exato em que dois indivíduos se encontram
inicia-se, em uma fração de segundos, na velocidade da luz e de forma contínua um
processo mútuo de construção de uma nova subjetividade, que irá se relacionar com
ambas subjetividades de forma tão marcante e soberana que ninguém poderá dizer que
é, naquela relação, “ele mesmo”. O indivíduo não existe... separado do outro (Winnicott).
E eu acrescento que se um indivíduo se pergunta: Quem sou eu? A resposta seria:
depende de quem está com você.

No final do parágrafo Ogden diz que o passado, ao ser revivido na experiência


com o outro também é ressignificado. Presente e passado são recriados na experiência
com o terceiro.
O parágrafo seguinte reforça a ideia de que Ogden se refere a algo corriqueiro,
“mundano”. Ou seja, ele está se referindo, e venho insistindo nisso desde o início, a um
tipo de funcionamento mental (que como já vimos é “similar”, mas não igual à
identificação projetiva) que está presente a todo momento em todo encontro entre
sujeito e objeto (e para o qual estou dando o nome de introjeção projetiva). Ele diz:

Cada vez que minha atenção consciente se deslocava da experiência de


meus próprios devaneios para o que o paciente estava dizendo, e como
ele o estava dizendo para mim e estando comigo, eu não estava
retornando para o mesmo lugar que eu abandonara segundos ou minutos
antes. Eu estava a cada instante sendo mudado pela experiência da
rêverie, às vezes de um modo quase imperceptível. Durante a rêverie
acima descrita, havia ocorrido algo que não deve ser considerado mágico
ou místico. De fato, o que ocorreu era tão comum, tão mundano a ponto
de quase não ser observável como evento analítico. (p. 72)

O relato segue da seguinte forma:

Quando dirigi novamente minha atenção para o Sr. L., depois da série de
pensamentos e sentimentos relacionados ao envelope, estava mais
receptivo para a qualidade esquizoide da experiência do Sr. L. e para a
inutilidade das tentativas, tanto dele quanto minhas, de criar juntos algo
que parecesse real. Estava mais intensamente consciente do sentimento
de arbitrariedade associado a sua sensação do seu lugar na família e no
mundo, assim como do sentimento de vazio associado a meus próprios
esforços para ser um analista para ele. (P. 72 e 73).

Quando retorna de seus devaneios e dirige novamente sua atenção ao Sr. L.,
Ogden está mais consciente dos sentimentos de não pertencimento e de irrealidade do
paciente e de ambos no contexto da análise. Essa nova consciência do que acontecia
com o paciente e com a análise foi adquirida depois que o autor pôde considerar seus
devaneios como fenômenos intersubjetivos e buscou dar a eles significado.

Isso levou Ogden, e talvez tivesse levado muitos analistas, a tentar explicar o
que estava acontecendo por meio do conceito de identificação projetiva. Ele coloca da
seguinte forma:

Envolvi-me, então, numa segunda série de pensamentos e sentimentos


a mim referidos (subsequentes a minha tentativa, apenas parcialmente
satisfatória de conceituar meu próprio desespero e o do paciente em
termos de identificação projetiva). (p. 73)

Ogden diz, novamente (pois ná página 64 já havia dito que tinha descartado essa
hipótese) que a hipótese de estar vivenciando uma identificação projetiva é apenas
“parcialmente satisfatória”. E na nota de rodapé da página 73 ele diz isso de novo,
conforme citação abaixo:

Creio que um aspecto da experiência que estou descrevendo pode ser


compreendida em termos de identificação projetiva, mas o modo como a
ideia de identificação projetiva foi utilizada no ponto em que surgiu estava
predominantemente a serviço de uma defesa intelectualizante. (p. 73,
meu grifo)

São duas as principais informações contidas na passagem acima: 1) entender


os acontecimentos do momento como uma identificação projetiva seria mais uma defesa
intelectual do analista do que qualquer outra coisa; 2) havia de fato um aspecto da
experiência que podia ser entendido em termos de identificação projetiva.

Em resumo, Ogden tentou explicar sua própria experiência emocional na


consulta como uma forma de identificação projetiva na qual ele “participava da
experiência do paciente”. Essa formulação “fez sentido intelectualmente”, mas nada
mais do que isso, de modo que abandona essa hipótese e, em seguida, tem uma série
de pensamentos muito ricos em simbolismos. Por fim, ele admite que havia algo de
identificação projetiva presente na experiência.

Eu gostaria de tomar a liberdade de buscar uma explicação para o motivo pelo


qual a ideia de explicar esses eventos analíticos por meio de identificação projetiva foi,
em primeiro lugar considerada pelo autor e, em seguida, abandonada; assim como dar
uma explicação para esse algo presente na experiência que estava relacionado à
identificação projetiva.

Eu penso que ao dizer que a hipótese que levantou era “parcialmente


satisfatória” Ogden estava intuindo que existia algo de identificação projetiva na
experiência analítica, mas não mais que isso. De fato, na nota de rodapé ele admite
isso. Ou seja, não era uma experiência de identificação projetiva, embora contivesse
algumas características desse fenômeno.
Apesar de uma grande influência dos fenômenos intersubjetivos sobre a mente
de Ogden (que a meu ver é o algo relacionado à identificação projetiva), ele mantinha o
tempo todo uma boa separação entre ele e o paciente e, além disso, sua capacidade de
formar símbolos está funcionando muito bem. Por exemplo, um pouco antes de se
questionar se estava vivenciando uma experiência de identificação projetiva, o autor
estava tentando articular seu sentimento em relação ao aspecto impessoal da carta com
os aspectos impessoais de sua relação com o paciente. E logo em seguida ao abandono
da hipótese de identificação projetiva o autor tem uma longa série de associações que
o levaram, por fim, a fazer uma interpretação muito pertinente. Essa série de
associações parece mais um diálogo interno no qual estão presentes não apenas as
ideias do analista mas lembranças de falas do paciente e de dados da vida do paciente.
Portanto, Ogden não estava exatamente refletindo, mas em tensão dialética com o
terceiro analítico. Mas, e essa é a questão, ele viveu essa experiência na posição de
um sujeito separado de seu paciente, na qual o simbolismo opera com de forma fluida;
daí a não aplicação do conceito de identificação projetiva.

A identificação projetiva explica “apenas parcialmente” o que ocorreu na sessão.


Esse aspecto parcial é, como tenho tentado demonstrar, a atuação dos mecanismos de
projeção e introjeção operando em conjunto, de forma cruzada e gerando produtos
intersubjetivos, o terceiro, que não é nem analista nem paciente. O que falta para que
essa experiência se transforme em uma identificação projetiva é o caráter de confusão
entre sujeito e objeto, que causaria perda da relação triangular e capacidade de
simbolizar. Tanto é que quando se refere ao sujeito da identificação projetiva, Ogden o
chama de terceiro subjugador (no qual as individualidades de analista e paciente estão
subjugadas).

É compreensível que Ogden tenha tentado explicar o fenômeno do terceiro por


meio da identificação projetiva; muitos autores tomariam esse rumo. Mas Ogden sempre
foi mais cuidadoso nesse sentido. É importante notar que ele abandona a hipótese da
identificação projetiva sem colocar algo no lugar, e o que é mais importante, sem
explicar por que a identificação projetiva explica os fenômenos relacionados ao terceiro
analítico de forma parcial. Que aspectos parciais são esses? Por que de forma parcial
e não total? São respostas a essas questões que eu estou oferecendo.

O relato segue da seguinte forma:

Meus pensamentos foram interrompidos por fantasias angustiantes e


sensações relacionadas com o fechamento da garagem e minha
necessidade de terminar a última sessão do dia na hora certa. Meu carro
estivera na oficina o dia inteiro, mas foi só com esse paciente, nesse
preciso momento, que o carro como objeto analítico se criou. a fantasia
concernente ao fechamento da garagem foi criada naquele momento não
por mim isoladamente, mas por meio da minha participação na
experiência intersubjetiva com o Sr. L. Pensamentos e sentimentos
referentes ao carro e à oficina não se fizeram presentes em nenhuma
das outras sessões de que participei naquele dia. (p. 73)

Assim que abandona a hipótese da identificação projetiva Ogden têm algumas


fantasias relacionadas ao fechamento da oficina na qual seu carro está consertando.
Esse é mais um exemplo de como um fato se torna um objeto psicanalítico a partir da
experiência intersubjetiva. O carro estivera o dia todo na oficina, mas só agora ocupa a
mente do analista. O fato é antigo e ao mesmo tempo novo, pois acaba de ser criado no
contexto do terceiro analítico.

A próxima passagem, que traz alguns dos significados das fantasias


relacionadas à oficina, deixa claro a influência do terceiro na criação desses devaneios,
pois o conteúdo dos mesmos está altamente relacionado com a experiência analítica do
momento.

Na rêverie relacionada com o fechamento da garagem e com minha


necessidade de terminar a última sessão do dia na hora, a experiência
de colidir com uma falta de humanidade, imutável e mecânica, em mim
mesmo e nos outros, repetiu-se de várias formas. Misturadas com as
fantasias havia sensações de dureza (o pavimento, o vidro, e a aspereza)
e asfixia (a fumaça dos escapamentos). Essas fantasias produziram uma
sensação de angústia e urgência dentro de mim, cada vez mais difícil de
ignorar (embora no passado eu pudesse perfeitamente ter descartado
essas fantasias e sensações como sem significado para a análise, exceto
como interferências a serem superadas). (P. 73).

Em seguida Ogden volta a escutar o paciente, naturalmente influenciado por


seus próprios devaneios. Ou seja, toda essa experiência de falta de humanidade,
dureza, aspereza, etc, levou a uma transformação de alguns objetos analíticos para o
analista. Um evento que havia acontecido pouco antes na consulta e que havia ficado
de lado (a gravação na secretária eletrônica) entra em cena. Ele diz:
A voz gravada na secretária eletrônica portava agora a promessa de ser
a voz de uma pessoa que me conhecia e que falaria comigo de modo
pessoal. As sensações físicas, de respiração livre e de asfixia, passavam
a ser portadoras de significados de importância crescente. O envelope
tornou-se um objeto analítico diferente daquele que fora antes durante a
sessão; tinha agora o significado de um representação de uma voz
idiossincrática, pessoal (o endereço datilografado com um ‘t’ imperfeito.
(p. 74)

O tema é o mesmo, a expectativa de encontrar uma voz que se comunicasse


com o analista de forma pessoal. O envelope também passa a ter outro significado, após
o modo pessoal com que foi datilografado o nome do analista. Toda essa experiência
vivida no e com o terceiro analítico levaram à transformação de algo que o paciente
havia dito ao analista meses atrás: que sentia-se mais próximo do analista quando este
cometia faltas. Ou seja, essa fala era agora lembrada em outro contexto e ganhava outro
significado, a partir das experiências no e com o terceiro analítico.

A fala do paciente foi recriada no presente. O analista começa a tornar-se


consciente do que está acontecendo e alguns outros temas até então desconexos se
integram formando uma rede de significados que dá um novo (criativo) entendimento.
Os temas “...pareciam agora convergir para a ideia de que o Sr. L. estava vivenciando,
tanto a mim quanto ao discurso entre nós, como falidos e moribundos”. Velhos temas
tornam-se novos objetos analíticos a partir da experiência com o terceiro. Ogden tenta,
então, falar ao paciente sobre o fato de o paciente experimentar ao analista e à análise
como mecânica e sem vida.

Segue abaixo a interpretação dada ao paciente:

Eu disse ao paciente que pensava que nossa hora juntos devia parecer
a ele um exercício obrigatório e chato, algo como um emprego numa
fábrica onde se põe e se tira o cartão de ponto. Disse, em seguida, ter a
sensação de que ele às vezes se sentia tão inevitavelmente asfixiado nas
sessões comigo, que devia ser como estar sufocando por algo que
parece ser ar, mas na verdade é vácuo. (P. 68).

O autor diz que não planejou conscientemente utilizar a imagem de máquinas


(fábrica, relógio de ponto e câmera de vácuo). Todas as imagens utilizadas na fala de
Ogden eram um reflexo de sua experiência com o terceiro analítico.
A resposta do paciente indica que Ogden estava no caminho , sua voz apresenta
uma intensidade que denota “um modo mais intenso e pleno de dar e receber” (p. 75).
Seus sentimentos de estar excluído do humano foram vivenciados na forma de imagens
de asfixia (conta que tem medo de sufocar-se durante a noite, chegando a acordar
aterrorizado com a ideia de que alguém está lhe sufocando).

Segue um longo silêncio, o mais longo até então. O silêncio é um fato novo e
devido ao contexto Ogden o entende como um contraste em relação ao medo de
sufocar-se (e ser sufocado pelo analista). O silêncio tinha portanto o significado de
relaxamento, alívio e um certo descanso após o “dever cumprido”.

Ogden ressalta dois aspectos significativos em sua própria experiência durante


o silêncio do paciente. O primeiro foi logo em seguida a perceber que ele e o paciente
faziam regularmente um “tremendo” esforço para que a análise não caísse no
desespero; imaginou ele e o paciente “tentando freneticamente manter uma bola no ar,
lançando-a um para o outro”. (P. 69). O outro aspecto foi sobre o sono que sentiu.

Ele diz:

Embora eu me sentisse bastante aliviado pelo modo como eu e o Sr. L.


éramos capazes de ficar juntos em silêncio (numa combinação de
desespero, exaustão e esperança), havia um elemento na experiência do
silêncio (em parte refletido na minha sonolência) que parecia um trovão
ao longe (o que considero retrospectivamente uma raiva afastada). (P.
76).

Ogden sente-se aliviado com a forma como vivenciam o silêncio e,


provavelmente, com o significado do mesmo naquele momento de desespero. A
sonolência do analista poderia ser inserida nessa linha de raciocínio e significar uma
grande vontade de descansar em paz, uma espécie de ‘chega por hoje, mal acredito
que consegui chegar às conclusões as quais cheguei e agora mereço descansar’. Mas
Ogden intui na sonolência algo mais, uma raiva sendo anunciada de longe. O autor está
muito provavelmente correto, o alívio é real e merece ser comemorado, mas um
trovãozinho ao longe o lembra que as coisas não são nunca tão simples assim. Entende
esse trovão como uma “raiva afastada” (p. 76)

Em seguida Ogden analisa brevemente o sonho que o paciente trouxe na sessão


seguinte. Considera o sonho como sendo um desdobramento da consulta anterior, e um
início mais claro da manifestação, na transferência, de que as angústias do paciente
relacionadas à raiva e a sentimentos homossexuais em relação ao analista estavam
tornando-se predominantes. Na primeira parte do sonho, o paciente encontrava-se
debaixo d’água nú, com outras pessoas também nuas. Um homem lhe disse que ele
poderia respirar normalmente debaixo d’água. Respirou, apesar do medo, e fica
surpreso de que era capaz de fazê-lo. Na segunda parte, ainda debaixo d’água, chorava,
enquanto um homem desconhecido falava com ele, sem entretanto tentar animá-lo.

Ogden considera o fato de estar debaixo d’água, como um contato com algo
mais profundo, inconsciente, de modo que expressava que ambos haviam atingido algo
inconsciente na sessão anterior. O homem que dizia que o paciente podia respirar era
o analista, que não tinha medo de ser ‘afogado’ pelos sentimentos de “isolamento,
tristeza e futilidade” (p. 76) do paciente, e que não temia por ele (acreditava que podia
respirar). Como resultado disso, o paciente, por sua vez, “ousava estar vivo, (inspirar)”
(p. 76). O sonho sugeria ainda que a experiência do paciente não lhe parecia real,
representada por sua descrença de que era mesmo capaz de fazer o que fazia
(respirar).

A segunda parte do sonho representava uma maior capacidade do paciente de


sentir tristeza, fazendo com que ficasse mais conectado com o analista e consigo
mesmo. Ogden acha que o sonho também expressava uma gratidão a ele, por não ter
interrompido seu silêncio, o que seria uma espécie de roubar os sentimentos que
começava a experimentar; no sonho isso é representado pelo fato de o homem que
ficava com ele enquanto chorava não tentava acalmá-lo, respeitando seu estado e seus
sentimentos.

Ogden acrescenta, que além da gratidão, havia sentimentos de ambivalência em


relação a ele. A sonolência do analista (que parecia um trovão ao longe) indicava essa
ambivalência. A fantasia de jogar a “bola (seio)” (p. 77) um para o outro indicava raiva
sendo repelida. Eventos analíticos subsequentes confirmaram essa hipótese e
indicaram que a ausência rosto no homem da segunda parte do sonho representava a
impessoalidade do analista (assim que o paciente o sentia), gerando raiva no paciente.
Com o passar do tempo a raiva pôde se manifestar diretamente. Num nível mais
profundo, a proposta que o paciente recebeu do outro homem nu, para respirar, refletia
uma sensação inconsciente de que o analista o seduzia de uma forma que despertava
angústias homossexuais. Esses últimos conteúdos só puderam ser interpretados muito
mais tarde na análise.

Alguns comentários adicionais


Ogden reforça sua ideia de que “não foi por acaso” (p. 78) que sua mente divagou
sobre os conteúdos narrados acima, como por exemplo, a experiência em relação ao
envelope e seus diferentes significados dentro da consulta. O autor diz que esses
devaneios ‘pessoais’ são “raramente discutidos com colegas, e, muito menos, escritos
em relatos públicos de análises” (p. 78). Diz, novamente, que requer bastante esforço
por parte do analista extrair desse material aparentemente pessoal conteúdos que
tenham sido gerados pelo aspecto intersubjetivo da relação analítica. O ‘pessoal’ é
invariavelmente transformado pelo terceiro analítico. Ele diz:

Tentei demonstrar, nessa discussão clínica, que essas rêveries não são
simples reflexos de desatenção, absorção narcísica, conflitos emocionais
não-resolvidos e coisas semelhantes. Essa atividade psicológica
representa, antes, formas simbólicas e proto-simbólicas (baseadas em
sensações) atribuídas à experiência não-articulada (e muitas vezes ainda
não sentida) do analisando, quando estas estão ganhando forma na
intersubjetividade do par analítico (isto é, no terceiro analítico).

É muito comum, diz Ogden, que o analista tente deixar de lado, superar, esses
devaneios, como se fossem um empecilho a sua escuta e a sua capacidade de estar
atento ao paciente. Mas essa postura exclui grande parte de fatos clínicos importantes
vivenciados pelo analista. Segundo Ogden, um motivo importante para a dificuldade de
se levar esses conteúdos a sério e inseri-los no contexto analítico, é que tal atitude
“implica uma forma perturbadora de auto-consciência” (p. 79) Uma análise desse tipo
de material envolve uma análise da forma como falamos com nós mesmos, e a
comunicação entre inconsciente e consciente atinge um nível semelhante ao do sonho.
Entrar em contato com esses estados psíquicos num nível de investigação profunda é
se envolver com um “santuário internos essencial de privacidade e, portanto, com uma
das pedras angulares da nossa sanidade” (p. 79). Para Ogden, adentrar essa área é
pisar em solo sagrado. E ele finaliza profetizando:

Esse setor da experiência transferencial-contratransferencial é tão


pessoal, tão entranhado na estrutura de caráter do analista, que requer
um grande esforço psicológico entrar num discurso consigo mesmo do
modo necessário para reconhecer que, até mesmo esse aspecto do que
é pessoal, foi alterado por nossa experiência dentro e do terceiro
analítico. Se quisermos ser analistas num sentido pleno, temos de tentar
conscientemente fazer inclusive esse aspecto de nós mesmos participar
do processo analítico. (p. 79)

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