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I Cena - A autópsia da Gis.

Dramaturgia Letícia Rodrigues e Misael Batista


Direção Flavinho Ramos.

( risadas das crianças três toques )

- Como fiquei desfigurada , acabaram comigo ... as


cinzas dos cigarros ainda permanecem em meu corpo ,
( se tocando) passou , passou, passou. .. Eu sou
Gisberta Salce Júnior, eu voltei para deixar claro para
cada um de vocês o que fizeram comigo, não quero que
aconteça com mais ninguém!

- Minha autópsia confirmou... Lesões na cabeça, no


pescoço, nos membros inferiores e superiores, laringe,
traquéia, abdômen, intestino e rins, infiltrações
hemorrágicas, escoriações e infiltrações sanguíneas.
Mas a causa da minha morte foi afogamento, o que
ajudou os acusados...

(Trilha)

- Os menores que antes tinham sido acusados de


homicídio qualificado tiveram acusação alterada para
ofensas corporais qualificadas e o único que poderia
ser julgado enquanto adulto foi o mais velho, de 16
anos. Mas o restante do grupo testemunhou que ele
apenas assistiu as agressões, mas não chegou a
participar. Ele então foi condenado há 8 meses por
omissão de homicídio, ou seja por não ter ajudado uma
pessoa que corria o risco de morte.

- Apenas um ano e meio após o assassinato todos


estavam livres...

- O juiz disse que o assassinato foi uma brincadeira de


mal gosto de criança que fugiu apenas do controle.

- Eu fui amarrada em um pedaço de madeira e retirada


do buraco mais no fim do julgamento determinou que
quem me matou foi a água, não as crianças e não as
pessoas que me atiraram dentro da água.

- Mas deixa eu começar do início...

(Música instrumental “Se essa rua fosse minha”... )


II Cena - Família
- Eu sempre tive medo da violência.

- Eu nasci Gisberto, nome em homenagem ao meu pai


em São Paulo, caçula de uma família com oito filhos.
Ainda na infância eu dava sinais de que estava num
corpo que não correspondia à minha identidade de
gênero. Após a morte do pai, confessei à minha família
que, ainda na adolescência, gostaria de ser mulher. Aos
18 anos, com medo da crescente violência contra
transexuais na capital paulista, optei por mudar para a
França.

- Mais tarde, já depois de realizar meu tratamento


hormonal e fazer implante de silicone nos seios, me
mudei para o Porto, Fazia apresentações de
transformismo em bares e boates.

- Quando lembrei a minha mãe que nos meus 14 anos, já


depois da morte do meu pai, eu disse a ela “mãe, serei
mulher”...

(Música “Mudanças - Vanuza'').

- Eu, imigrante brasileira, possuía visto de residência e


me adaptei à vida em Portugal. Os contatos com a
família eram raros. Com o passar dos anos, no entanto,
sua situação começou a se deteriorar.
III Cena - Carolina e Leonardo seus
melhores amigos.

- Minha vida era dividida assim: meus shows e meus


dois verdadeiros amigos. Sim, eu morava com dois
grandes amigos, Carolina e Leonardo, a gente comia
juntos, dormia juntos e passeava juntos... na hora de
bancar as despesas não tinha como eles bancarem por
que Carolina e Leonardo são meus dois cachorrinhos
lindos ... (chama Carolina) Carolina... (Mímica e
pantomima) Carolina é dócil, amiga e carinhosa. Já o
Leonardo (puxando o vestido na mímica) deixa de
ciúmes Leonardo ainda irei lhe apresentar... (oferece
para alguém da platéia)

- Por favor segura Carolina... (chama Léo) vem


Leonardo! Esse já é mais velho e pesado (oferece a
alguém da plateia) segura ele por favor...

- Você está vendo como Carolina é mansa tenta olhar


nos olhos dela... tá vendo ela tá dizendo que te ama ...

- E você!? Afaga o Leonardo, ele é manso, é só


ciumento...

- É incrível como nossos pets sabem a hora que estamos


tristes, vem de imediato nos acudir...
- Uma vez quando viajei, fiquei um final de semana fora,
abasteci de comida para eles e quando eles sentiram
meu perfume já começaram a latir e eu ouvindo a
felicidade deles de saber que estava por perto desse dia
em diante procurava não deixar sós tanto tempo...

- Mas a vida é assim, precisava fazer os shows para a


comida deles não faltar e também me perdoem, eu não
confio em todo mundo para cuidar dos meus filhos...

- (olha para Carolina) Moça, que lindo ela dormiu em


seus braços... Isso é um bom sinal.

- (olha para Leonardo) Leonardo ele é o nosso guardião,


não dorme, porém se sentiu seguro em seus braços...

- Carolina Leonardo... (Chama os dois)

(começa a circular contado )

- Obrigada. Por serem meus amigos ...

- Certa vez nessas minhas saídas de casa para resolver as


coisas, vim do supermercado, entrei em casa coloquei
as sacolas em cima da mesa... chamei por várias vezes
Carolina e Leonardo e vi que eles não vinham...

- Foi quando percebi a porta da sala aberta...

- Carolina e Leonardo saíram correndo e um carro


atropelou os dois....
- Sim... Eu perdi meus dois verdadeiros amigos...

(Música de Carolina e Leonardo Os cachorrinhos que


morrem atropelados.)
Os dois verdadeiros amigos de Gisberta

Oh que dor...
Levai o que no jaz
O que nos trás

A árvore tomba
O fruto chora e pedi paz

Transforma lágrimas em doce leite oh canaã

(pega Carolina e Leonardo mortos)

Oh me dai
Conforme o frio eu darei o cobertor enquanto vais
Eu cobrirei faço favor
Eu te agradeço
Eu te ofereço
Sentimento mais profundo
Eu estou órfã
Pois eles nasceram
Filhos do mundo.

(blackout)
IV Cena - Em Portugal fui babá ou
Ama?!
- Depois de fazer vários shows em SP comecei a perceber
que o índice de mortes de travestis estavam
aumentando no Brasil, não pensei duas vezes em sair
daqui e ir para Portugal, chegando lá conheci uma
mulher que trabalhava com sexo no porto, quando ela
me viu fina, educada bem e vestida a mãe do bebê
Fernando pergunta se eu quero ser a babá dele eu fui ...

- Quando peguei Fernando nos braços eu vi o momento


mais feliz da minha vida, encontrei minha família e
meus novos amigos...

(Música de ninar pega o Fernando nos braços…)

- Com o tempo, perdi o contato com a família. Fernando


já tinha 14 anos, o que eu não esperava era que ele
fosse um dos meus assassinos e detalhe ao me vê ele
me reconheceu...

(Canta a canção de ninar e oferece para alguém da


plateia).

- Queres criar o Fernando???


Cena V (Estética do uso das drogas que poderá
colocar o final oferecendo o Fernando para o povo
criar)

Cena VI - Cena em Off

(Foco mesa e um cadeira)

- Nuno off: Gis , Gis... Gisberta sente aqui minha


querida...

- A Gis: Nuno, você por aqui ???

- Nuno off: Precisei vir, Gisberta não se entregue... cadê


aquela mulher linda bem maquilhada que
movimentava discotecas boas da moda do Porto???

- A Gis: Eu estou cansada, Nuno, apenas... cansada !

- Nuno: Cansada e triste, sua aparência e seu porte físico


estão em decadência Gis... reaja .

- A Gis: Não posso voltar atrás...

- Nuno: Porque você largou o tratamento no hospital


Joaquim Urbano???

- A Gis: Aquelas regras de hospital não me adaptei aos


horários de dormir se acordar se medicar... larguei
também meu trabalho sexual não consigo trabalhar
desse jeito.
- Nuno: você está com anorexia magra muito magra e
fraca...

(A Gis sai de cena e vai para o consumo de drogas mais


pesadas)

(Cena que ela pedi para ficar na casa de alguém para Não
morrer)

- Por favor tenha dó de mim não faça eu voltar lá


embaixo, deixe me entrar eu fico no cantinho... não vou
fazer mal a ninguém é principalmente ninguém fará
mal a mim, por favor, deixe entrar só quero poder
descansar...
Cena VII - Bonecos de voodu

Faça-se a luz em mim


E eu acesa de desejo
Que se estende do meu olhar ao Corcovado
Anatomicamente luz
Todo âmbar em tudo
Com a força de mil sóis
Ou independência de um satélite com luz própria
Brilho reluzente nas trevas da noite
Notívago sempre
Amazona das nuvens em êxtase
Droga de paixão
Profanamente deusa
Deusa dos deuses
No Olimpo da ilusão
Culto ao nu

Minha nudez não será castigada


Nem tomada de um maniqueísmo qualquer
Sou de perto anormal, sim
Sou bonita,mas ordinária na ilusão do belo
Sou única , autêntica
Minha opção foi o aborto
Das ideias que cheiram a ferrugem
Sou singular, sou interestelar de raios

Minha digital é única


Assim como a minha imagem e semelhança
E grito aos humanos
O mais desumano grito
Hipócritas! Por que me abandonaste?!

Por que me atirasse pedras


Por que me entregastes?
Vocês desejam, almejam, latejam, sentem
À vontade escorrer
A carne de tão fraca gemer
Infinitivos prazeres
Fogo a queimar na inquisição
Purgatório dantesco
Homericamente se lambuzando nos corpos
Hirtos com uivos e alaridos
O cio vence e é vencido
Nos cortiços, nos guetos,nos quartos
E as veias pulsando prazer e dor
Confundem perigo e amor
Tal prostituta na igreja
Ou virgem no bordel
Me converto ao fruto proibido
Misturo Gênesis e Apocalipse e faço a revelação
Explodo de tantos quereres
No vai e vem ter dos seres
A mais estupenda exploração

São cacos do meu coração a morrer do desejo que goza


Quanto mais morro, mais brilho feito estrela supernova
Afirmo no ápice do orgasmo
A vida é um paraíso, mas todo paraíso tem as suas
serpentes!
(Música para cena do vestido de noiva)

Eu vi a lua
Boião de leite
Com sabor de ti
Na igreja nua
Noiva da rua

Na noite em que eu o perdi


Minguando cheia
Nova clareia
Em raios de luz
E as estrelas cospem poeiras
Sugando nuvens
Pingando blues

Amei, você amei


Amei você aqui
Amei você amei
Na noite em que eu o perdi
Pudera, o Deus pudera
Me vestir branco e azul
Me enebriar na noite
Na corte celeste
Embriagada em mim
Cena VIII - Serei uma Flor

(Cena cantada)

Sarça, quem é essa traça que aqui me arranha


Do ninho de cobras entre minhas entranhas
Suspiro luminoso de quem
Nunca teve um alguém
Nem amada por ninguém, por ninguém

Passa na chã dessa lua de trevas carnudas


Dá-se outra face uma lágrima desnuda
Esse olhar não me ilude
Q'esse salmo de açude
Esborrou juventude, juventude

Queixa
Se é ouro ou diamante, verdade eu não sei
E se a coroa é brilhante , também não sou rei
É tortura esse cheiro de ardor me apavora

Deixa
Que a doutrina da vida persiga o teu guia
Filosofia de vida é nascer com o dia
É morrer noite adentro , depois ressuscitar

Se há reencarnação
Na outra geração
Quero ser flor e se
Alguém perguntar
Diga que eu parti
E pra não explicar
Não me despedi
Se insistir ou chorar
Então eu já morri.
Cena final - "Já tive 12 anos"

- Venho de uma família humilde e passei dificuldade na


minha infância...

- Porém nunca passou pela minha cabeça fazer alguma


maldade na flor da idade aos 12 anos...
- Sim, teve crianças de 12 que me jogou (aponta para o
buraco)

(Música sou um anjo)

Eu sou um anjo ...


Eu sou um anjo ...
Um anjo pecador....
Vivo penando a busca de uma dor...

- Na verdade só pensava em crescer , evoluir sendo a


caçula dos meus 8 irmãos A minha intenção é contar a
minha história sob a perspetiva da Letícia Rodrigues o
que me incomoda é que eu não sei quando sou Gisberta
ou quando sou a Letícia na verdade somos todas
Gisbertas a dor dos corpos são as mesmas , as
dificuldades que passei aos 12 anos nunca me
incentivou a fazer uma maldade... se eu apontar para
qualquer amiga minha aqui é perguntar como foi seus
12 anos??? acho que devo estar paranoica ou algo do
tipo...
- Todo processo seja judicial, material ou físico ou
mesmo artístico paga -se um preço...

- Preciso continuar...

(Aponta para alguém da plateia)

- Você mataria uma travesti???

- Você convidaria uma amiga travesti para ceiar o


Natal???

- Você promete não esquecer da minha identidade de


gênero???

- E você???

- E você??? Esqueceria de mim ..???

- Como é meu nome??? (ouve)

- Como

( ouve )

- Mais alto

- Mais

- Mais
- Mais

(aumenta o som trilha sonora Balada de Gisberta)

A atriz entra no fosso do Teatro e não volta mais

Fim.

Basta um nome para lembrarmos de um Ódio.


Gisberta!

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