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O Terceiro Analítico
O Terceiro Analítico
(P. 58).
(P. 59 e 60).
É por isso que Ogden diz que a finalidade de uma análise não é separar
perfeitamente o que pertence ao paciente daquilo que pertence ao analista, em uma
busca utópica por uma espécie de falsa independência. A tarefa analítica envolve “pelo
contrário” entender e descrever a natureza da experiência de inter-relação da
subjetividade individual e da intersubjetividade. Ele chamou essa terceira subjetividade,
produto da tensão dialética entre as individualidades de analista e paciente, de Terceiro
Analítico.
Ele diz:
(P. 60).
Quero chamar a atenção para a última frase, pois ela é fundamental para o meu
raciocínio. Ogden diz que o terceiro analítico é uma nova subjetividade criada por
analista e analisando como indivíduos separados (veremos mais adiante que quando o
autor se referir ao terceiro subjugador, fruto da identificação projetiva, dirá que neste
caso as subjetividades de analista e analisando encontram-se subjugadas no terceiro,
ou, confundidas com este). Ou seja, essa terceira subjetividade não é uma mistura de
analista e analisando, mas uma subjetividade que ocupa um espaço entre as
individualidades do analista e do paciente como sujeitos separados. Portanto, o Terceiro
Analítico é construído por meio de um funcionamento mental dialético mutuamente
negador e criador que apesar de dar origem a uma nova subjetividade (a
intersubjetividade), permite que ambas as subjetividades individuais permaneçam
separadas uma da outra. Colocando em minhas próprias palavras: o terceiro analítico é
fruto da introjeção projetiva.
Durante uma sessão com o paciente L., em análise há três anos, Ogden se pega
prestando atenção em um envelope em cima de uma mesa que ficava próximo à sua
poltrona. Embora o envelope estivesse ali a semana toda, apenas nesse momento
passa a chamar sua atenção. Ele vinha utilizando o mesmo para fazer algumas
anotações pessoais.
Apesar de o envelope estar ali há mais de uma semana, só agora percebe umas
marcas nele, que parecem indicar que seja parte de uma mala direta (ou seja,
impessoal). Decepciona-se com essa impressão, pois a carta era de um amigo e tratava
de um assunto delicado que deveria ser confidencial (pessoal). Analisando o envelope
Ogden, pela primeira vez, repara nas palavras “Wolfgang Amadeus Mozart”, mas
demora para perceber que era um nome familiar.
Ogden relata que em anos anteriores ele costumava ignorar esses devaneios,
cuja presença parecia interferir em sua escuta analítica. Dessa vez, contudo, tenta
entender de que forma esses pensamentos estariam relacionados com o setting.
Podemos observar, aqui, o início do movimento dialético entre paciente e analista, e
entre ambos e o terceiro analítico intersubjetivo. Ogden inicia seu relato contando sobre
alguns devaneios seus que, aparentemente, não estavam relacionados ao paciente.
mas, ao entender seus pensamentos como sendo produzidos não por ele
individualmente, mas no e com o terceiro analítico, o autor adentra o território das
relações entre subjetividade e intersubjetividade.
Em seguida, Ogden diz que o esforço para fazer essa mudança no estado
psicológico, ou seja, sair de seus devaneios e voltar para a sessão e, ponto central,
introduzindo seus pensamentos no material clínico, se parecia (o esforço) “com a
penosa batalha para tentar ‘combater o recalque’ que eu já havia experimentado ao
tentar me lembrar de um sonho…” (p. 62) O autor não aprofunda o assunto no livro, ou
seja, a dificuldade de se trabalhar com fatos clínicos intersubjetivos, mas penso ser
importante ressaltar que esse “esforço” é comum em tais situações. Há,
frequentemente, uma resistência à introduzir devaneios pessoais do analista no material
clínico; mas o enfrentamento dessa resistência geralmente é recompensado, quando o
analista não desiste da tarefa.
O autor dá-se conta de que sua fantasia de que a carta era parte de uma mala
direta indicava sua desconfiança sobre o caráter genuíno de intimidade da mesma, e
refletia seu receio de ter sido enganado, de modo que se sentiu ingênuo por achar que
um segredo importante estaria lhe sendo confiado.
... a imagem de um saco postal cheio de cartas com selos que haviam
sido carimbados, uma bolsa cheia de ovos de aranha, Charlotte´s Web
(A teia de Charlotte), a mensagem de Charlotte na teia de aranha;
Templeton, o rato, e o inocente Wilbur.
(p. 62)
Ogden diz que esses pensamentos não pareciam alcançar o que estava
acontecendo entre ele e o paciente. Em seguida, percebe que o Sr. L. está falando de
forma cansada e desanimada (algo que era comum), embora procurasse obedecer a
regra da “associação livre”. Esse paciente vinha buscando meios de fugir de um
isolamento emocional grave em relação aos outros e a si mesmo. Por exemplo, não
sentia que sua casa era sua, assim como sua esposa e filhos não lhe pareciam seus.
Dando sequência a seu movimento de escutar a si, ao paciente, e considerar
ambos materiais como sendo gerados na e com a matriz intersubjetiva (o terceiro
analíticoa), Ogden tem a ideia de que talvez se sentisse enganado pelo paciente
(fazendo uma ligação entre seu sentimento em relação ao envelope e a fala do paciente)
e a aparente sinceridade de seu esforço por falar, mas essa ideia lhe pareceu vazia.
Contudo, em seguida, o autor lembra da frustração na voz do paciente quando relatava
não conseguir entrar em contato com seus sentimentos. Ou seja, primeiramente, Ogden
tentou ligar seus devaneios ao material do paciente por meio do conteúdo “estar sendo
enganado”, mas sente que é uma ligação vazia. Em seguida, ele tem uma lembrança
sobre um conteúdo do paciente. Essa lembrança, levando em conta a concepção que o
autor tem da intersubjetividade, é gerada no e com o terceiro analítico; e começa, como
veremos, a colocar Ogden no caminho certo.
Em seguida Ogden conta que o paciente sonhava com frequência com pessoas
paralisadas, prisioneiras e mudas. Num sonho recente, após muito esforço para
conseguir quebrar uma pedra encontra hieróglifos entalhados em seu interior, o que lhe
causou decepção, por não ser capaz de entendê-los. No sonho, a descoberta foi
excitante e em seguida desesperadora. Mas, ao despertar, o desespero foi obliterado e
o sonho tornou-se algo sem vida.
(p. 65)
Ogden diz que poderia ter utilizado as imagens que tinha tido como símbolos do
material trazido com frequência pelo paciente, como por exemplo, a sensação de
isolamento que acompanhava tudo que o paciente dizia, mas sentiu que estaria sendo
repetitivo e que o momento não era inadequado, ou seja, não achava que era a hora de
fazer uma interpretação.
Ogden se lembra das cores vivas dos selos do envelope, em contraste com as
marcas “indeléveis do carimbo da máquina” (p. 66). Olha novamente para o envelope e
percebe algo que havia ficado como um característica secundária esse tempo todo: que
seu nome no envelope tinha sido escrito de forma bastante pessoal, à máquina de
escrever manual, e não por um computador ou etiqueta postal. Fica “quase feliz” (p. 66)
pela característica de pessoalidade com a qual seu nome havia sido “falado” (p. 66),
como se uma voz humana estivesse de fato falando com ele.
Da outra vez que Ogden havia tentado ligar conteúdos do paciente com os seus
e, por fim, não achou tal relação pertinente, havia, logo em seguida, lembrado da
frustração na voz do paciente ao admitir que não conseguir entrar em contato com seus
sentimentos. Ou seja, a mente de Ogden parece perscrutar o campo, sob a influência
do terceiro analítico. Agora, novamente, após descartar a possibilidade de interpretar, o
autor é levado a outro conteúdo, mas oposto àquele de ausência de afeto: a voz suave
da secretária eletrônica e as cores vivas dos selos do envelope.
Em seguida, lembrou que o Sr. L. havia descrito sua mãe como “cerebralmente
morta”, sem condição alguma de demonstrar emoções e lidar com dificuldades
emocionais, o que fazia com que tivesse uma enorme incapacidade de reconhecer a
vida interna do paciente. Por exemplo, quando o paciente, ainda criança, tinha medo de
que existissem monstros embaixo de sua cama, recebia de sua mãe respostas do tipo:
“Aí não tem nada do que ter medo” (p. 67).
Eu disse ao paciente que pensava que nossa hora juntos devia parecer
a ele um exercício obrigatório e chato, algo como um emprego numa
fábrica onde se põe e tira o cartão de ponto. Disse, em seguida, ter a
sensação de que ele às vezes se sentia tão inevitavelmente asfixiado nas
sessões comigo, que devia ser como estar sufocando por algo que
parece ser ar, mas na verdade é vácuo.
(p. 68)
O autor relata que após a interpretação a voz do paciente ficou clara e alta, de
uma forma que o analista nunca tinha escutado antes. O paciente concorda com a
interpretação e diz que dorme com as janelas abertas devido ao medo de se sufocar, e
que muitas vezes acorda aterrorizado, pensando que alguém estaria lhe sufocando
com um saco plástico. Diz que, com frequência, sente que a sala de análise está
quieta e quente demais, mas que só agora percebia esses sentimentos. Lamenta dar-
se conta do quão pouco percebe sobre o que se passa dentro de si, a ponto de não
saber quando uma sala está muito quente para ele.
Na sessão seguinte o paciente traz um sonho. Ele estava debaixo d’água com
outras pessoas, todos estavam nus (e isso não era um incômodo). O paciente estava
segurando a respiração e sentiu pânico ao imaginar que ia se afogar quando ficasse
sem ar. Um homem lhe disse que não tinha problema, que ele podia respirar
normalmente. Ele tentou, com receio, e descobriu que realmente conseguia respirar.
Em seguida, em outro local mas ainda debaixo d’água, o paciente sentia grande tristeza
e chorava profundamente. Um amigo falou com ele, e o Sr. L. sentiu-se agradecido dele
não tentar animá-lo ou tranquilizá-lo. Acordou do sonho muito triste, embora sem saber
o motivo. Percebe-se tentando mudar o foco do sentimento de tristeza para outros
assuntos, com os quais se distraia.
Ogden encerra seu relato aqui; ele abordará o sonho novamente na discussão.
Discussão
O autor diz que o relato de caso não é exemplo de um divisor de águas, mas do
movimento dialético entre subjetividade e intersubjetividade, o que ficou bem claro em
nossa análise. De fato, ao ler o relato percebemos que não estamos diante de algo
intenso, brusco, como por exemplo, um enactment agudo, cuja consequência é a de
restabelecer a relação triangular de forma abrupta (Cassorla, 2016). No exemplo acima,
pelo contrário, o que vemos é a ação criativa de um processo dialético entre as
subjetividades de paciente e analista e o terceiro analítico. Isso é importante, pois deixa
claro que o autor quer chamar a atenção para um fato corriqueiro do processo analítico,
e não de um processo patológico dominado por defesas intensas, ou seja, não é um
exemplo de uma identificação projetiva.
Ogden acredita que tudo que acontece na sessão analítica carrega a influência
da intersubjetividade, ou, como ele coloca, do terceiro analítico. Após nos contar que
durante seus estados de rêverie não conseguiu focar-se em seu paciente, ele inicia a
discussão do caso dizendo:
Quanto aos desdobramentos do material clínico em si, minha experiência
do envelope (no contexto da análise) começou com eu notando o
envelope, que, apesar de estar fisicamente presente durante semanas,
só naquele ponto surgiu como evento psicológico, um portador de
significados psicológicos, que não existiam antes daquele momento.
Entendo esses novos significados não só como um reflexo do
levantamento de um recalque dentro de mim, mas como um evento que
reflete o fato de que um novo sujeito (o terceiro-analítico) estava sendo
produzido pelo (entre) Sr. L. e mim, o que resultou na criação do envelope
como um “objeto analítico” (Bion, 1962a, Green 1975). Quando percebi
esse ‘novo objeto’ sobre minha mesa, fui atraído por ele de uma maneira
tão completamente egossintônica, a ponto de construir um
acontecimento de que eu não tinha a menor consciência. Notei as marcas
feitas a máquina no envelope, que também não tinham estado ali (para
mim) até aquele ponto. Vivenciei essas marcas pela primeira vez no
contexto de uma matriz de significados relacionados com a decepção
devido à ausência de um sentimento de que estivessem falando comigo
de um modo que soasse pessoal. Os selos sem carimbo foram
igualmente ‘criados’ e tomaram seu lugar na experiência intersubjetiva
que estava sendo elaborada. Meus sentimentos de estranhamento
chegarem a tal ponto que mal reconheci o nome de Mozart como parte
de uma linguagem comum. (P. 71).
A passagem acima diz muitas coisas e é muito bonita. Chamarei atenção para o
fato de que o fenômeno em questão não é o de identificação projetiva. O analista está
funcionando na posição depressiva, pelo menos predominantemente. Não há sinais de
que esteja imobilizado ou sendo invadido por conteúdos mentais insuportáveis. Não há
sinais de um conluio inconsciente paralisante, pelo menos não nessa consulta. A
capacidade de simbolizar do analista está suficientemente preservada. A ênfase de
Ogden recai sobre o fato de que os conteúdos gerados na mente do analista são frutos
de fenômenos intersubjetivos.
Ogden continua:
Quando dirigi novamente minha atenção para o Sr. L., depois da série de
pensamentos e sentimentos relacionados ao envelope, estava mais
receptivo para a qualidade esquizoide da experiência do Sr. L. e para a
inutilidade das tentativas, tanto dele quanto minhas, de criar juntos algo
que parecesse real. Estava mais intensamente consciente do sentimento
de arbitrariedade associado a sua sensação do seu lugar na família e no
mundo, assim como do sentimento de vazio associado a meus próprios
esforços para ser um analista para ele. (P. 72 e 73).
Quando retorna de seus devaneios e dirige novamente sua atenção ao Sr. L.,
Ogden está mais consciente dos sentimentos de não pertencimento e de irrealidade do
paciente e de ambos no contexto da análise. Essa nova consciência do que acontecia
com o paciente e com a análise foi adquirida depois que o autor pôde considerar seus
devaneios como fenômenos intersubjetivos e buscou dar a eles significado.
Isso levou Ogden, e talvez tivesse levado muitos analistas, a tentar explicar o
que estava acontecendo por meio do conceito de identificação projetiva. Ele coloca da
seguinte forma:
Ogden diz, novamente (pois ná página 64 já havia dito que tinha descartado essa
hipótese) que a hipótese de estar vivenciando uma identificação projetiva é apenas
“parcialmente satisfatória”. E na nota de rodapé da página 73 ele diz isso de novo,
conforme citação abaixo:
Eu disse ao paciente que pensava que nossa hora juntos devia parecer
a ele um exercício obrigatório e chato, algo como um emprego numa
fábrica onde se põe e se tira o cartão de ponto. Disse, em seguida, ter a
sensação de que ele às vezes se sentia tão inevitavelmente asfixiado nas
sessões comigo, que devia ser como estar sufocando por algo que
parece ser ar, mas na verdade é vácuo. (P. 68).
Segue um longo silêncio, o mais longo até então. O silêncio é um fato novo e
devido ao contexto Ogden o entende como um contraste em relação ao medo de
sufocar-se (e ser sufocado pelo analista). O silêncio tinha portanto o significado de
relaxamento, alívio e um certo descanso após o “dever cumprido”.
Ele diz:
Ogden considera o fato de estar debaixo d’água, como um contato com algo
mais profundo, inconsciente, de modo que expressava que ambos haviam atingido algo
inconsciente na sessão anterior. O homem que dizia que o paciente podia respirar era
o analista, que não tinha medo de ser ‘afogado’ pelos sentimentos de “isolamento,
tristeza e futilidade” (p. 76) do paciente, e que não temia por ele (acreditava que podia
respirar). Como resultado disso, o paciente, por sua vez, “ousava estar vivo, (inspirar)”
(p. 76). O sonho sugeria ainda que a experiência do paciente não lhe parecia real,
representada por sua descrença de que era mesmo capaz de fazer o que fazia
(respirar).
Tentei demonstrar, nessa discussão clínica, que essas rêveries não são
simples reflexos de desatenção, absorção narcísica, conflitos emocionais
não-resolvidos e coisas semelhantes. Essa atividade psicológica
representa, antes, formas simbólicas e proto-simbólicas (baseadas em
sensações) atribuídas à experiência não-articulada (e muitas vezes ainda
não sentida) do analisando, quando estas estão ganhando forma na
intersubjetividade do par analítico (isto é, no terceiro analítico).
É muito comum, diz Ogden, que o analista tente deixar de lado, superar, esses
devaneios, como se fossem um empecilho a sua escuta e a sua capacidade de estar
atento ao paciente. Mas essa postura exclui grande parte de fatos clínicos importantes
vivenciados pelo analista. Segundo Ogden, um motivo importante para a dificuldade de
se levar esses conteúdos a sério e inseri-los no contexto analítico, é que tal atitude
“implica uma forma perturbadora de auto-consciência” (p. 79) Uma análise desse tipo
de material envolve uma análise da forma como falamos com nós mesmos, e a
comunicação entre inconsciente e consciente atinge um nível semelhante ao do sonho.
Entrar em contato com esses estados psíquicos num nível de investigação profunda é
se envolver com um “santuário internos essencial de privacidade e, portanto, com uma
das pedras angulares da nossa sanidade” (p. 79). Para Ogden, adentrar essa área é
pisar em solo sagrado. E ele finaliza profetizando: